Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria...

52
Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • www.eco21.com.br facebook.com/revista.eco21 ECO 21 Cristiano Felix • Heather Clancy • André Ferretti • Daisy Dunne Paulo Adario • Manuel Pulgar-Vidal • Craig Downs • Erik Solheim ISSN 0104-0030

Transcript of Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria...

Page 1: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • www.eco21.com.br • facebook.com/revista.eco21

ECO•21C

rist

ian

o F

eli

x •

He

ath

er

Cla

ncy

• A

nd

ré F

err

ett

i •

Da

isy

Du

nn

e

Pa

ulo

Ad

ari

o •

Ma

nu

el

Pu

lga

r-V

ida

l •

Cra

ig D

ow

ns

• E

rik

So

lheim

ISSN

0104-0

030

Page 2: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 3: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Diretora Lúcia Chayb

Editor

René Capriles

Redação Regina Bezerra, Rudá Capriles

Colaboradores

André Trigueiro, José Mon serrat Filho Leonardo Boff, Samyra Crespo

Evaristo Eduardo de Mi randa Sergio Trindade

Fotografia Ana Huara

Correspondentes no Brasil

São Paulo: Lea Chaib Belém: Edson Gillet Brasil

Correspondentes no Exterior

Bolívia: Carlos Capriles Farfán México: Carlos Véjar Pérez-Rubio

Itália: Mario Salomone e Bianca La Placa França: Aurore Capriles

Representante Comercial em Brasília

Minas de Ideias

Serviços Infor mativos Argentina: Ecosistema

Brasil: Envolverde, ADITAL, EcoAgência, EcoTerra, O ECO, Ambiente Brasil

França: Valeurs Vertes, La Recherche Itália: ECO (Educazione Sostenibile)

México: Archipiélago

Direção de Arte ARTE ECO 21

CTP e impressão Gráfica Cruzado

Jornalista Responsável

Lúcia Chayb - Mtb: 15342/69/108

Assinaturas Anual: R$ 130,00

[email protected]

Uma publicação mensal de Tricontinental Editora

Av. N. Sra. Copacabana 2 - Gr. 301 22010-122 - Rio de Janeiro

Tel.: (21)2275-1490 [email protected]

www.eco21.com.br

Facebook www.facebook.com/revista.eco21

A no 28 • Jane i ro 2018 • N º 254

ECO•21

Capa: “E chegou a luz”, instalação de esculturas Arte: Jorge Mayet

Gaia viverá! Lúcia Chayb e René Capriles

w w w. e c o 2 1 . c o m . b r

Deputados socialistas querem taxar os ventos O Brasil fechou 2017 com duas notícias sobre o papel das usinas eólicas. A primeira, mais do que absurda, trata-se de uma perigosa iniciativa do Deputado Heráclito Fortes (PSB/PI), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 97/2015) que dá nova redação aos Arts. 20 e 21 da Constituição Federal, transformando o potencial de energia eólica em patrimônio da União ensejando um pagamento de royalties pelo uso dos ventos. A segunda é mais do que boa notícia posto que o país encerrou 2017 com 12,76 GW de capacidade instalada em 508 parques de energia eólica e com a perpectiva de mais 5,11 GW em outros 223 parques ainda em construção. A título de comparação, a usina de Itaipu possui 14 GW de potência instalada fornecendo 15% da energia consumida no Brasil. Já as usinas nucleares de Angra 1 e 2, juntas, fornecem apenas 1,75 GW que representam 3% da geração nacional. A justificativa da PEC97/2015 afirma que os ventos são um “recurso que pertence a todo o povo brasileiro e, portanto, os parques eólicos que produzem energia elétrica a partir dos ventos devem gerar compensação financeira à União”. Após ser apresentada na Câmara dos Deputados, a PEC 97/2015 passou mais de 2 anos engavetada, mas foi reativada pelo Deputado Tadeu Alencar (PSB-PE) em Outubro último. O parecer de Alencar foi aprovado na “Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania” no dia 6 de Dezembro passado tendo determinado o Presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a criação de uma Comissão Especial para analisar a proposta antes de ser encaminhada ao plenário. O jornalista André Trigueiro escreveu na sua coluna do G1 que o Deputado Heráclito Fortes quer estender a cobrança dos royalties também para a energia solar: “Não é justo que nós tenhamos esse potencial de produção, não só de eólica como de solar, e não se usufrua nada. Você desvia a finalidade da terra. São áreas que poderão ser usadas para agricultura ou para outros fins”. No mesmo artigo Trigueiro destaca o depoimento do professor do COPPE, Maurício Tolmasquim, que afirmou: “Não tem lógica nenhuma essa proposta de cobrar royalties da energia eólica. A eólica é uma fonte renovável, não poluidora, que incrementou a renda de regiões pobres do Nordeste onde pequenos proprietários estão melhorando financeiramente e levou várias fábricas a se instalarem no Nordeste, criando empregos e também estão gerando receita para o Governo”. Paralelamente, a Comissão Interministerial de Participação em Organismos Internacionais do Governo Federal aprovou no dia 17 deste mês, por unanimidade, o processo de adesão do Brasil à Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA). Criada em 2009, essa Agência é uma autoridade mundial em energia renovável. “Esta é uma ótima notícia; na prática significa um grande avanço para as energias renováveis de baixo impacto, como é a eólica. Nos últimos anos, o Brasil apresentou resultados extraordinariamente positivos em relação à importância da eólica na matriz elétrica, com crescimento sustentável e sucessivos recordes de geração. Fazer parte da IRENA certamente nos coloca num novo patamar de maturidade perante a comunidade internacional”, afirmou Elbia Gannoum, Presidente Executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica. A IRENA hoje congrega 152 países e nenhum deles cobra taxas pelo vento. Por sua vez, Tasso Azevedo, do Observatório do Clima, escreveu “Os argumentos da PEC são patéticos. O que viria depois? Cobrar dos pescadores e velejadores por usar a energia do vento para mover as embarcações? Cobrar das companhias aéreas, paraquedistas ou até, quem sabe, dos meninos que empinam pipa por se apoiar no vento para voar? Se o Congresso legisla que vento tem dono, então poderia fazer o mesmo com a energia do sol. Daí o próximo passo seria cobrar dos agricultores por usar o sol para produzir alimentos ou taxar cada residência que tenha aquecimento solar para a água”. No momento em que o Governo Federal aprovou um questionado pacote de bilhões de reais de renúncia fiscal para o setor de petroleiro, cobrar pelo vento se apresenta como uma falácia tal como foi, em 2012, a aprovação do novo Código Florestal que anistiou desmatadores e favoreceu a expansão do agronegócio. E que essa insana proposta venha de partidos socialistas é ainda mais inacreditável.

4 Manuel Pulgar-Vidal - Davos: líderes mundiais devem ouvir as empresas 6 Heather Clancy - O clima tornou-se parte do diálogo em Davos 2018 8 Daisy Dunne - Eliminar a pobreza e limitar o aquecimento a 2°C é possível10 Tara Ayuk - Seminário pré Fórum Mundial da Água lança Carta11 Documento - Carta Águas pela Paz14 Isabel Hagbrink - Falta de água e saneamento afeta milhões no mundo16 Letícia Verdi - Agência Nacional de Águas tem nova diretoria18 Elmano Augusto - Governo cria mosaico de UCs marinhas e 4 RPPNs22 Craig A. Downs - Protetor solar destrói os corais24 Karina Toledo - Partículas ultrafinas de aerossol agravam chuvas na Amazônia28 Lúcia Chayb - Entrevista com Cristiano Felix32 Paulo Adario - Uma história exemplar34 Anna Sophie Gross - Desmatamento na Amazônia ligado ao McDonald s36 José C. de M. Lima - Desmatamento vai aquecer ainda mais o clima do Planeta38 André Ferretti - Prevenir, já que não se pode mais remediar40 Vinicius S. Braga - Açaí: floresta contribui com polinizadores e frutificação42 Tiago Eloy Zaidan - Húmus e afetividade46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade48 José Monserrat Filho - O relógio do fim do mundo mais perto da meia-noite50 Erik Solheim - Revivendo as zonas mortas

Page 4: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Há um bom tempo, muitos dos líderes mais influentes do nosso Planeta têm mantido os empresários na mais alta consideração. Assim, neste momento, em que as principais vozes do setor público e privado se reúnem em Davos no Fórum Econômico Mundial (FEM) para trocar percepções e ideias, eles não precisam olhar para nada além do recente Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial (FEM) para compreender tudo o que está em jogo se a nossa sociedade não abordar a crise climática de forma agressiva. O relatório baseia-se nos pontos de vista de mais de mil membros da rede do FEM em relação aos riscos globais mais urgentes enfrentados no mundo.

Manuel Pulgar-Vidal | Presidente da COP-20 da Convenção sobre Mudanças Climáticas. Líder da Prática de Mudanças Climáticas e Energia do WWF Internacional

Davos: líderes mundiais devem ouvir as empresas

Este ano, os riscos ambientais – clima extremo, desastres naturais e uma resposta inadequada para mitigar e se adaptar às mudanças climáticas – compreendem 3 dos 5 principais riscos em termos de impacto, bem como 3 dos 5 com mais chances de acontecer. Os riscos ambientais têm dominado a agenda do FEM nos últimos anos. Nunca antes, no entanto, apresentaram-se de forma tão proeminente. Se a “crise da água” também estiver incluída, oito dos 10 lugares foram tomados por preocupações ambientais. A comunidade empresarial não pode evitar a dura realidade do nosso clima em mudança. Como o FEM observa: “nós estamos empurrando nosso Planeta até a beira e o dano está se tornando cada vez mais claro”.

Isso pode ser novidade para quem opta por ignorar o perigo da mudança climática. Mas não é novo para a comunidade empresarial. Enquanto muitos políticos optam por ignorar a evidência científica, as empresas não têm escolha a não ser aceitar a realidade e responder a um clima em mudança e ao inevitável surgimento da economia de baixo carbono.

Chr

is R

atcl

iffe

IISD

Manuel Pulgar-Vidal

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•214

| fórum econômico mundial |

Page 5: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

As empresas devem planejar os custos climáticos

A comunidade empresarial não pode evitar as duras reali-dades do nosso clima em mudança. Ela enfrenta a interrupção e os custos incorridos pelos eventos climáticos extremos, que estão se tornando mais frequentes e mais intensos na medida em que o mundo aquece.

Ela também reconhece que – independentemente dos solavancos na estrada – a direção de longo prazo é para uma economia global descarbonizada. O setor privado precisa investir no longo prazo, e esses investimentos são cada vez mais em ativos de baixo carbono e nos mercados do futuro, que serão dominados pelos consumidores que se preocupam com a sustentabilidade.

Não é uma surpresa que os líderes climáticos no mundo dos negócios intensifiquem seus esforços de combate às mudanças climáticas, tanto para limitar os riscos relacionados ao clima quanto para contribuir com a redução de emissões. Fazem parte desse grupo, muitos parceiros-chave do WWF e aqueles que se alinham a metas baseadas em ciência, seguindo assim avisos do Banco da Inglaterra e do Conselho de Estabilidade Financeira do G20 sobre o importante risco financeiro de mudanças climáticas.

As empresas privadas tomam decisões com base na econo-mia. E, quando se trata da economia da energia, a limpa está cada vez mais se sobressaindo à suja. A energia renovável está ganhando a competição com os combustíveis fósseis, mesmo antes de serem considerados os custos ambientais e de saúde pública associados a este último. No final da próxima década, é provável que comprar carros elétricos seja mais barato do que seus equivalentes a gasolina e diesel.

Negócios e política, naturalmente, operam de forma independente um do outro. Regulações e políticas criam o campo de jogo em que o negócio opera. Por meio de lobby e de contribuições de campanha, o negócio influencia a política. Compete aos negócios, então, usar sua influência para encorajar políticas que acelerem a transição para uma baixa emissão de carbono. No plano interno, os líderes empresariais precisam enviar a mensagem de que a economia com baixa emissão de carbono é boa para os negócios. Isso dará segurança política, ajudará a orientar as decisões de investimento, reduzirá custos e oferecerá emprego e oportunidades de inovação e vantagem competitiva.

Também é preciso estar atento ao contrato social. A transi-ção de energia criará perdedores e vencedores. Os governos têm o dever de apoiar e requalificar os trabalhadores cujos meios de subsistência dependem dos combustíveis fósseis; as empresas devem fazer mais para ajudá-los em novas carreiras.

2018 é tempo de os governos intensificarem

Os negócios também devem fazer mais para incentivar uma maior ambição nos governos. O ano 2018 é o momento dos governos aumentarem a ambição, à medida que avançamos em direção a 2020 e à implementação do Acordo de Paris. Os compromissos nacionais atuais não são adequados para proteger o clima: os governos devem demonstrar que o setor privado pode oferecer a inovação, a tecnologia e o conheci-mento necessários para atingir metas climáticas mais rígidas e mais ambiciosas - metas que ajudarão a evitar os custos humanos, econômicos e ambientais que enfrentaremos se o aquecimento global não for controlado.

Eri

c Pi

erm

ont

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 5

| fórum econômico mundial |

Page 6: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

O clima tornou-se parte do diálogo em Davos 2018

Heather Clancy | Diretora e Editora do GreenBiz

Neste mês de Janeiro, o Presidente dos EUA se revelou como um protetor do comércio no estilo “América Primeiro” sancionando uma tarifa que provavelmente aumentará os custos para compras de energia solar corporativa e custará empregos domésticos entre instaladores e desenvolvedores.

Poucos dias depois, um “contido” Presidente dos Esta-dos Unidos ficou diante dos líderes mundiais no Fórum Econômico Mundial (FEM) numa Davos coberta de neve, na Suíça, encorajando-os a investir num “forte e próspero” Estados Unidos.

A cotação monetária de seu discurso: “America First não significa apenas a América”. Grande parte da cobertura da mídia comentou sobre a relativa falta de drama associada à estreia de Trump no Fórum Econômico Mundial– ele não foi no ano passado. Como era de se esperar, suas observa-ções ignoraram completamente a questão das mudanças climáticas. No entanto, muitos dos outros líderes presentes – notadamente o Presidente da França, Emmanuel Macron e o economista chinês Liu He – estavam mais do que dispostos a posicionar suas nações como defensores do crescimento econômico inclusivo projetado para enfrentar a ameaça do aquecimento global.

Os compromissos de Macron incluíram uma promessa de fechar todas as usinas de energia a carvão de seu país até 2021 (em parte, em meio à revelação de que a França atingiu metas de redução de emissões em 2016.) Liu He falou sobre o foco de seu país no “crescimento de alta qualidade”: “O desenvolvimento verde e com baixa emissão de carbono é o que os chineses mais desejam, uma ruptura com o modelo de crescimento tradicional. Nos próximos três anos, a China ampliará o controle da poluição para reduzir substancialmente as emissões totais dos poluentes e reduzir a intensidade do consumo de recursos. Espera-se que tais esforços melhorem o meio ambiente. Eles tornarão nosso desenvolvimento mais ecológico e nosso céu azul novamente”.

Como se tornou pauta nos últimos anos, os defensores da ação climática que representam tanto o setor público quanto o privado, utilizaram o FEM para sustentar pesquisas baseadas nos princípios da economia limpa e para destacar compromissos corporativos mais ambiciosos. Aqui estão algumas linhas de pensamento e perguntas que tanto os participantes quanto aqueles que estavam assistindo de longe tiveram.

1 Os economistas aceitarão uma alternativa ao PIB?

A prática comum de confiar no Produto Interno Bruto – sem levar em conta os impactos sociais e ambientais – como medida da prosperidade econômica está levando nações a se perderem numa ideia de que há “um círculo virtuoso onde o crescimento é fortalecido por ser compartilhado mais amplamente e gerado sem indevidamente pressionar o meio ambiente ou sobrecarregar as futuras gerações”.

Essa manifestação de autoria do FEM acompanhou o mais recente Índice de Desenvolvimento Inclusivo da organização, que aponta duas tendências particularmente preocupantes entre as economias mais avançadas do mundo: primeiro, eles estão “nivelando por baixo” quando se trata de melhorar a riqueza entre toda a população. E em segundo lugar, sua posição se deteriorou desde 2012 quando se trata de enfrentar o esgotamento dos recursos naturais, a intensidade do carbono no PIB e outros fatores intergeracionais.

“Um progresso amplo e sustentável no padrão de vida é o resultado final que as sociedades esperam”, disse Richard Samans, Diretor-Gerente e chefe da Agenda Global do FEM. “Os decisores políticos precisam de um novo painel focado mais especificamente nessa finalidade”. Para sermos justos, este não é um tema novo: a comunidade de sustentabilidade e os economistas ambientais estão falando dessa ideia há mais de uma década. Mas quando o FEM fala, líderes mundiais e CEOs tendem a ouvir.

AFP

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•216

| fórum econômico mundial |

Page 7: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

2. Um foco maior no futuro dos alimentos e resíduos

Paralelamente ao tema de inclusão, pesquisadores do FEM também emitiram novos dados explorando a ligação entre consumo de carne e sustentabilidade ambiental. Sua análise acusa a produção global de gado por 15% de todas as emissões anuais de Gases de Efeito Estufa e, mais especificamente, por 75% de todas as atividades de desmatamento da floresta amazônica. “Devemos trabalhar juntos para desenvolver a nossa produção atual de carne, explorar proteínas alternati-vas e incentivar novos comportamentos dos consumidores, especialmente na redução do desperdício de alimentos”, disse Tom Hayes, Presidente e CEO da Tyson Foods, o maior pro-cessador de carne dos EUA, que estava em Davos discutindo o relatório. O fundo de risco da Tyson é um investidor na empresa alternativa de proteínas Beyond Meat.

Uma empresa que utilizou a plataforma do FEM para fazer uma declaração sobre o desperdício de alimentos foi a Cargill, que entrou em uma parceria de três anos com a Gastromotiva , uma organização sem fins lucrativos no Brasil abordando esta questão. A iniciativa concentra-se na formação de chefs locais para gerenciar suas cozinhas de forma diferente.

Aliás, recentemente lançou a publicação do novo “Guia de Ação” dedicado a ajudar os varejistas de supermercados americanos a fazerem parte na redução do problema anual de US$ 218 bilhões em resíduos alimentares. A análise de ReFED sem fins lucrativos inclui conselhos de programas da Albertsons, Kroger, Walmart, Target, Wegmans e Whole Foods. Entre as estratégias de prevenção: preços dinâmicos e reduções tarifárias.

3 Uma palavra: Plásticos

A Fundação Ellen MacArthur orquestrou um dos maiores eventos corporativos no FEM ao destacar 11 empresas varejis-tas e de bens de consumo que se comprometeram em adotar embalagens 100% reutilizáveis, recicláveis ou biodegradáveis até 2025, ou até antes dessa data em alguns casos.

A lista inclui Amcor, Ecover, Evian, L’Oreal, Mars, Marks & Spencer, PepsiCo, Coca-Cola Co., Unilever, Walmart e a empresa alemã de CPG Werner & Mertz. Juntas utilizam anualmente mais de 6 milhões de toneladas de embalagens plásticas. A iniciativa faz parte do trabalho da Fundação para disseminar os princípios da economia circular, e se encaixa no foco do mundo dos negócios de reduzir os materiais plásticos que vão parar nos oceanos. Entre os compromissos mais notá-veis: a Unilever está trabalhando para publicar uma lista dos materiais plásticos que compõem suas embalagens até 2020, como parte de sua política para um protocolo liderado pela indústria para abordar a questão.

4. Vamos dizer os nomes

A Unilever realmente usou o FEM para fazer outra atu-alização para seu Plano de Vida Sustentável em andamento, incluindo um acordo com uma plantação de óleo de palma do governo na Indonésia, a PT Perkebunan Nusantara. A ideia é certificar as usinas locais e os pequenos agricultores em técnicas para reduzir o desmatamento ou o desenvolvi-mento da turfa – que desempenha um papel importante na compensação das emissões de Gases de Efeito Estufa – e desencorajar a exploração dos trabalhadores.

“A ambição da Unilever é fazer a produção de óleo de palma sustentável”, disse Marc Engel, diretor de cadeia de suprimentos dessa corporação multinacional. “Temos traba-lhado muito para tornar isso realidade e estamos desenvolvendo nossa abordagem ao longo dos anos. Estamos envolvidos em várias parcerias para ajudar os pequenos agricultores a melhorar seus rendimentos, protegendo o meio ambiente e as comunidades locais. O MoU (Memorandum of Unders-tanding) com a PT Perkebunan Nusantara é a primeira vez que podemos aplicar o modelo de proteção de produtos em escala; nossa parceria terá um impacto positivo na Indonésia numa perspectiva ambiental, social e econômica que a torna única para a indústria”.

Ironicamente (e estranhamente), a Unilever não foi cortada no ranking global das 100 corporações mais susten-táveis do Global 100, lançado para coincidir com a reunião de Davos. As empresas listadas publicamente são avaliadas em 17 quesitos ambientais, sociais e de governança, como produção de carbono, receita de produtos limpos, a ligação entre remuneração executiva e desempenho de sustentabilidade e adoção de energia renovável.

O melhor ranking deste ano foi para a Dassault Systemes, uma empresa francesa de software especializada em aplicações de design e engenharia 3D. As cinco restantes foram:

• Neste, empresa finlandesa de energia. • Valeo, fornecedor francês de peças automotivas.• Ucb, empresa belga de biocombustível. • Outotec, empresa finlandesa de construção, mineração

e engenharia.A empresa norte-americana que teve a melhor avaliação

foi a Cisco Systems, especialista em redes e comunicações, que ficou em sétimo lugar em nível mundial. Os Estados Unidos registraram a maioria das empresas na lista, 18 ao todo, seguido pela França com 15.

5. Qual é realmente o país mais sustentável?

Falando em rankings, o último Índice de Desempenho Ambiental (Environmental Performance Index - EPI) publicado de forma bienal pelo FEM com a colaboração de pesquisadores das universidades Yale e Columbia foi lançado em Davos. Ele considera 10 ameaças ambientais muito específicas, incluindo poluição do ar, saneamento, água potável, emissões de Gases de Efeito Estufa e desmatamento.

De acordo com os dados mais recentes, o país anfitrião, Suíça, ocupa o primeiro lugar na sustentabilidade nacional, com a França, a Dinamarca, Malta e a Suécia ocupando os cinco principais lugares. Os Estados Unidos entraram no número 27, atrás do Reino Unido (sexto), da Alemanha (13), da Itália (16), do Japão (20) e do Canadá (25). A China e a Índia foram muito mais baixas no ranking de 180 países, nos números 120 e 177, respectivamente.

Geralmente, as pontuações para economias emergentes estão sujeitas muito mais a flutuações, observaram os pesquisa-dores. “O Environmental Performance Index de 2018 confirma que o sucesso em relação ao desenvolvimento sustentável requer tanto o progresso econômico, que gera recursos para investir em infraestrutura ambiental, quanto o gerenciamento cuidadoso da industrialização e urbanização, que podem levar à poluição ameaçando a saúde pública e os ecossistemas”, disse Daniel Esty, Diretor do Yale Center for Environmental Law & Policy e colaborador do Relatório.

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 7

| fórum econômico mundial |

Page 8: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Tirar 770 milhões de pessoas da extrema pobreza, o que é classificado como viver com menos de 1,9 dólares por dia, aumentaria a temperatura terrestre em meros 0,05 graus centígrados até 2100, segundo pesquisa. Entretanto para erradicar a pobreza e mover esse grupo social para uma classe média mundial, o que é classificado como receber de US$ 2,97 a US$ 8,44 por dia, aumentaria em 0,6 graus centígra-dos a temperatura mundial até 2100. Para acabar com todas as formas de pobreza sem aumentar a temperatura média global, líderes mundiais precisariam aumentar os esforços de mitigação do clima em 27%, relata o autor principal do estudo do Carbon Brief.

Conflito de desenvolvimento climático

Acabar com a pobreza extrema para “todas as pessoas em todos os lugares” é o primeiro dos Objetivos de Desenvolvi-mento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, um conjunto internacional de metas acordadas para melhorar o padrão de vida global em 2030. No entanto, pôr fim à pobreza extrema poderia trazer desafios adicionais para cumprir os objetivos a longo prazo do Acordo de Paris, que visa limitar o aumento da temperatura global para “bem abaixo” dos 2°C.

Isso porque aumentar a qualidade de vida dos mais pobres do mundo significaria o uso de mais recursos do planeta - como alimentos e energia - aumentando emissões de carbono que contribuem para o aquecimento global. Este paradoxo é conhecido como o “conflito de desenvolvimento climático”, explica o Prof. Klaus Hubacek, pesquisador da Universidade de Maryland e principal autor da nova pesquisa publicada na Nature Communications.

Em sua pesquisa, ele quantificou o “custo” total, em termos de emissões de carbono, de acabar com a pobreza extrema. Diz ele ao Carbon Brief: “Erradicar a pobreza extrema não compromete o objetivo do clima, mesmo na ausência de políticas climáticas e com as tecnologias atuais”.

Desigualdade de carbono

Para calcular o custo da erradicação da pobreza extrema, os pesquisadores primeiro se concentraram em estimar as pegadas de carbono das pessoas mais pobres e mais ricas do mundo. Para cada pegada de carbono, os pesquisadores consideraram as emissões diretas de carbono – do consumo de alimentos, aquecimento e resfriamento de lares e uso de transporte – e emissões indiretas de carbono – da produção de bens domésticos e serviços. Em seguida, combinaram esses dados de despesas com a base de dados de consumo do Banco Mundial.

Eliminar a pobreza e limitar o aquecimento a 2ºC é possível

Daisy Dunne | Bióloga. Jornalista do Carbon Brief

A comida constitui a maior proporção da pegada de carbono daqueles que vivem em extrema pobreza, explica Hubacek: “A pegada de carbono relacionada a alimentos é perto de 60% da pegada total para o grupo de extrema pobreza. Em que o principal é composto por comida, abrigo e roupas. Não sobra nada para qualquer outra coisa quando suas despesas são de US$ 1,90 por dia em paridades de poder de compra (PPP)”.

O gráfico 1 mostra as respectivas pegadas de carbono dos ricos e pobres do mundo. A coluna da esquerda mostra como a população mundial pode ser dividida em diferentes grupos de renda, incluindo aqueles que vivem com menos de US$ 1,90 por dia (verde); entre US$ 1,90 e US$ 2,97 por dia (azul); entre US$ 2,97 e US$ 8,44 (amarelo); entre US$ 8,44 e US$ 23,03 por dia (vermelho); e mais de US$ 23,03 por dia (laranja). A coluna da direita mostra as pegadas de carbono proporcionais de cada um desses grupos de renda.

G-1 O gráfico mostra a proporção de emissões globais de carbono de diferentes grupos de renda, que vão desde a pobreza extrema (verde) até os 10% superiores dos ganhadores (laranja). B mostra a pegada de carbono por pessoa para diferentes grupos de renda. Cada pegada é medida em equivalente de dióxido de carbono (CO2e). A linha preta separa as emissões diretas de carbono (parte inferior) e as emissões indiretas de carbono (parte superior). Fonte: Hubacek et al. (2017)

A pesquisa descobriu que, em 2010, os 10% que mais recebem do mundo foram responsáveis por cerca de 36% das emissões globais de carbono para o consumo de bens e serviços (veja a seção laranja em cada coluna). Em compa-ração, os extremamente pobres, que representaram 12% da população mundial em 2010, foram responsáveis por apenas 4% das emissões globais (verde).

O segundo gráfico (à direita) mostra a pegada de carbono por pessoa para diferentes grupos de renda. Cada ponto é medido usando CO2e ou o equivalente de dióxido de carbono, que é a unidade padrão para medir pegadas de carbono. A linha preta separa as emissões diretas de carbono (parte inferior) e as emissões indiretas de carbono (parte superior).

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•218

| análise |

Page 9: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

A pesquisa mostrou que a pegada de carbono média dos que mais recebem no mundo é próxima a 14 vezes à da média das pessoas que vivem em extrema pobreza. Para calcular o custo total do carbono da erradicação da pobreza, os pes-quisadores estimaram as implicações de carbono de mover a população vivendo em extrema pobreza até o próximo nível de renda (US$ 1,90 a US$2,97 por dia). Os pesquisadores então tiraram as emissões de carbono adicionais resultantes do levantamento de pessoas da pobreza extrema e as somaram a um cenário de emissões de “linha de base”. Como linha de base, os pesquisadores usaram um cenário de emissões relati-vamente baixas conhecido como RCP2.6, o que pressupõe que as emissões anuais globais de gases de efeito estufa atingiriam pico em 2020 e cairiam rapidamente depois.

O gráfico 2 mostra como o custo adicional de carbono para erradicar a pobreza extrema poderia afetar o aquecimento global da superfície até 2100. Um cenário onde a pobreza extrema é erradicada (verde) é comparado ao cenário de linha de base (amarelo). Ambos os cenários assumem que as emissões globais atingem o pico em 2020.

O gráfico identifica o dia atual até 2030 como uma “janela de oportunidade” para levantar os mais pobres do mundo da pobreza extrema. O ano de 2030 é o prazo final dos SDG.

G-2 O efeito de acabar com a pobreza extrema na tempera-tura da superfície global até 2100. Um cenário onde a pobreza extrema é erradicada (verde) é comparado a um cenário de linha de base (amarelo). Ambos os cenários assumem que as emissões globais atingem o pico em 2020. O gráfico identifica os dias atuais até 2030 como uma “ janela de oportunidade” para levantar os países mais pobres do mundo da pobreza extrema. Fonte: Hubacek et al. (2017)

A pesquisa descobre que levantar as pessoas para tirar as pessoas da pobreza extrema tem um impacto relativamente pequeno nas temperaturas globais, representando aumento de 0,05°C no aquecimento até 2100. No entanto, este é apenas o caso se as emissões globais de gases de efeito estufa tiverem picos até 2020 e depois declinarem, explica Hubacek. Se as emissões de carbono continuarem a subir até 2020, acabar com a pobreza, mantendo o aquecimento em 2ºC, será “impossí-vel”, diz ele. As emissões globais de carbono estão atualmente acompanhando um cenário de altas emissões - RCP8.5.

Pode ser muito tarde para acabar com a pobreza extrema e limitar o aquecimento global a 1,5°C, que é o objetivo ambi-cioso do Acordo de Paris, ele acrescenta: “Nós não investigamos o 1.5°C [limite] explicitamente, mas, como é quase impossível alcançar o objetivo de 1.5°C, a remoção da pobreza extrema não alteraria significativamente esse desafio”.

Algumas instituições de sociais argumentaram que erra-dicar a pobreza extrema não é suficientemente ambicioso. Em vez disso, os líderes mundiais devem procurar erradicar completamente a pobreza.

Isso significaria mover o mundo mais pobre para o que pode ser considerada a “classe média global”, um grupo de renda que ganha entre 2,97 dólares e 8,44 dólares por dia. Este grupo de renda é a seção amarela do primeiro gráfico neste artigo.

O aumento das pegadas de carbono da migração de todos de grupos de baixa renda para a classe média global causaria um aumento adicional de 0,6 grau centígrado de aquecimento até 2100, revela o estudo.

Isso pode ser visto no gráfico 3 A linha amarela mostra novamente o cenário RCP2.6 da linha de base, e, desta vez, a linha verde mostra o impacto na temperatura média global de erradicar a pobreza inteiramente. Ambos os cenários assumem que as emissões globais atingem o pico em 2020.

G-3 O efeito de acabar com todas as formas de pobreza na temperatura global da superfície até 2100. Um cenário onde a pobreza extrema é erradicada (verde) é comparado a um cenário de linha de base (amarelo). Ambos os cenários assumem que as emissões globais atingem o pico em 2020. O gráfico identifica os dias atuais até 2030 como uma “ janela de oportunidade” para levantar os países mais pobres do mundo da pobreza extrema. Fonte: Hubacek et al. (2017)

A fim de acabar com a pobreza global sem causar um aquecimento adicional significativo, os líderes globais terão que acelerar os esforços de mitigação climática em 27%, conclui a pesquisa. Para fazer isso, os países podem precisar adotar tecnologias de emissões negativas em larga escala, explica Hubacek. No entanto, muitas das técnicas de emissão negativas que já foram aclamadas como “tecnologias de salvação” não corresponderam às expectativas. Ele adiciona: “Até agora, a tecnologia não conseguiu acompanhar as emissões adicionais e nossos cenários exigiriam ainda mais progresso tecnológico em relação ao que teríamos de outra forma”.

Em vez disso, as pessoas que vivem em países mais ricos devem considerar a adoção de “mudanças de estilo de vida e comportamento” para reduzir o tamanho de suas pegadas de carbono, acrescenta, para compensar o custo extra de carbono para acabar com a pobreza.

“Dado que as elites globais são responsáveis por 36% das emissões de carbono atuais, uma discussão sobre distribuição de renda global e estilos de vida intensivos em carbono deve, pelo menos, fazer parte do discurso dos esforços futuros em direção a uma sociedade de baixo carbono”.

Traduzido por Liam Russ para WWF-Brasil

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 9

| análise |

Page 10: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Com o tema “Águas pela Paz”, o II Seminário Internacional Água e Transdisciplinaridade promoveu um debate sobre a sustentabilidade dos recursos hídricos. Cientistas nacionais e internacionais, especialistas, ativistas e líderes religiosos estiveram reunidos no evento para ampliar a visão da água e colocar o Brasil como protagonista de uma nova forma de se relacionar com esse bem público.

Um dos principais resultados do Seminário é o docu-mento “Carta Águas pela Paz”, que junta as contribuições feitas ao longo dos debates e também as da consulta pública. O documento será publicado e encaminhado ao 8º Fórum Mundial da Água e ao Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA 2018). Além disso, busca gerar diálogo com o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA 2018), que também será realizado em Brasília-DF, de 17 a 22 de Março.

Marcado para 11 e 12 de Janeiro, no Museu Nacional, em Brasília, “Águas pela Paz” foi um evento preparatório oficial para o Fórum Mundial da Água, evento que acontece a cada três anos, em diferentes países. Pela primeira vez será realizado no Hemisfério Sul, em Março de 2018, também na cidade de Brasília.

Seminário pré Fórum Mundial da Água lança Carta

Tara Ayuk | Jornalista

Participantes do Seminário

Entre os cientistas que presentes pode-se mencionar o Dr. Beverly Rubik, Ph.D. em Biofísica pela Universidade da Califórnia, e o Dr. Harry Jabs, cientista e engenheiro do Institute for Frontier Science, em Oakland, Califórnia.

Além deles, alguns dos que integraram o grupo de especia-listas e ativistas foram Vera Catalão, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília na área de Educação Ambiental e Ecologia Humana; André Lima, ambientalista, ativista e membro da Comissão de Sustentabilidade da OAB-DF; Moema Libera Viezzer, socióloga e consultora especializada em relações de gênero e meio ambiente; e Álvaro Tukano diretor do Memorial dos Povos Indígenas.

Os líderes religiosos foram representados por Sri Prem Baba, líder espiritual brasileiro que ministrou a Palestra Magna; Monge Sato, monge-residente no Templo Shin Budista; Babalorisa Ogun Tòórikpe, fundador da comunidade religiosa Ilé Asé Opo Osogunlade; e Dom Leonardo Ulrich Steiner, Bispo auxiliar de Brasília e Secretário-Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Águ

as P

ela

Paz

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2110

| fórum mundial da água |

Page 11: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Os participantes do II Seminário Internacional Água e Transdisciplina-ridade, organizado por um conjunto de lideranças da sociedade civil, governos, institutos, universidades, reunido em Brasília, no Distrito Federal, entre os dias 11 e 14 de Janeiro de 2018, subs-crevem a Carta Águas pela Paz, como contribuição para o fortalecimento de um olhar transdisciplinar sobre a água reconhecendo-a como um SER, em seus aspectos subjetivos e objetivos, e sua relevân-cia em benefício da expansão da consciência e da construção de uma cultura de paz. Assim, considerando:

•A urgência de atenção especial à relação humana com a água, como matriz da vida planetária, necessidade e direito inalienável de todos os seres vivos;

•As raízes éticas e ecológicas dos problemas ambientais dependem de uma mudança do padrão civilizatório vigente, voltado para o consumo exacerbado e consequente degradação socioambiental;

• Em nosso planeta, 884 milhões de pessoas não têm acesso a água potável; mais de 2,6 bilhões de pessoas não têm acesso a saneamento básico e cerca de 1,5 milhão de crianças de até cinco anos morrem, a cada ano, devido a doenças decorrentes de problemas com a água (Resolução 64/292 da Assembleia Geral da ONU aprovada em 28 de julho de 2010;

• O contexto de mudanças climáticas potencializado pelo aumento da emissão de gases de efeito estufa gera múltiplos impactos, como a redução da disponibilidade da água em algu-mas regiões, com consequentes danos à saúde, à agricultura, à economia, às relações sociais e humanas e aos ambientes rurais e urbanos, com previsões futuras cada vez mais dramáticas em termos de desastres ambientais e escassez;

• A qualidade de vida do nosso planeta depende da preservação e da regeneração dos ecossistemas aquáticos: marinhos, costeiros e continentais. Os ciclos da água devem ser respeitados e cuidados para garantir a continuidade da vida na Terra, especialmente considerando que, apenas 2,5% de toda água do planeta é doce, e somente 0,01% forma os corpos de água superficiais;

Carta Águas pela PazDocumento-síntese do II Seminário Internacional Água e Transdisciplinaridade

• A importância incontestável dos oceanos, que possuem 97% das águas do planeta, e são abrigo para uma bio-diversidade rica e, em parte, ainda des-conhecida; além de fonte de alimentos para bilhões de pessoas. Instrumento essencial para a regulação do clima do planeta, os oceanos são fundamentais para a vida na Terra, entretanto, estão

sob crescente pressão por fatores como aquecimento global, acidificação, poluição, sobrepesca de recursos e degradação dos ecossistemas costeiros e marinhos;

• Que a formação do ser humano deve contemplar aspectos multidimensionais, desde a relação consigo mesmo até os vínculos de pertencimento à vida planetária em suas expressões biológica, antropológica e social;

• Que os saberes, culturas e modos de vida não hegemônicos de cuidado com a água, com a vida, com a Mãe Terra e com as pessoas, estão sob ameaça de extinção e são conhecimentos importantes para a cultura de sustentabilidade do planeta;

• Que na história da humanidade, a água apresenta-se como elemento central, capaz de unir grupos humanos das mais diversas etnias, tradições, religiões, culturas e sistemas econômicos por meio de ações de cooperação e coexistência pacífica em benefício da sobrevivência de toda comunidade de vida;

• Que a ameaça de disputa, conflitos e guerras pelo direito à agua, cria a necessidade de fortalecer uma cultura de paz, cuidado e cooperação como condição de preservação do direito e do acesso ao bem comum;

• Sendo elemento constitutivo de todas as formas de vida e fundamental para sua manutenção, a água não pode ser apropriada e nem “privatizada” em seu acesso, pois isto ameaça toda vida no planeta, inclusive a vida humana;

• A necessidade de um olhar transdisciplinar sobre a água, aberto e inclusivo, capaz de reconhecer os múltiplos saberes originários das comunidades, tradições, artes e reli-giões, conferindo a estes a mesma legitimidade dos saberes acadêmicos e, desse modo, favorecer a gestão participativa, solidária e sustentável da água.

“Devemos fluir como os rios que percorrem os caminhos assinalados pela Mãe Terra e aprender a fluir como a água para saber

caminhar com os ritmos e com os ciclos da vida”.

Princípios do Bem Viver dos Povos Originários Andinos

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 11

| fórum mundial da água |

Page 12: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Propomos que as ações humanas, individuais ou coleti-vas, nas esferas privadas ou públicas, das sociedades civil ou governamental, sejam norteadas pelos seguintes princípios e proposições:

1. Valorização do elemento água em seus múltiplos aspectos: simbólico, artístico, espiritual, ecológico e socio-ambiental;

2. Garantia do direito coletivo à água como patrimônio público inalienável, com base no respeito à natureza, aos direitos humanos e da Mãe Terra, à justiça social e ambiental, à cultura da paz e aos valores humanos, princípios também compartilhados pela Carta da Terra;

3. Reconhecimento, valorização, disseminação e forta-lecimento dos saberes e modos de vida não hegemônicos de cuidado com a água por obterem conhecimentos fundamentais à preservação da cultura de sustentabilidade e por tê-la como elo promotor da paz;

4. Reconhecimento do planeta Terra como organismo vivo e casa comum de todo ser

humano, cuja sustentabilidade depende de um compro-misso ético de respeito à vida e da compreensão dos vínculos entre todos os seres vivos;

5. Disseminação da ideia de que a água, como ente vivo, é um sujeito de direitos a ser incorporado às legislações per-tinentes em cada nação, dando-lhe direito de voz e de defesa, conforme experiências pioneiras estabelecidas em países, como Equador, Bolívia, Nova Zelândia, Índia e Colômbia;

6. Defesa incondicional do acesso à água limpa e segura, e ao saneamento básico, como direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os demais direitos humanos, conforme a resolução Nº. 64/292 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, aprovada em 28 de julho de 2010, por 122 países, em favor desses direitos, resguardada a soberania das nações na gestão desse princípio;

7. Prevenção e redução significativa da poluição marinha, especialmente aquelas advindas de atividades terrestres, incluindo detritos marinhos e poluição por nutrientes, para proteção do ecossistemas marinhos e costeiros;

8. Reivindicação de um fundo internacional que contribua inclusive com os movimentos sociais e iniciativas indivi-duais, para os avanços de processos de educação ambiental e para a produção de conhecimentos técnico-científicos relacionados à sustentabilidade e ao uso responsável e solidário da água;

9. Fortalecer os mecanismos de cooperação entre os países para a gestão transfronteiriça e transdisciplinar das águas da Bacia Amazônica, da Bacia do Prata e do Aquífero Guarani, em uma nova diplomacia verdadeiramente holística e participativa;

10. Promoção e fomento da pesquisa científica, inovação e geração de conhecimento transdisciplinar sobre a água, e sua aplicação por meio de boas práticas;

11. Reconhecimento e disseminação, por todos os meios acessíveis, dos avanços ocorridos nos últimos anos sobre as propriedades moleculares da água e sua capacidade de reter e transmitir informações; ampliando o conhecimento, as pes-quisas e o intercâmbio técnico-científico para novos saberes ligados à água, como homeopatia, termalismo, crenoterapia e outros;

12. Proposição de práticas de educação, apoiadas na perspectiva transdisciplinar de abertura e inclusão de saberes, como a sensibilidade e a prontidão para o diálogo na produ-ção e transmissão de conhecimentos, tendo como alicerce a ética do cuidado e o compromisso com a sustentabilidade dos ciclos da vida;

13. Adoção dos princípios de cooperação e de transparên-cia nas relações políticas, econômicas e sociais, permitindo o acesso democrático a todas as informações sobre a água geradas por entes públicos e privados;

Águ

as P

ela

Paz

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2112

| fórum mundial da água |

Page 13: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

14. Apoio e fortalecimento das políticas públicas em todas as esferas; locais, nacionais ou internacionais, que adotem o cuidado integral com a água em seus aspectos etnocultural, ético, ecológico e espiritual;

15. Adoção de políticas públicas para manutenção e melhoria da qualidade das águas, superficiais e subterrâneas, com especial atenção ao uso indiscriminado de agrotóxicos, de resíduos provenientes de atividades industriais, de mineração, de lançamento de efluentes nos corpos d´água e outros usos degradantes da água;

16. Fortalecimento das políticas de preservação e conserva-ção das nascentes, das áreas de recargas de aquíferos, das áreas de preservação permanentes e dos ecossistemas aquáticos;

17. Reconhecimento do papel das florestas na produção de água e na manutenção dos serviços ecológicos de sustentação do ciclo hidrológico;

18. Fortalecimento e disseminação das políticas públicas que adotem as bacias hidrográficas como unidades de ges-tão e resolução de conflitos relativos à água, estimulando a participação das comunidades e acolhendo seus saberes para compreensão sistêmica e abordagem integral do ciclo da água em suas dimensões atmosférica, superficial e subterrânea;

19. Integração das políticas ambientais, de gestão terri-torial e de água, tendo a bacia hidrográfica como unidade de gestão;

20. Adoção da Declaração Universal dos Direitos da Água, documento redigido pela ONU, em 1992, como princípio norteador das ações de gestão, de uso e de interação humana, priorizando as ações de cooperação e promoção da paz onde hou-ver conflito por acesso e reduzida disponibilidade de água;

21. Apoio à promoção de uma cultura de paz, que consi-dere a água como bem coletivo e incorpore suas dimensões simbólica, ética, ecológica e cultural, de modo a promover os princípios de paz na mediação de conflitos e uma relação de solidariedade no seu uso e preservação;

22. Apoio e fortalecimento à participação das comunidades locais na gestão do uso da água e do saneamento;

23. Fortalecimento de estratégias para redução do consumo de carne, grande responsável pelo desmatamento florestal e consumo excessivo de água, como a implementação da segunda-feira sem carne;

24. Promoção da capacitação de membros de todos os comitês de bacias hidrográficas e do sistema de gestão de recursos hídricos sobre resolução de conflitos, gestão trans-disciplinar da água e comunicação não-violenta;

25. Instituição de ato simbólico, reservando um minuto de silêncio no início e ao final de ações e eventos ligados ao tema da água, como forma de interiorização e reverência;

26. Adoção dos princípios da Carta da Terra, norteador ético da sociedade humana, especialmente em projetos que intervenham nos sistemas hídricos;

27. Adoção da Carta da Transdisciplinaridade como inspiradora de um sistema de

valores compatível com o diálogo de saberes necessários à gestão sustentável da água, e com os demais princípios e propostas nela abordados;

28. Reinvindicação de uma Carta Mundial de Cidadania pelas Águas, integrando vozes sobre as diferentes realidades e desafios vivenciados por todos os povos.

A presente Carta é adotada pelos participantes do “II Seminário Internacional Água e Transdisciplinaridade – Águas pela Paz” e será encaminhada ao 8º Fórum Mundial da Água e ao Fórum Alternativo Mundial da Água - FAMA, para introduzir a perspectiva da transdisciplinaridade, da ética, do cuidado e da cultura de paz nos debates.

Comitê Deliberativo II Seminário Internacional Água

e Transdisciplinaridade

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 13

| fórum mundial da água |

Page 14: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 15: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Alcançar acesso sustentável Objetivo de Desenvolvimento (ODS) para água e saneamento administrada com segurança em 2030 vai exigir que os países apliquem US$ 150 bilhões por ano. Isto significa quadruplicar investimento em abas-tecimento de água, saneamento e higiene em relação ao que é gasto hoje, fato que está além do alcance de muitos países e ameaça o progresso na erradicação da pobreza.

Um Relatório do Banco Mundial divulgado para a imprensa na última Semana Mundial da Água (2017), intitulado “Reduzir as desigualdades no abastecimento de água, saneamento e higiene na Era dos Objetivos de Desen-volvimento Sustentável” (Reducing Inequalities in Water Supply, Sanitation, and Hygiene in the Era of the Sustainable Development Goals) sugere que os países precisam mudar drasticamente o modo como geram os recursos e fornecer serviços essenciais. Ele enfatiza nos detalhes começando com a melhoria dos sistemas de alocação para garantir que eles atinjam o máximo nas necessidades básicas, e para tratar as ineficiências de modo a garantir que os serviços públicos sejam sustentáveis e eficazes.

Em adição, o Relatório observa que as intervenções de água, saúde e nutrição devem ser coordenadas para alcançar progressos substanciais na luta contra a desnutrição crónica e a mortalidade infantil. Se o progresso na água e no saneamento representa uma melhoria no bem-estar das crianças, os efeitos sobre o seu futuro são ainda maiores quando combinado com intervenções de saúde e nutrição.

“Hoje, milhões de pessoas estão presas na pobreza por falta de fornecimento de água e falta de saneamento, con-tribuindo para o atraso do crescimento e da existência de doenças infantis graves, como diarreia. A fim de dar a todos a mesma oportunidade de atingir seu pleno potencial, são necessários mais recursos de água e saneamento direcionados para as áreas pobres de alta vulnerabilidade e de acesso limi-tado, reduzindo dessa forma as diferencias e assim gerando melhorias. O Relatório fornece um roteiro para superar essas lacunas”, disse Guangzhe Chen, Diretor de Práticas Globais sobre Água do Banco Mundial.

A pesquisa fornece indicadores de análise abrangentes sobre o estado dos serviços hídricos e do saneamento nos 18 países abrangidos e, pela primeira vez, identifica regiões geográficas específicas dentro dos países com abastecimento de água, saneamento e serviços de higiene inadequados, também destaca as grandes disparidades de fornecimento desses serviços entre as áreas rurais e urbanas e áreas pobres e não-pobres. A pesquisa revelou um contraste particularmente acentuado entre as áreas urbanas e rurais. Nos 18 países pesquisados, 75% das pessoas que vivem em áreas rurais não têm um bom saneamento e apenas 20% dessa população têm acesso à água de qualidade.

Falta de água e saneamento afeta milhões no mundo

Isabel Hagbrink | Jornalista do World Bank Carbon Finance Unit

O Relatório fornece aos decisores políticos linhas de base e conselhos sobre a melhor maneira de orientar os investimentos para garantir que os serviços básicos atinjam as comunidades e as famílias mais pobres.

As equipes de pesquisa têm recolhido, ao longo de dois anos, os dados sobre o acesso a água, saneamento e higiene, e sua qualidade, nos seguintes países:

- Na Nigéria, mais de 60% da população rural vive a mais de 30 minutos de distância de uma fonte de água que funcione corretamente.

- Na Indonésia, somente são tratados e eliminados de forma segura 5% das águas residuais urbanas; fora disso, as crianças durante os primeiros 1000 dias de vida residem em comunidades em que se defeca ao ar livre. Eles têm 11 pontos percentuais a mais do que a média de sofrerem nanismo.

- No Bangladesh, foi detectada a presença de bactérias E. coli em aproximadamente 80% das torneiras da amostra, extraiu-se semelhante taxa na água da lagoa.

- No Equador, 24% da população rural bebe água con-taminada, 21% das crianças são raquíticas e 18% tem um peso abaixo do normal.

- No Haiti, o acesso a fontes adequadas de água potável tem diminuído ao longo dos últimos 25 anos; o acesso a saneamento adequado é limitado a 33%, e o número de famílias com acesso a habitações com água de qualidade diminuiu de 15% para 7%.

“Os serviços de água e saneamento tem que melhorar drasticamente, ou as consequências para a saúde e o bem-estar serão graves. Hoje, a diarreia é a segunda causa principal de morte em crianças menores de 5 anos. As crianças pobres também sofrem de doenças intestinais, juntamente com desnutrição e infecções contribuem para atrasar o seu cresci-mento. Estão colocando em risco o futuro dos nossos filhos e seu potencial está sendo prejudicado por irregularidades ou desequilíbrios nos acessos aos serviços que eles precisam para prosperar”, diz Rachid Benmessaoud, Diretor responsável pelas operações na Nigéria.

O Relatório destaca que, em muitos países, os serviços não chegam aos pobres por causa do mau desempenho e de políticas ruins, e são as crianças as que sofrem as consequências. Também fornece uma nova perspectiva sobre a complexidade da razões de porquê os serviços falham e como o aprofunda-mento das melhorias devem abordar uma política de governo e em geral a melhoria dos prestadores de serviços.

O Relatório envolveu fabricantes, profissionais e repre-sentantes da área política, mas só agora teve uma divulgação maciça. Essa pesquisa faz parte da iniciativa em curso da avaliação da pobreza por parte do Banco Mundial em relação a abastecimento de água, saneamento e higiene, que consiste em 18 Relatórios a serem lançados ainda em 2018.G

. M. B

. Aka

sh

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 15

| ods |

Page 16: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

A Agência Nacional de Águas (ANA) estará sob o comando de nova diretoria pelos próximos quatro anos. Neste mês, o Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, empossou Christianne Dias Ferreira para o cargo, em subs-tituição a Vicente Andreu, cujo período de gestão terminou em 15 de Janeiro.

“É uma honra servir ao meu país na qualidade de Diretora-Presidente da Agên-cia Nacional de Águas. Estou consciente dos desafios do setor e pretendo atuar sempre em busca do diálogo democrático permanente com todas as instituições e a sociedade civil, contribuindo para a gestão dos recursos hídricos”, declarou Christianne Ferreira.

Na mesma ocasião, também foram empossados o novo Diretor da Área de Planejamento da ANA, Marcelo Cruz, que se despede do cargo de Secretário-Executivo do Minis-tério do Meio Ambiente (MMA); e o novo Diretor da Área de Regulação da ANA, Oscar Cordeiro Netto, que já foi Diretor-Presidente da agência, entre 2004 e 2008.

Para Sarney Filho, a ANA presta um serviço essencial na “Agenda Azul” do meio ambiente, a Agenda da Água. “A causa ambiental não tem partido nem ideologia, é a causa das futuras gerações”, analisou. Em 2018, a ANA estará à frente do Fórum Mundial da Água, maior evento mundial sobre o tema, que acontece de 18 a 23 de Março em Brasília.

Christianne Ferreira atuou como Subchefe Adjunta e Coordenadora de Infraestrutura da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República de Maio de 2016 até Dezembro de 2017. É integrante do Conselho Fiscal do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e, entre 2007 e 2016, atuou como asses-sora jurídica da Procuradoria Parlamentar da Câmara dos Deputados. Foi indicada ao novo cargo pelo Presidente da República, Michel Temer.

No meio acadêmico, Ferreira é professora de Direito Privado e professora assistente do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) desde 2010. Mineira, Christianne se graduou em Direito em 2002 na Universidade Católica de Brasília (UCB), se especializou em Processo Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e fez mestrado em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB. Nesta mesma instituição, Ferreira cursa atualmente doutorado em Direito e Políticas Públicas.

Agência Nacional de Águas tem nova diretoria

Letícia Verdi | Jornalista do MMA

Marcelo Cruz, que integra o quadro do Banco do Brasil, já exerceu os seguintes cargos: subsecretário de Planejamento, Orçamento e Administração do Ministério de Minas e Energia (MME); Coordenador-Geral de Planejamento de Serviços Postais do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC); Subsecretário de Planejamento, Orçamento e Administração do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Diretor de Recursos Logísticos da Casa Civil da

Presidência da República, além de Secretário-Executivo do Ministério do Meio Ambiente.

Desde Maio de 2016 no Meio Ambiente, representou o órgão em diversos colegiados, entre eles o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), o Conselho de Desenvolvi-mento Econômico e Social (CDES) e Comitê Executivo da Câmara de Políticas de Integração Nacional e Desenvolvi-mento Regional.

Nascido na cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Cruz é graduado em Economia pelas Faculdades Integradas da Cató-lica de Brasília, atualmente Universidade Católica de Brasília (UCB). Também possui Master of Business Administration (MBA) na área de Solução em Governo Eletrônico com utilização da WEB pelo Centro Universitário de Ciências Gerenciais (UMA-MG) e NestBoston.

Oscar de Moraes Cordeiro Netto foi Diretor da Agência Nacional de Águas entre 2004 e 2008. Antes disso, entre 2002 e 2003 exerceu o cargo de Presidente da Associação Brasi-leira de Recursos Hídricos (ABRH) e atuou como membro do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH). No colegiado, o engenheiro civil carioca atuou como Presidente da Câmara Técnica do Plano Nacional de Recursos Hídri-cos (CTPNRH) de 2002 a 2004. Também participou do Comitê Técnico da Parceria Global pela Água (GWP, na sigla em inglês).

Netto é professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB) desde 1996, onde também se graduou como engenheiro civil em 1978. Possui mestrado em Técnicas e Gestão do Meio Ambiente pela Escola Nacional de Pontes e Estradas (ENPC, na sigla em francês), da França, em 1989. O profissional possui, ainda, doutorado em Ciências Técnicas Ambientais pela ENPC, título obtido em 1995.

Marcelo Cruz, Sarney Filho, Christianne Ferreira e Oscar Cordeiro Netto

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2116

| política |

Page 17: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 18: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Os dois pontos mais remotos do território nacional – os Arquipélagos São Pedro e São Paulo, no Oceano Atlântico equatorial, a 1.010 quilômetros de Natal (RN), pertencente ao Estado de Pernambuco, e o de Trindade e Martim Vaz, um pouco mais ao Sul, a cerca de 1.000 quilômetros a Leste de Vitória (ES) – vão se tornar Unidades de Conservação (UCs) federais.

As consultas públicas para discussão das propostas de criação das unidades ocorrem no próximo mês de Fevereiro. No dia 7, na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, serão avaliados os estudos sobre São Pedro e São Paulo. No dia seguinte (8), no Centro de Visitantes do Projeto Tamar, em Vitória, será a vez do debate a respeito das Unidades sugeridas para o Arquipélago de Trindade e Martim Vaz.

Consulta pública é uma das etapas de criação de UCs e está prevista na Lei 9.985/2000, que regula o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Trata-se de uma reunião para se ouvir a opinião dos vários setores da sociedade envol-vidos com o tema. Na ocasião, são apresentados os estudos que fundamentam a implantação das Unidades.

Os estudos biológicos e socioeconômicos sobre São Pedro e São Paulo e Trindade foram concluídos em Novembro passado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversi-dade (ICMBio), órgão do Ministério do Meio Ambiente que gera as UCs federais. Após as consultas, o passo seguinte é a assinatura e publicação dos Decretos de criação das Unidades. A previsão é que isso ocorra até o final de Março.

Governo cria mosaicos de UCs marinhas e 4 RPPNs

Elmano Augusto | Jornalista do MMA

A iniciativa é uma ação compartilhada entre os Ministérios do Meio Ambiente e da Defesa, com a participação direta da Marinha, que mantém estação científica em São Pedro e São Paulo e um posto oceanográfico no Arquipélago de Trindade, entre outras atividades. Diversos outros setores da sociedade, como universidades, centros de pesquisa e organizações ambientais, também deram sua parcela de contribuição às propostas.

A criação das UCs faz parte da preocupação do governo bra-sileiro de estabelecer grandes áreas marinhas protegidas como estratégia de gestão do mar territorial e da Zona Econômica Exclusiva (ZEE), unindo conservação ambiental e soberania nacional, a exemplo do que já fazem outros países.

“Desse modo, a conservação da ZEE marinha como aliada da soberania nacional tem o potencial de alavancar o país como líder internacional nos assuntos relacionados à gestão susten-tável dos oceanos, considerando as relações internacionais, meio ambiente, mudanças climáticas e autoridade marítima”, disse o Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho.

Nos dois casos, as propostas preveem a criação de mosaicos de UCs, com uma área maior, como Área de Proteção Ambien-tal (APA), contendo uma área menor, como Monumento Natural (MONA). Os monumentos naturais são Unidades de Proteção Integral e teriam, entre outros objetivos, o de garantir sítios raros e recuperação dos recursos pesqueiros. Já as APAs são uma categoria menos restritiva, admitindo várias atividades sustentáveis nos seus limites.

Sim

one

Mar

inho

Ilha da Trindade

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2118

| unidades de conservação |

Page 19: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

O formato permite ao Brasil atingir 25% da ZEE em Áreas Protegidas. “É uma proposta ousada, um compromisso sério que o País assume perante a comunidade internacional”, destacou o Secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, José Pedro de Oliveira Costa.

Do ponto de vista ambiental, a medida representa mais um avanço do governo brasileiro na proteção da zona costeira-marinha. Em 2016, o Ministro Sarney Filho já havia decretado a criação do Refúgio de Vida Silvestre (RVS) do Arquipélago dos Alcatrazes, um santuário marinho de 67 mil hectares no litoral Norte de São Paulo.

A criação das novas UCs está sintonizada, ainda, com recomendações internacionais, preconizadas na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar (CNUDM) e na Convenção da Diversidade Biológica (CDB). Esta última prevê, entre suas metas, a proteção pelos países signatários de 10% das áreas marinhas e costeiras. Hoje, apenas 1,5% dessa região estão abrangidas por UCs no Brasil.

Os dois arquipélagos são ricos em biodiversidade, com espécies de fauna e flora endêmicas ou ameaçadas de extinção, e cumprem uma função estratégica na delimitação e proteção do mar territorial brasileiro e da ZEE. Mesmo considerada área ecológica ou biologicamente significativa por organizações internacionais, em processo conduzido pela CDB, a região do Arquipélago São Pedro e São Paulo permanece ainda praticamente sem nenhum mecanismo de proteção.

O conjunto de ilhotas é o menor e mais isolado arquipélago tropical do Planeta. Está localizado a 1.010 quilômetros da costa do Nordeste do Brasil e a 1.890 quilômetros da costa Oeste do Senegal, África, no meio do Oceano Atlântico equatorial. É formado por pequenas ilhas rochosas que surgiram com o soerguimento do manto do assoalho submarino, formação geológica única no mundo.

Devido ao seu isolamento geográfico, apresenta elevada concentração de espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. As características únicas da área atraem as atenções de cientistas desde o Século 19, incluindo trabalhos realizados por Charles Darwin a bordo do navio HMS Beagle, em 1832.

Atualmente, o Arquipélago São Pedro e São Paulo está inserido na Área de Proteção Ambiental de Fernando de Noronha-Rocas-São Pedro e São Paulo (Decreto 92.755 de 5 de Junho de 1986), que cobre 79.706 hectares e pertence ao Estado de Pernambuco.

Em 1998 o Governo brasileiro criou o Programa Pró-Arquipélago e construiu uma estação científica, garantindo a ocupação permanente do local por civis e militares e os direitos e deveres de manutenção da Zona Econômica Exclusiva no entorno do arquipélago (430.000 quilômetros quadrados; 11.5% de toda ZEE brasileira).

A APA São Pedro e São Paulo abrange a zona marinha num raio de 200 milhas náuticas ao redor do arquipélago, correspondente à ZEE, excluída a área delimitada pelo monu-mento natural. Teria os objetivos de conservar os ambientes marinhos, montes submarinos e suas espécies de fauna, flora e microrganismos, em especial as espécies endêmicas, e assegurar os direitos de soberania para fins de exploração e gestão dos recursos naturais e aproveitamento da ZEE.

Já o Monumento Natural do Arquipélago de São Pedro e São Paulo teria, entre outras funções, as de preservar o sítio natural raro, composto por formação geológica única no mundo, os recursos pesqueiros, as águas e regiões submersas do menor e mais isolado arquipélago nos trópicos, a integri-dade dos hábitats e das populações das espécies ameaçadas de extinção e endêmicas existentes no local, promovendo a capacidade de resistência e resiliência dos ecossistemas marinhos para enfrentar cenários futuros de mudanças climáticas.

Trindade e Martim Vaz

A Ilha da Trindade surgiu do embate entre a água fria e o magma incandescente de vulcões nas profundezas do Oceano Atlântico há cerca de 3,5 milhões de anos. Mergulhando na costa do Espírito Santo, a lava das erupções formou uma cor-dilheira submersa – a cadeia Vitória-Trindade. O arquipélago é o único ponto em que as enormes montanhas dessa cadeia ultrapassaram o nível do mar.

Can

indé

Soa

res

Arquipélago de São Pedro e São Paulo

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 19

| unidades de conservação |

Page 20: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

A Cadeia Vitória-Trindade representa uma formação única no planeta, composta por uma cordilheira de montanhas de mais de 1.000 km de extensão, que conecta a costa central do Brasil à Ilha da Trindade e do Arquipélago Martim Vaz. Possui cerca de 30 montes submarinos, sendo que ao menos dez estão entre 30 metros e 150 m de profundidade, funcionando como verdadeiras ilhas para a biodiversidade marinha.

As ilhas oceânicas, situadas no extremo Leste da cordi-lheira, abrigam a mais alta diversidade de algas calcárias do mundo, a maior riqueza de espécies recifais e endêmicas de todas as ilhas brasileiras e ainda uma das maiores taxas de peixes e tubarões do Atlântico Sul. Entre as espécies endêmi-cas, estão o caranguejo-amarelo, pardela-de-trindade, uma subespécie de fragata e bosques de samambaias gigantes com mais de 5 metros.

A região da cordilheira Vitória-Trindade é reconhecida nacional e internacionalmente como um hot spot (área de alta prioridade para a conservação e uso sustentável da bio-diversidade). A cordilheira também foi apontada pela CDB como uma área marinha ecologicamente e biologicamente significativa e indicada pelo Governo brasileiro durante a Conferência da ONU sobre Oceanos/ODS 14, em Junho de 2017, como área prioritária para a proteção dos oceanos e criação de Unidades de Conservação Marinhas.

Trindade é atualmente considerada uma Reserva Muni-cipal de Vitória). Abriga, desde 1957, o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade, gerido pela Marinha do Brasil. Com a construção do posto, o local parece hoje uma pequena vila numa ilha paradisíaca. São oito instalações para militares e pesquisadores, que abrigam cerca de 30 pessoas, a única comunidade da região.

As pequenas praias da Ilha da Trindade constituem o maior sítio reprodutivo da tartaruga verde no Brasil e a sétima maior colônia reprodutiva do Atlântico, abrigando até 6.000 ninhos por ano. Tartarugas verde, cabeçuda e de pente, todas amea-çadas de extinção, são comumente observadas nos ambientes recifais dos montes submarinos da cordilheira. Trindade ainda é especialmente importante para aves marinhas, uma vez que sete espécies se reproduzem na região.

Pela proposta, a APA de Trindade e Martim Vaz será com-posta por duas áreas. Uma num raio de 200 milhas náuticas ao redor do arquipélago, correspondente à ZEE, excluída a área delimitada pelo Monumento Natural do Arquipélago de Trindade e Martim Vaz; e outra em frente ao posto oce-anográfico, dentro do monumento natural.

A APA terá como objetivos assegurar os direitos de sobe-rania para fins de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais, garantindo o uso sustentável da Zona Econômica Exclusiva para fins econômicos, além de ordenar a pesca, navegação, turismo e demais atividades econômicas compatíveis com a conservação ambiental que se apresentem como estratégicas à região.

Já o MONA de Trindade e Martim Vaz visa preservar sítios naturais raros, compostos por monte submarinos e ilhas da Cadeia Vitória-Trindade, garantir a integridade dos hábitats e das populações de espécies ameaçadas de extinção, promover a execução constante de pesquisa e monitoramento da biodiversidade na região e contribuir, por meio do mosaico de unidades de conservação e seu zoneamento, para a recu-peração de estoques pesqueiros.

Gestão compartilhada

As UCs serão administradas de forma compartilhada entre a Marinha, que ficará responsável pelas ações administrativas, e o ICMBio, que cuidará da gestão ambiental. A criação das Unidades não causará nenhuma interferência nas atividades de defesa nacional executadas em todo o mar territorial e Zona Econômica Exclusiva, incluindo a realização de exercícios militares e pesquisas para garantir o treinamento, prontidão e mobilidade das Forças Armadas brasileiras.

Governo cria quatro reservas particulares

Instituído há pouco mais de um mês, o Dia Nacional das Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) foi celebrado pela primeira vez no dia 31 de Janeiro deste ano em grande estilo. Durante evento na sede do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em Brasília, o Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, assinou certificados de criação de quatro reservas particulares e entregou 65 veículos ao ICMBio. Os carros serão usados nas atividades de campo nas Unidades de Conservação (UCs) Federais geridas pelo Instituto.

“Sou muito ligado à causa das RPPNs. Além de ampliar o conjunto de Áreas Protegidas, elas funcionam como alterna-tiva econômica por desenvolver o turismo ecológico, gerando emprego e renda e conservando a biodiversidade”, disse o Ministro, ao atribuir o crescimento dessa categoria de Uni-dade de Conservação, criada por iniciativa dos proprietários de terra, ao avanço da conscientização ambiental e ao bom entrosamento entre governo e sociedade.

Com as quatro novas reservas, o Brasil passa a contar com 673 RPPNs federais, o que representa aproximadamente 500 mil hectares. Somadas às estaduais e municipais, as reservas particulares perfazem hoje um total de cerca de 1,4 mil Unidades, ou 750 mil hectares de áreas protegidas nos vários biomas do país. “Esse é um verdadeiro legado para as futuras gerações”, discursou o Ministro para uma plateia formada por servidores e convidados, que lotou o auditório do Instituto.

Paul

o de

Ara

újo

Ministro Sarney Filho assinando a criação das RPPNs

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2120

| unidades de conservação |

Page 21: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

O Presidente do ICMBio, Ricardo Soavinski, fez questão de destacar a simbologia do ato de criação de RPPNs. “São os proprietários que tomam a iniciativa de destinar parte de suas terras, de forma perpétua, para a implantação das reservas, para a conservação da natureza. É um ato quem vem de dentro do coração, digno de altíssimo reconhecimento”, elogiou ao considerar os proprietários das reservas “parceiros” do Instituto.

Soavinski ressaltou a necessidade de aprovação pelo Con-gresso do Projeto de Lei, de autoria do Deputado Sarney Filho (PV-MA), atualmente no cargo de Ministro, que prevê uma série de incentivos para facilitar e ampliar a criação de RPPNs no território nacional. Ele disse, também, que o ICMBio está cada vez mais aparelhado para viabilizar a implantação das reservas particulares por meio do SIMRPPN, sistema online de atendimento aos proprietários.

Coube a Jorge Velloso, do Instituto Água Boa, da Bahia, falar em nome dos proprietários das quatro reservas criadas. Ele lembrou que o “movimento rppnista” vinha lutando há cinco anos para instituir um dia dedicado à celebração das RPPNs. “As Reservas Particulares precisam ser exaltadas, como estamos finalmente fazendo hoje. Além de fundamentais para conservação da biodiversidade, elas mantém a paisagem, o fluxo de fauna, entre outros benefícios”, disse ele.

O Vice-Presidente da Confederação Nacional das RPPNs, Lúcio Flávio, foi enfático ao defender as reservas particulares. “Muitas pessoas nem sabem o que significa a sigla. Por isso, é importante dizer que as RPPNs não são espaços apenas de conservação, mas também de produção. Elas produzem oxigênio, água, fauna e flora, enfim, elas produzem vida”. Antes de encerrar, ele convidou os presentes a participar do V Congresso Nacional de RPPNs, que será realizado em Junho, em Santa Catarina.

Conheça as quatro novas RPPNs

RPPN Volta Velha - Padre Piet Van Der Art – Protege área de Mata Atlântica, no Norte de Santa Catarina, no muni-cípio de Itapoá. Tem 285 hectares, de propriedade do casal Natanoel e Arnolda Machado. Desde 1992, a propriedade mantém no local outra RPPN, a Fazenda Palmital, com 586 hectares. As duas protegem o rio Saí Mirim, riachos com águas escuras da planície e uma floresta com árvores de cerca de 20 metros de altura. Possui centro de recepção de visitantes, trilhas e programa de educação ambiental ao ar livre. Além disso, abrirá em breve o Centro de Referência em Estudos de Florestas Costeiras, que será a nova estrutura para recepção de pesquisadores e jovens das escolas da região. As atividades turísticas geram empregos para a comunidade e biólogos, que se envolvem na execução de programas da Associação de Defesa e Educação Ambiental (ADEA). A associação ajuda o gerenciamento da reserva.

RPPN Cachoeira do Andorinhão – Fica na área de transi-ção entre o Cerrado e a Mata Atlântica no Sul de Minas, no município de Cambuí. Com 2,2 hectares, de propriedade de Geraldo Deforno Júnior, abriga mata nativa e espécies variadas de fauna e flora. Os atributos principais são o rio do Peixe e a Cachoeira do Andorinhão, que dá nome à RPPN. Promove visitação guiada e prepara projeto turístico com potencial de geração de emprego e renda. Pesquisadores de universidades mineiras já manifestaram interesse em conhecer o local com a intenção de realizar estudos sobre a biodiversidade.

RPPN Contendas II – Protege remanescentes do bioma Mata Atlântica, no município de Itaberá (BA), no baixo Sul da Bahia. A região sofre forte pressão de atividades econômi-cas, que causam desmatamento. A RPPN tem 173 hectares e é de propriedade de Ana Cristina Borges Souza e Carlos Geraldo Coelho Souza.

RPPN Sítio Lagoa – Localizada em região de transição de Mata Atlântica e Caatinga, nas serras úmidas do Semiárido nordestino, no Ceará, nos municípios de Guaramiranga e Caridade, a Reserva tem 70 hectares de florestas úmidas, que contribuem para a estabilidade climática e a preservação de algumas espécies em extinção. Faz limite com um corredor de transição do Semiárido do sertão, o que representa fator de vulnerabilidade de sua natureza. Desenvolve atividade turística na parte que fica em Guaramiranga, contribuindo para o desenvolvimento econômico da cidade. A sua extensão representa, aproximadamente, 20% da área total da proprie-dade de Yvomar-Agro e Turismo.

O Dia Nacional das RPPNs está previsto na Lei 13.544, aprovada pelo Congresso Nacional. O objetivo da data, segundo a Confederação Nacional de RPPNs, é divulgar essa categoria de UC e marcar o esforço que todos os proprietários de Reservas empreendem em prol da preservação da natureza.

As RPPNs, ainda segundo a Confederação, são uma importante contribuição da sociedade civil para a proteção do meio ambiente, pois divide com o Governo o ônus da gestão. Criadas pela iniciativa de proprietários particulares, as RPPNs têm como principal característica a conservação da diversidade biológica. Essas áreas são gravadas com per-petuidade, na matrícula do imóvel, sendo que o proprietário não perde a titularidade.

Entre as características importantes dessas Unidades de Conservação, estão a possibilidade da participação da inicia-tiva privada no esforço nacional de conservação da natureza, apresentação de índices altamente positivos na relação custo/benefício, contribuição para ampliação das áreas protegidas no país, além de promover a diversificação das atividades econômicas, criando novas oportunidades de emprego e renda na região.

Eds

on V

eiga

RPPN Volta Velha

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 21

| unidades de conservação |

Page 22: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 23: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Os cientistas têm más notícias para quem costuma fre-quentar praias: o filtro solar que protege a sua pele enquanto você nada, surfa ou mergulha pode estar matando os recifes de corais e a vida marinha. Muitos protetores solares contêm oxibenzona, uma substância química que ajuda a barrar os raios ultravioletas responsáveis pelo câncer de pele. Infeliz-mente, pesquisas também indicam que o composto torna os corais mais suscetíveis ao branqueamento.

Esse é mais um exemplo de como os produtos químicos sintéticos podem ter consequências não intencionais, fato que reforça a necessidade de avaliações de risco mais rigorosas antes de aprová-los para uso na indústria. Muitas substâncias novas, incluindo a oxibenzona, passam por estações de tratamento de água sem ser filtradas e acabam nos rios e oceanos.

“Este é um caso para a aplicação do Princípio de Precaução”, diz Gabriel Grimsditch, especialista em ecossistemas marinhos da ONU Meio Ambiente. “A oxibenzona nos protege contra queimaduras, mas também é um poluente, e precisamos saber o máximo possível sobre ela antes de liberá-la no ambiente. Já existem evidências de que esta substância é prejudicial aos recifes de corais”, completa. A oxibenzona faz parte da família de produtos químicos frequentemente adicionados aos plásticos – para evitar que se degradem com a luz – e às garrafas de bebidas para proteger seu conteúdo. Ela também preserva as cores e aromas de vários itens, incluindo sprays de cabelo, sabonetes e esmaltes de unha.

Além de ser lavado da pele dos banhistas para a água, os protetores solares podem chegar ao mar por outros meios. Muitos componentes dos protetores solares são imediatamente absorvidos pela pele. A oxibenzona pode ser detectada na urina em 30 minutos após a aplicação. Quando você dá descarga ou lava o protetor solar no chuveiro, substancias químicas do creme vão para o esgoto.

O branqueamento dos recifes ocorre quando os corais expelem as algas que vivem sobre eles mesmos, que ficam brancos, sem o tradicional revestimento colorido. Essas plantas são as fontes primárias de alimento para os corais, com os quais mantêm uma relação de simbiose. O branqueamento pode ser provocado pelo aumento da temperatura dos oce-anos. Mesmo sem a conexão com a destruição dos corais, muitos países já restringiram o uso da oxibenzona devido à preocupação com a saúde humana, como no caso de alergias de pele. Pesquisadores também estão examinando o impacto da substância nos níveis hormonais.

A oxibenzona também é toxica para algas, ouriços-do-mar, peixes e mamíferos. Inibe o desenvolvimento embrionário dos ouriços-do-mar, pode levar a uma troca de gêneros em peixes, no qual machos desenvolvem atributos femininos, enquanto fêmeas tem produção de ovos e eclosão de embriões reduzidos. Em mamíferos foi demonstrado que ela é um possível agente mutagênico e que exibe atividade pro carcinogênica. Estudos em camundongos e ratos demonstraram que a exposição à oxibenzona aumenta o fígado e os rins, reduz a imunidade, aumenta o útero em juvenis e reduz a fertilidade.

Protetor solar destrói os coraisCraig A. Downs | Ecotoxicologista

Em estudos recentes, ficou comprovado que casais humanos cujas urinas continham concentrações maiores de benzofe-nonas tinham mais dificuldade para engravidar, enquanto homens com concentrações maiores apresentavam maiores níveis de espermas inviáveis. Tanto os golfinhos quanto as mães humanas podem transferir oxibenzona para seus filhos através do leite materno.

O recente alerta sobre seu impacto para a vida marinha surgiu de um artigo científico de 2015, que apontava que até 14 mil toneladas de protetor solar são “lavadas” anualmente da pele de banhistas e mergulhadores perto de recifes de corais em todo o mundo.

Em experimentos laboratoriais, eu e meus colegas da pes-quisa descobrimos que a oxibenzona reduziu a forma larval do coral Stylophora pistillata a uma “condição deformada e séssil” – uma consequência direta é o comprometimento do ciclo reprodutivo e, portanto, da renovação das populações de corais. A substância também foi considerada tóxica para outras cinco espécies de corais. A oxibenzona “ameaça a resiliência dos recifes às mudanças climáticas”.

Buscando proteger a indústria do turismo, fundamental para as praias do México, o país permite apenas protetores solares “biodegradáveis” em algumas de suas principais reservas marinhas. Os parlamentares da Europa e do Havaí pressionam por proibições mais amplas. Nos EUA, o Serviço de Parques Nacionais incentiva os visitantes a usar produtos alternativos ou apenas a se cobrir com chapéus e roupas de banho com mangas longas.

As empresas estão resistentes, apontando outros fatores como motivo da deterioração dos ecossistemas de corais, como a mudança do clima e o despejo de outras substâncias poluentes nos oceanos. Diversas empresas de cosméticos já estão oferecendo produtos “amigos dos corais”, que usam óxido de zinco ou dióxido de titânio em vez de ingredientes mais controversos. Existe um leque de outras substancias químicas presentes nos protetores solares que são potencialmente tóxi-cos para os recifes de corais, algumas das quais – incluindo metoxicinamatos e cânforas – na lista SIN (Substitute It Now - substitua agora) da International Chemical Secretariat baseado em sua ação como disruptor endócrino para humanos e vida selvagem.

De acordo com a Consumer Healthcare Products Asso-ciation, que representa empresas de medicamentos de venda liberada nos Estados Unidos, “não há provas científicas de que, em condições naturais, os ingredientes dos protetores solares, que têm sido utilizados com segurança em todo o mundo há décadas, contribuem para essa questão”.

No entanto, várias empresas de cosméticos já oferecem novas alternativas e meios de comunicação, como o New York Times e a Vogue ajudam a promovê-los. Então, na próxima vez que você for à praia, não precisa esperar até que o argumento científico ganhe ou perca. Você pode exercer o Princípio de Precaução por si mesmo, reduzindo o risco para o meio ambiente sem se expor aos excessos do sol.Fr

ank

Gib

son

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 23

| oceanos |

Page 24: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Um estudo divulgado no dia 25 de Janeiro (2018) na revista Science revelou como a presença atmosférica de partículas ultrafinas de aerossol – aquelas com diâmetro menor do que 50 nanômetros (ou bilionésimos de metro) – podem intensificar o processo de formação de nuvens e também as chuvas que caem sobre a região amazônica. De acordo com os autores do artigo, sempre se acreditou que essas nanopartículas tinham papel desprezível na regulação do ciclo hidrológico – o que, de fato, é verdade em regiões continentais poluídas, como as cidades europeias, norte-americanas ou mesmo São Paulo. Na Amazônia, porém, seu papel é diferente.

“A descoberta permite compreender melhor como a poluição urbana afeta os processos relacionados à formação de tempestades convectivas na região Amazônica e deve aumentar a acuidade dos modelos climáticos e de previsão do tempo”, disse Luiz Augusto Toledo Machado, pesquisa-dor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e coautor do estudo.

Partículas ultrafinas de aerossol agravam chuvas na Amazônia

Karina Toledo | Jornalista da Agência FAPESP

A investigação teve início em 2014 e foi conduzida no âmbito da campanha científica Green Ocean Amazon (GOA-mazon). O apoio da FAPESP ao trabalho agora publicado se deu por meio de três projetos – um coordenado por Henrique de Melo Jorge Barbosa, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), outro por Paulo Artaxo, também do IF-USP, e o terceiro por Machado.

Como explicou Barbosa, os dados usados no artigo foram coletados durante a estação chuvosa de 2014 (entre os meses de Março e Abril), período em que a Amazônia está livre das queimadas onde a única fonte de poluição relevante é Manaus. “Manaus é uma cidade com cerca de 2 milhões de habitantes, mais de 500 mil veículos e abastecida por termelétricas. É uma grande fonte poluidora cercada de floresta pristina. Nosso principal sítio experimental foi instalado em Manacapuru, situada a 80 km da capital amazônica e que, alternadamente, recebe a pluma de poluição carregada pelos ventos alísios e também ar limpo da floresta”, disse Barbosa.

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2124

Page 25: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Com o auxílio de instrumentos capazes de medir a con-centração de aerossóis na atmosfera e calcular o tamanho das partículas, bem como o de radares que medem o tamanho das gotículas de nuvem, a quantidade de chuva e a velocidade com que o vapor é levado da superfície terrestre para a nuvem, o grupo comparou como ocorria o processo de convecção (movimento vertical dos gases causado pela transferência de calor) e de formação de nuvens quando a pluma de Manaus estava ou não presente sobre Manacapuru.

“As partículas de aerossol são essenciais no processo de formação de nuvens porque são elas que oferecem uma superfície para o vapor d’água se condensar. As gotículas formadas pela condensação são pequenas, mas elas acabam colidindo umas com as outras e, assim, crescendo. As gotas aumentam de tamanho e, quando ficam pesadas o suficiente, precipitam”, explicou Barbosa.

Normalmente, apenas as partículas maiores do que 50 nanômetros atuam como núcleos de condensação de nuvens (CCN). Segundo os pesquisadores, é mais fácil para o vapor se condensar nas partículas grandes por ser menor a menor tensão superficial, a força de atração entre as moléculas de água que permite aos mosquitos pousar na superfície de um lago.

“Em cidades mais poluídas, ou na época seca na Amazônia, há muitas partículas na atmosfera e, portanto, existe uma forte competição pelo vapor d’água que emana da superfície terrestre. Portanto, a população de gotículas que se forma tem maior número e menor tamanho do que teria se não houvesse poluição. Assim, ela demora mais tempo até crescer o suficiente para chover”, explicou Machado.

Por esse motivo, acrescentou o pesquisador, a nuvem acaba se desenvolvendo muito no sentido vertical e, como a parte de cima é mais fria, ocorre a formação de gelo. “A intensa formação de gelo favorece o desenvolvimento de tempestades, ou seja, de nuvens intensas com raios”, disse.

O processo descrito pelo pesquisador é conhecido pelos especialistas em clima como cloud invigoration, algo como intensificação da nuvem. O trabalho publicado na revista Science revelou que na região amazônica as nanopartículas também podem influenciar nesse processo, o que era desco-nhecido até então.

Como na floresta tropical a umidade relativa e a tempera-tura do ar são muito altas, e como há poucas partículas grandes na atmosfera no período chuvoso, o vapor em excesso acaba se condensando também nas nanopartículas e o processo de cloud invigoration ocorre na parte baixa da nuvem, onde a água está no estado líquido. Esse processo de formação de gotas de chuva libera calor latente que acelera o movimento vertical do ar, aumentando a intensidade da tempestade.

“Para se ter uma ideia, a velocidade do vento dobrava quando havia muitas nanopartículas na atmosfera”, disse Rodrigo Souza, professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) que também participou do estudo.

Trabalhos de modelagem foram feitos pelo grupo para confirmar a hipótese levantada com base nos dados atmos-féricos coletados. O modelo atmosférico usado foi o Weather Research and Forecasting (WRF), um programa de última geração, mas que falhava em representar alguns aspectos importantes do ciclo hidrológico da Amazônia por ter sido desenvolvido com base em observações do hemisfério Norte. “Foi preciso adaptar o modelo para a nossa região”, disse o Doutor em Meteorologia Helber Barros Gomes, professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

Preenchendo lacunas

“Nunca entendemos como podem ocorrer aguaceiros tão frequentes na Amazônia se a região tem tão poucos núcleos de condensação de nuvens – algo na ordem de 300 ou 350 partículas por centímetro cúbico (São Paulo, por exemplo, chega a ter de 10 mil a 20 mil). Mas é porque nunca havíamos considerado o papel dessas partículas ultrafinas de aerossol”, comentou Artaxo, coautor do artigo.

De acordo com o pesquisador, a descoberta mostra que os cientistas que estudam as regiões tropicais não devem se basear apenas em conceitos desenvolvidos em países de clima temperado. “Precisamos olhar para as particularidades da Amazônia. É possível que no passado, quando a atmosfera global ainda não estava poluída pelas emissões humanas, esse fenômeno de intensificação de tempestades também ocorresse em outras regiões do Planeta. Mas não sabemos ao certo e precisamos aprofundar as investigações”, disse Paulo Artaxo.

Na avaliação de Luiz Augusto Toledo Machado, os achados deverão alterar não somente os modelos climáticos como também o modo como as teorias climáticas são formu-ladas e os dados atmosféricos são coletados. “Agora que foi mostrada a importância das nanopartículas no processo de intensificação da chuva nunca mais vamos estudar as nuvens da mesma maneira. Isso modifica a forma de pensar todo o processo”, comentou.

O grupo ainda pretende trabalhar em novos dados e modelos para investigar até que ponto as conclusões válidas para a Amazônia podem ser extrapoladas para outras regiões do globo. “Sabemos que é preciso uma energia brutal para levar todo esse vapor d’água para 12 a 14 quilômetros de altura. Essa energia vem do Sol e está disponível na Amazô-nia”, disse Artaxo.

O trabalho de coleta e análise dos dados contou com a participação de cientistas do Brasil, Estados Unidos, Israel, China e Alemanha. Parte das medidas foi feita com o avião estadunidense Gulfstream-1 (G1), pertencente ao Pacific Nor-thwest Laboratory (PNNL). Também apoiaram a campanha GOAmazon a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e o Departamento de Energia dos Estados Unidos (DoE), além de outros parceiros.

Realizado nos anos de 2014 e 2015, o experimento teve entre seus objetivos investigar o efeito da poluição urbana da cidade de Manaus sobre as nuvens amazônicas e avançar no conhecimento sobre os processos de formação de chuva e a dinâmica da interação entre a biosfera amazônica e a atmosfera. Com base nos achados, os pesquisadores pre-tendem estimar mudanças futuras no balanço radiativo, na distribuição de energia, no clima regional e seus impactos para o clima global.

O artigo Substantial Convection and Precipitation Enhan-cement by Ultrafine Aerosol Particles (don: 10.1126/science.aan8461), de Jiwen Fan, Daniel Rosenfeld, Yuwei Zhang, Scott E. Giangrande, Zhanqing Li, Luiz A. T. Machado, Scot T. Martin, Yan Yang, Jian Wang, Paulo Artaxo, Henrique M. J. Barbosa, Ramon C. Braga, Jennifer M. Comstock, Zhe Feng, Wenhua Gao, Helber B. Gomes, Fan Mei, Christopher Pöhlker, Mira L. Pöhlker, Ulrich Pöschl e Rodrigo A. F. de Souza, pode ser lido em http://science.sciencemag.org/content/359/6374/411.

GoA

maz

on

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 25

| pesquisa |

Page 26: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 27: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 28: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

O Polo Automotivo Jeep é o primeiro grande investimento da FCA. Por que em Goiana, PE? Era um grande canavial...

Pernambuco está situado na extremidade oriental da costa da América do Sul. Tem um dos maiores portos do país, que está interligado à África, Europa e América do Norte. O Polo Automotivo Jeep tornou-se possível em Goiana porque foi lá que localizamos uma área contínua que comportasse todo o polo automotivo, incluindo nosso parque de fornecedores. Realmente, transformamos uma plantação de cana-de-açúcar em uma das fábricas mais competitivas do mundo.

Havia o objetivo ecológico e social desde o início?

Com certeza. A FCA vem, desde o início, construindo caminhos para que o investimento fosse realmente capaz de gerar benefícios sociais para as comunidades. Isto é: queríamos que o dinheiro aplicado na construção do Polo Jeep ajudasse a movimentar a economia local, envolvendo as pessoas que moram em Goiana e nos municípios vizinhos. Movidos por esse pensamento, articulamos com o Governo do Estado, as prefeituras, o SESI/SENAI, universidades e outras instituições de ensino e investimos na capacitação de pessoas, para que pudessem trabalhar na construção da fábrica e, depois, nela própria. Ajudamos a capacitar 11 mil pessoas, que trabalharam durante 2 anos nas obras de construção da fábrica Jeep.

Lúcia Chayb | Diretora da ECO•21

E continuamos a investir na educação e na qualificação dos interessados em trabalhar na Jeep. Muitos foram capacitados em pro-gramas locais, outros foram para a Europa, mas o resultado desse processo foi o mesmo: revelamos talentos, transformamos vidas, geramos oportunidades. Esse foi, certamente, um dos maiores pro-gramas de capacitação já realizados por uma empresa do setor automo-tivo no Brasil. Em relação ao meio ambiente, o propósito que nos guia é deixar um legado positivo para a sociedade, indo além de nossas atividades diretas. O Programa de

Biodiversidade é um exemplo desse compromisso, ao impul-sionar na região transformações relevantes para a conservação da Mata Atlântica, colocando nossa inteligência e ativos para gerar valor para a comunidade.

A planta de alta tecnologia mais moderna do grupo FCA tem todos os fornecedores em torno, compartilhando a mesma filosofia voltada para educação ambiental?

Os fornecedores estratégicos estão reunidos numa área ao lado da fábrica de veículos, em um complexo de 12 edifí-cios que abrigam 16 empresas responsáveis por 17 linhas de produtos. A metodologia do World Class Manufacturing, que é o WCM, foi estendida a todos esses fornecedores. Na prática, o WCM é o sistema de produção da FCA e abrange todos os aspectos da manufatura, apoiando-se em dez pilares técnicos, dentre eles “meio ambiente e energia”. A estratégia de replicar o WCM na cadeia de fornecedores traz importantes benefícios ao permitir sinergias para melhorar a eficiência dos processos de gestão ambiental do Polo Automotivo Jeep como um todo. Nosso sistema para reúso de água, por exem-plo, também recebe o efluente gerado pelos fornecedores. Medidas para redução da geração de resíduos, como o uso de embalagens retornáveis, e de consumo de energia também são estimuladas dentro da dinâmica do WCM, promovendo a cultura da sustentabilidade de forma consistente.

Cristiano Felix é Engenheiro Mecânico, pós-graduado em Engenharia Ambiental e em

Segurança do Trabalho. Entrou na Fiat Chrysler Automóveis

(FCA) como estagiário e, depois, atuou em diferentes

áreas, como planejamento de tecnologia industrial, gestão de fornecedores de prestação

de serviços, implantação de sistemas de qualidade

ambiental, segurança e gestão ambiental,

até chegar à gerência.

O Polo Jeep nasceu com a cultura do uso racional da água

Entrevista com Cristiano FelixGerente de Meio Ambiente, Saúde e Segurança do Trabalho da FCA para a América Latina

Cristiano Felix

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2128

| entrevista |

Page 29: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Como é a parceria com as Universidades?

Ao longo de 2014, as Universidades Rural e Federal de Pernambuco realizaram um amplo levantamento bibliográfico e intenso trabalho de campo nos municípios de Goiana, Iga-rassu, Abreu e Lima, Itamaracá e Paulista. No período, foram inventariadas 618 espécies de plantas. Somente em Goiana, foram identificadas 189 espécies, incluindo o pau-de-jangada, o pau-ferro, o pau-brasil e o visgueiro, que estão em extin-ção. Em relação à fauna, foram inventariadas 446 espécies, sendo 36 de peixes, 67 de répteis e anfíbios, 290 de aves e 53 de mamíferos. Desse total, a equipe identificou 35 espécies em extinção, como os pássaros pica-pau-anão-dourado e o bico-virado-liso, o peixe-boi-marinho e o tamanduá-mirim. Essa pesquisa foi o alicerce para a execução do Programa de Biodiversidade Jeep.

A maioria dos funcionários da fábrica são jovens nordestinos?

O Polo possui cerca de 8.500 empregados. Cerca de 90% são nordestinos, sendo 85% pernambucanos. É uma das fábri-cas mais jovens do mundo. A média de idade do trabalhador é de 27 anos, enquanto os líderes têm em média 28 anos.

Como inspirar o pertencimento ao meio nas crianças para plantar e formar o viveiro? Como se dá o aperfeiçoamento de professores? Há um trabalho de Educação Ambiental?

Isso mesmo. Em parceria com a Prefeitura Municipal de Goiana, criamos o Programa de Educação da Jeep, com o propósito de colaborar para que a educação ambiental se integre à rotina escolar, estimulando os alunos do 5º ano do Ensino Fundamental de escolas públicas de Goiana a atuarem como agentes de defesa e conservação do meio ambiente.

A primeira etapa do programa foi a realização de um diagnóstico socioambiental nas escolas por meio de aplicação de questionário. Em cada escola, foi mensurado o Índice de Desempenho Socioambiental Escolar (IDESE), a partir do cruzamento de indicadores relacionados a aspectos pedagó-gicos, de gestão e de infraestrutura. O IDESE representa quantitativamente o grau de maturidade da escola como espaço educador sustentável. Com esses dados em mãos, foi possível desenvolver a cartilha “Trabalhando com a Biodiversidade na Escola”, com sugestões de projetos e atividades para serem desenvolvidos em sala de aula. A visita à fábrica também faz parte da metodologia. Ao conhecerem os processos produti-vos da fábrica de Goiana e o viveiro, os alunos são engajados para a necessidade de preservar o meio ambiente na escola e no lugar onde residem. Todos os alunos são convidados a plantar uma muda, produzida no viveiro. De forma prática, com as mãos na terra se aprende ecologia, botânica e educação ambiental. Ao longo do projeto, também acontecem oficinas para capacitar professores e supervisores das escolas.

O que fazem com os resíduos? Aterro Zero?

No Polo Jeep, a gestão de resíduos é guiada pela meto-dologia dos 5Rs, nessa ordem de prioridade: recuse, reduza, reutilize, recicle e recupere. O primeiro R é recusar, ou seja, não gerar resíduos. O segundo é reduzir a geração de resíduos. Terceiro, reutilizar. O quarto R é reciclar. E, por último, recuperar, que é o uso do resíduo para gerar energia. Nesse processo, assumimos o compromisso de destinar 100% dos resíduos gerados para reciclagem e reutilização.

É a primeira fábrica do Nordeste a ser Aterro Zero. O Aterro Zero, por sua vez, impulsionou o desenvolvimento da cadeia da reciclagem no entorno do Polo, com a criação de oportunidades de novos negócios.

Div

ulga

ção

Jeep

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 29

| entrevista |

Page 30: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Atualmente, são 27 contratos de destinação de resíduos com fornecedores. A maioria é de empresas da região. Em dois anos, com a reciclagem de cerca de 400 toneladas de papelão, deixaram de ser cortadas quase 81 mil árvores, além da economia de cerca de 21 mil metros cúbicos de água. Com a reciclagem de cerca de 200 toneladas de plástico, no mesmo período, cerca de 39 toneladas de petróleo deixaram de ser extraídas.

Como funciona a captação e reúso de água na fábrica da Jeep? De acordo com as informações é a maior Estação de Trata-mento do Nordeste. O que significa isso para a região?

O Polo Automotivo Jeep nasce com a cultura do uso racional da água. A implantação das tecnologias de Membrana – MBR (reator com membranas microporosas que realizam o processo de ultrafiltração, barrando sólidos e bactérias) e de Osmose Reversa (membranas semipermeáveis que separam a água dos sais minerais) para otimizar o reúso de nosso efluente se comprovou uma decisão acertada. A fábrica é, hoje, praticamente autossuficiente ao recircular 99,4% da água em um sistema de tratamento com capacidade de 150 mil litros/hora, que é o maior do Nordeste. Em um mês, cerca de 28 mil m³ de água (equivalente a oito piscinas olímpicas) deixam de ser captados da rede pública de abastecimento. Outra linha de ação que faz parte da estratégia é produzir com menos água. O consumo de água por veículo produzido reduziu, em um ano, 47%. São resultados que fazem da FCA referência em gestão hídrica. Acabamos de vencer o Prêmio ANA 2017, na categoria Empresas de Médio e Grande Porte. Considerada uma das mais relevantes do país, a premiação é realizada pela Agência Nacional de Águas (ANA), vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, e reconhece as melhores iniciativas que contribuem para gestão e uso sustentável dos recursos hídricos no Brasil.

O que é exatamente o programa “Rota do Saber”?

O Rota do Saber é um programa de qualificação de ges-tores pedagógicos e professores de escolas públicas do Ensino Fundamental. No Polo Jeep, o programa foi estruturado em parceria com a ONG Instituto Qualidade no Ensino (IQE) e tem duração de três anos nos municípios de influência do Polo. Atualmente, são seis cidades atendidas: Goiana, Igarassu, Paulista e Itambé, em Pernambuco, e Alhandra e Caaporã, na Paraíba, abrangendo 183 escolas, 1,1 mil educadores e impactando diretamente 30 mil alunos. A partir do aprendi-zado acumulado em três anos, o município terá condições de transformar o programa em política pública. Nesse processo, a FCA é responsável por oferecer a metodologia.

O município, por sua vez, oferece como contrapartida uma equipe de profissionais com dedicação exclusiva e inte-gral para replicar a metodologia para os demais professores da rede pública. O programa trabalha para que os professores incorporem os conteúdos a serem ensinados, através de meto-dologias de êxito comprovado, e engajem os pais no papel de coeducadores dos filhos. Igarassu, PE, foi o primeiro município a receber o programa em 2015. As mudanças no dia a dia das escolas já refletiram no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) do município. Em 2013, o indicador do Ensino Fundamental 2 (5º ao 9º ano) era 3,9, passando para 4,2 em 2015. Uma evolução de 25%.

Div

ulga

ção

Jeep

Div

ulga

ção

Jeep

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2130

| entrevista |

Page 31: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 32: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Em um belo dia de Abril de 2006, um grupo de pessoas vestidas com estranhas fantasias vermelhas de frangos com bicos amarelos, entrou em uma loja do McDonald’s, no centro de Lon-dres, e calmamente se acorrentou às mesas para ler jornal.

No mesmo dia, e nos seguin-tes, frangos gigantes visitaram outras lanchonetes da empresa em diversos países europeus. A curiosidade divertida dos clientes e a dúvida de jovens funcionários das lanchonetes sobre o que fazer em tais circunstâncias deram lugar, aos poucos, a demonstrações de surpresa polida, mas levemente irritada de dirigentes da maior rede de fast-food do Planeta. Ao telefone, eles propunham reunião urgente: queriam saber o que significava tudo aquilo, já que o McDonald’s adotara alguns anos antes a política de não se abastecer de carne vinda de regiões de florestas tropicais, e achava que merecia crédito por isso, e não ataques de ambientalistas.

Enquanto isso, a milhares de quilômetros de distância, centenas de moradores de Santarém, no Pará, saíam às ruas em passeata contra o licen-ciamento de um enorme terminal portuário para a exportação de soja, cons-truído na principal praia da cidade às margens do Rio Tapajós. Atraídos pelo terminal, fazendei-ros de diversas partes do país se instalaram na região rural de Santarém e da vizinha Belterra para plantar soja.

O terminal era a face visível da nova fronteira do desmata-mento provocado pela expansão do agronegócio na Amazônia. Um processo que deslocava pequenos produtores rurais de suas terras, inviabilizando a agricultura familiar, gerando sérios problemas sociais e causando desmatamento em larga escala. Segundo o IBAMA, a taxa anual de destruição da cobertura florestal na região mais do que triplicou com a notícia da chegada da Cargill. A tensão entre defensores e adversários do terminal de exportação em Santarém era grande.

Questionado pelo Ministério Público Federal do Pará por seus impactos socioambientais e falta de licenciamento prévio, o terminal seria paralisado, poucos dias depois da passeata, por ambientalistas que bloquearam o acesso às instalações com um navio ostentando as cores do arco-íris. Vários dos ativistas estavam vestidos de frango. Terminaram quase todos na cadeia de Santarém, inclusive o autor dessas linhas.

Paulo Adario | Estrategista sênior de florestas do Greenpeace e coordenador, pela sociedade civil, da Moratória da Soja

Uma história exemplarEstava em curso uma típica sequência de “ações diretas”

do Greenpeace, dono do navio. Elas haviam começado poucas semanas antes por conta de uma reunião com uma das maiores empresas de alimentos do mundo, a multinacional Cargill, em sua sede em Minnesota, nos Estados Unidos.

Os ambientalistas pediram a reunião para apresentar um relatório demolidor – “Eating Up the Amazon” (Devorando a Amazônia) – sobre o papel da soja na destruição da maior floresta tropical do planeta, e das multinacionais que controlam o mercado global do grão. A Cargill questionou a veracidade dos dados e a reunião foi um desastre.

O Greenpeace sabia que o principal vetor do desmata-mento na Amazônia era a pecuária e reconhecia que até aquele momento a presença da soja no bioma ainda era pequena, cerca de 5% da produção brasileira do grão. Mas a abertura de uma nova fronteira, como Santarém e Belterra, distante do tradicional “arco do desmatamento” que devastava Rondônia, Mato Grosso e regiões do sul e leste do Pará, havia acendido o sinal vermelho.

Altamente capitalizada, com tecnologia moderna e envol-vendo um pequeno grupo de trading-companies poderosas que dominam o mercado global (ADM, Amaggi, Bunge, Cargill

e Dreyfus), a indústria da soja representava um risco gigantesco para o futuro da Floresta Amazônica e dos povos que nela vivem. O Brasil de 2006 era (e continua a ser hoje), o segundo maior produtor global de soja. Mas será o primeiro até 2025, na previsão da Organização das Nações Unidas para Alimenta-

ção e Agricultura (FAO), deixando os Estados Unidos para trás. Era preciso tentar parar o processo de expansão acelerada da fronteira agrícola enquanto havia tempo, antes que a perda da floresta se tornasse irreversível.

Uma das maiores tradings do mundo, a Cargill não só era grande exportadora da soja brasileira, mas era também a dona do terminal portuário que estava sendo contestado pelos moradores de Santarém. O Greenpeace se aliou aos movimentos sociais da região no combate à multinacional. Mas enfrentar a empresa no cenário internacional exigia outra estratégia, que incluía pressão maciça de consumidores.

Chamada até alguns anos atrás de “gigante invisível” – por ser uma empresa familiar sem ações em bolsa e quase desconhecida do grande público por não comercializar pro-dutos com sua marca – a multinacional Cargill era um alvo difícil para uma organização ativista que informa e mobiliza pessoas para pressionar empresas e governos a abandonar práticas destrutivas.

Rod

rigo

Bal

eia

Paulo Adario

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2132

| opinião |

Page 33: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Pesquisa de quase dois anos feita para o relatório revelou, porém, que a Cargill era uma das principais fornecedoras de derivados de soja brasileira para conhecidas empresas consumidoras, ativas no mercado europeu e outras partes do mundo, como o Brasil. Os sanduíches McChicken da McDonald’s europeia, por exemplo, usavam carne de aves alimentadas com ração feita com soja comprada pela Cargill na Amazônia.

Confrontado com os dados do relatório “Eating up the Amazon”, o McDonald’s pediu um tempo para analisar o relatório. Na reunião seguinte, também em Londres, a empresa reconheceu que estava exposta ao desmatamento embutido na soja e apresentou um plano de trabalho que passava pela mobilização de outras grandes empresas europeias na mesma situação.

Nós submetemos a eles uma lista de demandas que tinha como pontos centrais o boicote à soja produzida em áreas recém-desmatadas, bem como vindas de plantios em terras indígenas e unidades de conservação protegidas pelo governo. Não se discutia a legalidade ou não dos plantios: reivindica-se o desmatamento zero. Ponto.

O grupo de empresas organizado pelo McDonald’s pres-sionou a Cargill que pressionou as demais empresas comercia-lizadoras de soja brasileira que, por sua vez, decidiram que o consumidor tem sempre razão, como disse o então presidente da ABIOVE (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais), Carlo Lovatelli. Se ele, consumidor, não quer mais desmatamento, o que fazer além de entregar?

No dia 24 de julho daquele inesquecível 2006, um comu-nicado público em papel timbrado da Cargill anunciava em nome das duas grandes associações empresarias do agrone-gócio brasileiro – ABIOVE e Anec (Associação Nacional dos Exportadores de Cereais) – que as grandes comercializadoras de soja brasileira a elas associadas, controlando mais de 90% do mercado, deixariam de comprar soja vinda de novos desma-tamentos ocorridos no Bioma Amazônia a partir daquela data. Soja plantada em áreas indígenas e unidades de conservação ambiental também seriam vetadas.

A moratória valeria por 2 anos, tempo que as empresas confiavam ser suficiente para a implementação de governança adequada na Amazônia.

Parecia pouco tempo, na opinião de ONGs – entre elas WWF, IPAM, TNC, Imaflora – que entraram em cena para ajudar a construir o plano de implementação e moni-toramento da moratória. E era pouco tempo mesmo, como ficou evidenciado pelas sucessivas renovações da moratória da soja, que está em vigor até hoje. E não tem prazo para acabar. Doze anos depois, o acordo se mostrou decisivo na redução dramática do desmatamento nos 89 municípios da chamada “região da soja” no Bioma Amazônia. A média de desmate nos municípios monitorados diminuiu incríveis 85%, passando de 6.847 km²/ano (2002-2008) para 1.049 km²/ano (2009-2016).

E, talvez tão importante quanto, a moratória provou que é possível produzir sem destruir novas áreas de vegetação nativa. Menos de 2% da expansão dos plantios de soja se deu em áreas desmatadas após Julho de 2008 e, de um total de 4,5 milhões de ha plantados na última safra (2016-2017), apenas 1% não está em conformidade com a Moratória da Soja.

Ainda hoje é difícil imaginar que a incrível sequência de movimentos dos principais atores envolvidos nessa história iria gerar um movimento transformador que, ao longo dos 12 anos seguintes seria celebrado como um marco histórico e um exemplo positivo na tumultuada relação entre a agricultura ávida por solos e as florestas tropicais. Um exemplo funda-mental a ser seguido nos dias de hoje, quando dois outros importantes biomas, o Cerrado brasileiro e o Gran Chaco sul-americano, enfrentam o mesmo processo de desmatamento acelerado provocado pela rápida expansão das plantações de soja. A taxa de desmatamento anual do Cerrado já é maior do que a da Amazônia. O recado está dado. E a solução também. Vamos salvar o Cerrado do desmatamento?

Mig

hty

Ear

th

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 33

| opinião |

Page 34: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Uma investigação da OMNG Mongabay, impulsionada por um relatório feito no final do ano passado pela ONG Mighty Earth, sugere que os clientes que compram frango de alguns dos maiores supermercados e redes de fast food britânicas estão contribuindo involuntariamente para o desmatamento desenfreado na Amazônia boliviana e no Cerrado brasileiro.

A Tesco, a Morisons e o McDonald’s compram o frango que usam da Cargill, a maior empresa particular do mundo, que alimenta suas criações de aves com soja importada. A distribuidora de alimentos norte-americana compra sua soja junto a operações do agronegócio de larga escala que geralmente queimam e abrem clareiras em extensas áreas de floresta nativa para abrir espaço para suas plantações.

Há dez anos, os comerciantes de soja concordaram em parar de comprar soja produzida na Amazônia como resul-tado da forte pressão por parte de ativistas, consumidores e varejistas, como a Tesco e o McDonald’s. Entretanto, na esteira desse acordo, conhecido como “a moratória da soja”, comerciantes de soja do mundo todo simplesmente mudaram suas áreas de compra de soja para regiões vizinhas, onde o desmatamento é agora frequente na Amazônia boliviana e no Cerrado brasileiro – que possui áreas incluídas na Amazônia legal, conforme definição do governo.

Grandes áreas de florestas nessas regiões estão sendo devastadas para abrir caminho para plantações de soja, de acordo com um relatório elaborado pela ONG Mighty Earth e publicado em fevereiro deste ano. A ONG utilizou drones e imagens obtidas por satélite para identificar áreas desmatadas, e realizou entrevistas com fazendeiros em mais de 28 pontos de desmatamento na Bolívia e no Brasil. A pesquisa revelou que a distribuidora de soja Cargill é a maior compradora.

“A Cargill está ignorando a imensa onda de pressão que seus clientes estão fazendo para proteger os ecossistemas da América do Sul ameaçados pela soja”, disse Glenn Hurowitz, CEO da Mighty Earth. “Diferente de seus concorrentes e fornecedores, eles não parecem ter entendido a urgência da necessidade de proteger as últimas fronteiras selvagens do planeta do ataque devastador da soja”.

O Brasil é o maior produtor da soja consumida no Reino Unido, e 70% dessa soja são importados para a Grã-Bretanha pela Cargill. Embora a soja esteja normalmente associada com os substitutos do leite e da carne, na Grã-Bretanha a maior parte da soja é utilizada para alimentar animais, formando cerca de 20-25% da ração para frango na Grã-Bretanha. De acordo com o Instituto do Meio Ambiente de Estocolmo, a Grã-Bretanha importou 394.000 t de soja do Brasil em 2015, das quais 277.000 foram por meio da Cargill. No mesmo ano, a Grã-Bretanha importou 223.000 t de soja do Cerrado.

Desmatamento na Amazônia ligado ao McDonald’s

Anna Sophie Gross e Daniel Gross | Colaboradores de Mongabay

A soja brasileira da Cargill serve de alimento para o frango processado na fábrica transnacional de frangos em Hereford, Reino Unido, que mata mais de um milhão de aves por semana. A empresa exige que seus fazendeiros fornecedores comprem suas rações de frango à base de soja.

A Cargill então vende seus produtos de frango para supermercados e redes de fast food britânicos. A Morrisons nomeou a Cargill seu “fornecedor do ano” em 2015. A Tesco vangloria-se em seu website por trabalhar com a Cargill ao “tomar decisões conjuntas sobre compromissos de preço e volume com relação ao trigo e à soja utilizada para fazer suas rações”, enquanto o McDonald’s citou a Cargill como seu principal fornecedor de frango.

Hurowitz disse que é importante que os varejistas do Reino Unido utilizem sua influência para pressionar os distribuidores que se encontram na parte mais alta da cadeia de forneci-mento, como a Cargill, recusando-se a fazer negócios com eles até que eles parem de obter soja de regiões recentemente desmatadas. Em 2006, o Greenpeace lançou uma campanha agressiva contra as empresas varejistas por comprarem soja produzida na Amazônia. A ONG distribuiu pôsteres de Ronald McDonald empunhando uma motosserra, e ativistas fantasiados de frango invadiram várias lojas do McDonald’s e acorrentaram-se às cadeiras.

Funcionou. Uma aliança de empresas varejistas, incluindo o McDonald’s, a Tesco, Marks and Spencer, assim como a Sainbury, convenceram a Cargill e outras distribuidoras a criarem a Moratória da Soja, que contribuiu para uma queda impressionante na taxa de desmatamento na Amazônia brasi-leira. Entretanto, os grandes produtores de soja encontraram uma forma de contornar isso: eles simplesmente transferiram suas operações para áreas vizinhas, onde o desmatamento, a produção e os lucros cresceram vertiginosamente.

Get

ty

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2134

| agronegócio |

Page 35: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Dez anos depois, a Cargill ainda se opõe a uma ampliação da moratória para a Amazônia boliviana e para o Cerrado brasileiro apesar do apelo de ONGs, cientistas e do Ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho. As empresas varejistas até o momento não fizeram uso de sua influência sobre a Cargill para apoiar a ampliação da moratória da soja.

No Cerrado brasileiro, que consiste numa savana dez vezes maior do que a Grã-Bretanha, o desmatamento tem sido impulsionado por uma rápida expansão das atividades agrícolas envolvendo a soja. Conhecida como “floresta de cabeça para baixo” por causa de suas pequenas árvores de raízes profundas, a região rica em biodiversidade possui um estoque enorme de capacidade para as mudanças climáticas ao produzir dióxido de carbono (CO2), mas apenas cerca de 50 por cento de sua vegeta-ção ainda está intacta.

Em 2016, pesquisadores utilizaram dados obtidos por meio de satélites para determinar que as terras utilizadas para plantações ocupando uma área de Cerrado de milhões de hec-tares identificada no estudo anterior dobrou ao longo da última década, passando de 1,3 milhão de hectares em 2003 para 2,5 milhões de hectares em 2013.

Na Amazônia boliviana, uma área duas vezes maior que a região metropolitana de Londres foi desmatada para atividades agrícolas a cada ano desde 2011, de acordo com estimativas do Centro não governamental de Informação e Documentação da Bolívia. Esse é o dobro da taxa vista nos anos 90.

O desmatamento está contribuindo significativamente para a desestabilização do clima da Terra. Quando as árvores são cortadas e queimadas, o carbono armazenado nelas é ime-diatamente liberado na atmosfera como dióxido de carbono, gerando um décimo de todas as emissões responsáveis pelo aquecimento global, de acordo com a Union of the Concerned Scientists. O desmatamento também prejudicou hábitats e a vida selvagem, assim como aquíferos naturais. Além disso, a indústria da soja usa intensamente pesticidas químicos e fertilizantes petroquímicos.

Há meio bilhão de acres de terras degradadas em toda a América Latina, onde a Cargill e outras empresas transna-cionais de commodities, como a Archer Daniels Midland, a Bunge e a Amaggi poderiam, se quisessem, expandir seus empreendimentos sem sacrificar ecossistemas nativos.

A multinacional Cargill descreveu a alegação da organi-zação não-governamental sediada em Washington, Mighty Earth, sobre o desmatamento na Amazônia boliviana como “simplesmente incorreta”.

“Compramos menos que 10% dos grãos de soja produzidos na Bolívia e está muito claro que, se um fazendeiro tivesse desmatado terras, não compraríamos desse produtor”, disse o Vice-Presidente Corporativo da Cargill, Devry Boughner Vorwerk. Entretanto, o jornal The New York Times condu-ziu suas próprias entrevistas e confirmou que fazendeiros envolvidos no desmatamento na Bolívia estavam vendendo para a Cargill.

A Cargill também alegou que as porções do Cerrado brasileiro mencionadas no relatório foram revisadas pela equipe analítica geoespacial da empresa, que descobriu que essa área não foi utilizada para plantações de soja durante a última estação de colheitas. “Como eles não possuem soja plantada, não estamos comprando dessas fazendas”, disse a Cargill em uma declaração.

A Mighty Earth contrapôs afirmando que essas negações são enganosas porque seu relatório menciona áreas de florestas recentemente abertas que ainda não estariam prontas para plan-tações de soja. Entretanto, essas áreas pertencem a fazendeiros que atualmente vendem para a Cargill a partir de suas outras

fazendas. Lisa Rausch, pes-quisadora da Universidade de Wisconsin, confirmou que, em geral, leva de dois a três anos depois que uma área é desmatada até que a soja possa ser plantada.

Um relatório com-plementar elaborado pela Mighty Earth e publicado em maio constatou que, mesmo após a publicação da investigação original, os fornecedores da Cargill continuaram envolvendo-se na derrubada de floresta.

Toby Gardner, Pesqui-sador Sênior no Instituto do Meio Ambiente de Estocolmo, explicou que é extremamente difícil para a Cargill garantir que conhece a fonte original de toda a soja que utilizam. Ele esteve no Brasil no início do ano passado para ajudar a lançar uma nova plataforma de transparência, a Trase (www.trase.earth), que permite aos consumidores e distribuidores rastrearem a origem da soja e outras commodities até che-garem às cidades.

“A Cargill compra de mais de 100.000 fazendas no Brasil e as limitações atuais dos dados significa que eles não possuem um sistema adequado de auditoria em funcionamento para fiscalizar e investigar essas fazendas”, disse ele. “O trabalho que estamos fazendo com o Trase é um esforço para tentar ajudar a preencher essa lacuna de informações”.

O McDonald’s e a Morrinsons não fizeram comentários sobre a implicação de eles obterem soja de áreas recentemente desmatadas na América Latina, nem se posicionaram a respeito de uma ampliação da moratória da soja para outras regiões, especialmente o Cerrado.

Peter Andrews, Conselheiro da Pesquisa de Política de Sustentabilidade para o Consórcio do Varejo Britânico, res-pondeu em nome da Tesco: “Todos os nossos membros estão comprometidos em trabalhar com soja proveniente de fontes responsáveis não relacionadas ao desmatamento. Eles mostra-ram que, por meio do trabalho com outras empresas varejistas e fornecedores, é possível progredir conforme demonstrado pela Moratória da Soja no Brasil. “Nossos membros continuam buscando oportunidades de ampliar sua influência fora da Amazônia, mas o Reino Unido é um comprador relativamente pequeno e o avanço vai depender de maiores colaborações”. A Grã-Bretanha é o quinto maior destino de importação da soja produzida no Cerrado brasileiro, ultrapassada somente pela China, Tailândia, Países Baixos e França.

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 35

| agronegócio |

Page 36: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Desmatamento de florestas vai provocar um aquecimento do clima global muito mais intenso do que o estimado ori-ginalmente, devido às alterações nas emissões de compostos orgânicos voláteis e as co-emissões de dióxido de carbono com gases reativos e gases de efeito estufa de meia-vida curta. Um time internacional de pesquisadores, com a participa-ção do Instituto de Física da USP e na UNIFESP-Campus Diadema, calculou a forçante radiativa do desmatamento, levando em conta não somente o CO2 emitido, mas também o metano, o black carbon, a alteração no albedo de superfície e todos os efeitos radiativos conhecidos. O resultado final aponta que a temperatura vai subir mais do que o previsto anteriormente.

A pesquisa foi publicada recentemente na revista Nature Communications, e utilizou detalhados modelos climáticos globais acoplados à química de gases e partículas em alta reso-lução. Descobriu-se que as emissões de florestas que resfriam o clima (compostos orgânicos voláteis biogênicos, os BVOCs) ficarão menores, implicando que o desflorestamento pode levar a temperaturas mais altas do que o considerado em estudos anteriores. O físico Paulo Artaxo, do IFUSP, um dos autores do estudo, afirma que a maior parte dos estudos dos impactos climáticos do desmatamento publicados anteriormente focou somente nas emissões de CO2. “Neste novo estudo, levamos em conta a redução das emissões de BVOCs, a emissão de black carbon, metano e os demais gases de Efeito Estufa de vida curta”, explica.

Desmatamento vai aquecer ainda mais o clima do Planeta

José Clóvis de Medeiros Lima | Jornalista do Instituto de Física da USP

Esses BVOCs, segundo Artaxo, produzem partículas nanométricas que crescem, refletem radiação solar de volta ao espaço e esfriam o clima. Os BVOCs participam de complexas reações químicas e podem produzir ozônio e metano, ambos gases de Efeito Estufa de meia vida curta (SLCF) que aque-cem o planeta. O estudo levou em conta todos estes fatores conjuntamente, além das mudanças no albedo de superfície, quando derrubamos uma floresta e a trocamos para pastagem ou plantações”, acrescenta.

Levando em conta todos estes fatores, observou-se que as emissões das florestas que esfriam o clima têm um papel enorme na regulação da temperatura do planeta. “Derrubando as florestas, acabamos com este efeito esfriador, e aumentamos o aquecimento global”. Artaxo coloca que o efeito global é de um aquecimento adicional de 0.8oC, em um cenário de desmatamento total. “Isso é um valor alto, comparável ao atual aquecimento médio global (cerca de 1.2oC) ocorrido com todas as emissões antropogênicas desde 1850”, diz o físico.

A figura abaixo mostra que esse aquecimento é desigual, sendo maior nos trópicos, onde foi previsto um aquecimento de cerca de 2 graus na Amazônia.

Luciana Rizzo, professora da Universidade Federal de São Paulo, campus de Diadema, outra coautora do estudo, salienta que, nos trópicos, o efeito atual das emissões de VOCs resfriando o clima é mais forte do que em florestas temperadas. “Portanto, o desmatamento nos trópicos tem um efeito mais importante no clima global”, conclui.

Figura com os efeitos radiativos dos aerossóis devido ao desmatamento global. Na figura à esquerda temos o efeito direto dos aerossóis e na direita o efeito indireto, ou seja, através

das modificações nas nuvens. O papel das regiões tropicais é mais importante que o das florestas temperadas.

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2136

| mudanças climáticas |

Page 37: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 38: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Nas grandes cidades a chuva está longe de ser um problema apenas climático. Como temos visto todos os anos, os assusta-dores alagamentos, enchentes e deslizamentos têm se tornado cada vez mais comuns.

Não é novidade nenhuma que a urbanização ocorreu de forma desenfreada, muitas vezes sem o planejamento necessário e cobrindo rios que, anteriormente, faziam parte dessas cidades. Avaliando desta forma, não precisamos ser especialistas para saber que a drenagem da chuva precisa ser mais eficiente nos centros urbanos já que, por conta das pavimentações, a água não consegue achar um local para ser absorvida. Os bueiros, que deveriam ser uma solução para o excesso de água, acabam bloqueados pelo lixo e não dão conta da vazão, resultando em transbordamento nos períodos de fortes chuvas.

André Ferretti | Gerente de Economia da Biodiversidade da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza

Prevenir, já que não se pode mais remediar

Desde o início da história contemporânea, o ser humano sempre teve participação na degradação do meio ambiente. No entanto, antigamente a reposição natural desses recursos extraídos era feita de forma espontânea, orgânica. Atualmente, o que acontece são transformações no território e alterações nos ecossistemas e na biodiversidade de forma sistemática e em larga escala, o que tem colocado em risco a própria existência humana.

Por conta disso, nos últimos anos começaram a surgir as Soluções Baseadas na Natureza (SBN) que, nada mais são do que intervenções humanas inspiradas em ecossistemas saudáveis, para solucionar desafios urgentes da sociedade e que usam a própria natureza a favor disso. Os problemas podem ser diversos, desde o avanço do nível do mar até a escassez hídrica, por exemplo. Nós dependemos e sempre vamos depender do patrimônio natural, por isso, por meio das SBNs, garantimos também a proteção da economia e sociedade.

O conceito ainda é novo aqui no Brasil, o que dificulta a aplicação à realidade brasileira. Mas isso não quer dizer que já não existam bons exemplos de SBN por aqui. Alguns deles, inclusive, foram selecionados em uma chamada de casos promovida pela Fundação Grupo Boticário, em parceria com o Ministério do Meio Ambiente e o GVces, e reconhecidos como alternativas viáveis em diversas cidades do Brasil. E para o caso das chuvas e inundações algumas das soluções são muito simples.

Vejamos um exemplo da cidade de Curitiba, no Paraná. O Parque Barigui, criado em 1972, foi construído para conter as enchentes e preservar a mata nativa da Bacia do Rio Barigui na região. Além dele, outros parques foram projetados com o mesmo intuito e são chamados de Parques Lineares, que integram a proteção da biodiversidade à criação de espaços de lazer e também a segurança da população. Essas áreas são essenciais para a infiltração da água das grandes tempestades, e, em caso de transbordamento dos rios, não causa grandes prejuízos ao patrimônio público e privado por serem áreas verdes sem a presença de casas e outras construções.

No entanto, é importante ressaltar que, quanto mais ocupada é uma área da cidade, maior é o desafio de incluir uma área verde no local. O exemplo do Barigui deu certo justamente por ter sido construído num lugar que não estava ocupado. Telhados verdes, cisternas para captação de água da chuva, e recuperação de matas ciliares são outros exemplos de ações que podem ser implementadas em grandes cidades para diminuir os riscos das enchentes e dos alagamentos.

Está cada vez mais difícil conseguirmos reverter os impactos criados ao longo do tempo, mas ainda é possível juntarmos forças com a natureza para prevenirmos novos estragos. E a natureza é nossa maior aliada.

Fred

eric

o Su

eth

Ran

gel

Fund

ação

Bot

icár

io

André Ferretti

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2138

| política ambiental |

Page 39: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 40: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Açaizal intensamente manejado sem nenhuma outra espécie vegetal

Page 41: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

A diversidade de insetos polinizadores em áreas de açaizais pode responder por um acréscimo de até 25% na produção de frutos de açaí em cada planta. A relação entre floresta nativa, presença de polinizadores e produção do açaí é a principal conclusão de artigo publicado pelo pesquisador Alistair Campbell e seus colaboradores na revista “Journal of Applied Ecology”. Campbell é pesquisador visitante na Embrapa Ama-zônia Oriental e na Universidade Federal do Pará.

A pesquisa comparou os polinizadores e a produção de frutos de açaí em 18 áreas no delta do Rio Amazonas, desde açaizais nativos nas várzeas com diferentes graus de intervenção até monocultivos em terra firme. Foi constatado que as flores do açaí são visitadas por cerca de 200 espécies de insetos, das quais mais de 100 são polinizadores potenciais, ou seja, visitam as flores masculinas e as femininas. Esse grupo inclui abelhas, moscas, besouros e vespas. “Nas áreas de açaizais nativos com manejo de alto impacto, onde restam apenas as palmeiras de açaí, a quantidade e diversidade de polinizadores é menor. Em razão disso a produção de frutos também diminui, pois a polinização das flores do açaí é depende totalmente do serviço prestado pelos insetos”, afirma Campbell.

Entre os polinizadores do açaí, o estudo mostra que as abelhas nativas são as que mais sofrem com a redução da diversidade florestal. Segundo a pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental Márcia Maués, que também assina o artigo, a riqueza de abelhas está altamente relacionada à diversidade de espécies florestais, principalmente devido à alta dependência que as abelhas têm das árvores maiores para construir seus ninhos. Outro fator que contribuiu para isso é que a floresta disponibiliza flores ao longo do ano para manter colônias perenes. “Diferente dos outros insetos, as abelhas dependem exclusivamente do pólen e do néctar para se alimentar ao longo de todo o ciclo de vida”, explica Márcia.

Açaí: floresta contribui com polinizadores e frutificação

Vinicius Soares Braga | Jornalista da Embrapa Amazônia Oriental

Manejo de mínimo impacto

A palmeira do açaí (Euterpe oleracea Mart.) é nativa das áreas de várzea do delta do rio Amazonas, onde ocorre em abundância. O fruto roxo, rico em antioxidantes e em gor-duras benéficas que auxiliam na redução do colesterol ruim, é um alimento tradicional nas comunidades da Amazônia e apresenta uma procura crescente em função das suas proprie-dades funcionais. A cada ano cerca de 1 milhão de toneladas de açaí são produzidas no estado do Pará.

A demanda crescente garante bons preços ao fruto e o ribeirinho busca elevar a produção das áreas de açaizais por meio da eliminação das demais espécies, convertendo a várzea em uma “floresta de açaí”. Os autores do artigo concluem que essa conversão de florestas nativas da área de várzea em monoculturas de açaí pode trazer consequências negativas tanto para as comunidades de polinizadores quanto a produção de açaí na região amazônica.

Essa descoberta vem ao encontro do que propõe a tecno-logia “manejo de mínimo impacto para produção de frutos em açaizais nativos”, desenvolvida pela Embrapa para as áreas de várzea do delta do rio Amazonas. Para manter a susten-tabilidade do açaizal, a tecnologia recomenda que haja uma proporção adequada entre o número de touceiras de açaí e demais espécies florestais.A

lista

ir C

ampb

ell

Cri

stia

no M

enez

es-E

mbr

apa

Vin

iciu

s B

raga

Abelha sem ferrão se alimenta em uma flor masculina de açaí Os pesquisadores Alistair Campbell e Márcia Maués

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 41

| agroecologia |

Page 42: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Feiras agroecológicas organizadas por pequenos agricultores ajudam a aproximar produtores de consumidores ao passo em que lançam luzes sobre a agroecologia, uma lógica produtiva alternativa a qual rompe paradigmas e reforça elos entre os camponeses e a terra.

É uma hora da manhã de terça-feira. No assentamento Dona Helena, na zona rural de Cruz do Espírito Santo, na várzea paraibana, o dia já começou para os pequenos agri-cultores. Eles enchem um caminhão velho com os produtos agroecológicos e orgânicos oriundos dos próprios roçados. Uma miríade de alimentos.

Dali, partem para a capital do Estado, mais precisamente para o Instituto Federal da Paraíba (IFPB) de João Pessoa. Por volta das quatro horas da manhã, os agricultores chegam ao destino. As hortaliças, legumes e frutas são desembarcados e organizados em barracas de feira no pátio principal do campus. Os agricultores vestem uma bata verde, identificando a qual associação pertencem, e se convertem em feirantes. Antes das seis horas, já está tudo pronto.

Logo mais, os clientes – principalmente funcionários e alunos – começam a chegar. A feira permanece montada até às 13h, quando os agricultores fazem toda a operação ao reverso e voltam para o assentamento.

Húmus e afetividadeTiago Eloy Zaidan | Jornalista e Professor do Instituto Federal da Paraíba - João Pessoa

Esta é a rotina de todas as terças vivida pelos trabalhadores da Associação dos Agricultores Agroecologicos da Várzea Paraibana – a Ecovárzea. Criada em 2002, a organização reúne agricultores assentados. A Comissão Pastoral da Terra os articulou e os apresentou aos métodos e à filosofia da agri-cultura orgânica e da agroecologia. Os trabalhadores foram instruídos por meio de cursos e oficinas e incentivados a se organizarem com vistas a venderem os seus próprios produtos, abdicando, assim, dos atravessadores.

Inicialmente, aproximadamente dez barraquinhas de feira foram adquiridas. Atualmente, o grupo promove feiras agroecológicas duas vezes por semana. As sextas, os associados visitam o campus da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Além das incursões fixas, os agricultores participam de feiras avulsas quando convidados.

“As feiras agroecológicas são mecanismos de promoção e inserção dos trabalhadores e trabalhadoras do campo na etapa da cadeia produtiva relacionada à venda do fruto de seus trabalhos”, explica Ismael Araújo, geógrafo e professor do IFPB João Pessoa. “Tais feiras geram a possibilidade de dar visibilidade a uma outra lógica produtiva, onde o que importa é garantir a diversidade da produção, respeitando a diversidade do ambiente onde se produz”, conclui Araújo.

Tia

go Z

aida

n

A agricultora Josefa Vieira na feira agroecológica organizada pelos agricultores da associação Ecovárzea

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2142

| agroecologia |

Page 43: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

A agricultora Josefa Mota da Silva Vieira, 60 anos, é pre-sença constante nas feiras. Integrante da associação desde a sua fundação, Josefa vive a rotina de feirante com prazer. E não apenas pela oportunidade de negociar os produtos oriundos de seu roçado no assentamento. “Se eu vender o meu produto todo, maravilha. Mas, também, se eu não vender, eu não vou dizer que a feira não prestou. Porque ali eu recebo um aperto de mão, um abraço, uma troca de experiência. Sem contar que nós somos vistos pelos consumidores. Depois, em qualquer lugar que eles encontram a gente, dão a mão. Em qualquer canto que a gente estiver, eles reconhecem, dão todo apoio, dão toda a atenção. Isso é maravilhoso. É melhor do que dinheiro. A gente só sente o cansaço quando chega em casa à noite”, explica. A possibilidade de interação direta entre os produtores e os consumidores é, aliás, uma das características marcantes das feiras com essa formatação.

Entre fazendas

Josefa é natural de Alagoa Grande, no brejo paraibano, município onde nasceu o cantor e compositor Jackson do Pandeiro (1919–1982). Filha de trabalhador rural, começou a ajudar o pai na lavoura quando ainda tinha oito anos. Sua família vivia na propriedade do fazendeiro para o qual labutava. Não havia qualquer garantia trabalhista, e o salário não era suficiente para o sustento da numerosa prole – dos 15 filhos, apenas oito sobreviveram. De tempos em tempos, precisavam se mudar de fazenda e, consequentemente, mudar de patrão. A mando do fazendeiro, desmatavam áreas da propriedade, preparavam a terra para o plantio, plantavam cana ou cuidavam do pasto para o gado.

Aos 19 anos de idade, Josefa conheceu aquele que se tornaria o seu marido, José Silva Vieira, atualmente com 67 anos (hoje estão separados). Casou-se e teve cinco filhos – um dos quais acabou falecendo em um acidente. O trabalho duro no campo, sem carteira assinada, continuou. Sua nova família passou a morar na propriedade de um plantador de cana-de-açúcar, o qual fornecia matéria-prima para uma usina da região. Para ajudar no orçamento familiar, a camponesa encarava jornada dupla. Durante o dia, cortava cana-de-açúcar junto com o marido. À noite, cuidava da casa e dos filhos. A renda obtida com o trabalho não era suficiente, e o alimento precisava ser racionado.

Josefa já tinha mais de trinta anos quando ouviu falar do movimento pela reforma agrária e se juntou a um grupo organizado pela Comissão Pastoral da Terra. Deixou o marido e os filhos na fazenda de cana-de-açúcar e se dispôs a integrar a ocupação de uma área improdutiva. Primeiro, participou de várias reuniões de formação. Depois, preparou uma pequena trouxa, onde reuniu os poucos pertences pessoais, uma panela e uma enxada. “Saí chorando, deixei os meus filhos chorando”, recorda.

Durante a madrugada, partiu para viabilizar a ocupação em cima da carroceria de um caminhão, na companhia de outros camponeses famélicos e maltrapilhos. Panelas velhas, recipientes de plástico puídos e instrumentos de trabalho gastos rolavam pela carroceria, sob os pés dos passageiros, ao sabor dos buracos da estrada de barro. Chegaram a um terreno tomado por mato e por touceiras espaçadas de capim, as quais cresciam livres da aproximação de qualquer animal. O grupo desembarcou do caminhão às escuras e forrou uma lona sob a terra. Ali, aguardaram o amanhecer.

Bem cedo, iniciaram a confecção de dois pavilhões de lona. Um para os homens e o outro para as mulheres. O trabalho, no entanto, foi em vão, já que não demorou e os camponeses acabaram despejados. A propriedade passou a ser vigiada por homens armados. Os trabalhadores rurais se abrigaram, então, na divisa da fazenda. Ao anoitecer, com a proximidade do sereno da madrugada, os capangas do fazendeiro se retiravam. Nessa hora, Josefa e os seus companheiros de acampamento voltavam à terra improdutiva e trabalhavam nela. Plantavam, roçavam, limpavam e colhiam.

Três meses depois da montagem do acampamento, o marido e os filhos se juntaram à Josefa e todos voltaram a trabalhar juntos. “Meu marido não reclamava. Ele era tra-balhador e eu também”, frisa Josefa. Mantiveram essa rotina até a área ser desapropriada e dar origem ao assentamento Dona Helena, por volta do ano 2000. Cada família recebeu seis hectares e meio de terra. “É onde vivo até hoje. Foi onde eu vi a minha panela, com a boca aberta para cima, cheia de comida”, revela a camponesa.

Respeito à natureza

Onde antes havia uma propriedade improdutiva, foram assentadas mais de 60 famílias. “Eu produzo de tudo o que você puder imaginar. Inhame, batata, macaxeira, feijão e milho. De hortaliça, tem de quase tudo. Cebola, maxixe, quiabo, rúcula, cenoura, cebolinha, pimentão, beterraba, brócolis e espinafre. Em um lugar onde não tinha nada”, orgulha-se Josefa. A agricultora também cria vacas e galinhas, de onde obtêm leite e ovos livres aditivos, a exemplo de hormônios, como sempre faz questão de frisar. O pasto, utilizado para alimentar as vacas é plantado em sistema de rodízio.

No meio de tanta bonança, está fincada a casa de dois cômodos onde Josefa mora atualmente. Um corredor de árvores, cujas copas se encontram acima dos troncos, conduz o visitante entre a porteira do sítio e a residência. Dentro da porção que coube a Josefa, consta ainda uma área de reflo-restamento, a qual protege uma pequena barragem. A mata preservada também fornece matéria-prima para o composto orgânico utilizado no plantio. As folhas das árvores, que caem durante todo o ano, se decompõem e fornecem uma espécie de adubo natural para a horta.

Agrotóxicos não passam pela porteira. Para espantar pragas e doenças, os agricultores do assentamento valem-se de alter-nativas aprendidas nos cursos e nas oficinas de agroecologia e agricultura orgânica. Josefa apresenta uma das receitas: “a gente pega pimenta malagueta, álcool, alho e sabão neutro. Mistura tudo por oito dias. Quando a solução está diluída, a gente mistura e côa”. Depois de pronta, a solução é depositada em um pulverizador e destinada à horta.

A associação dos assentados – a Ecovárzea – nasceu pouco depois de consolidada a posse da terra, já com a missão de abraçar a agroecologia e a agricultura orgânica. O Doutor em Ciências Jurídicas, Sociais e Políticas, Darcy Zibetti, no artigo “Cidadania e segurança alimentar no Brasil”, explica que “a agroecologia nos traz a ideia e a expectativa de uma nova agricultura, capaz de fazer bem aos homens e ao meio ambiente como um todo, afastando-nos da orien-tação dominante de uma agricultura intensiva em capital, energia e recursos naturais não renováveis, agressiva ao meio ambiente, excludente do ponto de vista social e causadora de dependência econômica”.

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 43

| agroecologia |

Page 44: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

O nutricionista Paulo Roberto Santos, coordenador de alimentação e nutrição escolar do campus João Pessoa do IFPB, elucida que quem consome produtos orgânicos procura a garantia de estar consumindo produtos isentos de agrotóxicos. Levantamento apresentado pelos pesquisadores Luciana Almeida, Rodrigo Feix e Sílvia de Miranda revela em números a notável ascendência da comercialização de agrotóxicos no Brasil.

“Enquanto, em 1990, a quantidade média comercializada de defensivos agrícolas era de apenas 1,13 kg de princípio ativo por hectare cultivado, as estimativas para o ano de 2003 apontam que a comercialização média aproximou-se dos 3 kg por h, o que equivale a uma variação aproximada de 147%”. Os dados foram publicados no livro “Economia do Meio Ambiente”, organizado por Peter May (Editora Elsevier).

A lógica do aumento da produtividade pelas vias do uso de agrotóxicos encontra eco, inclusive, entre produtores de menor escala. “Os pequenos produtores, em um primeiro momento, usando o agrotóxico, pensam ser beneficiários por ter uma produtividade maior. No entanto, eles são os primeiros que sofrem com os problemas advindos do contato direto com esses produtos, uma vez que são eles mesmos que aplicam esse veneno na cultura. As suas famílias são as vítimas seguintes, porque também consomem os produtos que eles contaminaram”, esclarece Paulo Santos.

O botânico Hermes Machado Filho, por sua vez, lembra que os consumidores humanos e os próprios produtores não são as únicas vítimas do uso de tóxicos na agricultura. Machado Filho, vice-coordenador de extensão e pesquisa do campus João Pessoa do IFPB, adverte que os insetos polinizadores, que vivem associados aos vegetais, são bastante prejudicados.

Polinização e frutificação

“Quando pensamos em um cultivo, visualizamos a planta já com o fruto pronto. Mas a gente não pondera sobre o fato de que para aquele fruto se desenvolver, precisa de um polinizador, que visite a flor, que leve o pólen. E tanto a flor quanto o inseto precisam estar sadios para que haja esta polinização e, consequentemente, para que possa vingar o fruto. O agrotóxico e o pesticida basicamente destroem muitos elos entre os insetos e as plantas, e isso provoca uma dificuldade na polinização, uma mortalidade desses insetos e, principalmente, a evasão deles nos cultivares”, explica Hermes Machado Filho.

Na primeira fase de sua vida, enquanto ainda trabalhava nas fazendas dos fornecedores de cana-de-açúcar, a agricultora Josefa Mota da Silva Vieira e sua família precisaram lidar com fertilizantes e agrotóxicos. Hoje, a agricultora protagoniza uma ruptura de paradigmas. Conta, ainda, com o suporte de uma das filhas, a qual se tornou técnica agrícola e visita o sítio todos os fins de semana.

Quem tem a oportunidade de conhecer o assentamento e de conversar com a agricultora, de ouvi-la falar com orgulho das árvores que compartilham consigo o terreno do sítio, passa a ter o pressentimento de que o conjunto de processos adotado pelos agricultores da agroecologia não se resume a uma mera opção por métodos de produção. Trata-se, antes, da consequência de uma relação que remete ao estreitamento de elos entre um filho e um parente ascendente.

“O meu terreno é todo vestido. Não tem terra nua. Eu digo que é a minha mãe Terra. E a minha mãe não fica nua”, conclui Josefa.

Tia

go Z

aida

n

Tia

go Z

aida

n

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2144

| agroecologia |

Page 45: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 46: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Melhorar a mobilidade urbana, sobretudo o acesso a áreas de grande movimentação de pessoas, é um dos principais desafios das cidades contemporâneas. De acordo com dados do WRI Brasil, os brasileiros passam em média de 10 a 15 dias ao ano presos no trânsito, o que além de causar estresse e redução da produtividade, colabora para o aumento das emissões de gases poluentes na atmosfera. Para estimular solu-ções inovadoras para esse problema, o WRI Brasil e a Toyota Mobility Foundation lançaram neste mês o Desafio InoveMob, que vai investir US$ 200 mil em subsídios para os melhores projetos de mobilidade urbana. A iniciativa visa selecionar soluções que promovam alternativas sustentáveis e inclusivas de deslocamento nas cidades. As inscrições ficam abertas até 9/3, por meio do site www.desafioinovemob.org.

Mas como inovações em mobilidade podem melhorar a conexão a áreas com intensa movimentação de pessoas? Voltado para empreendedores, pesquisadores e empresas de serviços em mobilidade, o Desafio InoveMob busca identificar soluções para o acesso aos chamados Centros de Atividades.

InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade

Maria Luiza Albuquerque | Jornalista

Tratam-se de áreas ou edifícios de natureza e dimensão diversas que geram um número significativo de deslocamentos. Alguns exemplos são escolas, universidades, centros empresa-riais e esportivos, centros hospitalares e terminais de transporte coletivo. Até 80% dos deslocamentos nas cidades brasileiras são por motivo de estudo ou trabalho, segundo dados do WRI Brasil. Entre as características das propostas esperadas pelos organizadores estão o uso de tecnologias limpas, a promoção do compartilhamento de veículos, a contribuição para a acessibilidade de pessoas com deficiência, idosos e crianças e o fomento à equidade de gênero na mobilidade.

“É preciso proporcionar deslocamentos mais inteligentes, sustentáveis e de maior qualidade para as pessoas. As cidades que estiverem mais abertas a essa transformação serão mais competitivas e irão oferecer uma melhor qualidade de vida para seus habitantes agora e no futuro”, aponta Luis Antonio Lindau, Diretor do Programa de Cidades do WRI Brasil.

“Reconhecemos que o Brasil é um dos líderes na América Latina e está preparado para promover soluções de mobilidade inovadoras. As soluções mais robustas e duradouras são as que vêm dos inovadores que entendem as questões de mobilidade locais. Por isso, a Toyota Mobility Foundation e WRI Brasil firmaram uma parceria para criar esse desafio para inovadores em todo o Brasil”, diz Ryan Klem, Diretor de Programas da Toyota Mobility Foundation.

O WRI Brasil é uma organização focada em pesquisa e aplicação de metodologias, estratégias e ferramentas voltadas às áreas de clima, florestas e cidades. Atua em colaboração com lideranças locais para proteger o meio ambiente e criar soluções que contribuam para um Brasil inclusivo e sustentável.

O Desafio terá 5 etapas, que serão realizadas ao longo de 2018. Após o fim das inscrições, o júri vai selecionar 12 projetos semifinalistas, cujos responsáveis participarão de oficinas de capacitação. Suas propostas serão então apre-sentadas aos gestores dos municípios que deverão declarar seu interesse em receber as iniciativas. Cada semifinalista deverá conquistar ao menos um “embaixador”, que pode ser um prefeito ou representante de uma secretaria diretamente relacionada ao projeto. A partir daí, serão selecionados cinco finalistas para executarem o projeto-piloto. Cada um deles receberá um apoio financeiro de cerca de US$ 20 mil para a implementação do piloto, além de contar com mentorias de especialistas ao longo dessa etapa. Os projetos-piloto devem ser implantados entre Agosto e Novembro de 2018 e ficarão em operação por pelo menos oito semanas.

Em Dezembro de 2018, o júri vai escolher o projeto ven-cedor, que receberá um apoio financeiro de US$ 100 mil. O responsável vai trabalhar em conjunto com os organizadores do concurso para dar escala e implementar sua solução em outros centros de atividades e municípios brasileiros.

Lúc

ia C

hayb

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2146

| mobilidade |

Page 47: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Outros concursos pelo mundo

Realizado pela primeira vez no Brasil, o Desafio é um dos vários concursos promovidos pela Toyota Mobility Founda-tion em todo o mundo. Atualmente, a organização também está à frente do Desafio de Mobilidade Ilimitada (Mobility Unlimited Challenge), o qual recebe ideias inovadoras que busquem melhorar a mobilidade de pessoas com paralisia. A meta é ter um protótipo até 2020. WRI Índia e Toyota Mobility Foundation realizam juntos na Índia um concurso chamado Station Access and Mobility Program (STAMP). O programa busca soluções de acesso à rede de metrô da cidade de Bangalore para incentivar o uso do transporte coletivo.

Sobre a Toyota Mobility Foundation

A Toyota Mobility Foundation (TMF) foi fundada em Agosto de 2014 para estimular o desenvolvimento de uma cidade com mais mobilidade. A Fundação tem o objetivo de apoiar sistemas de mobilidade robustos, eliminando os desequilíbrios vistos nessa área. Com a expertise da Toyota em tecnologia, segurança e meio ambiente, a TMF trabalha em parceria com universidades, governos, ONGs, instituições de pesquisa e outras empresas na busca de soluções para a mobilidade em todo o mundo. Os programas visam encontrar soluções para problemas de transporte urbano, ampliar o uso de mobilidade pessoal e desenvolver soluções para a mobili-dade da próxima geração. A TMF é vinculada diretamente à matriz japonesa da Toyota. Suas atividades no Brasil e o Desafio Inovemob não possuem ligação com a Toyota do Brasil ou com a Fundação Toyota do Brasil.

Porta-vozes

Luis Antonio Lindau - Diretor do WRI Brasil, Lindau é formado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pós-doutorado na University College London, e é Ph.D. em Transportes pela Universidade de Southampton. É autor de mais de 200 capítulos de livros e artigos publicados em revistas científicas e atas de conferências nacionais e internacionais, e já apresentou mais de cem palestras para os setores público e privado, no Brasil e no mundo, abordando temas como transporte urbano, segurança viária e sustentabilidade do transporte. Lindau também é um dos fundadores da ANPET, Associação de Pesquisa e Ensino em Transportes, da qual foi presidente por dois mandatos (2002-2006). Em 1995, implementou o LAS-TRAN, o Laboratório de Sistemas de Transporte da Escola de Engenharia da UFRGS, onde, de meados da década de 1980 até 2015 ministrou aulas, coordenou projetos de pesquisa e orientou teses em Engenharia de Transportes. De 2006 a 2012, foi membro do Comitê de Transportes dos países em desenvolvimento (ABE90) do Transportation Research Board (TRB), e de 2003 a 2006 integrou o Conselho Diretor da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).

Guillermo Petzhold - Especialista em Mobilidade Urbana, com foco em gestão de demanda de viagens, Guillermo é formado em Engenharia Civil e Mestre em Engenharia de Transportes pela UFRGS. Entre suas áreas de especialidade estão a análise de dados de sistemas de transporte coletivo, implementação e preparação para o início de operação de sistemas BRT e o desenvolvimento e a avaliação de projetos de mobilidade urbana sustentável.

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 47

| mobilidade |

Page 48: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

“O mundo está mais próximo da aniquilação nuclear do que em qualquer outra época desde as primeiras bombas de hidrogênio testadas no início da década de 1950”, alerta a revista Science, de 26 de Janeiro de 2018. O Boletim dos Cientistas Atômicos anunciou na véspera, 25 de Janeiro, ter adiantado o seu Doomsday Clock (Relógio do Apocalipse) de 2,5 para 2 minutos antes da meia-noite. Em Janeiro de 2017, o Boletim passara o ponteiro de 3 minutos para 2,5 minutos, e agora, um ano depois, colocou-o a dois minutos antes do grande colapso.

Rachel Bronson, PhD, Presidente do Boletim, disse no dia 25 de Janeiro de 2018 que “2017 foi um ano perigoso e caótico” e nele “vimos palavras imprudentes na área nuclear que agravaram situações já ameaçadoras, e novamente apren-demos que minimizar avaliações baseadas em evidências sobre o clima e outros desafios globais não leva a melhores políticas públicas”. Rachel explicou: “Embora o Boletim dos Cientis-tas Atômicos se concentre no risco nuclear, nas mudanças climáticas e nas tecnologias emergentes, a paisagem nuclear ocupa lugar central na declaração do Doomsday Clock deste ano [2018]. Os principais atores nucleares estão à frente da nova corrida armamentista. Ela será muito cara e ampliará a probabilidade de acidentes e percepções equivocadas. Em todo o mundo, as armas nucleares estão preparadas para se tornarem mais […] usadas graças aos investimentos de Estados nos arsenais nucleares. O Boletim destaca essa preocupação há algum tempo, mas o impulso para a nova realidade vem aumentando”.

Para Rachel, “o Conselho de Ciência e Segurança do Boletim avaliou outra vez os progressos – na verdade, a falta deles – na gestão das tecnologias que podem levar a humanidade tanto ao alívio quanto ao desastre. Espero que a declaração [2018] direcione a atenção mundial para a perigosa trajetória de hoje e exorte os líderes e cidadãos a redobrar seus esforços no sentido de se comprometer com um caminho que promova a saúde e a segurança do planeta”. O Boletim faz recomendações sobre como alcançar esse objetivo com máxima urgência. E tem o apoio financeiro da Carnegie Corporation, da Fundação MacArthur e de outras muitas fundações, corporações e pessoas – sobretudo dos EUA – que apoiam regularmente a missão. Rachel também considera “urgente que, coletivamente, empenhemos o trabalho necessário para produzir uma declaração em 2019 que rebobine o Doomsday Clock”. “A hora é agora”, conclui ela.

O Boletim foi fundado em 1945 por cientistas da Univer-sidade de Chicago que trabalharam no Projeto Manhattan para desenvolver as primeiras armas atômicas (Hiroshima e Nagasaki). O Boletim criou o Doomsday Clock 2 anos depois, em 1947, usando as imagens do apocalipse (meia-noite) e a linguagem contemporânea de explosão nuclear (contagem decrescente para zero) para transmitir as ameaças à humani-dade e ao Planeta. A decisão de mover (ou não) o ponteiro do Relógio do Apocalipse é feita desde 1977 pelo Conselho de Ciência e Segurança do Boletim, após consultar o Conselho de Patrocinadores, que inclui 15 laureados com o Prêmio Nobel. O Relógio virou indicador universalmente reconhecido da vulnerabilidade do mundo à catástrofe de armas nucleares, mudanças climáticas e novas tecnologias emergentes em outros domínios. Em 2017, líderes mundiais não lograram responder com eficácia às ameaças da guerra nuclear e às mudanças climáticas, tornando a situação da segurança mundial mais perigosa do que há um ano – e tão ou mais perigosa quanto a existente desde a 2ª Guerra Mundial.

Eugene Rabinowitch (1901-1973), biofísico e cofundador do Boletim, foi quem moveu o Relógio do Apocalipse ao longo de cerca de 20 anos. A responsabilidade passou, depois, para um conselho de especialistas que acertou um modo de avaliação para considerar em conjunto as tendências globais e adotar decisões consensuais. Hoje, os membros do conse-lho costumam ser pesquisadores em física nuclear, política nuclear, relações internacionais e outras áreas da ciência. Não há, no entanto, uma proposta de decisão a ser submetida à revisão dos pares. Quem julga são simplesmente personali-dades reconhecidas como inteligentes e experientes. O que eles fazem – sem dúvida – é atividade de cientistas, mas não é ciência propriamente dita.

Os maiores riscos de 2017 surgiram na área nuclear. O programa de armas nucleares da Coreia do Norte fez pro-gressos notáveis, aumentando os riscos para a própria Coreia do Norte, outros países da região e fora dela. Declarações e ações dos dois lados aumentaram a possibilidade de guerra nuclear por acidente ou erro de cálculo. Mas os perigos que se originam na península coreana não foram os únicos riscos nucleares evidentes em 2017: os EUA e a Rússia seguiram em desacordo, promovendo exercícios militares ao longo das fronteiras da OTAN, prejudicando o Tratado de Forças Nucleares Intermediárias (INF), atualizando seus arsenais nucleares e evitando negociações de controle de armas. Na região Ásia-Pacífico, as tensões entre os EUA e a China sobre o Mar do Sul da China aumentaram. Ficou difícil restabelecer uma situação de segurança estável. No sul da Ásia, Paquistão e Índia continuou a construção de arsenais cada vez maiores de armas nucleares.

O relógio do fim do mundo mais perto da meia-noite

José Monserrat Filho | Jornalista e Mestre em Direito Internacional*

* José Monserrat Filho também é Vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial, ex-Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (2007/11) e da Agência Espacial Brasileira (2011/15), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica. Ex-diretor da revista Ciência Hoje e ex-editor do Jornal da Ciência, da SBPC, autor de “Política e Direito na Era Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?”.

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2148

| crônica |

Page 49: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

No Oriente Médio, cresce a incerteza sobre o apoio dos EUA ao acordo nuclear com o Irã. Atiçar a situação nuclear mundial é terrível, pois com isso subestima-se o perigo exis-tente – e seu imediatismo.

Na questão das mudanças climáticas, o perigo pode parecer menos imediato, mas impedir aumentos catastróficos da temperatura no longo prazo é tarefa mais que urgente. As emissões globais de dióxido de carbono ainda não mostraram os primeiros declínios sustentados capazes de evitar que o aquecimento diminua de fato. As nações do mundo terão que reduzir de modo significativo suas emissões de gases do efeito estufa para manter os riscos climáticos gerenciáveis. Até agora, porém, a comunidade global está longe de enfrentar esse desafio. Além dos domínios nuclear e climático, os avan-ços tecnológicos debilitam as democracias em todo o mundo. Estados poderosos não perdem chance de usar as tecnologias da informação como armas e de promover campanhas de descrédito e desânimo, via internet, para minar as eleições e a confiança popular em instituições públicas vitais para garantir o pensamento livre e global.

Doomsday Clock tem estado vigilante desde 1947. Naquele ano singular, começou a 1ª Guerra Fria e o Boletim apresentou na capa o primeiro desenho do Relógio do Apocalipse, junto com o tempo definido em sete minutos para a meia-noite. É o que conta David Warmflash, em O Relógio do Apocalipse em Ficção e Realidade, no jornal The Crux de 18 de Maio de 2016. Desde sua criação o Relógio do Apocalipse foi movido 21 vezes. Mas a única vez no passado que chegou a dois minutos da meia-noite, como agora, ocorreu em 1953. Os EUA haviam testado a bomba H e nove meses depois a URSS também a testou. Hoje, contudo, as ameaças são incomparavelmente maiores. Em 2007, o Doomsday Clock expandiu-se para incluir desastres não-nucleares, como mudanças climáticas irreversíveis.

Por que? Porque urgia atuar sobre o clima mais cedo do que mais tarde. O Relógio do Apocalipse, então, avançou 2 minutos: de 7 para 5 minutos antes da meia-noite. O movimento foi apoiado e divulgado por ninguém menos que o celebrado cientista inglês Stephen Hawking, diretor do Centro de Cosmologia Teórica da Universidade de Cam-bridge e membro do Boletim. Na ocasião, ele disse: “Como cientistas, entendemos os perigos das armas nucleares e seus efeitos devastadores, e estamos aprendendo como as atividades e tecnologias humanas estão afetando os sistemas climáticos de modo a mudar para sempre a vida na Terra. (…) Como cidadãos do mundo, temos o dever de alertar o público dos riscos desnecessários com os quais vivemos diariamente e dos perigos previstos se os governos e as sociedades não adotarem medidas agora, já, visando tornar as armas nucleares obsoletas e evitar futuras mudanças climáticas.”

O Doomsday Clock é “instrumento de ensino para aju-dar a educar a sociedade sobre fatos de relevância planetária que podem pôr em perigo a sobrevivência da humanidade”, sustenta o Boletim.

Há quem perceba, contudo, alguns erros de avaliação. Diante dos ataques de 11 de Setembro de 2001 em Nova York e a retirada dos EUA do Tratado sobre Mísseis Antibalísti-cos (Tratado ABM, firmado em 1972), em 2002, o Relógio do Apocalipse ficou imóvel, embora ambas as ocorrências ameaçassem a paz mundial. Mas a invasão do Afeganistão no mesmo 2001 (ainda em curso 17 anos depois) levou a um avanço: de 9 para 7 minutos. Em 1962, a crise dos mísseis em Cuba, que quase provocou uma guerra nuclear mundial, não alterou o Relógio. Em 1963, porém, o novo tratado de proibição de testes com armas nucleares na atmosfera, sob as águas e no espaço exterior, fez o ponteiro recuar em um minuto:

agora eram 6 para a meia-noite. Em 2017, o Doomsday Clock andou de 3 para 2,5 minutos. O movimento foi o primeiro após Índia e Paquistão reali-zarem testes consecutivos com armas nucleares em 1998.

Instalado Trump na Casa Branca, o Conselho de Ciência e Segurança do Boletim dos Cientistas Atômicos deslocou o Relógio do Apocalipse para 2,5, com base em alarmantes ameaças bélicas do próprio Trump. Riscos globais – afirma Robert Hunziker, jornalista

americano, em Counterpunch – agravaram as relações entre EUA e Rússia, que se tornaram mais conflitivas que coopera-tivas, porquanto aumentaram as tensões entre os dois países, por algumas razões claras: 1) Crescem as manobras militares da OTAN ao longo das fronteiras da Rússia; 2) Mina-se o Tratado de Forças Nucleares Intermediárias; 3) Modernizam-se os arsenais nucleares; e 4) Evitam-se as negociações sobre o controle de armas. Na verdade – diz Hunziker – Trump rejeita todas as ações que ricocheteiam no holocausto.

Hunziker acrescenta: “Agravando esse perigoso cenário mundial, há verdadeira ameaça de ruptura fundamental da ordem internacional, causada pela conduta dos EUA, que torpedeiam a confiança entre os países e minam – de fato ridicularizam – o acordo muito sóbrio sobre o clima, firmado em Paris em 2015. Na realidade, a liderança americana tornou-se enganosa e pouco confiável para prever ou discernir entre sinceridade e mera retórica, entrelaçada em inúmeras mensagens de twitter [de Trump]. Confusões e declarações de políticas contraditórias levam aliados ao desespero.” Como indicativo de que a comunidade mundial está em real perigo, Hunziker relata a especulação segundo a qual, se o Conselho de Ciência e Segurança do Boletim dos Cientistas Atômicos calculasse os riscos do holocausto com base no modo de vida imposto pelo capitalismo neoliberal desenfreado, o Doomsday Clock já marcaria um minuto para a meia-noite. Sob Trump, apenas com o grande corte de impostos [em favor das gran-des fortunas] e a rejeição de qualquer esforço para domar o aquecimento global, os riscos subiram às nuvens.

O jornalista americano conclui: “Nosso planeta encontra-se em situação de alto risco por causa das políticas sociais e eco-nômicas neoliberais – iguais em peso à ameaça do holocausto nuclear.” E mais: “O capitalismo neoliberal despreza o contrato social e ignora a responsabilidade ecológica (…). Não há nada a lucrar com contratos sociais ou cuidados ambientais”.

ECO•21 J a n e i r o 2 0 1 8 49

| crônica |

Page 50: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura

Para os amantes de frutos do mar, é um banquete. Milhares de siris-azuis empilhados uns em cima dos outros nas águas rasas da Baía de Chesapeake, presas fáceis para quem está à caça de um jantar. O fenômeno deixa os estômagos tão cheios de alegria que os moradores o chamam de “farra do siri”. Mas a alegria esconde uma realidade séria.

Por décadas, o maior estuá-rio dos EUA, que é alimentado por mais de 150 rios e córregos de 4 Estados, foi tratado como um grande valão. Pesticidas, fármacos, lixo humano e metais pesados de casas, fazendas e fábricas foram despejados nos rios que desembocam na baía, poluindo um tesouro nacional com um coquetel mortal de toxinas e excesso de nutrientes.

Cerca de 160 mil t de nitro-gênio e fósforo, das quais a maioria vem de fazendas, são despejadas na baía todo ano. Os nutrientes extras na água provo-cam florações em massa de algas, que impedem o sol de atingir o fundo da baía. Quando as algas morrem e apodrecem, elas sugam o oxigênio da água, sufocando a vida – peixes, ervas marinhas e siris estão todos famintos por oxigênio. A “farra” dos siris é um nome impróprio. Na verdade, significa o êxodo de criaturas tentando desespera-damente escapar da “zona morta” da baía.

Centenas dessas zonas mortas existem em todo o mundo, transformando grandes partes dos oceanos, mares e vias nave-gáveis em desertos submarinos, desprovidos de vida. O segundo maior deserto desse tipo está no Golfo do México, cujas águas com fome de oxigênio ameaçam devastar uma região que fornece 40% dos frutos do mar dos Estados Unidos.

As zonas mortas que se espalham pelas costas dos EUA são produto de como olhamos o meio ambiente. Por tempo demais, usamos água, terra e ar como lixões para os resíduos que geramos. Hoje, estamos lidando com as consequências.

Petróleo, metais pesados, plásticos e pesticidas poluem os oceanos e solos do mundo, fazendo com que seja mais difícil e mais caro se alimentar. A queima de combustíveis fósseis transformou o ar numa mistura imunda de gases e partículas minúsculas que se alojam no fundo dos pulmões, levando à morte prematura cerca de 200 mil estadunidenses por ano e fazendo mal à saúde de muitos outros. Todos somos afetados por isso: seja pelo ar poluído que respiramos, seja pela água contaminada que bebemos, seja pela comida que ingerimos, incrementada com substâncias químicas. Muitos acreditam que combater a poluição significa que teremos de frear o crescimento econômico. Mas, na verdade, é o contrário.

Revivendo as zonas mortasErik Solheim | Diretor-Executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (ONU Meio Ambiente)

Fracassar no combate à poluição prejudica o crescimento econômico porque afeta indústrias-chave, destrói os meios de subsistência das pessoas, intensifica as mudanças do clima e custa bilhões de dólares em soluções para o problema. O custo decrescente da energia de fontes renováveis, como eólica e solar, já prova que é possível responder à poluição do ar sem desacelerar o crescimento econômico. Países que lideram a substituição dos combustíveis fósseis e caminham rumo a economias mais sustentáveis e eficientes no uso de recursos, produzindo menos resíduos, vão colher os benefícios econô-micos e ambientais da atual revolução energética.

Os que escolherem não seguir esse caminho serão deixados para trás arcando com a fatura, que aumentará com a poluição que eles geram. Quando destruímos os ecossistemas que nos sustentam, quando poluímos a água, o ar e a terra com metais pesados, toxinas e partículas nocivas, nós enfraquecemos a saúde, a economia e poluímos as vidas das nossas crianças.

Em Dezembro, em Nairóbi, a ONU Meio Ambiente sediou sua 3ª Assembleia Ambiental. Combater a poluição – em todas as suas formas insidiosas e ameaçadoras – estava no topo da Agenda. Na ocasião conquis-tamos 2,5 milhões de compro-missos de governos, da sociedade civil, de empresas e de indivíduos para limpar o Planeta.

Mas nosso trabalho está longe de ter terminado. Cada um de nós tem um papel a desempenhar nessa luta. Seja comprando um carro elétrico, reciclando o lixo, reduzindo a quantidade enorme de comida que jogamos fora ou se recusando a usar sacolas plásticas quando fazemos compras, todos podemos reduzir a quan-tidade de resíduos e a poluição que acaba indo para o ar, o solo e a água. Todos temos a responsabilidade de defender compromissos ousados de combate à poluição adotados pelos líderes políticos e empresariais.

Meu relatório, “Rumo a um Planeta Livre de Poluição”, define como impulsionar essa transformação. Isso exigirá a identificação dos poluentes mais danosos, o fortalecimento das leis ambientais e a disponibilização de recursos para a pesquisa, monitoramento e infraestrutura mais limpa e verde.

Quando pessoas, empresas, cientistas e governos se unem para combater a poluição e a devastação ambiental, há bons resultados. Após décadas de um progresso lento, a Baía de Chesapeake mostra sinais de melhora. A zona morta, aos poucos, encolhe. Os peixes, o siri-azul e as ostras se recuperam conforme o nitrogênio, o fósforo e outras formas de poluição se reduzem lentamente. A saúde da baía ainda está precária, mas melhorando graças ao trabalho de uma força-tarefa formada por membros do governo local, agências federais, instituições acadêmicas, ONGs e empresas. Se pudermos replicar essa abordagem em escala global, então o mundo terá uma chance de derrotar um dos maiores flagelos do nosso tempo.

Mag

nus

Fröd

erbe

rg

Erik Solheim

J a n e i r o 2 0 1 8 ECO•2150

| zonas mortas |

Page 51: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura
Page 52: Ano XXVIII • Nº 254 • Janeiro 2018 • R$ 15,00 • ... 21 254 baixa final.pdf · 46 Maria Albuquerque - InoveMob incentiva soluções inovadoras em mobilidade ... evitar a dura