Ante a Sombra de Marx Artigo Final Com Agradecimentos

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26 Ante a sombra de Marx: silogismo hegeliano em Burocracia e Ideologia ELCEMIR PAÇO-CUNHA * Resumo O artigo explora a presença da influência de Hegel na principal obra de Tragtenberg, Burocracia e Ideologia. A análise se concentra nas problemáticas derivadas da Filosofia do direito, sobretudo a forma silogística Estado- Burocracia-Sociedade. O texto mostra que a despeito da leitura das críticas marxianas endereçadas à filosofia especulativa, Tragtenberg aceita parcialmente a aparente universalidade do Estado e a determinação da burocracia como meio termo na relação com a sociedade civil. Palavras-chave: Tragtenberg; Hegel; Marx; Estado, Burocracia. Abstract The paper shows the Hegel’s presence at the Tragtenberg’s main work, Bureaucracy and Ideology. This analysis is focused on the derived problems from Philosophy of right, above all the relation State-Bureaucracy-Society as a syllogistic form. The text provides a discussion which affirms that notwithstanding the influence of Marx’s critiques to the speculative philosophy, Tragtenberg partially accepts the apparent universality of State and the determination of bureaucracy as mediation in relation to society. Key words: Tragtenberg; Hegel; Marx; State; Bureaucracy. * ELCEMIR PAÇO-CUNHA é Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais; docente do Departamento de Ciências Administrativas, Programa de Pós-Graduação em Direito e Programa de Pós-Graduação em Serviço Social na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Agradeço à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pelo auxílio financeiro à pesquisa que permitiu a elaboração do presente artigo e à Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da Universidade Federal de Juiz de Fora pela bolsa de iniciação científica de inserção estudantil ao projeto.

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Ante a Sombra de Marx Artigo Final Com Agradecimentos

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    Ante a sombra de Marx: silogismo hegeliano em Burocracia e Ideologia

    ELCEMIR PAO-CUNHA*

    Resumo

    O artigo explora a presena da influncia de Hegel na principal obra de Tragtenberg, Burocracia e Ideologia. A anlise se concentra nas problemticas derivadas da Filosofia do direito, sobretudo a forma silogstica Estado-Burocracia-Sociedade. O texto mostra que a despeito da leitura das crticas marxianas endereadas filosofia especulativa, Tragtenberg aceita parcialmente a aparente universalidade do Estado e a determinao da burocracia como meio termo na relao com a sociedade civil.

    Palavras-chave: Tragtenberg; Hegel; Marx; Estado, Burocracia.

    Abstract

    The paper shows the Hegels presence at the Tragtenbergs main work, Bureaucracy and Ideology. This analysis is focused on the derived problems from Philosophy of right, above all the relation State-Bureaucracy-Society as a syllogistic form. The text provides a discussion which affirms that notwithstanding the influence of Marxs critiques to the speculative philosophy, Tragtenberg partially accepts the apparent universality of State and the determination of bureaucracy as mediation in relation to society.

    Key words: Tragtenberg; Hegel; Marx; State; Bureaucracy.

    * ELCEMIR PAO-CUNHA Doutor em Administrao pela Universidade Federal de Minas Gerais; docente do Departamento de Cincias Administrativas, Programa de Ps-Graduao em Direito e Programa de Ps-Graduao em Servio Social na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

    Agradeo FAPEMIG (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pelo auxlio financeiro pesquisa que permitiu a elaborao do presente artigo e Faculdade de Administrao e Cincias Contbeis da Universidade Federal de Juiz de Fora pela bolsa de iniciao cientfica de insero estudantil ao projeto.

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    O ponto de partida aqui deve ser a dilacerao da sinonmia entre dogmatismo e exigncia de rigor. Submetendo-se a segunda primeira, transforma-se o exerccio crtico do intelecto e o necessrio rigor que o acompanha em uma negao obtusa, desinformada. Esta confuso engendra tambm a suspeita de uma m vontade pressuposta, que parcializa a anlise com peso negativo. Exigncia de rigor no dogmatismo; o que resta ao intelecto munido de certa iseno subjetiva.

    Isto tem para este presente texto um sentido especial na medida em que se ocupa de explicitar algumas problemticas na leitura que Tragtenberg produziu de Hegel em sua principal obra: Burocracia e Ideologia. quase unnime a importncia que certa trade de autores apresenta neste livro em pauta, pois apoiando-se em clssicos como Hegel, Karl Marx, alm de Max Weber, ele [Tragtenberg] efetiva uma anlise histrico-crtica das formas de dominao burocrticas presentes tanto no modo de produo asitico quanto na sociedade capitalista moderna e no estatismo sovitico (Silva, 2004, p. 121). Ou ainda, no clssico Burocracia e Ideologia, seu trabalho de maior flego e respaldado nos clssicos, particularmente em Weber, Marx e Hegel, fez uma abrangente anlise crtica da burocracia /.../ (Antunes, 2001, p. 99). Isto o bastante para demarcar o lugar dessa trade. Portanto, uma compreenso aprofundada da obra em pauta depende, entre outras coisas, de uma anatomia dessa trade, mas uma anatomia crtica e no meramente descritiva.

    Estudos nessa direo, entretanto, so quase ausentes. Pode-se aproximadamente dizer que, por um

    lado, se no focam a vida do

    autor, concentram-se

    no carter criativo,

    libertrio e anarco-

    heterodoxo1; algo tambm de

    importncia, sem dvida, para o esclarecimento da marca de um ecletismo. Por outro, apresentam-se comedidos e com foco alterado como, por exemplo, as poucas indicaes de Loureiro (2001) que positivamente ousaram interditar parcialmente a leitura de Tragtenberg acerca de Luxemburgo e Marcuse. Em meio a essa interdio relativa e a descrio encontram-se outras possibilidades, cujo avano em relao trade se expressa melhor na conjuno Meneghetti (2009), Pao-Cunha (2010) e Faria (2011). Enquanto nos dois primeiros possvel constatar a discusso sobre a conjuno entre Marx e Weber (descritivamente no primeiro e criticamente no segundo), no terceiro se explicita uma indicao sobre Hegel e a influncia desse autor na elaborao de Burocracia e Ideologia. Embora um estudo dedicado leitura de Tragtenberg sobre Marx (e Weber) ainda precisa ser feito2, pretende-se aqui contribuir para uma introduo ao momento hegeliano contido no livro em questo, mas no de maneira pura, no sem interferncias, dadas as aproximaes feitas particularmente em relao a Marx pelo autor de Burocracia e Ideologia (sobretudo, pela Critique de la philosophie du droit de Hegel, Cf. 1974,

    1 Veja, no geral, os textos contidos em Maurcio Tragtenberg: uma vida para as cincias humanas. So Paulo: Unesp, 2001. 2 Dedico tempo considervel leitura de Tragtenberg sobre Marx sob a forma de projeto de pesquisa desde 2011.

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    p. 225). Nesse sentido, trata-se to somente de uma aproximao de um dos aspectos necessrios anatomia crtica sem a qual se estaciona no momento descritivo, o que impede um avano mais efetivo no desenvolvimento do prprio pensamento de Tragtenberg.

    Como o problema complexo, direcionamos a anlise para o aspecto mais central em relao ao silogismo hegeliano apreendido por Tragtenberg (Estado, burocracia e sociedade civil). Nesse sentido, foi til revisitar tanto os Princpios da filosofia do direito quanto a Filosofia da histria, livros estes aos quais nosso autor fez referncia quando o assunto era Hegel (Cf. Tragtenberg, 1974, p. 224 as referncias s duas obras). Foi possvel o acesso mesma traduo francesa que Tragtenberg tinha disponvel do primeiro texto. J o segundo, a traduo italiana foi por agora impossvel de encontrar. Por isto e em funo do espao disponvel, lamentavelmente deixamos para outra oportunidade a discusso mais detida acerca do modo de produo asitico, categoria aqui apenas incidentalmente considerada.

    *

    Tudo indica que Hegel entra no iderio de Tragtenberg em funo das suas preocupaes com a burocracia, em sentido amplo, e no uma posio terico-filosfica por princpio. Aquela anlise que mais avanou nessa relao com Hegel (Faria, 2011), embora esta no tenha sido seu objeto privilegiado, demarca o movimento intelectivo existente, isto , trazer frente aspectos muito precisos da filosofia especulativa.

    Por isso lemos que Tragtenberg busca em Hegel a concepo inicial da relao entre Estado e burocracia, o que lhe permite vislumbrar as caractersticas do modo de produo asitico na

    perspectiva do poder poltico (Faria, 2011, p. 57). Ele recorre a Hegel (2000), exatamente, para analisar a burocracia como poder administrativo e poltico, a partir do conceito deste de que o Estado a organizao (burocracia pblica) acabada, a sntese do substancial e do particular, a integrao dos interesses individuais e particulares /.../ (ibid., p. 58). Marca-se aqui uma retomada do problema do Estado em Hegel para uma anlise da burocracia. A ressalva vem em seguida, por meio da qual se compreende que buscar em Hegel uma base analtica no simplesmente incorporar uma concepo hegeliana. O recurso a Hegel , marcando novamente aquele retorno, para afirmar sua [de Tragtenberg?] convico de que as finalidades do Estado so aquelas da burocracia e as desta so as do Estado, de forma que a burocracia se fundamenta na separao entre os interesses universal e particular como elemento de mediao (idem). Mais conclusivamente, lemos que a burocracia, nos regimes de Estado, constitui-se, para Tragtenberg, como classe dominante, pois detm os meios de produo e, nessa medida, possui o poder de explorao, cumprindo funes de organizao do monoplio do poder poltico (ibid., p. 58-9).

    Ainda que as consideraes acima tenham carter apenas descritivo, no constituindo, pois, uma anatomia crtica nos termos que perseguimos, possvel derivar que, relativamente, Tragtenberg aceita a resoluo hegeliana de que a burocracia se posta como mediao entre o Estado e a sociedade. Vejamos isso mais de perto.

    Um conjunto de pargrafos contido na Filosofia do direito pode ser til para, ao menos parcialmente, ilustrar a representao hegeliana dessa relao entre sociedade e Estado, em parte

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    corretamente formulada (no que diz respeito separao moderna entre essas esferas), e em parte desvirtuada, uma vez posta como produto do formal, isto , o momento filosfico no a lgica da coisa, mas a coisa da lgica, como disse Marx (2010, p. 39). Para efeito de melhor compreenso, que seja permitido a alterao na ordem de apario dos pargrafos hegelianos. Antes de tudo, fica determinado o poder governamental, no qual igualmente esto concebidos os poderes judicirio e de administrao pblica, que tm imediatamente vinculao com o particular da sociedade civil-burguesa e fazem valer o interesse universal nesses fins (Hegel, 2010, 287, p. 272). A administrao pblica , portanto, uma das determinidades do poder governamental. A ciso entre Estado e sociedade civil revela ou a separao entre o interesse universal e os particulares, pois os interesses particulares comunitrios, que recaem na sociedade civil-burguesa e residem fora do universal sendo em si e para si do Estado mesmo (256), tm sua administrao nas corporaes (251) das comunas e dos demais ofcios e estamentos, e em suas autoridades, dirigentes, administradores e semelhantes. /.../ (ibid., 288, p. 272). De um lado o Estado, do outro os interesses particulares sintetizados na sociedade civil-burguesa.

    Fixados os extremos, preciso uma mediao dada pela prpria administrao pblica (ou burocracia) como uma das determinidades do poder governamental. Para Hegel, trata-se do estamento universal ou classe universal, que tem por sua ocupao os interesses universais da situao social (ibid., 205, p. 201). Adicionalmente, o estamento universal, precisamente o que se dedica ao servio do governo, imediatamente tem de ter em sua

    determinao o universal por fim de sua atividade essencial; /.../ (ibid., 303, p. 283). A insero da burocracia como termo mdio no aparece to facilmente nos pargrafos hegelianos. Este aspecto, problemtico em si, precisa de uma ateno dedicada em outra oportunidade (pois, mesmo Marx na Crtica da filosofia do direito de Hegel produz essa determinao sem aparentemente todos os respaldos apropriados). Fiquemos com a soluo (provisria para o presente texto) de considerar a burocracia como termo mdio, mas apenas enquanto uma das determinidades do poder governamental. Nesse sentido, ao tratar dos estamentos, escreveu Hegel:

    304 O elemento poltico dos estamentos contm igualmente em sua determinao prpria a diferena dos estamentos j presentes nas esferas anteriores. Sua posio inicialmente abstrata, a saber, a do extremo da universalidade emprica frente ao princpio do prncipe ou monrquico em geral, no qual residem apenas a possibilidade da concordncia e, com isso, igualmente a possibilidade da contraposio hostil, essa posio abstrata apenas se torna, por causa disso, relao racional (num silogismo, cf. anotao do 302), pelo fato de que sua mediao chega existncia. Tal como da parte do poder do prncipe, o poder governamental (300) j tem essa determinao, assim tambm, da parte dos estamentos, preciso que ele esteja orientado a um momento dos mesmos segundo a determinao de existir essencialmente como o momento do meio-termo (ibid., p. 282).

    Nestes termos, e com as devidas ressalvas, o silogismo hegeliano se arma tendo o Estado como universalidade, de um lado, e, de outro, a sociedade civil como o lugar dos interesses privados circunscritos, sobretudo, nas

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    corporaes. O poder governamental ou a administrao do Estado enquanto burocracia surge como termo mdio do silogismo (mas tambm e com maior nfase, como dito antes, os estamentos, Cf. 301-304, Hegel, 2010, p. 280-4. Nos termos, possvel assumir a burocracia como estamento universal e determinidade do poder governamental enquanto corpus do Estado moderno).

    Este aspecto da insero de Hegel traz uma srie de questes importantes a Tragtenberg. Recuperando o ponto de partida, o autor nos informa que em nvel lgico, como administrao significa burocracia, aproveitamos a contribuio de Hegel a respeito (1974, p. 16). A princpio, Tragtenberg se interessa aqui pela elaborao conceitual, lgica, formal, embora no fique absolutamente claro, com preciso, do que se trata este nvel, nem a relao para com os demais3. interessante notar que aquela determinao lgica mais de Tragtenberg do que do prprio Hegel, pois administrao significa burocracia uma elaborao muito geral no necessariamente do segundo, ao menos no se aprofunda tal nexo nos

    3 em nvel histrico, na medida que [sic] as teorias administrativas so transitrias (ideolgicas), porque refletem interesses econmico-sociais transitrios, fundamo-nos na perspectiva dialtica; e, em nvel lgico-histrico, na medida em que as teorias administrativas posteriores, embora refletindo momento histrico-econmico diverso da anterior, trazem em seu mago o conhecimento cumulativo das teorias preexistentes, fundamo-nos na perspectiva de Marx, da relativa autonomia da produo terica em relao s determinaes econmico-sociais globais (1974, p. 16). A perspectiva dialtica no mostra quais so suas marcas, e a fundao na perspectiva de Marx parece uma sntese entre os nveis lgico e histrico. Os problemas aqui contidos, e que no foram devidamente explorados pelo autor, so muitos e com muitas consequncias. preciso retomar isso em outra oportunidade.

    pargrafos da Filosofia do direito seno por meio da apreenso do poder governamental nos Estados modernos tambm como administrao (alm da dimenso jurdica) desenvolvida, no caso, como burocracia. No h no texto em tela, salvo o melhor juzo, o desenvolvimento filosfico, por exemplo, da corporao como burocracia, embora na primeira se determine a administrao dos interesses privados. Portanto, o fato de haver administrao no significa burocracia. No obstante, essa influncia hegeliana no parece ser apenas um recurso como base analtica, uma vez que Tragtenberg aceita no s o silogismo hegeliano como tambm alguns de seus princpios. Primeiramente, possvel constatar um problemtico ponto de partida acerca da separao entre o Estado e a sociedade civil em que a tnica recai sobre a burocracia como poder social determinante:

    Entenda-se, a burocracia patrimonial pr-capitalista ou a capitalista representam categorias historicamente dadas cuja inteligibilidade obtida atravs do estudo da especificidade do modo de produo asitico, escravista, feudal, capitalista. O que se quer colocar, o que as estruturas de dominao, ressalvados os dados de transitoriedade e especificidade, tm em comum: a separao entre o Estado e a sociedade civil, a burocracia e o sdito numa relao de dominao, ou dominao explorao (no caso asitico de produo) levando pacificao da existncia social de que fala Marcuse. Tais comparaes j haviam sido feitas por Marx /.../ (ibid., p. 21-2, nota 3)

    De partida, constatamos que a separao entre Estado e sociedade civil , para o autor, universal, algo comum a todos os

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    modos de produo. Esta afirmao em si problemtica porque desconsidera, seno que Hegel tratava da burocracia como determinidade do poder governamental j na sociedade presente das primeiras dcadas do sculo XIX (sociedade capitalista) em que o Estado est efetivamente cindido da sociedade civil, que ao menos para Marx muito claramente posto que tal separao um produto moderno. possvel ler, por exemplo, que a abstrao do Estado como tal pertence somente aos tempos modernos porque a abstrao da vida privada pertence somente aos tempos modernos. A abstrao do Estado poltico um produto moderno (2010, p. 52), dada a relao de dominao feita unidade, a dominao poltico-econmica indistintamente em modos de produo anteriores4. Alis, Marx constata com muita frequncia que Hegel expressou corretamente um fato emprico atual, isto , a abstrao do Estado em relao sociedade civil5. importante chamar a ateno para isso, pois, como veremos ainda, Tragtenberg se baseia neste texto de Marx para algumas consideraes, mas sem a devida indicao. Porm, quais as razes para Tragtenberg lanar um produto 4 Ao tratar, por exemplo, da Idade Mdia: A dependncia pessoal caracteriza tanto as relaes sociais de produo quanto as esferas da vida erguidas sobre elas (Marx, 2013, p. 152). 5 Por exemplo, Mas Hegel parte da separao da sociedade civil e do Estado poltico como de dois opostos fixos, duas esferas realmente diferentes. De fato, essa separao , certamente, real no Estado moderno. A identidade dos estamentos civil e poltico era a expresso da identidade das sociedades civil e poltica. Essa identidade desapareceu. Hegel a pressupe como desaparecida. Se a identidade dos estamentos civil e poltico expressasse a verdade, ela no poderia ser, portanto, mais do que uma expresso da separao das sociedades civil e poltica! ou ainda: somente a separao dos estamentos civis e dos estamentos polticos exprime a verdadeira relao entre as modernas sociedades civil e poltica. (Marx, 2010, p. 89-90).

    moderno, historicamente determinado, universalidade da histria?6 No obstante este aspecto problemtico e de difcil soluo, possvel capturar, mais diretamente, a influncia de Hegel na anlise de Tragtenberg numa srie de argumentaes que tm por lastro o princpio lgico no apenas daquele silogismo, mas tambm do misticismo hegeliano que mantm certo peso para o autor brasileiro:

    6 de se notar aqui incidentalmente tambm esta tendncia universalizao presente na afirmao, ao tratar do modo de produo asitico, de que Para realizao de obras pblicas e manter a classe dos funcionrios, o Estado extrai, sob forma de impostos, mais-valia da economia de subsistncia das aldeias (Tragtenberg, 1974, p. 28). Tenhamos em mente, como contraponto, que o processo de produo, como unidade dos processos de trabalho e de formao de valor, processo de produo de mercadorias; como unidade dos processos de trabalho e de valorizao, ele processo de produo capitalista, forma capitalista da produo de mercadorias (Marx, 2013, p. 273). Some-se que o capital uma relao natural, universal e eterna; quer dizer, quando deixo de fora justamente o especfico, o que faz do instrumento de produo, do trabalho acumulado, capital (Marx, 2011, p. 41). A produo da mais-valia ou mais-valor, portanto, est associado a uma forma historicamente determinada da relao entre propriedade e trabalho em que a propriedade aparece como capital, mas nem toda forma de propriedade (apropriao do que natural) capital, pois o capital no uma relao universal e no se manifestava no modo de produo asitico (nem no antigo, nem no germnico) porque pe a differentia specifica da produo capitalista. A fora de trabalho comprada, aqui, no para satisfazer, mediante seu servio ou produto, s necessidades pessoais do comprador. O objetivo perseguido por este ltimo a valorizao de seu capital, a produo de mercadorias que contenham mais trabalho do que o ele paga, ou seja, que contenham uma parcela de valor que nada custa ao comprador e que, ainda assim, realiza-se mediante a venda de mercadoria. A produo de mais-valor, ou criao de excedente, a lei absoluta desse modo de produo (Marx, 2013, p. 695), e no das formas passadas.

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    Vimos que a emergncia da burocracia patrimonial como poder poltico nas sociedades orientais e pr-colombiana antecede de muito o aparecimento da burocracia funcional da indstria moderna, confirmando o aforismo hegeliano de que a substncia do Estado a realizao do interesse universal enquanto tal (da burocracia). Isso se d na URSS, Europa Oriental e nos pases de autocracia modernizante. O Estado aparece como triunfo da razo hegeliana, onde a maturidade poltica conquistada por mediao da burocracia, que introduz a unidade na diversidade da sociedade civil. O Estado como burocracia acabada gera a sociedade civil, o regresso de Marx a Hegel (ibid., p. 44).

    A despeito do fato de que surge uma nota (de nmero 74, mesma pgina) incompreensivelmente desconectada da discusso deste pargrafo, preciso ter em mente que desde o princpio do texto Tragtenberg afirma que, para Hegel, o Estado aparece como organizao acabada (ibid., p. 22) (citando em nota, mesma pgina: Hegel, Principes de la Philosophie du Droit. Paris, d. Gallimard, 1940, p. 190). Uma visita pgina (p. 190) da traduo francesa utilizada pelo autor no produz a sustentao devida. Os pargrafos da pgina dizem respeito eticidade (Hegel, 2010, p. 167) ou La moralit objective (Hegel, 1940, p. 189), muitas sesses antes de o esprito se encontrar consigo mesmo na forma do Estado, e no revelam qualquer expresso semelhante ou com tal sentido. Tragtenberg completou a afirmao ao escrever que o Estado , para Hegel, considerado em si e por si (1974, p. 22, citando, na nota 5, a pgina 190 da mesma traduo francesa). Mas a essa altura, como antes, Hegel ainda discute a eticidade ou la

    moralit objetive7. O mesmo vale para o complemento final, segundo o qual o Estado se realiza pela unio ntima do universal e do individual (idem). Fica patente a ausncia de rigor no trato dessas questes, precisamente por se tratar do ponto nefrlgico acerca da compreenso hegeliana do Estado, embora possam emanar dessas afirmaes algumas aproximaes.

    No obstante, um dos pontos a ser destacado a organizao acabada, ou burocracia acabada conforme aparece na passagem anterior. Esta expresso no foi de modo algum empregada pelo prprio Hegel; ela aparece com algum desenvolvimento na Crtica da filosofia do direito de Hegel, quando Marx glosa os pargrafos hegelianos sobre o poder governamental. possvel ler que:

    A burocracia o formalismo de Estado da sociedade civil. Ela a conscincia do Estado, a vontade do Estado, a potncia do Estado como uma corporao (/.../), como uma sociedade particular, fechada, no Estado. Mas a burocracia quer a corporao como uma potncia imaginria. De fato, tambm cada corporao tem, como seu interesse particular, esta vontade contra a burocracia, mas ela quer a burocracia contra a outra

    7 Comme la moralit objective est le systme de ces dterminations de l'Ide, elle est doue d'un caractre rationnel. De cette manire, elle est la libert ou bien la volont existant en soi et pour soi, elle apparat comme la ralit objective, cercle de ncessit, dont les moments sont les puissances morales qui rgissent la vie des individus, et qui ont leur manifestation, leur forme et leur ralit phnomnales, dans ces individus comme dans leurs acidentes (Principes de la philosophie du Droit, op. cit., 145, p. 190). V-se que a moralidade objetiva a liberdade ou mesmo a vontade existente em si e para si, no o Estado. Comparar com Filosofia do direito, op. cit., p. 167-8, 145.

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    corporao, contra o outro interesse particular. Portanto, a burocracia traz consigo, como corporao acabada, a vitria sobre a corporao, como burocracia inacabada (2010, p. 65).

    a glosa crtica marxiana de 1843 que determina a burocracia como corporao acabada e a corporao como burocracia inacabada, no os pargrafos propriamente hegelianos. Nesse sentido, por mais que Marx esteja com razo, no possvel afirmar que no plano lgico, mostramos como Hegel utilizou o conceito de corporao inacabada para definir a burocracia privada, e corporao acabada definindo a burocracia pblica (Tragtenberg, 1974, p. 186), uma vez que Hegel mesmo no utilizou o conceito e, se a crtica de Marx estiver correta como acreditamos que esteja, trata-se de apreender, ao reverso, a corporao como burocracia inacabada e a burocracia como corporao acabada, aperfeioada, autntica, nos termos de vollendete (Cf. Marx, 1981, p. 248). Neste ponto possvel capturar que Tragtenberg se pauta em Marx para tais consideraes (com a distoro em tela), sem o mencionar, mas imputa a determinao a Hegel.

    Alm deste ponto, o mais significativo tambm se expressa na passagem anterior. Supondo haver burocracia patrimonial como poder poltico nas sociabilidades orientais e pr-colombianas como antecedncia histrica em relao burocracia funcional na indstria moderna, conclui que este fato confirma o aforismo hegeliano de que a substncia do Estado a realizao do interesse universal enquanto tal (da burocracia). Nessas sociabilidades, incluindo a antiga URSS como coletivismo burocrtico, o Estado, disse Tragtenberg, aparece como triunfo da razo, cuja

    maturidade poltica posta por mediao da burocracia de tal maneira que o Estado como burocracia acabada gera a sociedade civil. Nesse regresso de Marx a Hegel, no se v apenas um recurso como base analtica sem mencionar a fragilidade do argumento , seno uma aceitao da burocracia como mediao entre o particular e o universal, o que implica aceitar o Estado como universalidade e seu corpus, a burocracia, como mediao de si mesmo nessa identidade posta entre ambos por Tragtenberg (e no como uma das determinidades do poder governamental no Estado moderno). Considerar, portanto, correto o aforismo hegeliano, movimentar-se de Marx a Hegel, aceitar, ainda que involuntariamente, o princpio mstico-pantesta de anterioridade da Ideia de Estado em relao s formas finitas pelas quais o esprito veio a ser Estado. Este aspecto da influncia da lgica hegeliana pelo esquema silogstico e de certo idealismo que necessariamente o acompanha no algo isolado. Observemos que, para Tragtenberg, a transitividade da burocracia do plano lgico ao histrico ocorre com a emergncia do modo de produo asitico como categoria sujeita s determinaes sociais inerentes formao da cultura da irrigao do solo que leva a uma superviso centralizada da burocracia (1974, p. 187). Entende-se por isso que foi a emergncia do modo de produo asitico aquilo que opera a transitividade da burocracia do plano lgico ao histrico, do mundo das ideias ao concreto. Da, tambm o regresso de Marx a Hegel, do materialismo ao idealismo? No contexto mais moderno, disse Tragtenberg poucas pginas depois, a burocracia age antiteticamente: de um lado responde sociedade de massas e convida participao de todos, de outro, com sua hierarquia, monocracia, formalismo e

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    opresso afirma a alienao de todos, torna-se jesutica (secreta), defende-se pelo sigilo administrativo, pela coao econmica, pela represso poltica. E completa em seguida: em suma, ela une a sociedade civil ao Estado, efetua a viagem de volta de Marx a Hegel, converte sua razo histrica na razo na histria, do contingente passa essencialidade (1974, p. 190). Como termo mdio, a burocracia aparece a Tragtenberg como aquilo que medeia a relao entre sociedade civil (particularidade) e Estado (universalidade), unindo-os.

    *

    evidente, no entanto, que Tragtenberg no aceita essas posies hegelianas de forma puramente acrtica. Suas consideraes mais ou menos crticas com relao Hegel so, como tudo indica, retiradas, como dito antes, das glosas marxianas presentes na Crtica da filosofia do direito de Hegel, porm sem a devida indicao. Primeiramente, refora-se a questo anterior da burocracia acabada, pois, para Tragtenberg, Hegel procura sintetizar na corporao (entendida como burocracia privada) e no Estado (entendido como burocracia pblica acabada), as mltiplas determinaes que levam tenso entre o interesse particular e o universal do Estado (1974, p. 23). Na sequncia, nosso autor escreve em tom crtico que, para o filsofo alemo, na existncia da burocracia que pressupe as corporaes, ela, enquanto burocracia estatal, o formalismo de um contedo situado fora dela: a corporao privada (idem). Ou, pouco adiante, a existncia da burocracia pressupe, pelo menos, o esprito corporativo (idem). Por outro lado, dada altura da Filosofia do direito, Hegel escreveu que o esprito da corporao, que se engendra na

    legitimao das esferas particulares, reverte-se ao mesmo tempo para dentro de si mesmo no esprito do Estado, visto que ele no Estado tem o meio de conservao de seus fins particulares (2010, 289, p. 273). Por outro lado ainda, nas muitas consideraes que Marx fez aos pargrafos hegelianos, podemos ler:

    Hegel parte da separao entre Estado e sociedade civil, entre os interesses particulares e o universal que em si e para si, e a burocracia est, de fato, baseada nessa separao. Hegel parte do pressuposto das corporaes e, de fato, a burocracia pressupe as corporaes, ao menos o esprito corporativo. Hegel no desenvolve nenhum contedo da burocracia, mas apenas algumas determinaes gerais de sua organizao formal e, certamente, a burocracia apenas o formalismo de um contedo que est fora dela (Marx, 2010, p. 64).

    V-se com muita clareza que a formulao crtica segundo a qual a burocracia pressupe a corporao e que no mais do que formalismo de um contedo que est fora dela inteiramente marxiana. Tragtenberg insere uma nota de rodap sua passagem anterior (ao concluir que a corporao privada o contedo do formalismo8) em que escreve que para

    8 Parece que a Marx o mesmo esprito que cria, na sociedade, a corporao, cria, no Estado, a burocracia (2010, p. 65), isto , no a corporao privada, mas a prpria propriedade privada sob a forma da corporao uma vez que a corporao no poderia ser produto de si mesma. No caso, o esprito um outro, aqum da corporao e da burocracia no Estado. Isso tambm ajuda a insinuar que se tal esprito, aqui considerado como a propriedade privada, cria a burocracia no Estado, no h uma identidade necessria entre Estado e burocracia; no so necessariamente a mesma coisa na contingncia histrica de modos de produo anteriores.

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    Hegel, na medida em que se estrutura a carreira burocrtica no Estado, este passa a constituir finalidade privada do funcionrio; para prevenir essa disfuno, Hegel apela para a formao moral dos funcionrios pblicos (1974, p. 23, nota 14). No s! Disse Marx que, alm da hierarquia (2010, p. 71), dos privilgios da corporao (idem) e o tamanho do Estado (ibid., p. 72), Hegel v garantias:

    No prprio funcionrio e isto deve humaniz-lo e tornar costume a impassibilidade, a legalidade e a benevolncia da conduta , a direta formao tica e de pensamento devem servir como contrapeso espiritual ao mecanicismo de seu saber e ao seu trabalho efetivo. Como se o mecanicismo do seu saber burocrtico e do seu trabalho efetivo no servisse de contrapeso sua formao tica e de pensamento! E o seu esprito real e o seu trabalho efetivo no triunfaro, como substncia, sobre o acidental das suas outras capacidades? Seu cargo , de fato, sua relao substancial e seu po. O belo que Hegel contrape a direta formao tica e de pensamento ao mecanicismo do saber e do trabalho burocrticos! O homem, no funcionrio, deve proteger o funcionrio contra si mesmo. Mas que unidade! Contrapeso espiritual. Que categoria dualstica! (2010, p. 71-2).

    Mais uma vez, possvel capturar a fonte da crtica de Tragtenberg s consideraes hegelianas sobre a burocracia, embora a ideia de disfuno, tpica das discusses acadmicas particularmente estadunidenses sobre a burocratizao nas dcadas de 1950 e 1960 (Merton, Gouldner, etc.), seja uma atribuio do autor brasileiro. A despeito disso, fica claramente estampado que Tragtenberg reproduz as crticas de Marx

    sem cit-lo. O mesmo, como reforo, pode ser constatado pela afirmao j indicada do autor brasileiro de que a burocracia age antiteticamente, convidando nas sociedades de massas todos participao mas tambm alienando a todos, tornando-se jesutica (secreta) (1974, p. 190). Da forma como Marx ps a questo, lemos que o esprito burocrtico um esprito profundamente jesutico, teolgico. Os burocratas so os jesutas do Estado, os telogos do Estado. A burocracia a rpublique prtre (2010, p. 65), ou ainda, que o esprito universal da burocracia o segredo, o mistrio (ibid., p. 66). Os motivos dessa ausncia de referncia direta fonte da crtica so difceis de determinar. Mas no restam dvidas de que tais crticas de Marx a Hegel no se constituam num no sabido a Tragtenberg.

    Isso se refora pela crtica mais contundente do autor brasileiro a Hegel. Nela aparece que a teoria de Hegel aplicada burocracia formal, mas de um formalismo poltico, que encobre uma realidade que ele desnatura, reduzindo arbitrariamente a oposio e traindo o real (1974, p. 23). O que h aqui que podemos tambm referendar elaborao marxiana? A despeito da dificuldade intrnseca ideia de que se trata de uma teoria de Hegel aplicada burocracia e de precisarmos a reduo da oposio (porque nos falta o resultado: qual oposio, reduzida a qu?), Tragtenberg nessa passagem telegrfica (alis, como boa parte das discusses dos captulos I, II e V) sem conexes aparentes com os pargrafos anteriores e sucedneos, sustenta que a teoria de Hegel formalismo poltico que ofusca e muda a natureza da realidade, no a expressando enquanto tal. Esse aspecto da crtica de Tragtenberg, com exceo de se tratar de um formalismo poltico, apresenta

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    ressonncias do aspecto problemtico hegeliano que, se corretamente apreende a separao entre Estado e sociedade nos termos modernos, submete, por outro lado, o desenvolvimento do real lgica ao invs, como dito antes pelas palavras de Marx, expressar a lgica da coisa. Nessa ltima direo, escreveu Marx que nos Estados modernos, assim como na filosofia do direito de Hegel, a realidade consciente, verdadeira, do assunto universal, apenas formal, ou apenas o formal assunto universal real. Assim, no se deve condenar Hegel porque ele descreve a essncia do Estado moderno como ela [a est], mas porque ele toma aquilo que [a est] pela essncia do Estado. E arremata: que o racional real, isso se revela precisamente em contradio com a realidade irracional, que, por toda parte, o contrrio do que afirma ser e afirma ser o contrrio do que (2010, p. 82). Essas crticas marxianas do conta, por um lado, do aspecto invertido da filosofia hegeliana, que considera o Estado, enquanto Ideia, uma anterioridade. Ou, nos termos prprios de Hegel, ao tratar do desenvolvimento da eticidade por meio da ciso da sociedade civil rumo ao Estado, este se mostra como seu verdadeiro fundamento, e apenas tal desenvolvimento a demonstrao cientfica do conceito de Estado. Porque, na marca do conceito cientfico, o Estado aparece como resultado, visto que ele se mostra como o fundamento verdadeiro /.../. E o desfecho mstico-pantesta: na efetividade, por causa disso, o Estado, em geral, antes o primeiro /.../ (2010, 256, p. 228) enquanto Ideia. Nestes termos, a considerao de Tragtenberg acerca de uma traio do real parece ter por base a crtica marxiana do carter invertido dessa filosofia, mas sem peso suficiente como ainda veremos.

    Por outro lado, essa mesma crtica implica o problema do carter efetivamente aparente do Estado enquanto universalidade e ente moral no contraditrio (por isso racional em si mesmo) conforme se expressa de maneira socialmente determinada na filosofia especulativa de Hegel. O especulativo consiste, escreveu Marx, em que isto seja chamado uma passagem do Conceito e em fazer passar a mais perfeita contradio por identidade e a mais alta inconsequncia por consequncia (2010, p. 53). Isso apreendido, inclusive, na forma silogstica entre Estado, burocracia e sociedade civil.

    preciso considerar alguns pontos a este respeito. O primeiro que o Estado universidade apenas na aparncia ou, o que o mesmo, afirma ser o contrrio do que . Nos termos do silogismo, ensinou Marx, em contraposio ao particular, o interesse universal pode se manter apenas como um particular, tanto quanto o particular, contraposto ao universal, mantm-se como um universal, isto , somente universal nessa oposio lgica. Nos termos do silogstico presente na filosofia especulativa hegeliana, a burocracia deve, portanto, proteger a universalidade imaginria do interesse particular, o esprito corporativo, a fim de proteger a particularidade imaginria do interesse universal, seu prprio esprito (2010, p. 65). A universalidade, portanto, no mais do que imaginria. Tragtenberg expressou igualmente este problema ao escrever que, para Hegel, o Estado aparece como suprema instncia que suprime as particularidades no seio da unidade, tendo como base social a classe mdia que protege uma generalidade imaginria (1974, p. 186-7), em que classe mdia conota burocracia no Estado. Se a universalidade do Estado imaginria, e se no formava um no

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    sabido a Tragtenberg, por que este aceitou de modo to resoluto este carter aparente do Estado conforme vimos antes? Se a teoria de Hegel trai o real, como ainda assim se sustentaria a suposta universalidade do Estado, o aforismo hegeliano? Se a base da crtica do autor brasileiro era, como tentamos mostrar aqui, a letra das glosas de Marx (mesmo sem o citar) Filosofia do direito de Hegel, por que nos pontos cruciais aceita o Estado como aquilo que engendra a sociedade (civil-burguesa e moderna, nos termos hegelianos), ainda que em modos de produo passados ou no chamado coletivismo burocrtico, invertendo as determinaes concretas e efetivas e aclamando, por fim, um regresso de Marx a Hegel, uma transio (especulativa) do lgico ao histrico?

    O segundo ponto se refere diretamente ao aceite do silogismo hegeliano, restando ainda uma ltima questo: se aceita for a aparncia, Estado (universalidade) de um lado e sociedade (particularidade) de outro, sendo a burocracia o corpus do Estado, identidade com o Estado como parece compreender Tragtenberg, como portanto o universal mediaria a si mesmo frente ao seu oposto? Apenas no absurdo especulativo de o termo mdio mediar a si mesmo, ora como tal, ora como extremo. Nesse sentido, podemos ler que:

    O prncipe [como Estado] deveria, por conseguinte, fazer-se, no poder legislativo, de termo mdio entre o poder governamental e o elemento estamental; porm, o poder governamental [administrao, burocracia] justamente o termo mdio entre ele e a sociedade estamental, e esta o termo mdio entre ele e a sociedade civil! Como deveria ele mediar aqueles de quem ele tem necessidade, como seu termo mdio, para no ser um

    extremo unilateral? Aqui se evidencia todo o absurdo desses extremos, que desempenham alternadamente ora o papel de extremos, ora o de termo mdio. /.../. Aquilo que se determina primeiramente como termo mdio entre dois extremos comporta-se, ento, ele mesmo, como extremo, e um dos dois extremos, que atravs daquele era mediado com o outro, mostra-se, agora, como extremo (porque em sua distino com o outro extremo) entre o seu extremo e o seu termo mdio. uma complementao recproca. /.../. notvel que Hegel, que reduz esse absurdo da mediao sua expresso abstrata, lgica, por isso no falseada, intransigvel, o designe, ao mesmo tempo, como o mistrio especulativo da lgica, como a relao racional, como o silogismo racional. Extremos reais no podem ser mediados um pelo outro, precisamente porque so extremos reais. Mas eles no precisam, tambm, de qualquer mediao, pois eles so seres opostos. No tm nada em comum entre si, no demandam um ao outro, no se completam. Um no tem em seu seio a nostalgia, a necessidade, a antecipao do outro. (Mas quando Hegel trata a universalidade e a singularidade, os momentos abstratos do silogismo, como opostos reais, esse precisamente o dualismo fundamental da sua lgica. O resto sobre isso pertence crtica da lgica hegeliana.) (Marx, 2010, p. 104-5)

    Nestes termos, o prprio silogismo racional, lgico, no corresponde s determinaes efetivas, inclusive, traindo o real. No apenas o Estado no o universal que afirma ser como tambm a burocracia no pode se pr, portanto, como meio termo em sua prpria relao com a sociedade. A

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    burocracia, como classe universal (nos termos hegelianos aceitos por Tragtenberg), como corpus do Estado no pode ser ao mesmo tempo extremo e mediao nessa relao. Hegel parte de uma oposio irreal e a conduz somente a uma identidade imaginria, ela mesma, em verdade, uma identidade contraditria. Uma tal identidade a burocracia (imaginria), escreveu Marx (2010, p. 67). O silogismo pertencente ao campo da lgica no transita para o concreto, no salta do intelecto realidade e menos ainda a engendra; e permanece preso a tal campo se no expressa nexos reais. Antes, o concreto que se expressa, por meio do pensamento, em termos lgicos a processualidade objetiva, a lgica da coisa. Um retorno, pois, de Marx a Hegel paga um preo demasiado alto mediante a prpria efetividade.

    As questes aqui aludidas (e no so poucas) carecem de aprofundamento. No obstante, possvel apreender que a despeito das crticas de Marx endereadas filosofia especulativa e da incorporao parcial de tais crticas por Tragtenberg permanece a tenso entre estas e a aceitao do aforismo hegeliano do Estado como universalidade, do princpio idealista de uma transio do lgico ao histrico e tambm especulativo ao considerar o Estado como o ente que engendra a sociedade civil (no modo de produo asitico e no coletivismo burocrtico), e, por fim, por tambm aceitar o silogismo formal hegeliano sem os crivos que sublinhassem a inautenticidade da burocracia como mediao efetiva. possvel aproximadamente concluir que Hegel tem um peso considervel para alm de uma base analtica, no obstante a presena de Marx.

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    Recebido em 2013-10-25

    Publicado em 2013-11-11