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Ano Novo, Vida Nova. Texto de Vera Karam

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Ano Novo, Vida

Nova. Texto de Vera Karam

2 PERSONAGENS

MERCEDES

MARTA

ROSA MARIA

CLARA

ANÁLIA

PAULO ROBERTO

NILTON

MÁRIO

TAVARES

UM HOMEM

AÇÃO

Uma sala de classe média. Três mulheres terminando de

arrumar a sala para a ceia do ano novo. Colocam uma faixa na

parede, onde se lê: QUE TUDO SE REALIZE NO ANO QUE VAI

NASCER.

MARTA – Lembra Mercedes: no ano passado o Alberto ainda

estava entre nós... Mais um que se foi...

MERCEDES – É... Mas não vamos falar em coisas tristes, hoje.

Como é que vai a tua coluna?

3 MARTA (Como quem se lembra da dor)- Ai, um incômodo só...

eu quase não tenho dormido, de tanto que me dói. Mas, fazer o

quê?

ROSA MARIA – Tu quase não tens dormido? Só se for de noite,

porque de manhã, quando eu ligo para lá, espero horas até a

madame me atender. E me atende com uma voz, que eu vou te

contar...

MARTA – Tu sabes que eu sou rouca de manhã cedo.

(Pigarreia.).

ROSA MARIA - Cedo? Oito horas é cedo, pra ti? Vocês acham

que oito horas pode ser considerado cedo?

MERCEDES – Tu, então, continuas ligando cedo, para acordar as

pessoas?

ROSA MARIA – Eu não ligo ‘para acordar as pessoas’. Eu

simplesmente ligo e não tenho culpa se elas ainda estão dormindo.

Eu tenho necessidade de falar. Tá me entendendo? Necessidade!

MERCEDES – Mas necessidade de falar às oito horas da manhã?

Benza Deus!

ROSA MARIA – Mas escutem: isso não é hora de ninguém estar

dormindo! O que é isto...

4 MERCEDES – Bem, eu também acho... eu, às oito horas, já estou

de pé há horas, já molhei as plantas...

ROSA MARIA - Plantas? Que plantas?

MERCEDES (Continua enumerando seus feitos) – Já passei

café, já fiz horrores!

ROSA MARIA – Não duvido...

MERCEDES – Mas o que é que tu tens com isso, se a coitada

precisa dormir até mais tarde?

MARTA – Cada um sabe do seu bio... biotipo... não, biorritmo. É

isso: é uma questão de biorritmo!

ROSA MARIA – É... Vou te dar biorritmo! No meu tempo isso tinha

outro nome!

MARTA – Ah, é? E que nome é esse? Quem sabe tu nos ilustras

um pouco?

ROSA MARIA – Não deixa eu abrir a minha boca!

MARTA – Tu sempre abres a tua boca mais do que o conveniente

quer deixemos ou não... (Mercedes abre um coração que está

5 numa corrente e olha uma foto. Enxuga os olhos.) O que foi

mana?

MERCEDES – Nada... nada... Entrou um cisco no meu olho...

ROSA MARIA - Entrou? Então tira! Queres que eu te ajude a tirar?

MERCEDES (Dá um grito) – Nãããõoo! A última vez que tu me

ajudaste, quase me deslocou a íris... quer dizer... a retina... Ah sei

lá!...

MARTA (Pensativa) – E a Íris, hein? Alguém tem notícias?

ROSA MARIA – Ninguém! E, também não acredito que alguém

QUEIRA ter notícias dela. Aquilo não valia nada!

MERCEDES – Também não é assim.

MARTA – É: eu também acho que não é assim.

ROSA MARIA – Ah tá! Tá bom... Vão defender aquela sem-

vergonha, agora. O quê vocês não fazem para me atacar? São

capazes de qualquer coisa pelo simples prazer de... (Todas param

para olhar Clara entrando na sala. Veste um chambre

acolchoado, até os pés, floreado.).

CLARA – Alguém falou na tia Íris?

6 MERCEDES – Clarinha, tu não vais te vestir, hoje?

CLARA – Eu estou nua, por acaso?

MARTA (Olhando para a roupa) – Mas o que é isso, hein?

ROSA MARIA – Por que ela está vestida desse jeito?

CLARA (Revoltada) – Assunto meu! Só meu!

MARTA – Mas hoje é ano novo, Clarinha...

CLARA (Revoltada) – Grande bosta!

ROSA MARIA (Se assusta) – Ai, que horror!

MERCEDES – Ela fez uma promessa.

ROSA MARIA - Como?

MERCEDES – Eu vou falar.

CLARA (Revoltada) – Fala! Fala! Pensa que eu tenho vergonha?

Pode falar!

MERCEDES – Eu vou falar: me sinto na obrigação de dizer alguma

coisa, de prestar algum esclarecimento!

7 CLARA (Revoltada) – Já disse que tô pouco ligando. Fala!

MERCEDES – A Clarinha... ela... fez uma promessa: passar um

ano de chambre, até arrumar alguma coisa...

ROSA MARIA – Como assim: alguma coisa?

MERCEDES – Até arrumar namorado. E termina hoje à meia-noite

a promessa.

MARTA – Mas como é que uma pessoa que já tem dificuldades

em arrumar namorado, vai arrumar namorado, vestida desse jeito?

ROSA MARIA – Que mal eu pergunte: ela não saiu de casa o ano

inteiro?

CLARA – Só para ir à farmácia!

MARTA – Vestida assim?

MERCEDES – Não. De jeito nenhum... Botou aquele outro azul-

marinho, aquele bonito, com aqueles botões... Ah, e depois, a

farmácia é aqui do lado, e o seu Ernesto conhece ela desde

pequena e...

MARTA – Sim, eu sei, mas que homem vai se interessar por uma

moça de chambre?

8 CLARA (Revoltada) – A senhora não entendeu, tia! Hoje, à meia-

noite, eu mudo de roupa! E aí, a promessa começa a dar certo.

MARTA – Sei... Vencido o prazo da carência, vai, digamos assim,

chover na tua horta! Que estranho...

CLARA (Aos gritos) – O que é que tem de estranho, hein? Me

diz! Me diz!

MARTA – Nada, Clarinha, nada... Só que eu acho que há outros

métodos, talvez mais eficazes.

ROSA MARIA – “Clube da Saudade”, por exemplo?

MARTA – Por que não?

MERCEDES – O último que tu arrumaste lá: deu no que deu!

MARTA (Bate na madeira e faz o sinal-da-cruz) – Ai, não me

lembra disso, pelo amor de Deus! (Batem à porta. É um vizinho,

seu Tavares.).

TAVARES – Boa noite. Não quero incomodar, mas as senhoras

não teriam, (faz mímica, como se estivesse abrindo uma

garrafa de vinho.) não teriam? (Elas se olham, sem entender.).

ROSA MARIA – O senhor pode me explicar melhor?

9 TAVARES – Saca-rolhas! (As três dão uma gargalhada

histérica.).

MERCEDES – Ai, seu Tavares: vou ficar lhe devendo! O Paulo

Roberto, meu irmão mais novo – quer dizer... irmão... Irmão de

criação... mas a gente criou como se fosse do mesmo sangue

(Vira para as outras.) – Aquele ingrato. Eu nem sei se a gente fez

bem em convidar. Afinal, (para ele.) o senhor acredita que ele

trocou a mulher por uma, que já era camanga dele, há três anos?

Quer dizer... se separar, ainda vá lá, mas que moral pode ter uma

mulher que foi “a outra” por mais de três anos? Não... eu vou lhe

contar... é uma punhalada atrás da outra...

TAVARES – E o?...

MERCEDES – O Paulo Roberto?

TAVARES – Não, o... (Faz a mímica de novo. Clara dá uma

gargalhada que termina numa espécie de relincho.).

CLARA – O saca-rolha? Ele ficou de trazer. Se vier, né?

MERCEDES (Bem séria) – Nós não temos saca-rolhas! Não

achamos correto! O senhor entende: eu sou viúva, moramos

somente eu e a minha filha...

10 ROSA MARIA – Mas é claro que o Paulo Roberto vem! No ano

novo, a família tem que passar junta, aconteça o que acontecer. O

senhor não acha seu Tavares?

TAVARES – Claro...

MERCEDES – Se o senhor quiser esperar... (Pisca para Clara,

que lhe devolve um olhar de ódio.).

TAVARES – Não... que é isso?... Agradeço! Com licença! (Sai.).

MARTA – Que tipão, hein?

ROSA MARIA – Aí, hein, Clarinha! Ele não tirou os olhos de ti!

CLARA (Entre animada e desconfiada) - É?

MERCEDES – Bobagem... Quem é que vai olhar para alguém de

chambre?

MARTA – Eu olharia: para ter certeza do que estou vendo!

CLARA (Olhando para a mãe, com raiva) – E a senhora: se

arruma toda e quem olha para a senhora? Quem?

MERCEDES (Abre o coração com a foto. Se prepara para

chorar) – Eu NÃO QUERO que ninguém me olhe, entendeu?

11 Quero que fiquem CEGOS ao passar por mim! CEGOS! Não

esqueçam que eu sou viúva! VI-Ú-VA! (Olha para Rosa Maria.)

Não sou uma solteirona. (Para Marta.) Nem uma desquitada. Sou

viúva!

ROSA MARIA – Grande porcaria!

MERCEDES – E quem teve um marido como o meu, nunca mais,

entenderam? NUNCA MAIS!!!

ROSA MARIA – Ah sejamos sinceras: o Alencar nunca foi grande

coisa...

MARTA – A verdade é que o Alencar melhorou muitíssimo depois

da morte! Se melhorou!...

MERCEDES – Quietas! Não esqueçam que estão na MINHA casa!

Casa que ELE me deixou!

ROSA MARIA – É... deixou, mesmo... Foi a única coisa que ele

não conseguiu dilapidar (faz gestos de baralho. Sussurra.). Ele

jogava! Deve ter esquecido que tinha esse apartamento para

apostar, afinal, passava tão pouco tempo aqui... (Toca o telefone.

Mercedes atende.).

MERCEDES - Sim? Ela mesma! Como? Quem? Não acredito! Não

consigo acreditar. (Arregala os olhos. Faz gestos

12 incompreensíveis para as outras.) Mas venham para cá,

imediatamente! (Desliga.) Vocês não vão acreditar! O Nilton está

vindo para cá! Vem passar o ano novo conosco!

MARTA – Eu não vou acreditar, mesmo! O Nilton não tinha

morrido num desastre?

MERCEDES (Fica pensativa) – O Nilton? Nosso primo? Será?

Bom... vai ver que não... pois se ele está na cidade...

ROSA MARIA – Vai ver foi aquele irmão dele... Ah, que diferença

faz? Vivo ou morto, o importante é que ele vem!

MERCEDES – O importante é que vamos ter DOIS homens para a

ceia! Aliás, TRÊS (dá um riso histérico.). Há quanto tempo...

ROSA MARIA – Que é isso, Mercedes? Cruz, credo!

MARTA – Por que três?

MERCEDES – Ele vem com um colega. Um amigo... Também é

professor. Então, Clarinha, quem sabe, ahn! (Aponta para o

chambre.).

CLARA (Revoltada) – Já disse que não! Só à meia-noite! Eu não

fiquei o ano inteiro assim, para agora pôr tudo a perder.

13 MERCEDES – Mas esse amigo do Nilton, Clarinha? Quem sabe já

é ele?

ROSA MARIA (Para si mesma) – Eu tenho quase certeza de que

o Nilton morreu!

CLARA (Revoltada) – Mãe: põe uma coisa na tua cabeça –

promessa é para ser cumprida à risca, senão, não vale!

MERCEDES – Ah, mas três horas a mais, três horas a menos... Tu

achas que “Eles” (aponta para o céu.) estão tomando nota do

tempo?

CLARA (Revoltada) – Mãe: eu vou falar pela última vez – só troco

de roupa, depois da meia-noite! Fim. Encerrou o assunto!

ROSA MARIA (Para Marta) – Se isso é jeito de falar com a mãe...

MARTA – Cada um colhe o que planta...

ROSA MARIA (Se abana) – Que calorão!...

MARTA (Cochila) – Nem um ar-condicionado!...

ROSA MARIA – Mão fechada! Sempre foi.

MARTA – Ela não gosta, diz.

14 MERCEDES – O que é que as duas estão cochichando, posso

saber? Será que eu tenho o direito de saber, uma vez que estou

na MINHA casa e vocês são MINHAS convidadas?

MARTA – O ar, Mercedes!

MERCEDES – Que ar? O que é que tem o ar?

MARTA – O ar-refrigerado! Por que não mandou instalar?

ROSA MARIA – Tá até hoje dentro da caixa, vai acabar

estragando! Se é que já não estragou!

MERCEDES – E vocês acham que eu vou abrir a minha porta,

para me entrarem dois negros suados... com aqueles braços...

aqueles tórax reluzentes... e sólidos (Clara começa a se abanar.

Tonteia e senta.) na MINHA casa – casa que foi de Alencar -, para

instalarem um ar-condicionado? Tem cabimento?

ROSA MARIA – Que eu saiba: o Alencar não tinha nada contra os

negros... Principalmente, contra as negras...

MARTA – Rosa Maria!...

MERCEDES – Deixa... deixa ela falar... (Abre a medalhinha com

a foto. Sussurra.) Não dá bola, Alencar! Não liga tá? Elas não

sabem o que fazem! (Volta para elas.) Mais alguma coisa?

15 Queres te refrescar, Marta? Queres um leque? Se bem que, eu

acho que nem está tão quente assim. Esse calor que tu estás

sentindo, não é normal. Só te digo isso... Conheço os teus

calores!...

MARTA – Clarinha: senta aqui, do lado da tia!

CLARA (Revoltada) – Não quero!

MARTA – Por que essa agressividade, santo Cristo?

CLARA (Revoltada) – Ah, a senhora não lembra, não é?

MARTA – Do que, pelo amor de Deus?

CLARA (Revoltada) – É... É fácil esquecer!

ROSA MARIA (Cochicha) – Mercedes, tu tens que levar essa

menina ao ginecologista. Ela já (sussurra.) menstruou?

MERCEDES – Mas, Rosa Maria, ela já tem trinta anos! Já está

quase parando de menstruar!

ROSA MARIA – É mesmo? Então não é isso! Mas por que essa

revolta toda?

16 MERCEDES – Ela não tem pai, não te esquece! É praticamente

órfã de pai!

ROSA MARIA – Como “praticamente”? Ela É órfã de pai!

MERCEDES (Sem paciência) – Ah, então não sei, Rosa Maria!

Vai ver é a umidade que deixa ela assim tão... tão arisca...

ROSA MARIA – Mas, Mercedes, abre os olhos: essa menina não

tá “arisca”. Ela tá praticamente desequilibrada, ela...

MERCEDES – Pára de falar dos filhos dos outros? Quer parar?

(Rosa Maria faz aquele tradicional gesto de “eu não me meto

mais”.).

CLARA (Para Marta, revoltada) – A senhora esquece o que quer

esquecer. Assim é muito fácil!

MARTA – Acho que essa menina tá biruta! Bom, quem é quê, em

sã consciência, passa um ano inteiro de chambre? É ou não é?

CLARA – Pode falar. A senhora sempre teve vergonha de mim.

Sempre me achou desajeitada. Pensa que eu sou surda?

MARTA – Não! Eu penso que tu és louca! Surda, não!

CLARA – É. É sempre assim.

17 MARTA – Clara: vamos pôr as cartas na mesa! (Rosa Maria dá

uma gargalhada.) O que foi agora, Rosa Maria?

ROSA MARIA – Nada. Achei engraçado. Pensei que fosse um

convite!

MARTA – Tu sabes muito bem que eu larguei o jogo!

ROSA MARIA – Também... depois de tudo o que aconteceu...

MERCEDES – Quietas! Vamos ver o que a Clara tem a nos dizer!

CLARA (Revoltada) – É a primeira vez que eu vejo a senhora

interessada no que eu tenho a dizer!

MERCEDES – Meu Deus! Que gênio que tem essa menina!... Não

sei a quem puxou...

ROSA MARIA – Puxou à tia Eunice, prima do papai, lembram? Até

as manias! Ela vivia de rolo na cabeça, esperando ser convidada

para um baile, o que nunca chegou a acontecer. Quando,

finalmente, soltou os cabelos, eles estavam brancos. O cheiro não

se agüentava! Nunca mais saiu de casa.

CLARA – Vocês não se enxergam!

18 MARTA – Tá, Clara, mas agora me diz, por que é que tu não

queres sentar ao meu lado?

CLARA – Eu nunca vou esquecer aquele ano novo!

MARTA – Qual ano novo? Qual deles?

CLARA (Revoltada) – Que ano novo? A senhora ainda pergunta?

MARTA – Que eu saiba, tu já passou por TRINTA, até agora!

CLARA – VINTE E NOVE!

MARTA – Pois bem, e de qual desses vinte e nove anos novos tu

falas?

CLARA – Daquele de quando eu tinha nove anos!

ROSA MARIA – Nossa! Que memória, hein? Quisera eu ter uma

memória dessas!

MERCEDES – Para que, Rosa Maria? Nunca te aconteceu nada!

Querias lembrar o quê?

MARTA (Para Clara) – Virgem Maria! Ela se lembra de um ano

novo de vinte e um anos atrás...

19 CLARA – VINTE! VINTE anos atrás!

ROSA MARIA (Para Mercedes) – Mas a Clarinha já não fez

trinta? Claro que fez. (Faz as contas.) Clarinha: tu já tens trinta

anos e não vinte e nove como tu pensavas!

CLARA – Tenho vinte e nove! (Rosa Maria faz uma cara de

“bom, deixa assim”.).

MARTA – Mas o que foi que aconteceu há vinte e um... perdão:

vinte anos atrás?

CLARA – Eu ouvi a senhora dizer que eu parecia uma garça!

MARTA – Acho que tu não entendeste direito! Eu devo ter dito, sei

lá, que tu estavas ‘uma graça’... qualquer coisa assim...

ROSA MARIA – Como é dissimulada!...

CLARA (Revoltada) – Não vem com essa!... Pensa que eu não vi

a senhora me imitando? (Nisso batem à porta. Entram Nilton e o

tal colega. Um pouco atrás vem outro homem. O homem

cumprimenta a todos, formalmente, e senta-se, quieto em um

canto.).

NILTON (Animadíssimo) – Como vão as meninas?

20 ROSA MARIA – Nilton! (Alegre.) Como tu envelheceste! Cabelos

brancos... desfigurado... (Isso é dito quase como se fosse um

elogio.).

NILTON – Obrigado! Tu também! (Ela se espanta.) Esse é o

Mário, um colega meu!

MÁRIO – Muito prazer! O Nilton fala muito em vocês!

ROSA MARIA – É MESMO? E o que é que ele diz, hein?

MÁRIO (Perdido) – Bem... ele... ele... Gosta muito de vocês.

ROSA MARIA – Ah, mas isso é muito vago! Quero saber o que é

que ele diz de nós!

MERCEDES – Bem vamos entrando! (Eles olham para Clara,

intrigados.) Essa é Clara, a minha filha mais velha. E a mais moça

também: é a única! (Baixinho.) Com a graça de Deus!

NILTON – Ela... está doente?

MARTA – Em minha opinião, sim! (Sussurra.) Tá tantã!

NILTON – Por que é que ela está vestida assim?

MERCEDES – Eu explico.

21 CLARA – Pode deixar que eu explico: eu fiz uma promessa,

termina hoje à meia-noite - ficar um ano de chambre! (Eles olham

intrigadíssimos. Falam ao mesmo tempo.).

MÁRIO – Promessa para quê?

NILTON – Um ano com o mesmo chambre?

CLARA – Os detalhes não vêm ao caso!

NILTON – Bem, e o que é que se bebe?

MERCEDES – Nós estamos esperando o Paulo Roberto. Ele ficou

de trazer o champanhe. E o saca-rolha! Não sabíamos que vocês

vinham. Nos pegaram desprevenidas! Tomara que a comida dê

para todo o mundo! (Rosa Maria some.).

NILTON (Jovial) – Mas hoje é ano novo!

MERCEDES (Séria) – Sim, nós já sabemos disso! Mas é que nós

não bebemos sem uma presença masculina! De jeito nenhum!

NILTON – Bem, quem sabe eu e o Mário vamos comprar umas

cervejinhas, hein? (Rosa Maria volta para a sala, triunfante, com

uma garrafa de vermute na mão.).

ROSA MARIA – Eu sabia! Achei!

22 MERCEDES – Que é isso, Rosa Maria?

ROSA MARIA – Que é isso? Uma garrafa de vermute!

MERCEDES – E onde estava isso, Rosa Maria?

ROSA MARIA – Ah, tu não sabes? Embaixo da tua cama!

MERCEDES (Desconcertada) – Não sei como foi parar lá! Na

certa foi a empregada. (Para os homens.) Sabem como elas são,

não é?

ROSA MARIA – Mas, Mercedes: (bem séria, como quem vai dar

uma notícia.) tu NÃO TENS empregada!

MERCEDES – Sim, mas, se tivesse, ela certamente esconderia

garrafas de vermute embaixo da cama. Se não fizesse coisas

piores!

ROSA MARIA – É... o finado Alencar era uma prova viva de que

elas são capazes de tudo... Agora, infelizmente, uma prova

morta...

NILTON – Mário, tu te importas de irmos comprar umas cervejas?

Onde é que tem cascos?

23 MERCEDES – Não temos. Tu entendes: eu sou viúva. Moramos

somente eu e a minha filha!

NILTON (Muito “para cima”) – Tudo bem! A gente dá um jeito!

Vamos, Mário? (Saem. O homem que chegou com eles, fica

sentado, fumando e olhando umas revistas velhas. Paulo

Roberto chega com a mulher. Todos se cumprimentam.

Beijam a mulher dele, meio a contragosto.).

MERCEDES – Paulo, tu não vais acreditar: mas sabe quem veio

passar o ano novo conosco? O Nilton, nosso primo!

PAULO ROBERTO – O Nilton? Mas o Nilton não morreu num

desastre?

ROSA MARIA – Eu disse!...

MARTA – Ué!... Vai ver não morreu!...

MERCEDES – Como “vai ver não morreu”, se nós acabamos de

falar com ele? Será que estamos todas loucas?

PAULO ROBERTO – Sim, mas onde é que ele está?

ROSA MARIA – Foi comprar cerveja. (Todas se olham, agora já

duvidando de o terem visto.).

24 PAULO ROBERTO – Bom, ele pode até ter ido comprar cerveja,

mas que ele morreu, morreu! Bom, isso não vem ao caso. (Olha

para Clara.) O que houve Clarinha?

CLARA (Desafiadora) – O que houve, por quê?

PAULO ROBERTO – Por que estás vestida assim? Tá doente?

MARTA – Ela É doente!

CLARA (Histérica) – Eu fiz uma promessa! Dá para entender?

Uma promessa! Vocês nunca fizeram promessa? Nunca? Me

digam! (Paulo e a Mulher se olham. Dão de ombros.).

PAULO ROBERTO – Tudo bem!... Ninguém tem nada com isso!

CLARA (Adivinhem: revoltada) – É. Não tem mesmo! (Nisso

entram Nilton, Mário e as cervejas.).

NILTON – Paulo Roberto!

PAULO ROBERTO – Nilton! Como tá diferente! Mais... mais...

NILTON – Já sei: mais velho! Já tu estás mais moço. Alguma

novidade em vitaminas?

25 PAULO ROBERTO (Abraça a mulher) – É o amor! Tu não

imaginas o bem que faz...

NILTON – Não... não faço idéia...

PAULO ROBERTO – Continuas solteirão?

NILTON – Solteiro, eu diria.

PAULO ROBERTO – E esse daí, quem é? Não apresenta?

NILTON – É o Mário, um colega meu!

PAULO ROBERTO (Dando um forte aperto de mão no pobre

Mário) – Muito prazer: Paulo Roberto! (Marta e Clara ligaram a

televisão e estão vendo a novela.) Ah, mas até hoje? Tenham

dó, não é?

CLARA – É hoje que ela diz para a família, tudo o que tá “aqui”

(põe a mão no pescoço.) há anos!

ROSA MARIA (Sentando no braço do sofá, com um copo de

cerveja na mão) – Essa eu não perco de jeito nenhum!

MERCEDES – Rosa Maria: seria te pedir demais que tu sentasses

direito?

26 ROSA MARIA – Ai, Mercedes, não seja tão ortodoxa!

MERCEDES – Ela bebe um pouco e fica assim: resolve

“transgredir”. (Toca o telefone. Mercedes atende.) Sim. É, é da

casa da irmã dela. Quem gostaria? Alô? Ué, desligaram!

MARTA – Quem era?

MERCEDES – Não sei. Perguntaram se tu estavas aqui e

desligaram. Voz de mulher!

MARTA – Deve ser trote. (Todos olham para ela, desconfiados.)

Ou então, algum fã! (Olham mais desconfiados ainda.) Do tempo

da rádio, ora essa!

ROSA MARIA – Mas, Marta, faz vinte e seis anos que tu

abandonaste a carreira. Desculpe eu te dizer isso, mas não deve

ter nenhum vivo. Cai na real!

MERCEDES – Olha como a Rosa Maria tá: “cai na real”. Isso é

jeito de falar?

ROSA MARIA (Já bêbada) – Eu não sou como tu.

MERCEDES – Ah, mas eu não tenho a menor dúvida a esse

respeito!

27 ROSA MARIA – Procuro me modernizar.

MERCEDES – Sei... Conheço os teus modernismos. Agora, sai do

braço do sofá, que vai me estragar o tecido!

ROSA MARIA – Esse tecido já tá podre! É do tempo que o Alencar

parava em casa, de vez em quando... Ainda tava mais para casa

grande do que para senzala! (Morre de rir.).

MERCEDES – Marta: faz um café bem forte para ela!

ROSA MARIA – Eu não tomo café! Me ataca os nervos!

PAULO ROBERTO (Bem alto, para encobrir a conversa) –

Nilton: viste o jogo ontem?

NILTON – Não, eu... Eu não gosto de futebol.

PAULO ROBERTO (Desapontado) – Bom, mas assim fica difícil!

E do que é que tu gostas para a gente poder conversar?

ROSA MARIA (Para a mulher de Paulo, que, aliás, se chama

Anália) – Amélia: me alcança o prato de nozes?

ANÁLIA – Não é Amélia, é Anália!

ROSA MARIA – Mas é tão parecido, que eu confundo...

28 ANÁLIA – Se a senhora parar, e reparar bem, vai ver que é bem

diferente...

MARTA – E além do mais, ela não é tua empregada, é visita!

ROSA MARIA – Mas eu não fiz por mal, parem com isso...

MERCEDES – Será que não podes nem levantar?

ROSA MARIA – Imagina... (Levanta e se desequilibra.

Resmunga.) Adoram falar! They love to talk… but I don’t care… I

don’t mind… Who are they, after all?

MARTA – Que é isso, Rosa Maria? Tá com algum encosto

americano?

ROSA – Eu fiz toda a Aliança Francesa, esqueceram?

MARTA – Sim, mas tu tá falando inglês e não francês que eu

saiba!

ROSA MARIA – A Marta sempre foi assim: “que eu saiba”. Falsa

modéstia! “Posso estar errada”, aberta para que lhe apontem as

falhas. Muito “humana”, a Marta. Sempre muito disposta a rever

suas posições. Sei... A mim, tu não enganas...

MARTA – O que foi que deu nela, hein?

29 MERCEDES – Deixa, deixa... tá descontrolada! E tu, Mário, tens

namorada?

MÁRIO (Desprevenido) – Bem, na verdade, eu... NÃO!

MERCEDES – A Clarinha também não. Com trinta anos...

CLARA – Vinte e nove! Já disse que é vinte e nove, pombas!

ROSA MARIA (Começa a rir sozinha, se lembrando de alguma

coisa) – É verdade! Ela parecia uma garça quando começou a

crescer e não parou mais! Depois, na adolescência, foi trabalhar

de empacotadora, nas férias. O gerente embrulhou ela, direitinho!

(Morre de rir.).

MARTA – Rosa Maria, tu tá ficando inconveniente. Se bem que, eu

nunca te vi ser “conveniente” em nenhuma situação! Na melhor

das hipóteses, as pessoas conseguem te neutralizar!

CLARA (Revoltada) – Mas foi a senhora que disse que eu parecia

uma garça, não ela.

MARTA – Mas isso foi há vinte e um anos atrás.

CLARA – VINTE!!! VINTE!!!

30 MARTA – Tudo bem, mas todo o mundo erra. Não vejo porque

trazer esse assunto à baila, justo vinte e um anos depois! (Nisso,

Rosa aumenta o volume da TV e se ouve - da novela -, a

seguinte frase: NÃO SABEM POR QUÊ? PORQUE EU ODEIO

TODOS VOCÊS E PRETENDO IR ATÉ O FIM. Rosa se assusta

e abaixa o volume, rápido.).

PAULO ROBERTO – Nilton: desculpe eu te perguntar isso, mas tu

não achas, que esses professores estão sempre querendo fazer

frege? Não... que não dá para viver com um salário desses, não

dá, mas, convenhamos... Quem mandou escolher essa profissão?

Quem manda ser trouxa?

NILTON – Se tu achas que é ser trouxa querer ter direito de

escolher a profissão que te agrada e querer viver com dignidade...

PAULO ROBERTO – Mas que dignidade é essa? Sair fazendo

passeata e gritando na frente dos palácios é dignidade? Isso lá é

dignidade? São uns baderneiros, isso sim! Claro, não tô falando de

vocês, é lógico... não é isso... Mas têm uns que eu vou te dizer... A

Anália também era professora: fiz ela parar!

ANÁLIA – Eu SOU professora! E tu não me FIZESTE parar: só

não estou trabalhando, no momento!

PAULO ROBERTO – Se ela não precisa, vai se incomodar para

quê? Eu, graças a Deus, tô bem de vida!

31 ANÁLIA – Mas eu vou fazer o meu Mestrado, se Deus quiser!

PAULO ROBERTO – Bom, isso, depois a gente vê, amoreco! (Dá

uma piscadela para os homens.).

ROSA MARIA – Mercedes: sabe aquela toalha de linho, que foi da

tia Eunice e que veio parar aqui?

MERCEDES – “Veio parar aqui”: essa tá boa! Ela me deixou, antes

de morrer!

ROSA MARIA – E como é que tu sabes? Ela deixou por escrito?

Só se foi, porque a tia Eunice tinha perdido a voz, há anos:

(sussurra.) tinha câncer na laringe. Não acredito que as últimas

palavras que ela pronunciou antes de adoecer, tenham sido: “a

toalha de linho é da Mercedes”. Me desculpa, mas essa história tá

mal contada! Mário: me serve de mais cerveja, riquinho?

MERCEDES – Tudo bem, Rosa Maria: onde é que tu queres

chegar?

ROSA MARIA – Que eu não vejo razão!

MERCEDES – Não vês razão no quê, Rosa Maria?

ROSA MARIA – Não vejo razão para tu ficares de posse daquela

toalha! Uma toalha finíssima, com um bordado que não se

32 encontra mais – porque hoje em dia, ninguém mais sabe bordar!

As pessoas dizem que “não têm tempo”. Lá se vão os dias em que

as pessoas se dedicavam a essas delicadezas: bordado, pintura

em porcelana, piano... Tudo tão delicado!...

MARTA – Eu nunca te vi fazer uma coisa dessas, sequer.

(Mercedes sai da sala e volta com a toalha.).

MERCEDES (Dramática) – Tudo bem, Rosa Maria: (pega uma

tesoura e corta a toalha em três.) satisfeita, Rosa Maria?

ROSA MARIA – Ai, mas que judiaria! Isso é um crime...

CLARA – Quem é a senhora, tia, para falar? A senhora, que foi in-

ca-paz de me fazer aquela saia de crochê, quando eu pedi! Todas

as minhas colegas tinham aquela saia: menos a coitada, aqui. E

tudo por quê?

ROSA MARIA – Mas, Clara, tu hás de convir que uma saia para a

tua altura, quando eu terminasse de fazer, já teria saído da moda!

(Morre de rir. Enquanto isso, na TV, ouve-se a frase: A

SENHORA É UMA MENTIROSA! Ela leva um susto.) Como?

CLARA – A senhora sabe que não foi isso! A senhora tinha me

prometido fazer, se eu levasse a linha. Economizei um mês de

mesada! A senhora foi enrolando, enrolando e acabou não

fazendo.

33 ROSA MARIA – Mas, minha filha...

CLARA – Eu não sou sua filha! Até porque, que eu saiba: a

senhora é virgem!

MARTA – Pelo menos é o que se comenta!...

ROSA MARIA – Posso explicar a minha versão da história?

MARTA – Da virgindade?

ROSA MARIA – Não: da saia! (Resolve, não se sabe por que

cargas d’água, alugar o pobre do Mário. Pega a mão dele e

começa a contar a história da saia.) Veja bem: ela me levou os

carretéis de linha – carretéis ou novelos? Só que a linha, era preta.

Dá para entender?

MÁRIO – Bem, hmmm...

ROSA MARIA – Linha preta, meu anjo... É Mário, né? O que é que

tu me dizes?

MÁRIO (Perdido) – Bem... Eu gosto muito de preto. Acho,

inclusive, que é...

ROSA MARIA – Mas não é isso: tu não consegues entender.

34 MÁRIO (Olha para Nilton, pedindo socorro) – É... não consigo!

MARTA – Que mal eu pergunte Rosa Maria, qual é o problema da

linha ser preta? Nos esclarece esse ponto, que é onde me parece

estar a chave da questão.

ROSA MARIA – Ora, Marta: e eu não sou praticamente cega, de

noite?

MARTA (Surpresa) - É? Não sabia! Desde quando?

ROSA MARIA – Linha preta. De noite.

MARTA – Essa tua cegueira é novidade, para mim. Mais essa!...

ROSA MARIA – Tu só sabes do que te interessa saber!

CLARA – E de dia, hein, tia? De dia a senhora é paralítica?

ROSA MARIA – Ah, mas de dia, a tia não tem tempo.

MARTA – Não tem tempo? Tu não fazias e nem fazes nada o dia

inteiro! E ainda tinha aquela negrinha para te abanar nos dias de

calor!

MERCEDES – É... Foi a que ficou em melhor situação de nós três,

já que, COMO NUNCA CASOU, ficou com a pensão do papai,

35 inteirinha... Até que vale a pena morrer solteira! (Abre a

medalhinha, dá um beijo na foto e sussurra.) Desculpe, Alencar!

ROSA MARIA – Como “morrer solteira”? Eu ainda não morri, pelo

que eu sei... Ou já? (Marta faz um gesto de “é... mais ou

menos”.).

MERCEDES – Sim, mas tu não tens mais esperança de casar,

tens? Bem, nada é impossível! (Olha para Clara, pisca para

Mário, que está apavorado. Marta tira da bolsa uma

cadernetinha e escreve.) O que é isso, Marta?

MARTA - Me lembrei de mais uma coisa!

MERCEDES – Lista de supermercado?

MARTA – Claro que não! São as minhas resoluções de ano novo!

Já estou na 35ª.

ROSA MARIA – Vais parar de jogar?

MARTA – Esta foi de sete anos atrás e, com a graça de Deus, já

se realizou! E tu? Por que não te propões a deixar de acusar os

outros?

ROSA MARIA – Talvez fosse melhor, até mais eficaz, esqueceres

os remorsos: não te sentirias tão acusada!

36 MERCEDES – Ai, Rosa Maria, por que não deixas os pobres dos

mortos em paz?

ROSA MARIA – Os mortos eu posso deixar, mas e os assassinos?

MARTA – Escuta: eu não te dou o direito de tocar nesse assunto.

Tu não entendes nada disso. Tu nunca tiveste filho, e, além do

mais (Ouve-se da TV: ‘o problema, minha cara, é que a nossa

relação se alimenta do rancor que nutrimos uns pelos outros.

O dia em que pararmos de nos acusar, não vai sobrar nada.

Vamos perceber – surpresos -, que nos falta assunto’.).

MERCEDES – Ai, credo, desliga isso! Tem cabimento? Essas

novelas - vou te contar... Eles não têm mais o quê inventar... É

cada um mais louco que o outro, Deus que me perdoe...

CLARA (Se levanta, cada vez mais revoltada) – Não sei se é tão

absurdo assim! (Sai, e entra na cozinha, onde encontra Anália,

tomando calmante.) O que é isso, tia?

ANÁLIA – Um remédio que eu tenho que tomar.

CLARA – Para quê?

ANÁLIA – Para quê? Olha Clara: é difícil responder. Não é que eu

vá morrer se eu não tomar o remédio, mas, talvez eu vá matar! É

para agüentar certas coisas, que eu sei que estão erradas - e fazer

37 de conta que eu não vejo, porque senão eu vou ter que tomar

certas atitudes! E eu não sei se eu tenho mais paciência e força

para continuar brigando.

CLARA – Acho que eu tô precisando de um desses!

ANÁLIA – Acho que não. Tu precisas de um, que seja o contrário

desse. Um para sair disso aqui e... (Entra Mercedes e

interrompe.).

MERCEDES – Clara: são onze horas! Quem sabe tu te trocas?

CLARA – Mãe: onze horas não é a mesma coisa que meia-noite!

Onze horas ainda é o mesmo ano! Dá para entender a diferença?

(Sai.).

MERCEDES – Ai, Anália, que gênio que tem essa minha filha... Tu

não fazes idéia da cruz que eu carrego! Às vezes, até eu entendo

a Marta, quer dizer, não tô dizendo com isso, que ela teve culpa...

mas aquela menina dava trabalho! Um filho é uma obra cujo

resultado não se pode prever! Nem sempre, amor, carinho, relativo

conforto e um bom exemplo, são suficientes. O Alencar, meu

falecido marido – de quem eu fui a primeira e única mulher -, tinha

uma paciência de Jó, com essa menina. Pensa que ela dava

valor? Vivia revoltada, sempre acusando o pai, com olhares e

indiretas, saídas repentinas da mesa. Me estragou um jogo

completo de cadeiras com essas retiradas bruscas. Levantava e:

38 plaft! Lá se ia a cadeira para o chão! E, olha que não eram

cadeiras vagabundas! Não... Era jacarandá, minha filha. JA-CA-

RAN-DÁ! Tu sabes lá o que é isso? Quase não existem mais

móveis de jacarandá: é uma árvore praticamente em extinção.

Hoje em dia, quem tem móveis de jacarandá em casa, tem uma

preciosidade! Uma preciosidade! E ela conseguiu destruir TODAS!

Não sobrou UMA para deixar de herança. Essa menina já nasceu

revoltada. Bom, a ponto de não respeitar um jacarandá!... Vou-te

dizer: não queira ter filhos! Ah, mas tu não podes, não é? Vai ver é

melhor assim. Deus sabe o que faz – embora, às vezes, eu ache

que ele também experimenta um pouco, para ver com que cara a

gente fica... (Mercedes sai. Anália se entope de remédios e sai

atrás.).

ANÁLIA – Cadê o Paulo?

ROSA MARIA (Sussurrando) – No banheiro. Uma daquelas... tu

sabes, não é?

ANÁLIA – Daquelas o quê?

ROSA MARIA – Ele tem problema de intestino. Sempre teve.

ANÁLIA (Mal-humorada) – Eu nunca soube disso!

ROSA MARIA – Ué, mas e o remédio dele? A Gládis vivia

correndo para cima e para baixo com aquele remédio, e...

39 ANÁLIA - É? Vai ver que é por isso que ela era tão magra: de

tanto correr. Viu como ela engordou depois que se separou dele?

Parou para descansar! Tá até agora tomando fôlego!

ROSA MARIA – Bem, hoje em dia esses casamentos têm acordos

estranhos. Se é que se pode chamar de casamento e...

MARTA – Rosa Maria: vem aqui um pouquinho! Vamos ajudar a

Mercedes com o leitão!

ROSA MARIA – Mas vai ter leitão? Não me lembro de termos

comprado!

MARTA – Não compramos. Mas isso não importa: vem ajudar

assim mesmo... (Toca o telefone. Clara atende.).

CLARA – Sim, é a sobrinha dela! Quer fa... Como? Bem, eu vou

dar o recado! (Desliga. Grita.) Tia Marta! Ligou uma mulher

dizendo que é para a senhora se cuidar!

MARTA (Tentando rir) – Como assim?

ROSA MARIA – Ora, Marta, hoje em dia, quem é que não tem que

se cuidar? Essa mulher tá certa! Certíssima! Do jeito que estão as

coisas, o que a gente mais tem que fazer é se cuidar! (Para

Mário.) É ou não é?

40 MÁRIO – Claro! (Paulo Roberto volta do banheiro, fechando o

cinto, com um jornal na mão.).

PAULO ROBERTO – Pó, mas é brincadeira: corrida de Fórmula

um no canal dez, e nós aqui, vendo novelinha!... É pra matar!

(Muda o canal, com seu habitual estilo “enérgico”. Rosa Maria

fica parada, olhando impressionada, e dê-lhe cerveja.).

ROSA MARIA – Mas onde será que eles vão com tanta pressa?

Para que correr desse jeito? (Marta tira a caderneta da bolsa, e

anota mais uma resolução.).

MERCEDES – Clarinha: serve o Mário de mais cerveja. Afinal, ele

é visita!

CLARA – É visita, mas não perdeu os movimentos, que eu saiba.

ROSA MARIA – Os movimentos, não. Mas até agora,

praticamente, não se ouviu a voz do Mário.

MARTA – E alguém deu chance dele se pronunciar?

MERCEDES (Chamando Clara a um canto) – Minha filha, como é

que tu pretendes agradar o rapaz com este palavreado? Isso, sem

falar no chambre, não é? Essa combinação do chambre com esse

linguajar - sejamos francas: fica muito difícil!

41 CLARA – Quem disse para a senhora que eu pretendo agradar o

rapaz?

MERCEDES – Mas, minha filha, será que tu não és capaz de

reconhecer a mensagem? Passa o ano inteiro de chambre com um

determinado objetivo em mente...

CLARA – E daí?

MERCEDES – E daí que, sem rodeios: me diz quantos homens tu

viste entrar por essa porta nesses 365 dias? Fora o seu Darcy – da

fruteira – esse não conta! Quantos, Clara Maria?

CLARA – Não me chama de Clara Maria. Bom... fora o seu Darcy

da fruteira, e o tio Paulo, embora cada vez mais raramente, não

me lembro de mais nenhum.

MERCEDES – Então, minha filha?

CLARA – Então o quê, minha mãe?

MERCEDES – Então que, algumas horas antes de completar o

prazo, “Eles” (aponta para o céu.) te mandam, DENTRO DE

CASA, o que tu pediste e tu nem te dás conta? Só que a paciência

“d’Eles” também tem limites, e se tu continuas a tratar o rapaz

assim, vais pôr tudo a perder!

42 CLARA (Olha para Mário, analisando) - Será? (Meio

desapontada.) Um ano inteiro de chambre... para isso? Bom...

melhor que nada. (Resolve se aproximar dele, que é muito

educado. Ficam conversando, em um canto. Nilton olha

atravessado. Prossegue a corrida na televisão.).

ROSA MARIA – Sabe Amélia!...

ANÁLIA – Anália!

ROSA MARIA – Pois é: o Paulo Roberto desde pequenininho

gosta de velocidade!

MERCEDES – Pára de mentir, Rosa Maria! Nós não conhecemos

o Paulo Roberto desde pequenininho. Esqueceste que ele foi

adotado com dez anos?

ROSA MARIA – Não importa! O que importa é que ele sempre

gostou de velocidade. É ou não é?

MARTA – Também, no meio em que ele vivia até ser adotado pelo

papai, se não gostasse de velocidade, não teria durado até os dez

anos! Desculpe! (Toca o telefone. Marta atende.) Alô? Oi, tia

Anita! (Para os outros.) É a tia Anita! Obrigada, para vocês

também! (Para eles.) Tá desejando feliz ano novo! Sei... Mas não

será a gota? É, nessa época do ano, sei... ah... labirinto,

talvez...ahn... Pressão? Tá bom, tia Anita! Tá bom, tia Anita! Tá

43 bom, tia Anita! Tá b... Tá! Tá! Ah... Sabe quem tá aqui? O Nilton. É.

É. Como? Não... (Olha bem para o Nilton.) Tá vivo! Tá aqui na

minha frente! Tá bem vivo! Bom, pelo menos, parece, não é?...

(Desliga e fica olhando para Nilton, intrigadíssima. Toca o

telefone, outra vez e ela atende, distraída. Leva um susto e vai

ficando branca. Desliga e sai da sala correndo.).

MERCEDES – O que houve com a Marta, hein?

ROSA MARIA (Sem tirar os olhos da TV e sem parar de beber,

o pé balançando) – Sei lá... A Marta sempre foi esquisita,

misteriosa. Acho que tem dupla personalidade! Mas esses

telefonemas!... O que será que a Marta tá escondendo? O que não

pode vir à tona, o que não pode aparecer à luz do dia, enfim, o que

é muito melhor para todo o mundo, que ela CONTINUE

escondendo! Eu me espanto, às vezes, contigo, Mercedes: vives

de aparências e de vez em quando resolves te incomodar por não

saberes dos segredos dos outros! Para quê? Para que saber a

verdade? Certas verdades não devem nunca vir à tona, para que

as coisas fiquem como sempre foram: como elas devem parecer

que são. Porque quando as coisas não são como devem estar,

elas dão muito mais trabalho. Dá muito mais trabalho lidar com a

verdade: a verdade é muito mais estressante! E sabem por quê?

Porque a verdade se modifica: uma hora é uma coisa, daqui a

pouco não é mais nada disso. Ao passo que manter as aparências,

é muito mais cômodo. Viver “como se fosse” pode ser difícil, no

início, mas, depois que a gente pega o ritmo, a coisa engrena e

44 anda por si mesma. Meus queridos: fujam da verdade. Ela esgota

qualquer um. Peguemos como exemplo - minha querida Mercedes

- o teu casamento com o Alencar. Quando é que foi melhor?

Quando as coisas já eram a pouca vergonha que eram, mas vocês

faziam de conta que não - ele não valia nada, e tu fazias de conta

que não sabias -, ou quando a tal “verdade” ficou evidente? Foi um

caos: eu me lembro muito bem. A sorte dele – e, diga-se de

passagem, a tua – foi que ele morreu. O caráter dele foi

melhorando TANTO depois do enterro, e tu, te transformaste nesta

viúva saudosa, que foi a tua melhor saída. E eu não te condeno:

ias fazer o quê? Sair atrás da negra, bater boca, fazer ela te ajudar

a pagar as contas que ele te deixou? Não! Agistes muito bem! Só

não me vem agora te tomar de amores pela verdade! Amélia: me

serve de mais cerveja? (Anália se faz que não ouve.).

MERCEDES – Rosa Maria, enquanto tu estavas nos brindando

com aquela “obra-prima da filosofia universal” a respeito da

verdade, tudo bem! Mas, usar exemplos dos outros para ilustrar as

besteiras que te vêm à cabeça, é um pouco demais. Eu não estou

aqui, para isso, fui clara? (Rosa Maria faz cara de ofendida e dê-

lhe cerveja. Começam a ouvir uns gritos da rua, todos correm

à janela. Marta vem correndo, do quarto, com seu bloquinho,

terminando uma anotação. Uma mulher grita da rua, bêbada.).

VOZ DA MULHER (Fora) – Seis anos! Seis anos com esse filho

da puta, e para quê? PARA QUÊ? Abre essa janela, seu covarde,

abre! Não tem coragem, não é? Tem medo de ouvir umas

45 verdades, não é? Deixa eu dizer para a tua família, quem tu és de

verdade! Deixa: seu covarde, filho de uma puta! Aposto que tá

comemorando o ano novo com a família, e eu aqui. CRETINO!

ABRE ESSA JANELA ANTES QUE EU JOGUE UMA BOMBA! (A

mulher começa a chorar. Eles voltam para a sala.).

ROSA MARIA (Cínica) - Viram? A verdade, sempre a verdade

estragando as mais belas comemorações em família (balança a

cabeça.). Que judiaria!... Os pais de família economizam o ano

inteiro para proporcionar uma bonita ceia para os seus, e vem uma

louca e resolve dizer “umas verdades”, pondo tudo a perder!

MERCEDES – Essa já é conhecida! Há anos que ela faz isso! Vem

aqui no ano novo e começa a gritar embaixo da janela do 201. Eles

já sabem! Nas primeiras vezes fechavam bem a janela. Depois,

eles começaram a não passar mais o ano novo aqui. Dizem que

ele deixou dela num reveillon, e desde então, ela ficou assim,

coitada! (Olha para Marta.) Que foi Marta? Por que tu tá branca

desse jeito?

MARTA – Nada, Mercedes, ora essa! Sempre tive tendência à

palidez. Que novidade!... O que foi? Por que estão todos me

olhando?

MERCEDES – Eu lavo as minhas mãos!

46 ROSA MARIA (Dando uma gargalhada) – Tava demorando pra

Mercedes ficar bíblica!

MERCEDES – Rosa Maria, por que é que tu bebes nas festas?

ROSA MARIA – Para não beber escondida, como tu.

MARTA – Ou, como disse aquele escritor: “eu bebo para tornar as

pessoas interessantes”.

MERCEDES – Vocês não estão impressionadas de ver como a

Marta é ilustrada? Não sei qual das duas é pior!

MARTA – É... É difícil mesmo saber... (Mudaram o canal e estão

assistindo à corrida de São Silvestre.).

MERCEDES – Quem é essa gente, correndo? Mário, tu moras

sozinho?

MÁRIO (Assustado) – Algumas vezes... Quer dizer, às vezes eu

moro com a minha mãe.

MERCEDES (Não deixa por menos) – E nas outras vezes?

ROSA MARIA – Onde está a tua mãe hoje?

47 MÁRIO – Tá na casa do meu irmão, que é casado. Foi ver os

netos. Eles são loucos por ela.

MERCEDES – E tu não passas o ano novo com a família?

Preferes passar com estranhos?

MÁRIO – Bem... Eu e o Nilton pensamos em fazer uma coisa

diferente e...

ROSA MARIA (Gargalhando) – Acertou em cheio!

MERCEDES (Cochicha para Rosa Maria) – Não é esquisito

serem tão amigos, se nem da mesma idade são? Nenhum tem

namorada... Será que são neuróticos?

ROSA MARIA – Quem sabe não foi Deus quem mandou eles

virem aqui, hoje, para realizar o pedido de Clara?

MERCEDES – É... Vai ver que foi. Aliás, é a única explicação que

eu encontro para a presença deles aqui, hoje. Sendo bem sincera.

(Vai até a cozinha e volta.) Bem, gente... Vamos passar à mesa?

(Todos sentam. Toca a campainha.) Ai, meu Deus, o que será

agora? Será que uma família não pode sentar para jantar na santa

paz? (Levanta para abrir. É o porteiro, entregando uma carta.)

O que é isso? Tá, obrigada, seu Coisa! Boa noite! (Volta.) Uma

carta que entregaram para o porteiro. O que será, hein?

48 MARTA (Nervosa) – Quem sabe jantamos primeiro, e depois tu

abres? Deve ser uma bobagem!

MERCEDES – Sim, mas uma bobagem de quem? Para quem? Por

quê?

ROSA MARIA – Eu, por mim, acho melhor a gente jantar antes.

Vamos que eu perca o apetite depois de ler... Se eu começo o ano

novo já perdendo, ainda que seja o apetite, imagina o que me

espera... (Se serve e começa a comer.).

PAULO ROBERTO (Para Anália) – Amoreco: me serve! Pode

carregar, que eu tô com fome! E com saudades da comida da

Mercedes, que, afinal, a mesa não é o teu forte, é ou não é?

ANÁLIA (Serve, contrariada) – Grosseiro!...

MERCEDES – É... Depois que as relações se estabelecem, vem o

dia-a-dia, e aí é que são elas... É muito fácil ser uma supermulher

duas vezes por semana...

ANÁLIA – A senhora não sabe o que está dizendo. Eu nunca fiz

propaganda enganosa. Não usei “truques para roubar o Paulo da

Gládis”. Vocês sabem como são essas coisas! (Marta aproveita a

distração de Mercedes, se avança nas mãos dela, e rouba a

carta.).

49 MERCEDES – Ai, que susto! Que é isso? (Marta lê a carta e sai

chorando.) O que será, hein? Aqueles telefonemas, esse bilhete.

A Marta se meteu em alguma.

ANÁLIA – Acho que eu conheço os sintomas...

MERCEDES – A Marta não está bem...

ROSA MARIA – E quem é que pode viver bem, depois de ter,

praticamente, matado a filha?

MERCEDES – Não fala assim: o que é que os rapazes vão

pensar?

NILTON – Eu ouvi falar na morte da filha dela. Overdose, não é?

CLARA – Foi. (Olhando para Mercedes.) Passou a vida toda

junto com a mãe. Uma verdadeira overdose...

MERCEDES – Não foi nada disso! Ela tinha problemas de saúde,

desde pequena.

ROSA MARIA – Ela ameaçou se matar, e, mesmo assim, a Marta

saiu naquele dia!

MERCEDES – Bom, se cada vez que alguém da nossa família

ameaçar se matar, a gente não sair, a várias gerações não

50 teríamos posto os pés na rua! O problema não foi esse, e sim o

lugar onde ela estava enquanto a filha estrebuchava. Isto sim é

que é para acabar com a consciência de uma pessoa, para o resto

da vida. Por isso que ela é assim!

ROSA MARIA – Ah, Mercedes: ela sempre foi “assim”! Embora eu

não tenha a mínima idéia do que é que tu queres dizer com isso.

(Volta-se para Mário. Sussurra.) Além do mais, a Marta jogava,

sabe? Que nem o marido dessa aí, que só não perdeu esse

apartamento, porque não se lembrou que tinha...

MERCEDES – Rosa Maria, eu não admito que tu fales do finado

Alencar, aqui dentro!

ROSA MARIA – Ah é? E o que vai me adiantar falar dele lá fora?

Ele não era tão famoso assim. Até era, mas lá para as negras dele!

Aliás, literalmente! (Morre de rir.).

MERCEDES – Rosa Maria: sai dessa mesa!

ROSA MARIA – Eu não! Ainda nem acabei de comer! Não

esqueça que nós rachamos as despesas!

MERCEDES – “Rachamos as despesas”. ... O jeito que ela fala...

PAULO ROBERTO – Vamos parar com isso, por favor!

51 ROSA MARIA – Claro!... Quem tem telhado de vidro... (Bebe sem

parar.) They all have something to hide. They won’t open their

mouths, their hearts, and their doors. They can’t let anyone in.

MERCEDES – Iiihhh! Tá completamente gambá! Fica bilíngüe, se

descontrola...

ROSA MARIA – Já tu, como bebes o dia inteiro, tá sempre a

mesma coisa...

PAULO ROBERTO – Meninas, por favor! O que é que o Nilton vai

pensar? Fazia anos que ele não vinha aqui, nós até pensamos que

ele tivesse morrido, não é mesmo? (Olha para Nilton, como se

ainda não estivesse muito convencido de ele não estar morto.)

Ele resolve aparecer e vê uma cena dessas. Uma cena, não: uma

seqüência de cenas! Tão cedo, ele não vai querer voltar. É ou não

é?

ROSA MARIA – Ora, eu duvido que o Nilton também não tenha lá

os seus cadáveres no armário...

PAULO ROBERTO – O que é isso, Rosa Maria? Pega leve...

ROSA MARIA – Pega leve por quê? Todo o mundo tem, por que é

que o Nilton ia ser melhor?

52 ANÁLIA – Acho que não se trata de ser melhor ou pior, o que o

Paulo Roberto tá querendo dizer, é que ninguém tem o direito de

ficar futricando a vida dos outros desse jeito!

PAULO ROBERTO – Amoreco: deixa!

ROSA MARIA – Quer dizer que fazer as coisas erradas é

permitido? Falar dessas coisas é embaraçoso... Olha Amélia...

ANÁLIA – Eu NÃO SOU Amélia! Sou Anália! E quem é que pode

dizer o que é errado e o que não é?

CLARA (Para Rosa Maria) – A senhora pode, não é, tia? Só a

senhora. As pessoas estão sempre cometendo crimes e a senhora

– sozinha - é o corpo de jurados! A banca examinadora do mundo!

Julgando, condenando, reprovando!

ROSA MARIA – Que culpa eu tenho, se eu nasci para ver a minha

família se destruir, tomando sempre as decisões erradas?

ANÁLIA – E quais são, em sua opinião, essas decisões erradas?

PAULO ROBERTO – Amoreco! Não dá mais corda, amoreco!

ANÁLIA – Eu quero saber, ora essa! Aqui a gente só tem que

responder quando perguntam? Nunca pode fazer as perguntas?

53 PAULO ROBERTO (Exaltado) – Não põe mais lenha na fogueira,

amoreco!

ANÁLIA – Mas, por quê? Deixa eu perguntar, eu não tô fazendo

nada mesmo! Quero saber que decisões erradas são essas. Tô

cansada de ser tratada como quem ainda não pode participar dos

assuntos da família! Nem nas brigas me deixam entrar!

PAULO ROBERTO – Ah, mas é brincadeira!... Haja saco!... (Tenta

mudar de assunto, mas, como sempre, não é feliz na escolha

do tema.) Mas, Nilton, o teu apartamento é alugado ou teu

mesmo?

NILTON – Alugado.

PAULO ROBERTO – É... A gente põe muito dinheiro fora quando

é moço. Não pensa que um dia pode se arrepender.

NILTON – Mas eu não me arrependi. Também não acho que tenha

posto dinheiro fora.

PAULO ROBERTO – Sim, mas o que foi que tu fizeste com o

seguro que o teu pai te deixou? Foi para a Europa “aventurar”, ao

invés de adquirir alguma coisa!

NILTON (Calmíssimo) – Eu “adquiri” - como tu dizes - muitas

coisas na Europa (olha para Mário.). Mas acho que essa palavra

54 tem um significado diferente para mim, do que tem para ti.

Ninguém pode saber o que é melhor para os outros!

MERCEDES – Com exceção da Rosa Maria! Ela sempre sabe o

que é melhor para os outros. Só não sabe o que fazer da própria

vida. Mas, para quê, não é mesmo? Ela não tem tempo de viver a

própria vida: tem sempre a dos outros para administrar. Não pode

desviar a atenção!

ROSA MARIA – Pois foi observando vocês, que eu aprendi, pelo

menos, o que eu NÃO deveria fazer!

MERCEDES – Ah é? Dá um exemplo!

ROSA MARIA – Eu tenho vários exemplos. Por onde é que tu

queres que eu comece?

MERCEDES – Por onde tu quiseres! Eu sei que tu não vais deixar

pedra sobre pedra, mesmo!

ROSA MARIA – Então, lá vai - o que eu não faria! Primeiro: casar

com um homem que não gostasse de mim, com medo de ficar

solteira; um homem que vivesse na rua como quem está sempre

mudando de calçada para evitar um encontro desagradável com a

própria esposa. Segundo exemplo: passar as tardes,

alternadamente, em casas de jogos, ou motéis, a ponto de dar o

azar de justo no dia em que a filha resolve se matar, o marido ir

55 procurá-la na casa de jogos - para a qual ele fechava os olhos - e

ela não está lá, e sim num motel – para o quê, ele era cego! Pobre

da Marta. Que falta de sorte! Perdeu o marido e a filha numa

mesma rodada!

MERCEDES – E viver telefonando para os maridos das irmãs,

mandando cartas anônimas, provocando encontros desagradáveis

e, por vezes, com desfechos trágicos, é uma conduta exemplar?

ROSA MARIA – Não deve ser de mim que tu estás falando. Não:

certamente não é. For sure it’s not about me. They can’t prove

anything against me. Nothing! Nothing has ever been, or will ever

be proved. No!

MERCEDES – Ai: tá bilíngüe! (Muda de assunto. Para Mário.)

Mário, tu sabes que a Clarinha... Ela é muito inteligente! Ela tirou

primeiro lugar uma vez num...

CLARA – Mãe, por favor!

MERCEDES – O que foi Clara? Não posso falar das tuas

qualidades? Preferes que eu fale dos teus defeitos? (Para Mário.)

E ela faz mousse de maracujá como ninguém!

ROSA MARIA – Aquele das latas? Mas quem é que não sabe

fazer aquilo, Mercedes?

56 MERCEDES – Não interessa! O importante é que fica bom e ela

faz! Tu, por exemplo, sabes fazer e não faz. Sem contar que ela

me ajuda muito dentro de casa.

ROSA MARIA – Até por que, de chambre, ela só pode ajudar

DENTRO de casa...

MERCEDES – Melhor do que tu, que nunca fizeste nada! Nem

dentro, nem fora!

ROSA MARIA – Eu não faço nada, porque eu não posso. Começo

a fazer e me canso, tenho que parar.

MERCEDES – Mas se todos os dias tu, ao menos, começasse, já

seria alguma coisa.

ROSA MARIA – Mas, Mercedes, que mal eu pergunte: o que é

que tu tens com isso? Eu não preciso de ti para nada, tu não tens

nada com isso!

MERCEDES – Não acho justo. Tu tens essa boa vida, porque foi a

única que ficou com a pensão do papai!

ROSA MARIA – Mas que culpa eu tenho, se a lei é assim? Casou,

perdeu a pensão! Eu não casei, não perdi a pensão! Em

compensação (debochada.) tu tiveste um marido e uma filha

maravilhosos – não é assim que as pessoas falam? -. Te realizaste

57 como mulher! Conheceste as delícias da maternidade! -. Eu não!

Mas não vais me dizer que tu trocarias “tudo isso” por uma pensão.

Mas, então, que raios de realização é essa? Se tudo isso seria

compensado por uma pensão, então por que é que as pessoas me

olham com pena por não ter me casado? Por que é que a Clara faz

promessas para conseguir uma coisa que vale menos do que uma

pensão que, no frigir dos ovos, hoje em dia nem é lá essas coisas?

Não seria melhor que, ao invés de fazer promessas para arrumar

homem, ela fizesse um bom concurso para um emprego público?

Querem ver só o que eu achei? (Mostra a caderneta.) As famosas

resoluções de ano novo da Marta! E, vocês sabem qual é a 36ª,

escrita em letras garrafais: ROMPER, DE FORMA DEFINITIVA

COMO JOÃO CARLOS. O que é que vocês acham disso? Já

repararam que tem sempre alguém querendo, desesperadamente,

começar uma relação, e alguém tentando se desvencilhar de

outra? Nunca ninguém está contente! Será que eu estou tão

errada em ter optado por ficar assistindo vocês se debaterem entre

um amor infeliz e a falta de um, se no final de contas, vamos

descobrir que esse frege todo não vale uma pensão?

MERCEDES – Quem será esse João Carlos? No mínimo é

casado, e aqueles telefonemas e o bilhete são da mulher dele...

ROSA MARIA – Tu és um gênio, Mercedes! (Mário sai da mesa.

Nilton vai atrás. Clara se concentra na comida. Rosa Maria vai

até o quarto e volta.).

58 MERCEDES – O que houve com a Marta, afinal?

ROSA MARIA – Tá no quarto, falando no telefone, aos prantos.

Ela chora e diz: “é melhor assim”. Já repararam que sempre que

as pessoas dizem “é melhor assim”, elas estão se debulhando em

lágrimas? Que vida é essa que quando as pessoas fazem o que é

“melhor” quase morrem de tristeza? Imagina quando elas têm que

fazer o pior... (Clara começa a recolher os pratos. Vai até a

cozinha. Daqui a pouco, volta com os olhos arregalados e os

pratos na mão.).

MERCEDES – O que houve Clara? (Clara não diz nada e volta

para a cozinha. Lá encontramos Nilton e Mário, no que se

costuma chamar de “atitude suspeita”.).

NILTON – Tá bom: desculpe! Mas como é que eu podia imaginar

que era assim? Pensei em fazer alguma coisa diferente dos outros

anos!

MÁRIO – Dez no quesito originalidade! Mas, da próxima vez,

pensa melhor! Pensa melhor, se a gente tem necessidade de

passar por situações como essa, em que se tem que responder

esse tipo de pergunta, em que não se pode ser claro e ao mesmo

tempo tem que cuidar para não parecer que é um débil mental. Isto

tudo me cansa! Por que é que a gente não deixa claro quem a

gente é?

59 NILTON – Mas ninguém aqui tem claro quem é, por que é que nós

vamos fazer isso? Daqui a pouco a gente vai embora, e tudo isso

acaba.

MÁRIO – Acaba... Acaba aqui. Daqui a pouco tu inventas um

aniversário de sobrinho, um sábado de aleluia com a cunhada, um

galeto do sindicato, e nós, sempre juntos, e ninguém sabe por

quê... Ora, tenha a santa paciência, Ni! Tu achas mesmo que eu

vou agüentar? Eu tenho horror de disfarçar, tenho horror de

hipocrisia. Quem não quiser me aceitar, não merece a minha

companhia!

NILTON – Eu queria ser como tu.

MÁRIO – Tu não precisas ser como eu, mas me ouve, de vez em

quando. Há certos laços que não têm o menor sentido manter.

NILTON – Tá bom. (Ri. Se abraçam. Se beijam. Clara fica

olhando, pensativa. Deixa os pratos ali, e volta para a sala. Na

sala estão todos em volta da mesa, como se fosse um debate.

O tema proposto é o caso de Marta, que, por sua vez, não pára

de chorar.).

MERCEDES – Mas, Marta, como é que tu te meteste nisso? Tu

não sabias que ele era casado, foi isso? Só pode ser, porque

quem, em sã consciência, vai... (Olha para Anália e pára.).

60 ANÁLIA – Pode continuar Mercedes! Vai! O que é que tu ias

dizer?

PAULO ROBERTO – Amoreco, amoreco... Pombas! Não facilita...

Não facilita que vai sobrar para ti.

ANÁLIA – Tu pensas que eu tenho medo do que elas têm para me

dizer?

PAULO ROBERTO – Mas por que é que tu vais botar a tua

cabeça a prêmio? Para quê? Tu não precisas disso, amoreco...

ANÁLIA – Ai, meu saco!... Onde é que eu estava com a cabeça?

(Fica quieta, emburradíssima.).

ROSA MARIA – Por que é que a Clara tá branca desse jeito?

CLARA – Nada. Vai ver que eu puxei da tia Marta a “tendência à

palidez”...

MERCEDES – Espero que não seja pelos mesmos motivos...

ROSA MARIA – No caso dela, talvez, se deva à ausência total de

motivos, não é mesmo, Clarinha?

CLARA (De saco cheio) - É!

61 ROSA MARIA (Cada vez mais inconveniente) – Clarinha: me diz

uma coisa - era verdade aquela história que comentaram, na

época, do motivo porque tu largaste aquele emprego de

empacotadora? (Põe o braço em volta dos ombros dela.) Hein?

Te abre comigo!

CLARA (Se soltando, irritada) – Pára com isso, tia!

ROSA MARIA – Aí... tem...

MERCEDES – Rosa Maria: queres parar de incomodar? Nós,

agora, temos de tratar da Marta!

ROSA MARIA – Mas, pelo que eu saiba a Marta já resolveu o que

tinha que resolver. O que é que tu queres mais, Mercedes? Um

retrato falado do João Carlos? Deve ser igual a todos os outros.

Igual ao Alencar!

MERCEDES – Não te atreves! (Dá uma olhadinha na medalha.).

ROSA MARIA – Igual ao Paulo Roberto!

PAULO ROBERTO – Êpa!

ROSA MARIA – Igual ao gerente lá dos pacotes, de quando a

Clarinha tinha dezesseis anos. Eles não mudam nem a

62 abordagem: só mudam a vítima – se é que se pode chamar de

vítima uma mulher como a Marta!

MARTA (Chorando) – Será, que nem num momento desses, tu

podes me poupar?

ROSA MARIA – Ora, Marta, se eu for esperar tu acertares o passo

para dizer o que eu penso, eu vou morrer muda como a tia Eunice,

mesmo sem câncer na laringe! (O homem que estava sentado o

tempo todo, e quieto, se levanta.).

HOMEM – Para mim, chega! Não sei como vocês se agüentam!

Dá licença! (Sai. Nilton e Mário estão voltando da cozinha. O

Homem passa por eles e dá boa noite. Eles ficam olhando

para trás, sem entender.).

MERCEDES – Estranho esse amigo de vocês, não?

NILTON – Amigo nosso?

MERCEDES – Sim... Não?

NILTON – Não é amigo de vocês?

MERCEDES – Claro que não! Ele não chegou com vocês?

63 NILTON – Entrou conosco, mas nós o encontramos no elevador.

(Flashback. Nilton, Mário e o homem, no elevador.).

HOMEM – Para que andar vocês vão?

NILTON – Terceiro. E o senhor?

HOMEM – Que coincidência! Eu também. Qual apartamento?

NILTON – 301.

HOMEM – Mas, que mundo pequeno, mesmo! Estou, justamente,

dando um pulinho lá para dar um abraço.

NILTON – Em quem?

HOMEM – Sou um velho conhecido da família. E os senhores?

NILTON – Sou primo delas.

HOMEM – Veja só!... Bem, chegamos! (Volta à cena anterior.).

MÁRIO – Eu me pergunto o quê mais estará por acontecer esta

noite...

ANÁLIA – Te prepara, porque elas são surpreendentes...

64 MERCEDES (Sempre viajando) – Será que não era ele que veio

para resolver o problema da Clarinha?

CLARA (Com uma total falta de saco, e como quem já perdeu

todas as esperanças) – Mãe, ainda que DEUS tivesse vindo

trazê-lo, pessoalmente, pela mão, vocês o teriam afugentado.

Como sempre fizeram!

MERCEDES – Era a única coisa que estava me faltando ouvir

essa noite. Que a culpa por tu ainda estares solteira, aos vinte e

nove – vinte e nove ou trinta? Sabem que agora até eu me perdi?

– enfim, dizer que tu ainda não desencalhaste por minha causa, é

demais! É de-mais!

CLARA – Eu tive três namorados! E, cada vez que eu achava que

o namoro estava firme o suficiente, para eu trazê-lo para conhecer

a família, por um misterioso motivo, na semana seguinte, eles se

sumiam. Por que será, hein?

ROSA MARIA – E o gerente, Clara? Conta a história do gerente!

CLARA – Quer parar, tia?

MERCEDES – A Rosa Maria pensa que está numa rodada de

anedotas: agora conta aquela! Conta aquela do gerente! Acho que

chega, não é? (Marta continua chorando, copiosamente. Anália

e Paulo Roberto gesticulam um com o outro. De vez em

65 quando, se ouve dela um: “para outra tu não me pegas” e dele

um “não seja assim, amoreco”. Nilton e Mário estão sentados,

um do lado do outro, cansados, sem saber como ir embora.)

Meu Deus, a Marta vai ficar cega de tanto chorar e enxugar esses

olhos. Chega Marta! Passou. Agora é bola para frente! Vida nova!

ROSA MARIA – Olha só como a Mercedes ficou positiva, de

repente!

MERCEDES – Estou tentando não deixar que vocês estraguem a

noite. Só isso.

ROSA MARIA – Não te preocupa, Mercedes! Isso não vai

acontecer! Está saindo tudo dentro do previsto. Não foi sempre

assim?

MERCEDES – Não, Rosa Maria, não foi sempre assim, não!

ROSA MARIA – Ora, Mercedes, e quando é que foi diferente?

MERCEDES – Foi diferente, Rosa Maria. Foi! Só que eu não me

lembro mais quando. E nem como é que a gente fazia. (Começa a

ficar melancólica. Nisso, começam a ouvir os tradicionais

barulhos que indicam que é meia-noite: foguetes, etc.

Interrompem a discussão e mudam, completamente, de

atitude, como se fossem uma família harmônica, carinhosa,

alegre, sem problemas. Abraçam-se, beijam-se, desejam feliz

66 ano-novo, etc. Depois dos abraços, começam a se olhar e

Paulo Roberto é o primeiro a falar.).

PAULO ROBERTO – Escuta... Cadê a mamãe?

CLARA – Meu Deus! A vovó!...

MARTA – É mesmo... gente... A mamãe... Mercedes?

MERCEDES (Olha para Rosa Maria, que está tentando sair da

sala) – Rosa Maria! Onde é que a senhora pensa que vai?

ROSA MARIA – Lá embaixo... (Ela está branca, olhos

arregalados, mão na boca.).

MERCEDES – Volta aqui, Rosa Maria. Cadê a mamãe?

(Silêncio.).

MARTA – Fala Rosa Maria! (Rosa Maria permanece em

silêncio.).

MERCEDES – Pelo amor de Deus!...

PAULO ROBERTO – Mas quem foi que teve a idéia, a brilhante

idéia, de deixar a mamãe aos cuidados dessa louca? Quem?

MERCEDES – Onde é que está a mamãe, Rosa Maria?

67 ANÁLIA – Mas por que é que é ela quem deve saber? (Alvoroço

geral.).

MARTA – Porque hoje de tarde, quando nós voltamos do

supermercado, a mamãe queria tomar sol.

PAULO ROBERTO – Sei... E daí?

MARTA – E daí, que a Rosa Maria ficou encarregada de levar a

mamãe na pracinha, aqui em frente. Eram três horas da tarde.

PAULO ROBERTO – Às três horas da tarde? Horário de verão?

ROSA MARIA – É horário de verão, é?

PAULO ROBERTO – E depois?

ROSA MARIA – E depois, nada!

PAULO ROBERTO – Desembucha, vamos!

ROSA MARIA – Bem, ela quis ficar mais um pouco e eu... Eu tinha

que ajudar a Mercedes, ora essa...

MERCEDES – Me ajudar? Mas me ajudar em quê? Em que tu me

ajudaste? Tu não fizeste absolutamente nada, a tarde toda, a não

ser falar da vida dos outros...

68 ROSA MARIA – Ai, Mercedes... não fala assim... Eu vim para cá

e... esqueci da vida...

MERCEDES – Esqueceu da vida? Esqueceu da mamãe... NA

PRACINHA... NAQUELE SOL DE 42º...

ROSA MARIA – Ah, não exagera...

PAULO ROBERTO – Eu não acredito!... É brincadeira!... Vocês

deixaram a mamãe na pracinha, desde as três horas da tarde... e

ninguém deu falta dela...

ROSA MARIA – Pois é... e a culpada, agora, sou eu...

PAULO ROBERTO – Vocês TORRARAM a mamãe!

ANÁLIA (Olha para Mário, que está apavorado) – Eu não te

disse?

NILTON – Bem, o mais sensato a fazer, é ir lá embaixo, e ver se

ela ainda está lá.

MARTA – Que irresponsabilidade, minha nossa Senhora!...

NILTON – Bem, vamos descer.

69 ROSA MARIA – Engraçados vocês... Ninguém deu pela falta dela

antes... Só sabem culpar os outros...

PAULO ROBERTO – Fica quietinha, fica! Vamos lá... Vocês são

de matar... (Saem todos, um recriminando o outro. Black Out.

outra cena, no dia seguinte. Estão todos de preto, inclusive

Clara que, de tailleur preto, parece outra. Clara está com uma

mala na mão. Mercedes está no telefone.).

MERCEDES – Pois é: o que é que se vai fazer, não é? Quando

chega a hora, não se pode evitar. Mas ela já estava com quase

noventa anos. Foi! Foi! É, insolação! Sabe como elas são nessa

idade... teimosas!... Parecem crianças! A Rosa Maria avisou,

insistiu: “mamãe, são três horas, horário de verão, portanto, duas.

O sol tá forte”. Ela fez de tudo e não houve o que convencesse a

vel... digo, a mamãe. Parece até que ela queria que acontecesse

alguma coisa. Ah, foi um horror. Estragou o ano novo de todo o

mundo. E tava tudo tão bem... Até o Nilton - lembra? – estava aqui.

Como? Não... Tá vivo... Aliás, muito mais vivo do que eu

imaginava!... Pois é, mas a vida é assim mesmo. O que é que se

vai fazer, não é? Então tá! O enterro é às dez horas. Bom,

finalmente a gente vai se ver. Sim. Até lá, então! (Desliga. Vira-se

para os outros.) Vamos? (Saem todos.).

FIM