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Curso RedeFor de Gestão da Escola para Diretores Antecedentes normativos, institucionais e políticos Módulo I Paula Perin Vicentini, Rita de Cássia Gallego e Vivian Batista da Silva

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Curso RedeFor de Gestão da Escola para Diretores

Antecedentes normativos, institucionais e políticos

Módulo I

Paula Perin Vicentini, Rita de Cássia Gallego e Vivian Batista da Silva

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Equipe Multidisciplinar

Coordenação Geral: Gil da Costa Marques

Coordenação de Produção: Leila Humes

Coordenação do Curso: Sonia Maria Vanzella Castellar

Gerente de Produção: Beatriz Borges Casaro

Autoria: Paula Perin Vicentini, Rita de Cássia Gallego e Vivian Batista da Silva

Design Gráfico: Daniella Pecora, Juliana Giordano e Priscila Pesce Lopes de Oliveira

Ilustração: Alexandre Rocha, Aline Antunes, Benson Chin, Camila Guedes Torrano, Celso Roberto Lourenço, João Costa, Lidia Yoshino, Mauricio Rheinlander Klein, Thiago Augusto M. dos Santos

Fotografias: Thinkstock

Design Instrucional: Carolina Costa Cavalcanti e Roberta Takahashi Soledade

Revisão de Texto: Luana Delitti

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Antecedentes normativos, institucionais e políticos

1 A escola que construímos, a escola que queremos

Tópico 1 ApresentaçãoAntecedentes normativos, institucionais e políticos da escola: este é o tema da disciplina

que agora apresentamos a vocês, diretores. O nosso intuito é evidenciar que a gestão das atividades de alunos, professores, coordenadores, funcionários, pais, enfim, de toda comunidade escolar vai além do cumprimento de exigências burocráticas. Elas fazem par-te do nosso trabalho cotidiano e articulam-se a princípios e propostas educacionais mais amplas. Por isso, a presente disciplina parte de uma discussão nuclear. O que propomos a vocês, diretores, é uma reflexão sobre os modos como o nosso trabalho de ensinar vem sendo realizado. Propomos também uma reflexão sobre algumas alternativas de ações que hoje se colocam para transformarmos e aperfeiçoarmos o nosso ofício.

Todas as decisões tomadas no âmbito da direção escolar inserem-se num conjunto de ini-ciativas historicamente consolidadas. Estamos nos referindo ao modelo de ensino que todos conhecemos e que atribui atividades específicas à escola. Organizamos os nossos alunos em diferentes níveis de aprendizagem, considerando as idades e o desenvolvimento das crianças. Escolhemos professores que possam trabalhar com esses estudantes em diferentes momentos da vida escolar. Selecionamos alguns conteúdos para o currículo, distribuindo-os ao longo do ano letivo. Estudamos métodos pedagógicos. Usamos determinados materiais em sala de aula. Elaboramos formas de avaliar o rendimento dos alunos.

Para que essa organização tão complexa e tão ordenada do ensino possa funcionar, o diretor assume responsabilidades variadas, que se referem ao uso de recursos financeiros, à organização da equipe escolar e de importantes detalhes do cotidiano. O trabalho dos professores, a presença dos alunos, o uso de materiais, a merenda, a limpeza, os horários, enfim, são vários aspectos a serem zelados, direta ou indiretamente, pelo diretor. As exi-gências burocráticas não se separam, portanto, das questões pedagógicas e dos propósitos que fundamentam o trabalho escolar. A gestão vai além do preenchimento de papéis e isso nos conduz a pensar sobre “a escola que construímos, a escola que queremos” como o primeiro tema da disciplina. Como já afirmamos, as decisões tomadas pela direção

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5Tema 1 A escola que construímos, a escola que queremos

estão relacionadas com práticas historicamente consolidadas e, ao mesmo tempo, podem favorecer a reinvenção e a melhoria do ofício de alunos e professores.

O segundo tema proposto para estudo diz respeito à ideia de escola como “organi-zação”. Essa discussão é fundamental, pois parte da constatação de que cada estabe-lecimento é cada vez mais responsável pelas suas decisões e pelos caminhos que quer seguir. Isso não significa independência, tampouco que devemos pensar que as escolas estão abandonadas pelos poderes públicos. Trata-se de conceber uma nova forma de organizar a vida dos professores e dos alunos, reconsiderando as tradicionais hierarquias que historicamente marcaram a escola. Esse tipo de relação coloca novos desafios, novas perspectivas para um velho problema, o de garantir que todos aprendam bem.

A reflexão sobre os desafios curriculares fundamenta os temas seguintes, que procuram discutir formas pelas quais podemos arquitetar a escola que queremos. Nessa tarefa, o diretor pode contribuir de maneira decisiva. O que queremos ensinar? Como queremos ensinar? Essas são perguntas fundamentais e resumem os nossos propósitos diante dos desafios curriculares. A seleção de conteúdos, a importância de determinadas disciplinas, a definição de suas cargas horárias pelas séries escolares, pelos dias letivos são apenas algumas das questões aqui envolvidas. Tratar de desafios curriculares é tratar também dos diálogos que queremos promover entre uma disciplina e outra, daí as discussões sobre a interdisciplinaridade, por exemplo. Estamos nos referindo, ainda, ao fato de que a escola precisa lidar com exigências até então desconhecidas. Todos concordamos que o conhecimento transforma-se e difunde-se num ritmo acelerado e isso nos obriga a pensar sobre o ensino em tempos de globalização e conduz a escola a reelaborar as formas de organizar o ensino.

Como operacionalizar os princípios curriculares? Trata-se de uma tarefa decisiva, mas complexa porque não se refere apenas ao trabalho de um professor ou uma escola isola-damente. Refere-se a um conjunto de instituições que compõem um sistema articulado de ensino. Os desafios curriculares devem ser pensados em diferentes níveis: aqueles relativos aos propósitos comuns das escolas, passando pelos projetos de cada instituição e chegando às práticas cotidianas dos professores junto a seus alunos. Todos os profissio-nais da escola sabem bem que contamos com documentos oficiais para organizar o cur-rículo, com destaque para os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), elaborados na década de 1990 pelo Ministério da Educação e Cultura como base para todas as insti-tuições do país. Além disso, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996 instituiu o Projeto Pedagógico como uma obrigação de toda escola. E não podemos deixar de considerar que os professores planejam seu trabalho, seja nos planos que apresentam, nos semanários que preenchem, ou nos cadernos que usam para registrar os conteúdos ensinados. Tudo isso faz parte do que chamamos aqui de arquitetura do currículo. Mas até que ponto podemos afirmar que essas iniciativas se articulam? Vamos examinar esses aspectos ao longo do tema 3 da disciplina.

O que diferencia as atuais discussões sobre o currículo, especial-mente na rede pública estadual de ensino de São Paulo, é a ideia de diálogos a serem desenvolvidos. Falar de currículo não é apenas listar os conteúdos a serem trabalhados. A questão é mais ampla e mais rica. Estamos falando de princípios éticos, políticos, de habi-lidades a desenvolver, de cidadãos que queremos formar. Nosso intuito é esclarecer possíveis dúvidas e, principalmente, evidenciar

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desafios postos ao currículo, inspirando ações que vocês, diretores, podem mobilizar nas escolas onde trabalham em nome daquilo que move o trabalho de todo e qualquer edu-cador: a melhoria da aprendizagem de nossos alunos. Esperamos que essas discussões sejam promissoras!

Um bom trabalho a todos!Profª Dra. Paula Perin Vicentini

Profª Dra. Rita de Cássia GallegoProfª Dra. Vivian Batista da Silva

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Tópico 2 O ensino para todos: a escola como caminho para o progresso social

Como podemos descrever a escola? Essa pergunta é relativamente simples e com ela vamos iniciar o presente tópico. Ao respondê-la, vocês podem enumerar diferentes aspec-tos, como por exemplo:

Além de simples, esse exercício pode até parecer banal. Queremos chamar a atenção justamente para essa trivialidade. Ora, as respostas que enumeramos permitem afirmar que a escola cria tempos (anos, semestres, bimestres, semanas e dias letivos), espaços

∙ De que maneira os alunos são agrupados? Certamente, lembramos aqui das classes e séries/anos de ensino, dos estudantes que aprendem com mais facilidade e dos que têm mais dificuldade;

∙ O que os professores ensinam? Lembramos aqui do currículo escolar e das lições em sala de aula.

∙ Quem ensina o quê? Lembramos aqui que os professores das primeiras séries do Ensino Fundamental lecionam as diferentes disciplinas do currículo a uma única turma. Os professores das séries seguintes trabalham com turmas diferentes, ensinando matérias específicas, como a Língua Portuguesa, a Matemática, a Geo-grafia, a História, as Artes, entre outras;

∙ O que aprendemos? Lembramos aqui das matérias escolares, de alguns conteú-dos e algumas atividades que os alunos realizam;

∙ Em quanto tempo aprendemos? Lembramos aqui dos anos, semestres, bimes-tres, semanas, dias letivos e do tempo dedicado a cada disciplina no decorrer da trajetória escolar;

∙ Como deve ser um prédio escolar? Lembramos aqui de um espaço estruturado para ter salas de aula e outros lugares como a biblioteca, a quadra de esportes, o pátio, a secretaria;

∙ O que usamos nas escolas? Lembramos aqui dos uniformes, dos cadernos, dos livros didáticos, da lousa, do giz, das carteiras, enfim, de objetos e práticas tipica-mente escolares.

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7Tema 1 A escola que construímos, a escola que queremos

(uma arquitetura típica), personagens (professores e alunos) e objetos específicos de ensino (lousa, giz, cadernos, manuais, carteiras, uniformes). Embo-ra muitas vezes isso passe despercebido, a escola, seu prédio, seu currículo, os alunos, os professores não são dados naturais. Nenhum está meramente lá, como uma entidade independente e a-histórica. Mas, afinal de contas, como surgiu a escola que hoje todos conhecem?

As origens da escola estão relacionadas a múltiplos aspectos. Autores como Meyer, Ramirez e Soyal (1992) citam a expansão do capitalismo, a formação dos Estados-nação, o advento das sociedades industriais e a chamada moder-nidade, movimentos que podem ser situados em diferentes partes do mundo, ao longo dos séculos XV e XVIII. Nessa perspectiva, o ensino formal, ou seja, aquele estruturado em espaços, tempos e lugares escolares, configurou-se como um sistema administrado e garantido pelo Estado a todos os cidadãos. Isso significa que a escola foi concebida como uma instituição pública e destinada a todos, devendo ser leiga, ou seja, não professar nenhuma crença religiosa; gratuita, por precisar se estender inclusive aos menos favoreci-dos economicamente; e obrigatória, por precisar atender inclusive aos cidadãos que, por qualquer razão, não quisessem frequentar os bancos escolares.

Uma instituição tão poderosa só poderia ser proposta e consolidada diante de princípios muito claros. A partir do século XVIII e, sobretudo a partir de finais do século XIX, em países como a Alemanha, a França, os Estados Unidos e o Brasil, a escolarização foi pensada para garantir a formação dos cidadãos, de pessoas que, além de compartilharem o mesmo espa-ço geográfico, compartilham também crenças, práticas culturais e uma língua. Em suma, os cidadãos estão ligados por uma unidade cultural e linguística com a qual não se nasce, mas para a qual se é educado. Uma tarefa dessa magnitude, vital para a constituição dos países enquanto Estados-nação, só poderia ter sucesso concentrando-se nas mãos de uma instituição específica, que é a escola, proposta como o lugar de excelência para educar os bons cidadãos, ensinando-os a falar, ler, escrever e comportarem-se “corretamente”. Isso nos conduz a afirmar que a escola foi concebida e concretizada num projeto de “homoge-neização cultural”, necessário à criação de uma unidade nacional, cidadania e integração política no interior de determinados países (Nóvoa e Schriewer, 2000).

Os antecedentes normativos, institucionais e políticos do trabalho do diretor – e de qual-quer outro profissional da escola – estão vinculados a esse projeto. A escola foi criada e desenvolvida graças à crença de que poderia formar para uma vida social mais civilizada e organizada. A escola se concretizou como signo de esforço e bem-estar e essa imagem ainda se faz presente nos discursos sobre a educação. Reparem bem: quando se fala sobre a escola nos jornais, em revistas de grande circulação, nos noticiários da TV ou mesmo nas propagandas de partidos políticos em época de eleição, a importância do ensino nunca é posta em jogo. Pode-se até admitir que a escola tem problemas e o que se quer é resolvê-los, mas não acabar com a escola e com os benefícios que ela pode trazer.

Num evento que reuniu educadores espanhóis, portugueses e americanos, realizado em finais do século XIX, o Congresso pedagógico hispano-português-americano, podemos identificar essa preocupação. Um de seus participantes, o português Luis Felipe Leite, assinalou em sua fala o quanto a escola “consubstancia [...] quase inteiramente o grave problema da instrução geral e é condição essencial da vida e progresso de todo o ensino

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primário”. Salienta que consta do Decreto português de 14 de dezembro de 1869 que “nem há um só país onde a instrução e educação popular se elevasse acima dos obscuros limites de uma deplorável mediania e lograsse ocupar lugar eminente entre as nações mais cultas” (Leite, 1892, p.27, apud Silva, 2006). No Brasil, foi notável um movimento semelhante. Esse movimento ainda se faz presente nos dias de hoje, não só em falas de políticos e educadores, como também das pessoas em geral. Pensemos numa situação cotidiana. O que nós responderíamos a um filho que, aos seis anos de idade, se recusasse a ir para a escola? Certamente, insistiríamos que é importante estudar. E se ele perguntasse por quê? Vale a pena refletirmos sobre o significado das nossas possíveis respostas!

Isso significa que, legalmente, todo e qualquer cidadão pode reclamar o acesso aos bancos escolares, nos níveis considerados básicos e extensivos a todos. Essa medida ope-racionaliza os grandes princípios da escola moderna: 1) ser democrática e 2) ser obriga-tória. E, como já sinalizava Luis Felipe Leite em 1892, em congresso internacional sobre educação mencionado anteriormente no presente texto, a instrução geral é “condição essencial da vida e progresso de todo o ensino”, mas é também um “grave problema”.

Mais algumas palavras podem ser ilustrativas. Consideremos novamente o século XIX e textos produzidos em outros países, além do Brasil. Isso nos permite eviden-

ciar a permanência das afirmações sobre a relevância da escola ao longo do tempo. E permite também mostrar que esse tipo de discurso não se restringe apenas ao caso brasileiro. Apenas a título de exemplo, retomemos aqui um texto de 1883, período em que a importância da escola se consolidava como ideia e proposta em países como Portugal e Brasil. Estamos nos referindo a um manual escrito para formar professores, assinado pelo português José Maria da Graça Afreixo e intitulado Apontamentos para a história da pedagogia (1883). Ao apresentar seu livro, o autor afirma que a educação é “elemento essencial nas idades tenras” (Afreixo, 1883, p.8). Além disso, na instru-ção primária, aquela pensada nos tempos modernos para todos, “todo o trabalho é do preceptor [ou seja, do professor], o aluno tem de ser totalmente atraído pela beleza do método e pelo agrado das maneiras” (Afreixo, 1883, p.8).

Ora, se a escola é inegavelmente importante e ela deve se expandir a todos, temos aqui um antecedente fundamental, que se refere à democratização das

oportunidades escolares. Esse princípio, que tem dimensões normativas, institucio-nais e políticas, consolidou-se no decorrer do tempo e em diferentes países.

No Brasil, embora o século XIX e início do século XX tenham sido igualmente impor-tantes para a constituição dos sistemas públicos de ensino, a efetiva democratização foi conquista pela Constituição Federal de 1988 e enfatizada na LDB de 1996. A esse respeito, Oliveira e Araújo (2005) salientam que:

... Alterada pela emenda constitucional n.14, de 1996, o ensino fundamen-tal de oito anos, obrigatório, dos 7 aos 14 anos, e gratuito para todos, foi considerado explicitamente direito público subjetivo, podendo os gover-nantes ser responsabilizados juridicamente pelo seu não oferecimento ou por sua oferta irregular (Oliveira e Araújo, 2005, p.6, grifos dos autores).

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9Tema 1 A escola que construímos, a escola que queremos

Ainda hoje, que a educação é direito de todos e dever do Estado, não se garantiu total-mente o acesso e permanência aos bancos escolares. Os diretores das escolas vivenciam esse embate cotidianamente, em situações variadas. Muitas instituições ainda não têm capacidade de atender toda a demanda. Os profissionais da educação podem se ver em difícil situação, quando o estudante não quer ou não pode comparecer às aulas. Há que se reconhecer inúmeras adversidades para o sucesso do ensino, quando nos deparamos, por exemplo, com a falta de condições materiais e com situações de violência entre pro-fessores e alunos.

Assim, se a democratização das oportunidades escolares está no núcleo dos ante-cedentes normativos, institucionais e políticos do trabalho do diretor, justificando

suas tarefas e a própria existência da escola como lugar de excelência para a educação de nossos jovens, também coloca grandes desafios. E, vale lembrar, esses desafios têm aumentado na medida em que a ideia de uma educação “básica” também se estendeu entre nós. Ora, em finais do século XIX e décadas iniciais do século XX, a escola para todos referia-se à chamada “escola primária”, ou seja, aquela com quatro anos de dura-ção. Depois desse nível, os alunos cursavam o chamado “ginásio”, mas o acesso a ele não era pensado como extensivo a todos (Beisiegel, 1986). Hoje, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em vigor desde 1996, o chamado “ensino fundamental” conta com nove anos e o que se espera é que todos tenham acesso à cha-mada “educação básica”, que conta com aproximadamente 15 anos de permanência na escola. Convém lembrar como a referida Lei prevê a expansão do ensino a camadas cada vez mais amplas da sociedade, considerando não só as crianças de 6 a 10 anos:

TÍTULO IIIDo Direito à Educação e do Dever de EducarArt. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria;II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio;II - universalização do ensino médio gratuito; (Redação dada pela Lei nº 12.061, de 2009)III - atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino;IV - atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade;V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;VII - oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com caracte-rísticas e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e perma-nência na escola;

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E, afinal de contas, quais implicações isso coloca diante do trabalho do diretor? É inad-missível um jovem em idade escolar fora da escola. Isso significa que é preciso garantir, no mínimo, a sua matrícula. E, estando na escola com todas as condições, cabe convencer o aluno que estar na escola é uma oportunidade de crescer, de ter acesso a conhecimentos que, para muitos, não seria possível fora dela. Como já dizia Afreixo em 1883, cabe aos profissionais da educação investirem para que os alunos aprendam. Para os estudantes, estudar é sempre uma obrigação e o sentido desse ofício não é natural, é aprendido. Então, como lidar com alunos que não querem ir à escola, com aqueles que desanimam dos estudos e com famílias que ainda não reconhecem o valor da educação? Talvez esse seja o nosso maior desafio ainda hoje. E sobre esse desafio continuaremos a refletir nos próximos tópicos da disciplina.

Tópico 3 A expansão da escola: desafios quantitativos e qualitativos

Se a escola é pública e, por isso, extensiva a todos, obrigatória e gratuita, os desafios dos diretores e demais profissionais da educação vão além dos aspectos quantitativos. Ou seja, não se trata apenas de construir escolas, oferecer vagas, contratar professores e matricular os estudantes. Além da garantia de acesso e permanência no ensino fundamen-tal, a Constituição de 1988 e sua alteração pela emenda n.14 prevêem ainda a garantia do padrão de qualidade do ensino. Em artigo no qual analisam o direito à educação, Romualdo Portela de Oliveira e Gilda Cardoso de Araújo (2005) examinam as origens e implicações dessa iniciativa legal, reunindo dados importantes para as discussões que propomos neste tópico da disciplina.

As discussões sobre a qualidade do ensino são relativamente novas. Entre nós, até a década de 1980 aproximadamente, garantir o acesso à escola era a principal finalidade educativa (Beisiegel, 1986). O que se colocou como desafio até esse momento foi garantir escolas, matrículas e frequência a todos ou pelo menos à maior parte da população. Como explicam Oliveira e Araújo (2005):

A demanda pela ampliação de vagas era muito mais forte do que a refle-xão sobre a forma que deveria assumir o processo educativo e as condições

Não queremos aqui afirmar que a democratização do ensino seja indesejável, que os problemas da educação decorrem da abertura da escola a todos. É preciso

alertar para os perigos de interpretações simplistas e correntes entre nós, segundo as quais a escola “piorou” sua qualidade ao se estender para as camadas mais pobres da população. Esse é um argumento preconceituoso e que, no limite, supõe uma escola de excelência que, de fato, não existiu, é apenas uma suposição. Se hoje a escola está aberta a um número cada vez maior de alunos, isso é possível graças à consolidação da ideia de que frequentar os bancos escolares é importante, é caminho para o crescimen-to dos alunos, para a formação de bons cidadãos e para a melhoria da vida social. Para nós, educadores, esse consiste em um princípio inquestionável que deve nos conduzir a um investimento também crescente no ofício de ensinar.

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11Tema 1 A escola que construímos, a escola que queremos

necessárias para a oferta de um ensino de qualidade. Foi a incorporação qua-se completa de todos à etapa obrigatória de escolarização que fez emergir o problema da qualidade em uma configuração inteiramente nova (p.8).

A expansão quantitativa do ensino é atestada por uma série de índices. Consultando os Censos Escolares do INEP (Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), produzidos entre 1999 e 2002, podemos ter uma noção mais clara das matrículas inicialmente efetuadas entre 1975 e 2002 pelos alunos em diferentes níveis do sistema escolar, considerando as instituições federais, estaduais, municipais e particulares. Em 1975, o total dessas matrículas atingiu a casa dos 19.549.249. Cinco anos depois, esse número subiu para quase 22.600.000. O aumento foi progressivo e na década de 2000 contabilizou mais de 35.000.000 matrí-culas por ano. A maior parte dessas matrículas concentrou-se na rede estadual, até os anos 2000 aproximadamente, quando a maior parte dos alunos brasileiros passou a se matricular nas escolas municipais.

Atualmente, dados como esses dizem pouco sobre o sucesso dos alunos no sistema escolar. Para nós, não basta o aluno estar matriculado ou simplesmente ser promovido de uma série a outra para ser considerado um “bom” estudante. A seleção dos alunos não se expressa unicamente em sua entrada e saída no sistema escolar, embora essa ainda seja uma demanda a ser atendida. De acordo com Oliveira e Araújo (2005),

Com uma política pouco direcionada de expansão da escolarização mediante a construção de escolas, o Brasil, apesar do aumento expressivo do número de matrículas na etapa obrigatória de escolarização, chegou ao final da déca-da de 1980 com uma taxa expressiva de repetência: de cada 100 crianças que ingressavam na 1ª série, 48 eram reprovadas e duas evadiam, o que eviden-ciava a baixa qualidade da educação oferecida à população brasileira. (p.13)

Medir a qualidade do ensino nessa perspectiva é um processo complexo já que é difí-cil definir, de uma forma clara e consensual, o que seja boa ou má qualidade. Afirmar que um estudante que concluiu o ensino básico aprendeu bem é um problema cada vez mais presente nos debates educacionais brasileiros e de outros países. As políticas

Além de pensar sobre as possibilidades de os alunos entrarem na escola e se formarem, os educadores são unânimes ao considerarem os resultados da trajetória

dos jovens no interior da escola. Assim, ao lado dos desafios quantitativos, os educado-res devem responder a desafios qualitativos. Boa parte dos alunos matriculados corre o risco de ser reprovada ou, por dificuldades de várias ordens, sair da escola antes de concluírem o ensino básico. Embora exposta a críticas e mal entendidos, a adoção do sistema de ciclos na década de 1980, da progressão automática e dos programas de aceleração da aprendizagem nos anos 1990 foi uma tentativa de superar as dificuldades para alcançarmos a qualidade do ensino (Arelaro, 1988). Essas medidas visaram basica-mente evitar a reprovação e expulsão dos alunos já matriculados e o que elas puderam garantir foi, em termos formais, uma maior regularidade do fluxo dos alunos de uma série a outra. De fato, por si só, essas medidas não puderam garantir uma dimensão fundamental da qualidade do ensino, que se refere àquilo que os alunos aprendem na escola. Isso significa perguntar se aqueles que estão matriculados frequentam as aulas, se acompanham as lições, se lêem e escrevem bem.

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públicas educacionais tentam responder a essas questões por meio de redes de avaliações padronizadas e pensadas para serem aplicadas em larga escala. Estamos falando aqui, por exemplo, do SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), do ENEM (Exa-me Nacional do Ensino Médio) e do famoso Provão, que corresponde ao ENADE (Exame Nacional de Cursos do Ensino Superior).

Exames como esses consistem em provas feitas a partir dos currículos propostos para os diferentes níveis de ensino, desde o fundamental, passando pelo médio e chegando ao superior. Essas matrizes conduzem à elaboração de testes padronizados, de modo a averiguar se os alunos aprenderam ou não os conteúdos previstos em determinada etapa da escolarização. Estamos falando de experiências que hoje são bem conhecidas pelos professores e diretores das escolas. Eles são personagens fundamentais nesse processo e podem relatar os diversos efeitos desses exames em seu trabalho cotidiano. Afinal de con-tas, quais expectativas essas provas geram em professores e alunos? Será que essas avalia-ções padronizadas não limitariam a autonomia das escolas em responder às necessidades específicas dos alunos que elas atendem? Por outro lado, será que essas avaliações não garantiriam o investimento dos docentes e dos estudantes no desenvolvimento do cur-rículo previsto? As posições acerca dessas perguntas são diversas tendo em vista que os exames nacionais de rendimento escolar causam muita polêmica entre os profissionais da educação, pois não se consegue medir em termos tão precisos o que de fato os alunos aprenderam ou não. Quais questões são postas? O que elas permitem avaliar?

Ainda que expostos a inúmeras críticas e ponderações, na ausência de outros indica-dores, os exames padronizados podem oferecer alguns indícios importantes acerca da realidade do ensino no Brasil. Segundo Oliveira e Araújo (2005):

... Os números apresentados indicam que, apesar da ampliação do acesso à etapa obrigatória de escolarização observada nas últimas décadas, o direito à educação tem sido mitigado pelas desigualdades tanto sociais quanto regio-nais [os alunos mais pobres e que moram fora dos grandes centros urbanos aprendem menos], o que inviabiliza a efetivação dos dois outros princípios basilares da educação entendida como direito: a garantia de permanência na escola e com nível de qualidade equivalente para todos. (p.13)

O resultado foi desolador, mas pouco divulgado pelo Ministério da Educação e pela grande imprensa. De qualquer modo, resultados como esse apontam para a

As avaliações em larga escala são propostas há alguns anos tanto em nível nacio-nal quanto internacional. Vale mencionar aqui o PISA (Programa Internacional

de Avaliação de Alunos), promovido pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). O referido programa realizou testes em 32 países, procurando averiguar o desempenho cognitivo de estudantes de 15 anos. O intuito foi medir a capacidade de análise, raciocínio e comunicação dos jovens, mediante questões relativas à leitura, matemática e ciências. Em finais de 2001, os alunos brasi-leiros que realizaram a primeira prova do PISA ficaram em último lugar na avaliação, realizada pela primeira vez naquela oportunidade. A ênfase desse exame foi na área da leitura. Note-se que o Brasil foi o único país que participou do exame e selecionou alunos com 15 anos e com ensino fundamental completo, cursando também o ensino médio (Oliveira e Araújo, 2005).

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13Tema 1 A escola que construímos, a escola que queremos

necessidade de continuarmos a investir nos esforços para que nossos alunos se apropriem do mínimo indispensável para usufruir dos bens culturais e disponíveis na sociedade e ter os conhecimentos necessários para uma inserção na vida social e no mundo do trabalho. Os professores traduzem esse desafio qualitativo cotidianamente quando se perguntam se, por exemplo, seus alunos são capazes de decifrar, compreender e criticar textos. Todos nós, profissionais da educação, compartilhamos dessa preocupação quando nos assustamos diante de estudantes que, em séries avançadas da educação básica, ainda estão distantes de habilidades como essas.

Se os exames padronizados nos oferecem indícios doloro-sos, mas relevantes, precisamos ainda nos perguntar sobre os usos que são feitos deles. Oliveira e Araújo (2005) são claros ao afirma-rem que não contamos, no caso brasileiro, com medidas políticas ou administrativas que tentem resolver os problemas detectados em testes. Se apenas indicam dificuldades, sem inspirar ações efetivas de solução delas, esses exames são insuficientes para melhorar a qualidade de ensino. Certamente, vocês, diretores, têm uma visão privilegiada desse processo. Isso porque divulgam na escola onde trabalham as decisões do governo relativas à aplicação de grandes exames. De que maneira esses exames são recebidos em sua esco-la – pela equipe gestora, professores e alunos? De que maneira os resultados alcançados podem ser lidos e interpretados?

As respostas de diretores, professores e demais profissionais que atuam cotidiana-mente nas escolas são valiosas. Isso porque a dimensão qualitativa do ensino não pode ser verificada apenas em testes padronizados. Os indicadores de qualidade devem levar em consideração fatores que se diferenciam de região para região, de escola para escola e até mesmo entre grupos determinados de estudantes. As avaliações podem ser instrumen-tos úteis, no sentido de permitirem identificar e compreender porque alguns alunos não conseguem aprender. Com isso, poderemos elaborar melhor estratégias para que o ensino seja, de fato, para todos. Para tanto, as avaliações devem ter formas variadas, já que os alunos aprendem conteúdos diferentes e, dada a natureza desses conhecimentos, as questões precisam ser diferenciadas e nem sempre os testes padronizados são adequados (Meirieu, 1998). Por isso, os indicadores de qualidade devem ser dinâmicos e expostos a debates contínuos, nas diferentes instâncias do sistema educacional: desde os órgãos internacionais interessados nos rendimentos dos alunos em diferentes países, passando pelos órgãos oficiais de administração do ensino e chegando às escolas, onde o trabalho do diretor e sua equipe se concretiza.

Em suma, o desafio da qualidade está posto e imprime à história da escola uma dimensão de democratização das oportunidades até então inédita. Trata-se de garantir o acesso aos bancos escolares e, principalmente, às aprendizagens efetivas.

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Antecedentes normativos, institucionais e políticos

2 Arquitetando a escola que queremos

Tópico 1 Novos caminhos institucionais: reinventando o controle e a hierarquia

As discussões que fizemos até aqui contextualizam as escolas em termos sociais, históri-cos, políticos e normativos. Podemos afirmar que nosso trabalho de educadores profissio-nais se concretiza pela incontestável necessidade de ensinar a todos: esse é o princípio da escola democratizante (Beisiegel, 1986). Por isso, a análise dessa instituição só faz sentido se não reduzir as propostas e ações educativas a questões didáticas ou de gestão. Todas as nossas decisões implicam efeitos mais amplos. Trabalhar com alunos indisciplinados, por exemplo, decorre de uma opção política, ao concretizar o ideal de “escola para todos”. Uma medida como essa tem consequências sociais, colaborando com a inclusão de um número maior de estudantes nos bancos escolares. Essa inclusão também tem consequên-cias pessoais, pois contribui para que as histórias de vida de cada uma das personagens da escola sejam marcadas pelo desejo e pelos esforços de democratizar o ensino.

Ao longo do Tema 1, procuramos evidenciar que a escola assumiu a maior parte da tarefa educativa na vida moderna. O sistema de ensino público brasileiro organizou-se a partir de finais do século XIX, graças à ação do Estado, que se responsabilizou pela criação e organização das escolas, bem como pela seleção e organização do corpo docente. Isso conduziu a uma forte centralização das decisões relativas ao ensino. Tradicionalmente, em nossas escolas essas medidas foram tomadas por técnicos da administração pública, que não trabalhavam diretamente com alunos e professores. De igual maneira, as orien-tações curriculares e pedagógicas foram pensadas primeiramente pelos pesquisadores da área, traduzindo-se muitas vezes em recomendações práticas aos professores.

No nível da administração pública, foram decididos dispositivos que os professores deveriam conhecer e seguir. Essa tendência marcou a história do sistema de ensino brasi-leiro e, de alguma maneira, ainda se faz presente nos dias atuais. Apenas para termos uma noção desse processo, convém retomar explicações que Paula Vicentini e Rosario Lugli (2009) desenvolvem no livro sobre o processo de profissionalização docente no Brasil,

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15Tema 2 Arquitetando a escola que queremos

situando diferentes condições nas quais nossos professores trabalharam. Segundo as auto-ras, em 1893 foi implantada a chamada Inspetoria Pública do Ensino, que reuniu um corpo de inspetores pagos pelo Estado para fiscalizar e orientar as escolas públicas. Esse grupo de funcionários realizava visitas nas instituições, sem agendamento prévio, para avaliar a aprendizagem dos alunos, a disciplina da sala de aula e o desempenho docente. Era o inspetor quem realizava os exames para verificar se os estudantes, tidos como aptos pela professora, mereceriam ser promovidos para a série seguinte do primário.

Nessa época, o número de aprovações dos estudantes era fundamental para as profes-soras porque dele dependia o número de pontos obtidos para pleitear a transferência delas para escolas onde as condições de trabalho fossem melhores, ou seja, instituições funcionando em prédios mais bem estruturados, dispondo de materiais didáticos satisfa-tórios e situando-se em lugares mais próximos dos centros urbanos. Enquanto vigilantes, os inspetores que atuaram em finais do século XIX e início do século XX contribuíram para dar alguma unidade às escolas públicas de São Paulo, pois exigiram das escolas o cum-primento de determinados padrões de funcionamento (Gallego, 2008).

Esses padrões de funcionamento impuseram um forte controle do trabalho docente e também criaram hierarquias entre os próprios professores. Já nesse período, se o docente quisesse lecionar numa instituição bem localizada e organizada, era preciso saber se havia vaga e se se dispunha de “pontos” para tanto, conferidos de acordo com o número de alunos aprovados no final do ano letivo e com o diploma do docente. Aqueles formados na Escola Normal da Praça da República tinham pri-vilégios nesse sentido, pois eram mais “pontuados” do que os professores formados em outros cursos. A Escola Normal da Praça da República foi criada em 1890 e se consolidou como uma instituição--modelo em São Paulo, um padrão de excelência na formação de professores de primeira a quarta séries. Obter essas pontuações era fundamental para os docentes que, evidentemente, preferiam trabalhar em escolas localizadas próximas às suas cidades de origem ou mesmo na capital. Desse modo, estabe-leceu-se uma hierarquia entre as escolas, que ia das mais distantes dos centros urbanos, na zona rural, às escolas localizadas nas cidades. Entre essas últimas, o maior prestígio era conferido às escolas localiza-das na capital do estado.

De fato, os professores não compõem uma categoria homogênea, dispondo de diferen-tes salários e condições de ensino. Nessa diferenciação interna, o preparo pedagógico sempre esteve em questão. Na década de 1960, por exemplo, as Escolas Normais, que formavam os professores primários, foram muito combatidas. Elas eram tomadas como cursos desprivilegiados, que “apenas” formavam moças e futuras donas de casa e que, por isso, estavam longe de serem verdadeiros cursos de profissionalização docente. A esse desprestígio, somaram-se as dificuldades salariais dos professores, acentuadas desde o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), quando a inflação impôs a diminuição do poder aquisitivo da categoria.

Segundo Leonor Tanuri (2000), já no século XIX, alguns estados criaram Escolas Normais, mas

cuja existência – de modo geral – não era muito dura-doura, como ocorreu com a primeira instituição deste gênero: criada no Rio de Janeiro em 1835 e que encerrou suas atividades em 1849. Nos anos 1840, foram instituí-das Escolas Normais em Minas Gerais, Bahia, São Paulo, havendo uma multiplicação dessas iniciativas noutros estados a partir de 1870. Nas décadas iniciais do século XX, as Escolas Normais cresceram em termos numéri-cos, mas em geral tiveram pouco reconhecimento. Eram procuradas sobretudo por moças pobres ou de classe média e dispunham de um currículo pouco legitimado em termos científicos e acadêmicos.

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Não podemos deixar de mencionar os efeitos da Ditadura Militar (1964-1983) sobre a organização das escolas. Segundo Vicentini e Lugli (2009), nesse período houve uma visível deterioração no sistema de ensino público, identificada pelo excessivo número de professores trabalhando em caráter precário (os antigos estagiários) para compensar a falta de profissionais efetivados e com formação adequada. Os “professores substitutos” muitas vezes não tinham preparo pedagógico. Às vezes, eram ainda estudantes univer-sitários, outras eram bacharéis, não cursaram a licenciatura. Eles eram mal pagos, pois recebiam pagamentos irrisórios pela hora-aula. Muitas escolas eram marcadas pela enor-me rotatividade de docentes numa mesma turma, para uma mesma disciplina, durante um mesmo ano letivo. Em casos assim, as relações entre alunos e professores eram breves e pouco produtivas, impondo inegáveis dificuldades aos resultados do trabalho escolar. Isso desfavoreceu a imagem dos professores como bons profissionais e motivou práticas de controle de seu ofício.

No âmbito do sistema educacional, o processo político de abertura para a democracia começou em meados da década de 1970 em meio a embates pela superação de relações de poder autoritárias entre o poder público e o magistério. Tais disputas chegaram a um ponto crítico durante as greves dos professores em São Paulo, nos anos de 1978 e 1979. No início da década de 1980, durante o governo de Franco Montoro (1983-1987), foram iniciados os primeiros movimentos em direção a uma maior democratização das rela-ções de trabalho nas escolas e, portanto, a uma melhoria das condições mínimas para o magistério. Esse não foi um processo pacífico e harmônico, pois muitas resistências foram registradas por parte dos órgãos administrativos do sistema escolar.

Experiências como essas explicam porque a escola brasileira se caracterizou como um sistema muito centralizado. Para nós, atualmente, não é difícil identificar essa tendência, pois ela ainda está muito presente e foi o modo pelo qual a idéia de escola e direção se concretizou. A regulação externa do Estado separou e hierarquizou os diferentes atores educativos – diretores, supervisores, orientadores, professores, alunos, funcionários e pais – e poderíamos simbolizar esse tipo de relação com uma imagem relativamente simples:

Essa formação, pouco reconhecida, também favoreceu, em parte, o controle do trabalho docente. Mais recentemente, essa tarefa foi assumida em funções como

as do “supervisor educacional” e do “orientador pedagógico”. Como explica Celestino Alves da Silva Júnior (1999), a última função foi criada nas escolas públicas paulis-tas na década de 1960 e esse orientador pode ser identificado como uma espécie de “guardião do currículo”. Seu trabalho foi orientar pedagogicamente os professores a fim de que o currículo se concretizasse de acordo com as orientações oficiais. Elas prescreviam os conteúdos que deveriam ser ensinados, como deveriam ser ensinados e em quanto tempo. A então chamada “grade curricular” incluía também os critérios e procedimentos de avaliação dos alunos. O cuidado do orientador pedagógico com o currículo não significava intervir na elaboração do documento, pois essa era uma atribuição de autoridades externas à escola. O ofício de orientar incluía o registro e o controle do desempenho dos estudantes. Nesse momento, os diretores assumiam funções semelhantes. A eles cabia, fundamentalmente, divulgar e operacionalizar as regulamentações oficiais entre os docentes nas escolas. Essas regulamentações diziam respeito a questões administrativas e de uso dos recursos financeiros.

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17Tema 2 Arquitetando a escola que queremos

Fluxograma 1: Centralização do sistema educacional

A autonomia coloca-se, então, como caminho para viabilizar um antigo desejo, o de expandir a escola para todos, não só em termos de número de vagas oferecidas, mas considerando-se sobretudo a qualidade do ensino e da aprendizagem de nossos estu-dantes. Essa ideia se expressa oficialmente, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, produzidos desde a década de 1990 como indicações amplas para a seleção e organização de conteúdos para cada área do conhecimento e modalidade de ensino. Fica a cargo do professor o uso dos conteúdos sugeridos, o que, tal como se pensa, só pode ser operacionalizado de maneira fértil a partir de uma formação pedagógica de qualidade, defendendo-se uma profissionalização da categoria em níveis cada vez mais altos do sistema de ensino (Tardif, 2005). É em nome da autonomia e do aperfeiçoamento do magistério que a Lei de Diretrizes e Bases nº 9394, de 1996 prevê formação superior para todos os docentes do ensino público, em todos os níveis de ensino.

Evidentemente, não estamos falando de um processo linear, no qual caminhamos de uma realidade controladora para outra na qual a escola tem autonomia. Ainda convivemos com iniciativas de padronização representadas por sistemas de avaliação do rendimento escolar, por propostas didáticas fechadas, feitas para serem seguidas em sala de aula, por

GovernoInstâncias de decisão administrativa e curricular

Direção e supervisãoRegistro e controle do desempenho de professores e alunos

EnsinoOperacionalização das orientações oficiais em sala de aula

Os trabalhos que já mencionamos aqui sobre a profissionalização docente no Brasil (Vicentini e Lugli, 2009) evidenciaram as tensões que historicamente resul-

taram de relações separadas e hierarquizadas entre os atores da escola. Como vimos, os embates entre professores e Estado se colocaram em lutas travadas por melhores salários e condições de trabalho. As reivindicações do magistério também se referiram à necessidade de tomar esses profissionais como responsáveis pelo seu trabalho e não meramente como executores de orientações pensadas pelos especialistas. Questionan-do as ideias de controle e supervisão, podemos identificar entre os educadores a defe-sa da autonomia da escola e do magistério. Isso tem sido cada vez mais proclamado pelas associações docentes, pelos pesquisadores da área e por parte da administração pública do ensino. Desde a década de 1980, a produção educacional afirma que o Estado deve assumir um papel menos controlador do sistema de ensino, dividindo suas responsabilidades com as diversas instâncias da rede.

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exemplo. Os discursos sobre autonomia disputam espaço com esse tipo de prática. Essas contradições colocam o magistério e a escola num momento importante de sua história, no qual são sinalizadas mudanças e resistências. Os caminhos que hoje se colocam não são utopias, mas impõem desafios aos professores e enfrentam representações historica-mente consolidadas durante o longo período no qual a escola era sobretudo espaço de controle. Isso significa que a autonomia não se consolida nas práticas por decreto, mas por um contínuo exercício de formação e de ressignificação das práticas de controle e hierarquia tão arraigadas nas relações no interior da escola.

Hoje, contamos com iniciativas que podem favorecer outras relações na escola, menos marcadas pelo controle. Se fizermos uma síntese das atuais propostas, podemos chegar às palavras de António Nóvoa (1995):

Agora, trata-se de erigir as escolas (e os agrupamentos de escolas) em espaços de autonomia pedagógica, curricular e profissional, o que implica um esforço de compreensão do papel dos estabelecimentos de ensino como organiza-ções, funcionando numa tensão dinâmica entre a produção e a reprodução, entre a liberdade e a responsabilidade. (p.18)

Tópico 2 A “escola-organização” e o problema da reinvenção da tradição escolar

Para a autonomia deixar de habitar apenas as nossas mentalidades e desejos, é preciso compreender os antecedentes institucionais, normativos e políticos que

marcaram a história da escola e de suas condições de funcionamento. Precisamos nos perguntar, portanto, sobre os significados da escola na sociedade contemporânea. Atu-almente, elas podem ser entendidas como “organizações” e é preciso termos consci-ência das possibilidades e limites dessa ideia para que ela possa motivar possibilidades mais produtivas ao magistério. O tópico que se segue procura explicar justamente a noção de “escola-organização”.

Falar de “escola-organização” é falar de uma ideia. Ao discutí-la, seguimos o exemplo de António Nóvoa (1995), que articula uma dupla reflexão. Por um lado, é

possível refletir sobre as escolas e, ao mesmo tempo, apresentar possibilidades de inter-venção no ensino. A noção de “organização” assinala a escola como responsável pelas suas iniciativas. Enquanto “organização”, ela não é só executora de decisões externas, pois adquire mais autonomia, mobilidade e flexibilidade em suas ações. As exigên-cias burocráticas, pedagógicas e administrativas da instituição deixam de ser definidas apenas pelo poder central e cada estabelecimento de ensino passa a ser também um espaço que regula seu cotidiano e seus modos de funcionamento. Com a ideia de “organização” salientamos o trabalho interno das escolas como uma necessidade para o aperfeiçoamento do ensino, assim como salienta Nóvoa:

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19Tema 2 Arquitetando a escola que queremos

Podemos afirmar, em outras palavras: para compreendermos a escola e construirmos alternativas de ação, temos que partir da própria escola. Evidentemente, as dificuldades da vida social, as diferenças econômicas e as desigualdades culturais são fatores externos à escola e produzem efeitos no trabalho de professores e alunos. Entretanto, como poderí-amos explicar, por exemplo, que instituições localizadas numa mesma região e atendendo alunos de nível socioeconômico semelhante possam ter experiências diferenciadas? De fato, há escolas situadas em bairros pobres que são valorizadas pelos alunos e evidenciam aspectos muito positivos em suas atividades. Isso contraria a ideia de que toda escola que atende pessoas pobres é ruim, reproduzindo as desigualdades do mundo social. Poderí-amos encontrar outros exemplos. Quem de nós não conhece ou pelo menos ouviu falar de escolas voltadas a alunos mais favorecidos economicamente onde o cotidiano é difícil e os alunos aprendem pouco? A vida escolar não se limita meramente a reproduzir as situações sociais, pois produz uma realidade específica e uma cultura que lhe é carac-terística. O funcionamento da escola depende, em boa parte, de suas condições, dos indivíduos, das interações que eles estabelecem entre si, dos acordos e convivências de seus grupos, num processo dinâmico e em permanente mudança. Com isso, não estamos desconsiderando as dificuldades encontradas no interior de dadas escolas de lidar com alunos desvalidos das condições básicas de existência, mas chamando a atenção que legar todas as dificuldades às condições exteriores à escola paralisa nossa compreensão dos problemas internos à instituição bem como nossas ações de caráter pedagógico.

Talvez as experiências que George Noblit (1995) observou numa escola norte-america-na de periferia possam ilustrar a complexidade da vida escolar. Atendendo uma maioria de alunos considerados “americanos africanos”, essa instituição da Carolina do Norte pode ser retratada pela difícil tarefa de atender estudantes socialmente marginalizados e, em geral, estabelecimentos assim têm inúmeras histórias de violência e fracasso. As observações de Noblit acerca do trabalho de uma professora, chamada por ele de Pam (um pseudônimo), mostram como as histórias escolares podem ser múltiplas e revelarem bons relacionamentos entre alunos e professores, em condições sociais adversas. Falar da Pam é refletir sobre um exemplo dessas possibilidades. Ela:

... Era uma das formadoras de opiniões no prédio, era reverenciada tanto por pais brancos como pelos americanos africanos, e era a professora que assu-mia a escola sempre que o diretor se ausentava. Era considerada como a professora mais eficiente da escola, a mais hábil com os alunos “difíceis” e [...] com pais “difíceis”. Ela jamais perdia a chance de conversar com os pais e frequentemente era chamada pela secretaria da escola para lidar com suas queixas. (Noblit, 1995, p.125)

Entender as relações entre Pam e seus alunos é compreender um aspecto fundamental da escola como organização. Elas podem ser comparadas a uma espécie de “coração” da escola, usando aqui uma metáfora da biologia. A relação pedagógica na turma da profes-sora Pam era marcada pela autoridade moral e responsabilidade perante a aprendizagem

A nova atenção concedida às organizações escolares não é apenas uma reivindicação política ou ideológica, nem unicamente uma necessidade técnica ou administrativa, mas também uma questão científica e pedagógi-ca. [...] Nesta perspectiva, o olhar centrado nas organizações escolares não deve servir para excluir, mas antes para contextualizar todas as instâncias e dimensões presentes no ato educativo (Nóvoa, 1995, p.20).

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dos alunos. Essa professora estava falando de um tipo de amor característico da relação pedagógica, que se relaciona com autoridade moral docente e responsabilidade dos alu-nos. O docente favorece o crescimento das crianças com as quais trabalha e, no caso que estamos tomando aqui como exemplo, esse modelo de ensino é profundamente marcan-te. Valeria a pena descrever um pouco a dinâmica de trabalho da Pam tal como relatada por Noblit:

Evidentemente, não estamos procurando na Pam um modelo de “boa professora” a ser seguido. Ela é apenas um exemplo. Reconhecemos também que cada professor desen-volve estratégias diferenciadas e permanentemente usadas em sala de aula para que os trabalhos corram bem. O êxito na aprendizagem pode ser favorecido justamente de rela-ções que assim se estabelecem, são elas que permitem afirmar que a escola organiza uma

A classe de Pam tinha muitos rituais coletivos. Na maior parte dos dias, a primeira aula começava com as crianças fazendo alguma coisa junto com ela. Na primeira semana de aula, ao ensinar as consoantes, Pam começava dizendo: “Vamos rever nossa musiquinha, o nosso canto!” Aí, as crianças recitavam as consoantes numa sequencia aprendida com ela, e isto provo-cava elogios: “Esta é a primeira vez que tenho uma classe de segunda série que entra e já sabe todos os sons.” Ela não atribuía o conhecimento deles a si mesma, mas às crianças, muito embora o canto fosse claramente uma rotina dela (Noblit, 1995, p.126).

Além disso, diariamente e, após o toque do sinal da entrada, Pam expunha na lousa todo o plano da aula. Isso permitia lembrar o que já tinha sido estudado, discutir o que se faria naquele dia e o que estava previsto para as próximas aulas de cada matéria. Ela ainda comentava algumas lições dos alunos, elogiando-os.

Pam curtia seus alunos bem como o fato de dar aula, e ela demonstrava este seu prazer. Como [ela] contou [...], foi somente após estar lecionando por vinte anos [...] que ela percebeu que “amava dar aula”. Ela concebeu essa transição como uma superação de suas dúvidas a respeito de estar fazendo as coisas acertadamente. [...] Ela conseguia rir muito das atribulações da sala de aula porque nem os acontecimentos e nem seu prazer com os alu-nos ameaçavam sua autoridade. De muitas maneiras eles é que constituíam sua autoridade (Noblit, 1995, p.126).

Não podemos concluir que Pam não se deparasse com situações de conflito com seus alunos. Conforme Noblit (1995) descreve:

... O discurso da professora estava carregado de lembretes e conselhos para os alunos, numa tentativa de evitar infrações mais sérias. Finalmente, quan-do tudo o mais falhava, Pam tinha uma forma de “disciplina assertiva” de modo que se um aluno violasse desafiadoramente uma das regras escritas na sala de aula (cooperação, consideração, comunicação, concentração), ele ou ela tinha que escrever seu nome na lousa e, por conseguinte, perdia o direito ao tempo livre durante a aula. Se você a praticasse, você não tinha que escrever seu nome na lousa. Não era uma regra escrita mas todas as crianças a conheciam. (...) A pior infração de todas era a de rir quando alguém não sabia a resposta correta para uma questão (p.128).

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21Tema 2 Arquitetando a escola que queremos

cultura dinâmica, complexa e em constante movimento. Podemos nos perguntar, então: de que modo as instituições onde trabalhamos se organizam? Que tipo de cultura está presente nas relações entre professores e alunos, alunos e alunos, professores e direção, por exemplo? Essas relações são mais marcadas pela competição ou pela cooperação?

Convém afirmar, mais uma vez, que a escola não é mero reflexo do sistema social. Ela também não é apenas uma das unidades que, somadas, resultam num sistema educativo. Na rede pública estadual de São Paulo, por exemplo, as escolas apresentam diferencia-ções internas que podem decorrer do nível socioeconômico de seus alunos, mas decor-rem também – e em boa parte – das interações que a escola constrói internamente. O mesmo podemos afirmar quando nos referimos às escolas da rede pública municipal de ensino de uma cidade ou mesmo à rede de escolas particulares de um dado lugar. Essas diferenças no interior de sistemas de ensino não se devem à simples escolha de métodos de ensino. Estamos nos referindo à escola como uma “organização” social e comunitária, dotada de leis, rituais e interações específicas. Trata-se de considerá-la como um “terri-tório intermediário”, no qual estão em jogo valores do macrossistema social e também os investimentos do microuniverso dependente do jogo estabelecido pela comunidade escolar (Nóvoa, 1995).

Como isso pode se operacionalizar? Pensemos em casos mais concretos. Muitos direto-res relatam a impossibilidade de usar recursos financeiros diante de regras que são impos-tas para toda uma rede, sem considerar as variáveis de cada unidade escolar. Se o uso de recursos contar com regras inflexíveis que não considerem, por exemplo, o problema de goteiras nos prédios, quando houver esse problema numa única escola, ele não poderá ser resolvido. A “escola-organização” requer flexibilidade administrativa, burocrática e pedagógica, de modo que cada unidade possa usar os recursos e mobilizar iniciativas que atendam às suas necessidades.

A essa altura, convém retomar as contribuições de António Nóvoa (1995):

A ideia de “escola-organização” sublinha os investimentos internos das escolas que, diante das especificidades de seus alunos, professores e funcionários, das con-

dições dos prédios, dos materiais e dos recursos financeiros disponíveis criam alterna-tivas e, assim, exercitam suas margens possíveis de autonomia. Todo estabelecimento de ensino pode se organizar como núcleos de interação social e de intervenção comu-nitária, o que não é uma utopia nem uma panacéia. Não se trata aqui de assinalar um sonho impossível nem mesmo de indicar o remédio para todas as dificuldades das escolas. Trata-se de pensar um caminho com seus limites e potencialidades e de reco-nhecer que cabe às escolas criar essas alternativas e isso não é uma solução, traz em si desafios a serem enfrentados.

Além disso, a ideia de “escola-organização” é uma reivindicação política e, ao mes-mo tempo, pedagógica e administrativa. É no âmbito do espaço escolar que todos os outros níveis sociais, políticos e econômicos de intervenção devem ser equacionados. Quais são as necessidades de um determinado estabelecimento? Conforme o princí-pio contido na ideia de “escola-organização”, as necessidades são balizadas por sua importância para a escola. Isso difere de medidas externas que são impostas a um grande número de estabelecimentos, muitas vezes sem que se considerem as suas reais e múltiplas carências.

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A modernização do sistema educativo passa pela sua descentralização e por um investimento das escolas como lugares de formação, na acepção forte do termo. As escolas têm de adquirir uma grande mobilidade e flexibilidade, incompatível com a inércia burocrática e administrativa que as tem caracte-rizado. O poder de decisão deve estar mais próximo dos centros de interven-ção, responsabilizando diretamente os atores educativos (p.17).

Dois problemas nucleares se colocam numa escola mais autônoma. Um deles refere-se à participação dos diferentes atores educativos nas decisões do estabelecimento de ensino e o outro diz respeito à avaliação institucional. Como já pudemos explicar anteriormente, o sistema educacional brasileiro foi marcado por uma tradição fortemente centralizada e isso impõe maiores desafios porque exige um processo de transição para um novo modelo de funcionamento do sistema educativo. Politicamente, o Estado foi dotado de legitimida-de para decidir as questões de ensino. Profissionalmente, os professores foram formados para atuarem no interior das salas de aula e não na escola como uma organização onde as responsabilidades pedagógicas e administrativas são compartilhadas. Institucionalmente, as escolas assumiram uma tarefa que até então cabia de maneira predominante às famílias.

Nesse sentido, as famílias, os professores, os alunos, os funcionários foram marginali-zados do processo de decisão da vida escolar. Nos dias de hoje, quando se fala em parti-cipação da comunidade escolar, ainda há um longo caminho a ser seguido. Para muitos pais e responsáveis, ainda não fica claro como participar da escolar. O mesmo pode ser dito quando consideramos o corpo docente, de estudantes e de funcionários. Tradicional-mente, a participação dos pais reduziu-se às notificações das notas e comportamentos de seus filhos. Aos professores coube apenas o trabalho didático. Aos funcionários, questões

mais restritas, como a limpeza e conservação do pré-dio. Quando se propõem novas margens de autono-mia para as escolas, as fronteiras de participação de todos os atores educativos, inclusive da família, dos funcionários, dos alunos, ao lado dos professores e equipe diretiva exigem novos lugares e interesses no contexto escolar. É fundamental que todos tenham capacidade de decisão e poder em cada unidade. Essa é uma mudança radical, exposta a resistências e dúvidas. O que cabe a cada ator educativo? Como mobilizá-los para aderirem a esse projeto e atuarem em nome do bem da escola? Como convencê-los da importância desse novo paradigma?

A autonomia das escolas coloca ainda a necessidade de novos dispositivos para ava-liar o ensino. Ora, no âmbito de um funcionamento centralizado do sistema educativo, autoridades como o supervisor, o diretor e o orientador pedagógico controlavam a vida escolar para garantirem o cumprimento das diretivas oficiais. Nesse contexto, basta reu-nir dados gerais sobre as escolas e produzir relatórios que, de alguma forma, atestem a execução das decisões do poder central. Se agora as escolas também devem participar da proposição dessas orientações, outras formas de averiguar os resultados do trabalho educativo devem ser pensadas. E a avaliação aqui está sendo pensada como forma de análise e autoanálise das instituições, ultrapassando a ideia de provas como formas de controle e punição. A avaliação só tem sentido no quadro do aperfeiçoamento da escola e do ofício de seus atores.

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23Tema 2 Arquitetando a escola que queremos

Durante muito tempo, todas as iniciativas partiram do nível macro do sistema de ensino para chegar ao nível micro da sala de aula, mobilizando relações hierarquizadas entre os atores educativos. Nessa perspectiva, não se considerava a organização escolar como um nível essencial para arquitetar os caminhos do ensino. A participação da comunidade e a avaliação institucional não correspondem a inovações propriamente ditas, mas elas podem criar condições organizacionais para que mudanças possam ser realizadas. É nas escolas que os desafios começam. Nas palavras de António Nóvoa (1995), “é preciso olhar para a escola como uma topia, isto é, como um tempo e um espaço onde podemos exprimir a nossa natureza pessoal e social” (p.42, grifos do autor).

Tópico 3 Sim, as escolas fazem a diferença!

Até aqui, procuramos deixar claro que a escola não é fruto apenas das interferências do mundo social. Ela funciona numa estrutura formalmente estabelecida, que define quem nela trabalha, quem nela estuda, seus deveres e funções. A partir dessas condições, os atores de cada escola criam interações e disposições específicas. Segundo António Nóvoa (1995), podemos compreender melhor essas particularidades institucionais considerando que a escola tem três grandes áreas:

1) Uma dessas dimensões corresponde à sua estrutura física. Quais são as dimensões do prédio? Que recursos materiais estão disponíveis? Quais precisam ser adquiridos? Quais precisam ser consertados? Quantos alunos a escola atende? Qual é o número de turmas? Em quantos períodos elas funcionam? Como os espaços estão organizados?

2) Outra dimensão corresponde à estrutura administrativa da escola, com a qual o diretor trabalha diretamente. Trata-se das relações com as autoridades centrais e do modo como as orientações direcionadas a todo sistema de ensino são operacio-nalizadas em cada estabelecimento. Estamos falando também de estilos de gestão, direção e controle internos, além dos espaços de participação da comunidade, da organização do trabalho dos professores, dos faxineiros, secretários, merendeiros, porteiros, entre outros profissionais.

3) E a terceira dimensão corresponde à estrutura social do estabelecimento. Ou seja, as relações entre alunos, professores, funcionários, pais e direção são aspectos fun-damentais da cultura organizacional da escola. Apenas a título de uma rápida ilus-tração, podemos lembrar as experiências de Pam na escola onde trabalha, com os seus alunos em sala de aula.

Será que poderíamos ir além nas nossas reflexões e assinalar algumas características de escolas que funcionam bem? Já na década de 1980, em países como a Inglaterra, alguns estudos foram realizados para identificar algumas condições determinantes para a eficácia das escolas (Nóvoa, 1995). Evidentemente, essa espécie de “retrato” não serve aqui para prescrever o que devemos fazer nas unidades onde trabalhamos, nem sempre eles são viáveis, mas dão indicativos das possibilidades que se colocam. Podemos falar de nove características:

∙ Autonomia da escola ∙ Liderança organizacional

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∙ Articulação curricular ∙ Otimização do tempo ∙ Estabilidade profissional ∙ Formação do pessoal ∙ Participação dos pais ∙ Reconhecimento público ∙ Apoio das autoridades

A autonomia da escola, primeiro item de nossa lista, configura-se atualmente como uma palavra de ordem nos meios educacionais. Certamente, no decorrer de

outras disciplinas que estudaremos até o final desse curso para diretores, a questão da autonomia será retomada. Isso porque ela é um dos princípios nucleares das políticas de ensino, no país e em outros lugares do mundo, desde a década de 1990. A ideia de “escola-organização” não pode ser viabilizada sem esse princípio, que garante a cada estabelecimento o poder de responder aos seus desafios cotidianos. A autonomia passa, portanto, por várias instâncias, desde o uso de recursos financeiros, as opções curriculares, a escolha de materiais didáticos, a elaboração de projetos pedagógicos, os modos de participação dos pais, até a organização da equipe. Todas as decisões só fazem sentido se estiverem próximas da realidade escolar. Por meio de sua autonomia, a escola pode criar sua identidade, diferindo-se de outros estabelecimentos e aumen-tando a sua responsabilidade pelos resultados de seu trabalho.

A autonomia não pode se dar no vazio, pois depende das ações individuais de seus atores e, principalmente, da articulação dessas ações. O que Nóvoa (1995)

denomina de liderança organizacional é justamente uma das condições para a coe-são entre os esforços individuais e coletivos da equipe. A figura de um líder muitas vezes pode remeter à equipe gestora e ao diretor em especial. Sua posição na organi-zação permite conhecer o ofício de cada personagem da escola, as características e disposições de cada um. Com isso, ele pode criar redes de comunicação orientadas – e não chefiadas – por ele. Mas a escola pode contar com outros e mais líderes, pessoas capazes de mobilizar diferentes profissionais, alunos e pais em nome do bem da ins-tituição. Podemos novamente lembrar a figura da professora norte-americana, a Pam, que de acordo com as descrições de Noblit (1995), exercia esse papel de líder junto aos seus alunos, aos pais e na escola como um todo. Segundo afirma Nóvoa (1995), “A lide-rança organizacional deve ser legitimada por uma tomada de decisão e participação colegiais, envolvendo o conjunto da comunidade educativa na definição e salvaguarda dos objetivos próprios do estabelecimento de ensino” (p.26).

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25Tema 2 Arquitetando a escola que queremos

Se a grande finalidade da escola é fazer com que seus alunos aprendam, convém assinalar que toda autonomia e liderança devem ser usadas em prol de currículos

claros e coesos. Por isso, a articulação curricular aparece como mais um elemento fundamental ao bom funcionamento educacional. Trata-se de definir o que ensinar, como ensinar e de que maneira verificar a qualidade dos resultados obtidos. Como favorecer o percurso escolar de nossos estudantes? Como tornar as atividades educati-vas para além da punição e incentivar esforços realmente formativos? Perguntas como essas são fundamentais para criar escolas que favoreçam as aprendizagens (Perrenoud, 1999). Isso tem a ver com a chamada otimização do tempo. As escolas consideradas boas usam bem o seu tempo e o seu espaço. Sem dúvida: “As interrupções, as desarticu-lações curriculares e pedagógicas, a deficiente organização dos tempos ou dos espaços, são fatores que perturbam o funcionamento das escolas” (Nóvoa, 1995, p.27).

Mas a boa organização da escola não deve atentar apenas para os alunos. Há que se garantir a tão defendida estabilidade profissional. Ora, os professores, diretores

e demais funcionários precisam de condições salariais, de acesso e permanência na carreira que favoreçam um clima de segurança e continuidade. Nenhum projeto de escola pode ser realizado a curto, médio ou longo prazo se não contar com a parti-cipação das personagens. Bem sabemos: a saída de um professor ou diretor de uma escola pode interromper iniciativas de sucesso. A perspectiva de não contar com uma mesma equipe no próximo ano letivo limita qualquer trabalho de intervenção mais longo que se queira fazer. Mas, queremos assinalar, a estabilidade profissional “não deve ser confundida com uma espécie de imutabilidade, uma vez que a existência de certas margens de mobilidade pode constituir um fator de incentivo e de inovação” (Nóvoa, 1995, p.27).

Uma escola preocupada com a qualidade do ensino investe, necessariamente, na formação de sua equipe, sobretudo de seus professores, e é por isso que a formação

do pessoal configura-se como outra condição para o bom funcionamento da instituição. É preciso que os profissionais contem com oportunidades para compreender os desafios cotidianos, que possam entender os propósitos de inovações que são propostas, que se interroguem permanentemente sobre o sentido do seu ofício. Os programas de formação contínua e profissional são cada vez mais valorizados e não devem ser confundidos com exigências burocráticas, que têm fim em si mesmas. Por meio de iniciativas como essas podemos refletir sobre as exigências que atualmente são postas às escolas. Muitas pro-postas fundamentam-se em possibilidades razoáveis, mas se elas não são compreendidas pelos professores, acabam caindo num discurso que apenas se repete.

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Poderíamos fazer um exercício simples. Atentando para cada uma das nove caracte-rísticas aqui analisadas, sugerimos a vocês, diretores, que se perguntem: Em que medida cada uma delas está presente na escola onde trabalham? Isso pode ser útil para tomarmos consciência das características de nossos espaços de atuação e pode motivar discussões sobre os limites e potencialidades de cada uma delas no cotidiano escolar.

Com a ideia de “escola-organização”, queremos aqui contrariar a noção de que a esco-la é mera reprodutora de desigualdades sociais e externas a ela. Isso pode até acontecer, mas não é um caminho necessário. Ao contrário daqueles que acreditam que as escolas não fazem diferença, queremos assinalar aqui que sim, elas podem fazer a diferença, construindo uma cultura organizacional cuja finalidade é investir em estratégias para os alunos aprenderem. Nessa perspectiva, algumas iniciativas são favoráveis:1. Considerar as escolas como a unidade estratégica da mudança em educação; 2. Desenvolver dinâmicas de participação dos professores e dos restantes atores educa-

tivos em torno dos processos de inovação escolar;

Isso acontece, por exemplo, com a participação dos pais. Essa é uma pro-posta inovadora, mas ainda pouco compreendida pelos diversos atores educativos.

Acreditando e criando condições para que as famílias colaborem na vida escolar, os estabelecimentos podem funcionar melhor. “Os pais, enquanto grupo interveniente no processo educativo, podem dar um apoio ativo às escolas e devem participar num conjunto de decisões [...]. Numa perspectiva individual, os pais podem ajudar a moti-var e estimular os seus filhos, associando-se aos esforços dos profissionais do ensino” (Nóvoa, 1995, p.27).

A participação dos pais está diretamente ligada a outra importante condição para uma escola de qualidade. Estamos falando do reconhecimento público do tra-

balho realizado nessa instituição. Se acreditam no valor da escola que frequentam, os alunos, em tese, investem mais na sua formação. Igualmente, os pais são peça-chave desse investimento. Isso nos conduz a perguntar sobre como a escola tem sido vista e como ela tem sido capaz de criar uma imagem de si mesma. Nunca podemos deixar de defender o valor da escola. Trata-se de um esforço permanente, contínuo e interno às instituições, mas que precisa do apoio das autoridades, última característica de escolas eficazes que queremos destacar aqui.

Mesmo que a autonomia seja necessária, isso não significa que as escolas possam ser abandonadas à sua própria sorte. Daí reivindicarmos o apoio das autoridades

educacionais a cada estabelecimento, principalmente se ele funcionar em regiões desfavorecidas e com problemas específicos. Estamos falando de um apoio material e econômico, mas também de trabalhos junto à formação e consultoria. As autoridades podem dar condições para que as escolas consigam funcionar de maneira autônoma e, vale lembrar, elas também fazem parte da comunidade de ensino e, por isso, devem integrar as redes de relação que caracterizam os estabelecimentos.

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27Tema 2 Arquitetando a escola que queremos

3. Perspectivar a melhoria das escolas como um processo, e não como um produto, criando uma cultura da escola que consagre uma atitude de mudança permanente;

4. Produzir sugestões de práticas, de políticas e de procedimentos que contribuam para a melhoria das escolas;

5. Ter consciência do processo de inovação, introduzindo dispositivos de regulação e avaliação. (Nóvoa, 1995).

A “escola-organização” nada mais é do que a ideia segundo a qual os estabelecimentos são espaços de corresponsabilização dos diferentes atores educativos (diretores, coorde-nadores, docentes, estudantes, pais, funcionários e autoridades de ensino). Assim con-cebida, a instituição deixa de ser pensada como lugar a ser controlado por um poder central e externo, cabendo a ela identificar suas necessidades e possibilidades. São elas que assumem a tarefa de conceber, avaliar e inovar a si mesmas. O desafio está posto e boa parte do caminho deverá ser traçada por nós, educadores.

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Antecedentes normativos, institucionais e políticos

3 O que a escola quer ensinar, como quer ensinar: desafios curriculares

Tópico 1 Dos Parâmetros Curriculares às escolas

Até aqui, pudemos examinar os princípios políticos, institucionais e normativos da cons-trução da escola onde trabalhamos. Sua história e os desafios que hoje ela assume são aspectos fundamentais para dimensionar o ofício de todos os seus atores, inclusive daque-les que dirigem cada estabelecimento de ensino. Temos procurado deixar claro que todas as iniciativas dos diretores não são apenas de ordem administrativa, envolvem também decisões de ordem pedagógica e ética porque ajudam a definir o que ensinar, como ensi-nar, para quem ensinar e quando ensinar. Continuaremos nossas discussões atentando justamente para a construção do currículo. Como conceber, organizar e favorecer a ação de cada escola, na articulação de seus planos de estudo?

Ao falarmos do currículo, estamos chamando a atenção para as medidas que ofi-cialmente são pensadas para todo o sistema de ensino. Consideramos também que

essas medidas podem resultar em práticas diferenciadas em cada unidade escolar, de acordo com as interpretações da equipe pedagógica e com a concretização de experi-ências e relações cotidianas entre seus atores, principalmente entre professores e alunos na sala de aula. Vale lembrar: a escola produz uma cultura específica (Viñao Frago, 1994, Escolano, 1992, Julia, 2001) e traduz na organização do seu currículo as ine-gáveis conexões com o mundo social e com as determinações econômicas, de classe, de gênero ou de religião. O currículo aqui remete, portanto, para os planos de estudos em suas diferentes dimensões, desde as orientações oficiais, passando pelo projeto das escolas, pela organização dos conteúdos de acordo com as matérias e com os períodos letivos (anos, semestres, bimestres, meses, semanas e dias). O currículo é pensado pelos diretores, coordenadores e professores em planejamentos institucionais os quais são via-bilizados por esses últimos em seus planos e semanários, e em suas escolhas cotidianas

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29Tema 3 O que a escola quer ensinar, como quer ensinar: desafios curriculares

Os diretores podem trazer importantes contribuições para refletirmos sobre o currículo. Essas contribuições podem ultrapassar a ideia de que a escola reproduz determinações sociais. Ao pensarem sobre as experiências concretizadas nas escolas onde trabalham, quando se reúnem com os professores, com os coordenadores e com os alunos, eles tratam do currículo em suas múltiplas dimensões, principalmente aquelas que dizem res-peito ao fazer cotidiano das escolas. Esta dimensão, aliás, ainda é pouco conhecida na pesquisa educacional e traz aspectos a serem considerados e valorizados na construção do currículo. Isso nos conduz a perguntar a vocês, diretores, como as questões curricula-res são definidas e vividas nas escolas onde atuam. Como os planos anuais, semestrais e bimestrais são feitos? São sempre copiados de um ano para o outro? Os professores podem e querem propor pequenos projetos para estudar temas atuais? O que eles discutem em suas reuniões? Quais práticas se efetivam a partir daí? Apenas para motivar nossas refle-xões, perguntamos aqui: Será que os currículos de nossas escolas contam com anos de construção ou, diferentemente, tendem a repetir as mesmas experiências todos os anos? Que experiências são essas?

Os PCNs substituíram à antiga ideia de “grade curricular” e essa nós conhecíamos desde nossos tempos de alunos e era por si só sugestiva da centralização das decisões curricula-res nas mãos do Estado. Elaborados pelo Conselho Nacional de Educação a partir do que está disposto no artigo 9º da LDB de 1996, os Parâmetros servem para orientar o sistema educacional brasileiro. Trata-se de expressar recomendações gerais a todas as escolas do país, desde aquelas localizadas em importantes centros urbanos até mesmo aquelas mais distantes, que funcionam em cidades pequenas e com poucas condições. A própria noção de parâmetros já denota uma decisão curricular. O seu intuito é garantir que o sistema de ensino brasileiro funcione de modo coerente, pois esse documento expressa a função do

dos livros didáticos, apostilas ou recortes de jornal, como também nas propostas de atividades e correções das lições. Tudo isso na relação com seus alunos.

O currículo é, portanto, uma ideia ampla que perpassa os princípios da escola, seus tempos e modos de funcionamento. E o currículo não está apenas nas mãos do Esta-

do, ele é responsabilidade também da equipe gestora das escolas, de sua coordenação, de seus professores e alunos. Evidentemente, entende-se que os funcionários e os pais participam e devem ser envolvidos nas discussões e no desenvolvimento do currículo. Ora, o currículo está expresso em documentos escritos, mas sobretudo nas relações coti-dianas (Chervel, 1990). Em livro organizado sobre o tema, Tomaz Tadeu da Silva e Antô-nio Flávio Moreira (2008) afirmam que há muito tempo o currículo “deixou de ser apenas uma área meramente técnica, voltada para questões relativas a procedimentos, técnicas, métodos. Pode-se considerar a existência de uma tradição crítica do currículo, guiada por questões sociológicas, políticas, epistemológicas” (p.7). De nossa parte, interessa consi-derar o currículo como um produtor da identidade da escola e de suas personagens. Que tipo de instituição queremos construir? Para respondermos a essa questão, partiremos dos Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCN's, como se sabe, esse é um documento que conta com vários volumes destinados às escolas brasileiras e ordenados de acordo com os níveis de ensino e as áreas de conhecimento a serem ensinadas. Esse é um primeiro nível para pensarmos como o currículo tem sido construído.

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ensino em seus diferentes níveis, onde quer que ele seja ministrado, assinalando sempre os valores ligados ao exercício da cidadania e da democracia no país. Ao mesmo tempo em que dão orientações gerais, por serem parâmetros, eles abrigam práticas que podem se diferenciar de escola para escola, de acordo as características e necessidades delas.

Quais são, então, nossos princípios curriculares? Antes de qualquer coisa, há que se considerar os estudantes como cidadãos que conhecem e exercem seus direitos e deve-res, com autonomia, criticidade e responsabilidade, sendo solidários, respeitando o bem comum e a diversidade de manifestações artísticas e culturais. Essas são as palavras dos PCNs. Tal como já pudemos explicar, a concretização desses princípios gerais, abertos e flexíveis varia de lugar para lugar. Em cada escola, junto a um grupo determinado de alu-nos e profissionais, haverá demandas específicas, disposições particulares no exercício da cidadania. Esta é uma das principais funções do gestor: construir o currículo da unidade onde atua a partir dos Parâmetros nacionalmente estabelecidos. A direção escolar, nesse sentido, é um trabalho de mediação. Mediação entre o Estado e a equipe de seu estabe-lecimento. O diretor comunica e também orienta, discutindo com seus colegas como traduzir as orientações oficiais em estratégias para que os alunos aprendam. O trabalho de mediação é fundamental e, por vezes, pode ser muito difícil. Vocês sabem bem disso, pois há situações em que a direção precisa conciliar posições de diferentes atores e nem sempre essas posições são harmônicas.

De qualquer forma, os Parâmetros são pontos de partida. Mas eles nada representam se a escola não considerar sua própria história, as experiências, conflitos e desafios de sua equipe. A gestão escolar exige, portanto, o levantamento das preocupações e dos pro-blemas enfrentados na instituição. Os próprios PCNs destacam que conhecer a realidade escolar é imprescindível para se construir uma educação de qualidade. Assim, precisamos ter em mente perguntas do tipo:

∙ Qual é a localização da escola onde trabalhamos? ∙ Quem são nossos alunos? ∙ Quem são nossos profissionais? ∙ Quais são nossas condições de funcionamento? ∙ O que a comunidade espera da instituição?

Traduzir os PCNs nas situações concretas de nossas escolas é mais do que um desafio, é o exercício da autonomia de cada unidade, previsto pela LDB de 1996, que reconhece as escolas como estabelecimentos aptos a definirem sua própria identidade, a elaborarem seu projeto e a serem espaço de participação de seus profissionais. Mas essa autonomia, embora garantida por Lei, só tem significado quando favorecida e vivenciada na escola, expressando-se em suas mais diversas atividades, entre as quais destaca-se a elaboração

O fato mais importante, nesse momento, é chamarmos a atenção para as inquie-tações que todos sentimos quando precisamos traduzir as orientações legais, oficiais

e teóricas em inspirações para as nossas práticas, em modos de ação que favoreçam, de fato, a aprendizagem dos alunos. De alguma maneira, construir o currículo e planejar ações melhores exige que pensemos nas formas de implementar nas escolas os princí-pios comuns norteadores da Educação Básica brasileira, conscientes de nossos recursos, necessidades, possibilidades e anseios. Não temos receitas, não queremos uniformizar o trabalho educacional nem retrocedermos às antigas “grades curriculares”.

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31Tema 3 O que a escola quer ensinar, como quer ensinar: desafios curriculares

do currículo. Sabemos que o currículo é a via pela qual podemos concretizar a formação que consideramos melhor para nossos alunos, pois nele estão incorporados os saberes que se quer ensinar, definindo-se também as alternativas e caminhos a serem percorridos no processo educativo.

As formas pelas quais o currículo se organiza e se realiza são fundamentais para a dinâ-mica escolar, daí pensá-lo como a identidade da escola, de seus sujeitos, de seus projetos e práticas, já que é resultado da negociação entre professores e alunos, bem como da dinâmica de cada instituição escolar, de sua autonomia e cultura. O currículo delimita um modo de aprender e de se relacionar com o conhecimento, aproximando os estudantes de uma maneira de pensar e agir. Nesse sentido, ele traduz uma arquitetura de valores que se quer sustentar, mas também existe em função de um permanente querer ser. É justamente nesse jogo de “utopias” que a escola planeja ou, como se poderia dizer, projeta suas ações, seleciona seus conteúdos, ordena suas disciplinas, favorece determinadas formas de relação com o conhecimento. Em suma, na construção do currículo, é preciso identi-ficar a escola que temos e termos clareza da nossa “utopia” ou, como se poderia dizer, a escola que queremos. Nós damos continuidade a práticas que nos parecem favoráveis e podemos mudar para melhor questões pedagógicas, técnicas ou administrativas.

Tópico 2 Organizando o currículo para o ensino fundamental

O currículo pode ser comparado a uma espécie de arquitetura dos saberes escolares, pois ele estrutura quais conhecimentos serão estudados, quando e como isso será feito. Isso significa que ele define lógicas de ensino segundo os diferentes níveis da escola e seria impossível para qualquer diretor orientar sua equipe sem levar em conta a idade dos alunos e as finalidades da escola que eles frequentam. Vale lembrar: segundo a LDB de 1996, atualmente vigente, os estudantes dividem-se em quatro níveis, desde a Educação Infantil, passando depois pelo Ensino Fundamental, pelo Ensino Médio e, finalmente, pelo Ensino Superior. Para os diretores da rede pública estadual de ensino de São Paulo, inte-ressa uma atenção mais direcionada aos níveis Fundamental e Médio. Se queremos falar sobre a construção do currículo, é importante refletirmos sobre as especificidades de cada nível. Este é o propósito que nos guia nes-ses dois tópicos que se seguem na disciplina. Aqui, especialmente, falaremos sobre o Ensino Fundamental.

Estamos falando de um nível que pode ser considerado o núcleo da escola para todos – e o seu nome já é muito sugestivo. Hoje, ele conta com nove anos de duração, prevista pelo Plano Nacional de Educação desde 2001 e afirmada com a promulgação da Lei 11.272/2006. Esta Lei garante a matrícula de crianças aos seis anos de idade no primeiro ano do Ensino Fundamental, querendo, assim, prolongar o tempo de permanência dos alunos na escola e, princi-palmente, as possibilidades de sucesso em suas trajetórias. Podemos retomar aqui uma discussão feita anteriormente, quando situamos os esforços para garantir não só a expansão das matrículas escolares,

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mas de modo particular a qualidade do ensino. O aumento do tempo de permanência das crianças na escola fundamental é justamente uma medida que visa a melhorar as condições de aprendizagem. Segundo a Introdução dos PCNs (1998), é nesse nível que se deve proporcionar formação básica para a cidadania, possibilitando ainda a continuidade dos estudos em nível médio. A atenção para com o Fundamental é reforçada pela Emenda Constitucional Nº 14 (de 12 de setembro de 1996) quando ela regulamenta as obrigações dos estados e municípios no que se refere ao financiamento desse nível.

Em termos históricos, convém lembrar que até 1996, quando da promulgação da LDB 9394, o Ensino Fundamental tinha outra denominação, já era obrigatório e correspondia ao chamado Ensino de Primeiro Grau, com oito anos de duração, sendo regulamentado pela Lei 5692 de 1971. Na organização do currículo do Primeiro Grau, as escolas conta-vam com um núcleo comum obrigatório em âmbito nacional e também com uma parte diversificada, feita por cada estado da federação. No decorrer da década de 1990, come-çou a se pensar numa outra forma de organização do currículo, mais próxima dos propó-sitos com os quais os PCNs foram elaborados. Conforme já explicamos anteriormente, o intuito desse documento foi organizar um conjunto de diretrizes que garantissem a boa formação de todos os brasileiros e, ao mesmo tempo, pudesse adequar-se às peculiari-dades regionais e ser permanentemente avaliado. Publicados em 1997 e 1998, os Parâ-metros foram elaborados a partir das propostas curriculares em circulação, feitas pelos estados e municípios brasileiros, contando-se também com a análise feita pela Fundação Carlos Chagas de propostas experimentadas em outros países. A ideia não foi encontrar um modelo a ser seguido, mas compreender as situações, questões e potencialidades de nossas experiências, bem como de experiências vividas em outros lugares.

O documento introdutório dos Parâmetros (1998) situa os esforços para a elaboração do documento. Participaram desse debate professores e especialistas de várias instituições especializadas, responsáveis por inúmeros pareceres e encontros realizados durante a década de 1990. Por isso, podemos considerar os PCNs como um documento coletivo e, tomando-o como referencial, cabe ao gestor construir o currículo em sua escola a partir desse mesmo princípio de participação e cooperação, chamando toda a equipe escolar na elaboração de seus planos de trabalho. Esse tipo de escrita é um caminho pelo qual a escola expressa sua autonomia, seguindo os princípios comuns a todo o sistema de ensino e atentando para as necessidades de cada estabelecimento.

No âmbito de cada unidade, é possível pensar em medidas simples para se esta-belecer tais princípios. É imprescindível, por exemplo, que o diretor reflita com a

equipe escolar sobre os problemas existentes em sua instituição. Se o que queremos é uma escola de qualidade para todos, cabe perguntar sobre os dados referentes à matrí-cula, aprovação e reprovação da própria escola. Como têm sido as trajetórias dos alu-nos? Eles apresentam maior dificuldade em determinada série ou junto a uma disciplina específica? Outra questão a ser investigada, também referente ao fluxo escolar, diz res-peito às faltas dos alunos, sérios entraves para seus bons rendimentos. Todos sabemos que a simples promoção do estudante de uma série a outra não garante esse objetivo mais amplo e que convém acompanhar casos de faltas muito frequentes, investigando suas razões e construindo na escola uma compreensão coletiva acerca da importância de todas as atividades propostas. Além das notas e registros oficiais do desempenho

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33Tema 3 O que a escola quer ensinar, como quer ensinar: desafios curriculares

É nessa perspectiva que os Parâmetros organizam os currículos por ciclos, rompendo a tradicional seriação do sistema escolar. O que se quer é distribuir os conteúdos de forma mais adequada à natureza do processo de aprendizagem e uma apresentação menos parcelada do conhecimento, considerando os diferentes ritmos de aprendizagem, incor-porando e respeitando as diversas formas de relação dos alunos com o saber. Os ciclos querem ser mais flexíveis e abertos a essas diferenças, favorecendo as aprendizagens con-tínuas, evitando obstáculos e retenções inúteis. Com os ciclos, pretende-se reinventar a organização da escola e garantir a continuidade dos estudos, a permanência dos jovens na escola. Afinal de contas, essa não é a escola que queremos?

Na construção do currículo de cada escola, é preciso discutir que problemas temos enfrentado, que escola queremos, quais saberes queremos ensinar e que tipo de formação queremos oferecer aos nossos alunos. Além dessas questões e do cuidado que se deve ter para respondê-las a partir das experiências e anseios da equipe escolar, outras fontes para elaborar os planos de estudo das escolas são os currículos locais já elaborados e expe-rimentados anteriormente. Em que medida eles são úteis? Em que medida mudanças se fazem necessárias? Perguntas como essas requerem o estudo de bibliografia especializada e podem se beneficiar também do contato com outras experiências educacionais. Procu-rem, por exemplo, envolver os professores e os alunos para escreverem conjuntamente a história da própria escola, reunindo documentos, fotos e depoimentos. Instituições da proximidade ou mesmo de outros lugares do mundo também poderão ser investigadas através de notícias ou outros trabalhos. Certamente, isso favorecerá o esforço coletivo e permitirá uma boa compreensão sobre o fato de que cada escola encontra uma realidade, resistências e disposições dadas.

Tal como se lê nos PCNs, esse é um entendimento fundamental para se organizar o currículo de uma escola, pois os conteúdos devem estar em consonância com as questões que marcam cada momento histórico e com as especificidades de cada unidade. Isso se concretiza no momento em que a equipe escolar, reunida e orientada pelo gestor, faz sua programação, adequando-a aos seus alunos e garantindo uma distribuição planejada de aulas, dos conhecimentos e dos materiais a serem ensinados segundo um cronogra-ma referencial. À gestão cabe mediar e compartilhar as ações, garantindo, ao máximo,

dos alunos, é preciso criar mecanismos de ac,ompanhamento de suas trajetórias e dos modos como eles se relacionam com os saberes ensinados na escola.

Medidas dessa natureza são imprescindíveis na construção de um “ensino para todos” e, ao incorporar o trabalho cotidiano de alunos e professores, elas concretizam os objetivos de programas de correção do fluxo escolar, relativos, por exemplo, aos ciclos de aprendizagem. Os ciclos de aprendizagem querem romper com a estrutura de organização da escola em séries e os mecanismos de seleção inerentes a ela. Logo, não se trata de abandonar um certo rigor do trabalho pedagógico nem de abrir mão de práticas avaliativas, tão úteis para melhorar as atividades de professores e alunos. Isso significa um esforço para esclarecer, junto a todos os atores educativos, que o ciclo e a progressão continuada não devem servir como argumento para que os alunos deixem de aprender e os professores deixem de ensinar. As aprendizagens não devem mais ser motivadas pela possibilidade de o aluno repetir de ano. Pelo contrário, elas devem ser motivadas por experiências favoráveis na escola. E isso requer mais trabalho por parte de estudantes e professores. Isso requer que reinventemos nossas formas de entender a escola e as razões pelas quais estudamos.

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condições favoráveis que se referem, por exemplo, ao acervo de livros e obras de referên-cia, a materiais didáticos, a instalações adequadas.

Os Parâmetros são claros ao afirmarem que a escola deve motivar os valores democráti-cos na organização de sua equipe e de seu currículo e o gestor é um dos grandes respon-sáveis por criar e valorizar a corresponsabilidade de todos os membros da comunidade escolar. Não se trata de preparar mais papéis a serem preenchidos e de acrescentar mais tarefas institucionais. A construção do currículo vai além de medidas burocráticas, porque deve corresponder à construção de uma cultura escolar coerente com o princípio funda-mental expresso pelos Parâmetros para todas as instituições brasileiras e que se refere ao exercício da cidadania.

Tópico 3 Organizando o currículo para o Ensino Médio

Assim como o Ensino Fundamental, o Ensino Médio também é Educação Básica. Esta abrange ainda a Educação Infantil. Os PCNs são organizados considerando a Educação Básica com três níveis de ensino, o que significa que nosso ideal de educação para todos envolve quase vinte anos de escolarização. Para o Ensino Médio, essa identidade é rela-tivamente nova e é indicada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394 de 1996. Os primeiros indícios dessa tendência constam no inciso II do Artigo 208 da Constituição Federal de 1988, que garante como dever do Estado “a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio”. Com relação a esse aspecto, a Emenda Constitucional Nº 14/96 ressaltou “a progressiva universalização do ensino médio gra-tuito”. Isso significa que, pela Emenda, o Ensino Médio deixou de ser obrigatório, mas o Estado deve garantir sua oferta a todos que o desejarem. E a LDB, por sua vez, reiterou a progressiva obrigatoriedade do Ensino Médio. Em seu Artigo 36, a Lei de 1996 expressa as finalidades do Ensino Médio e considerá-las é fundamental para definirmos o que e como ensinar em nossas escolas desse nível. O que se espera dos alunos é que eles:

1. Consolidem e aprofundem os conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental;2. Aprimorem seu desenvolvimento como pessoas humanas;3. Prossigam seus estudos em nível universitário;4. Tenham preparo básico para o trabalho e a cidadania;5. Tenham instrumentos para continuarem aprendendo, a partir da compreensão dos

fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos.

Esses cinco objetivos evidenciam que o Ensino Médio não é apenas uma transi-ção entre a escola fundamental e a universidade. Durante muitos anos, essa foi a

identidade conferida ao antigo colegial (Beisiegel, 1986). Tampouco devemos reduzir a formação dos jovens a um preparo exclusivamente técnico. A identidade do Ensi-no Médio não pode ser pensada sem se considerar uma educação de caráter geral, articulada com as expectativas e necessidades contemporâneas. É nessa perspectiva que, enquanto gestores, devemos construir o currículo desse nível, pois é assim que se definem as direções mais amplas de seus caminhos.

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35Tema 3 O que a escola quer ensinar, como quer ensinar: desafios curriculares

Se em termos normativos, institucionais e políticos, as cinco finalidades acima expostas indicam os caminhos do Ensino Médio, a concretização desses ideais no cotidiano das instituições impõe desafios. Nossa experiência como profissionais da educação evidencia que uma boa parte das dificuldades decorre de realidades que extrapolam os muros da escola, referindo-se, por exemplo, às limitações dadas aos jovens pelo mercado de traba-lho ou por sua situação econômica. Como, então, encontrar alternativas que favoreçam o projeto de cada escola? Como a direção pode contribuir nesse processo? Se estamos con-siderando a autonomia e o trabalho coletivo como os grandes princípios da gestão, uma das principais tarefas do diretor é construir espaços para uma reflexão sobre os limites e potencialidades do Ensino Médio, por parte de toda equipe pedagógica. De outro modo, como poderíamos superar dificuldades que ainda nem compreendemos? Essa compreen-são pode ser trabalhada em encontros e reuniões onde alunos, professores, funcionários e pais falem e discutam suas expectativas.

Mesmo que não seja a panacéia para todos os males escolares, esse exercício de expres-são e autonomia pode contribuir com a construção de competências básicas, a partir das quais os alunos possam ser formados como “sujeitos em situação”, ou seja, sujeitos que produzem conhecimentos, a partir do que participam do mundo do trabalho e desenvol-vem-se como cidadãos. De fato, a ideia de cidadania permeia toda a construção curricu-lar da Educação Básica, não só do Ensino Médio. Trata-se de formar cidadãos conscientes de seus direitos e deveres na sociedade brasileira, que se reconhecem como sujeitos da história, responsáveis, inclusive, pela busca de condições de vida melhores e mais justas. Interessante notar que as atuais capacidades exigidas para o cidadão coincidem com as exigidas pelos meios de produção e isso coloca a educação como um elemento crucial do desenvolvimento social como um todo.

De acordo com os PCNs, o desenvolvimento cada vez mais acelerado de novas tecno-logias, o volume e a circulação ágil de informações impedem que limitemos a formação de nossos alunos ao mercado de trabalho. Por mais que nos esforcemos, seria impossível aos nossos alunos acumularem conhecimentos no ritmo em que os mesmos são hoje pro-duzidos. A atualização pela soma de saberes não é mais viável porque há um ciclo per-manente de mudanças, rápidas rupturas decorrentes de descobertas da ciência e de novas tecnologias. É possível, sim, pensar em direcionamentos que permitam aos estudantes

A ideia de cidadania delineia novos direcionamentos para o ensino dos jovens. Se considerarmos, por exemplo, as décadas de 1960 e 1970, quando houve um

significativo desenvolvimento da industrialização no país e na América Latina, a escola secundária e o segundo grau profissionalizante, nomenclaturas das escolas destinadas aos alunos prestes a ingressarem no mercado de trabalho, o que se queria era, funda-mentalmente, formar especialistas capazes de dominarem o uso de máquinas. Essa era uma formação essencialmente técnica, que chegou a ser proposta, nos anos 70, como compulsória, pois isso diminuiria a demanda pelo Ensino Superior, cujo acesso era ainda mais restrito do que nos dias atuais. Por isso, podemos afirmar que a formação do trabalhador para a indústria e manuseio de máquinas foi o grande propósito da escola destinada aos jovens até pelo menos a década de 1990. Atualmente, o intuito é transformar essa finalidade em outra mais ampla, atenta não só às possibilidades de trabalho, como também de exercício da cidadania.

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aprenderem conhecimentos básicos e, ao mesmo tempo, estarem aptos a pesquisar, bus-car informações, analisar e selecionar as mesmas. Isso vai além da memorização e mera aquisição de conhecimentos, daí falar de um aluno que seja sujeito de sua formação, considerada além dos bancos escolares, num processo de permanente aperfeiçoamento.

As rápidas mudanças que caracterizam o século XXI podem nos colocar diante de uma realidade perturbadora, tanto para alunos quanto para professores. Como, em nosso dia-a-dia, podemos nos ver diante de softwares cada vez mais sofisticados, adquirirmos computadores de última geração, que amanhã já serão “ultrapassados”, podermos nos comunicar com pessoas distantes a uma velocidade e com uma qualidade cada vez maior e melhor? Aquilo que é novo também pode ser considerado, ao mesmo tempo, efêmero. O que aprendemos hoje pode não ser mais útil num curto espaço de tempo. Podemos comparar essa sensação àquela que temos numa montanha russa. Levados pelos seus movimentos, subidas e descidas abruptas, temos a sensação de que vamos voar pelos trilhos, sem controle sobre nosso corpo e nossa vida. De uma certa forma, as tecnologias modernas também nos colocam diante de forças que nem sempre podemos controlar.

O que os alunos podem, então, esperar da escola? De fato, essa instituição apresentou poucas mudanças ao longo de sua história, a ponto de podermos afirmar a existência de uma espécie de “gramática escolar”, ou seja, um conjunto de regras que caracterizam sua vida e que se referem, por exemplo, à disposição da sala de aula, ao uso de materiais tipica-mente escolares, como a lousa, os cadernos e os livros didáticos, aos lugares que esperamos que professores e alunos ocupem, aos horários estabelecidos para se aprender determinados conteúdos, enfim, uma série de características facilmente identificáveis por nós, brasileiros, e também por pessoas que vivem em outros países e conhecem os bancos escolares.

Além de estarem preocupados com as inovações tecnológicas, os estudantes se per-guntam se, após anos de estudo, terão garantia de melhores empregos. De fato, uma das razões pelas quais a escola tem sido valorizada por todos é que ela oferece uma formação especializada e reconhecida socialmente, a ponto de o diploma favorecer melhores chan-ces de trabalho. Em nossos tempos de alunos, quando perguntamos aos adultos por que ir à escola, certamente muitos responderam que seria para ter uma vida melhor, não é?

Estamos diante de um impasse, já que as mudanças tecnológicas não geram mais empregos. Pelo contrário, o desenvolvimento de máquinas permite que elas substituam o trabalho humano. Mesmo os profissionais mais bem formados e produtivos correm o risco de perder o lugar no mercado de trabalho. Isso concorre para a crescente diminuição da oferta de empregos, do número de horas de trabalho e das oportunidades para o trabalho não qualificado. Mas isso não significa que sejam menores as exigências com relação à formação do trabalhador. Ou seja, não frequentar os bancos escolares é estar praticamen-te excluído do mercado de trabalho. Mas, investir na formação escolar não é, por si só, garantia de sucesso na vida.

Isso quer dizer que a escola não tem mais sentido? Que não vale para mais nada? De forma alguma! Mesmo que a escola não tenha por si só o poder de solucionar problemas que extrapolam seu espaço de atuação e referem-se, por exemplo, às oportunidades pos-tas pelo mercado de trabalho, o seu trabalho educativo ainda tem um valor inestimável. Não obstante às dificuldades decorrentes das mudanças do século XXI, não podemos negar a consolidação de nosso Estado democrático nem mesmo o fato de que a escola pode favorecer aos alunos o acesso a serviços e conhecimentos que são indispensáveis à integração deles ao mundo contemporâneo.

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37Tema 3 O que a escola quer ensinar, como quer ensinar: desafios curriculares

Isso exigiu a reformulação do currículo do Ensino Médio, no sentido de ir além da sepa-ração dos saberes ensinados em áreas independentes, caminhando para a interdisciplina-ridade, de modo a incentivar o raciocínio dos estudantes e, principalmente, a sua capaci-dade de aprender. Essa foi a proposta dos PCNs elaborados para o Ensino Médio, mas as perspectivas assim colocadas só poderão se concretizar graças ao trabalho de cada equipe pedagógica, em cada unidade escolar. O melhor caminho é debater com os colegas. Os gestores têm papel fundamental nesse processo porque encontrarão formas para organizar o trabalho e, mais do que tudo, favorecer a partilha da equipe pedagógica para desenvolver práticas pedagógicas mais eficientes e para se manter atualizada sobre as novas metodolo-gias de ensino. Diante das atuais mudanças, os professores do Ensino Médio nem sempre concluem seus cursos de formação sentindo-se aptos. É difícil incorporar à rotina da escola e sua “gramática” novidades, ainda que essas pareçam ser produtivas.

Como favorecer a aprendizagem dos alunos diante dos atuais desafios da sociedade? Como conduzir o aprendizado nos diferentes contextos e condições das escolas no país? Como responder às transformações sociais e culturais da sociedade contemporânea? Sem a pretensão de dar respostas definitivas a questões tão complexas e, ao mesmo tempo, tão decisivas, a unidade esclarecerá as diretrizes para compor os saberes curriculares e para coordenar o trabalho da equipe. Longe de um receituário, o que se quer é explicar conceitos fundamentais para todo o sistema escolar brasileiro, abrindo diálogos sobre o projeto pedagógico das escolas e trazendo elementos para a continuidade da formação profissional docente na instituição.

Como equilibrar inovação e tradição? Não se trata de simplesmente considerar que tudo o que a Escola Média fez até hoje não é válido. Na verdade, as mudanças

curriculares propostas devem ser realizadas com consistência, a partir de práticas de várias gerações de professores. Caso contrário, caímos facilmente nas armadilhas das modas pedagógicas, experimentando práticas efêmeras e inférteis. Se precisamos estar atentos às novidades, por um lado, é certo também que precisamos procurar diferentes métodos de trabalho partindo de uma análise individual e coletiva das práticas peda-gógicas. Aqui vale lembrar uma velha ideia que já conhecemos bem: na escola nada se inventa, nossas práticas são permanentemente reinventadas e aperfeiçoadas, num processo contínuo de recriação. Num primeiro momento, essa recriação conta com os PCNs do Ensino Médio, enquanto primeira instância de reformulação do currículo. Tal como se apresentam, eles foram “feitos para auxiliar as equipes escolares na execução de seus trabalhos. Servirão de estímulo e apoio à reflexão sobre a prática diária, ao planejamento de aulas e sobretudo ao desenvolvimento do currículo da escola, contri-buindo ainda para a atualização profissional”. O texto, publicado em 2000, foi dirigido ao professor, ao coordenador pedagógico e aos gestores do Ensino Médio. Esses últimos considerados responsáveis não só pela formação dos alunos como também pelo aper-feiçoamento permanente de seus professores. O documento está organizado em quatro partes, relativas:

1. Às Bases Legais; 2. Às Linguagens, códigos e suas tecnologias; 3. Às Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias e 4. Às Ciências humanas e suas tecnologias.

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4 Diálogos: os novos desafios postos ao currículo

Tópico 1 Afinal de contas, do que estamos falando quando nos referimos a diálogos?

Ao longo da presente disciplina, as discussões que realizamos evidenciam rumos e perspectivas para as escolas hoje. Em termos legais, podemos identificar os esforços para redimensionar as finalidades e estrutura do ensino. Os PCNs exemplificam o tipo de trans-formação desejada. Isso se articula a decisões de ordem política, sobretudo no que diz respeito aos esforços para democratizar a escolarização, em seus diferentes níveis. Institu-cionalmente, a escola tem sido chamada a exercer mais autonomia e ser mais responsável por suas ações.

O conjunto dessas novas determinações conduz a repensarmos também os currículos das escolas. Tradicionalmente, para definirmos o que ensinar e como ensinar dividíamos os conhecimentos em disciplinas, ao longo do ano letivo, como se colocássemos cada item do currículo em caixas que delimitavam um momento específico para aprendermos um determinado tema. Assim, por exemplo, o aluno da 5ª série aprenderia o que é sujeito de uma frase na aula de português, relativa à sintaxe, na 22ª semana de aula. Se, por qualquer razão, ele não conseguisse aprender naquele momento, o que a escola previa, em geral, era uma recuperação ou reprovação no final do ano letivo.

Além disso, se analisarmos nossas experiências no colégio, facilmente nos lembraremos de aprender matérias específicas: Língua Portuguesa, Matemática, Biologia, Geografia e outras. Muitas vezes, os conteúdos de cada disciplina não eram estudados de forma articulada. Os PCNs obrigam a revisão dessa lógica ao incorporarem o diálogo como um dos princípios da organização dos saberes escolares. O diálogo intenta romper com uma estrutura que separa as disciplinas e, consequentemente, os professores no seu trabalho diário. De certo, em nossos tempos de alunos, já havíamos reparado nisso: os professores de Língua Portuguesa, por exemplo, falavam de Língua Portuguesa. Nós nem pergun-távamos a eles dúvidas sobre o enunciado de um problema em Matemática. Ora, pen-sávamos, “se o problema é de Matemática, interroguemos o professor de Matemática”.

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39Tema 4 Diálogos: os novos desafios postos ao currículo

Quantas vezes não entendíamos também uma proposta de exercício de Química. Talvez até soubéssemos usar as fórmulas e contas corretas para resolvê-lo, mas não entendíamos o que o exercício queria e, pronto, errávamos tudo.

Será que aprender a interpretar um texto cabe apenas a um professor da escola? Os professores de diferentes disciplinas não poderiam se articular mais para ensinar essa capacidade tão fundamental a todas as matérias, em todas as séries da escola? Se nossas respostas foram sim, estamos exatamente no caminho proposto pelos Parâmetros, quando eles propõem a interdisciplinaridade. Elas nada mais são do que a possibilidade de dialo-gar. Ora, quando as diversas matérias são estudadas, não necessariamente precisam estar desconectadas entre si. Os seus conteúdos podem se articular com conteúdos de outras disciplinas ao longo de todo ano letivo, em diversos momentos. Os professores de Portu-guês e Inglês, por exemplo, podem elaborar pequenos projetos que vislumbrem interesses comuns e que rompem com a antiga lógica de separação das matérias.

Mas o diálogo não se torna possível apenas entre as disciplinas. Ele é favorecido também no âmbito das relações entre professores e professores de uma escola. Os projetos que unem diferentes matérias, não importa se são apenas duas, três ou todas as matérias do currículo, não importa se duram uma aula, dois meses ou um semestre todo, nada mais são do que esforços coletivos. Elaborar um projeto comum, levá-lo adiante e avaliar seus efeitos significa reinventar a cultura da escola, tanto no que diz respeito ao modo como ensinamos os saberes quanto no que diz respeito às interações entre os diversos atores educativos. E este é apenas uma das possibilidades de diálogo que podemos identificar aqui.

Segundo disposto na nova organização curricular idealizada, os professores de cada disciplina devem dialogar entre si, buscando formas de articular os diversos conheci-mentos das áreas, escolhendo formas de tratamento comuns. Evidentemente, esse tipo de diálogo é um princípio dos Parâmetros relativamente novo. E é preciso compreendê-los com cautela. Primeiro, porque cada disciplina tem temas e modos de explicação especí-ficos a ela. Segundo, porque os projetos que integrem diferentes matérias são escolhidos e construídos pela equipe escolar e por cada professor.

Essa não é uma tarefa fácil, afinal de contas, instaura na escola um modo de organização curricular relativamente novo, mais coletivo e essa é uma atividade a ser aprendida. Aqui o papel do gestor é fundamental: além dos investimentos na formação docente, o estímulo e apoio da direção escolar é a via de acesso para atitudes coletivas dos professores. Os diretores e coordenadores podem acompanhar o desenvolvimento do projeto pedagógico da escola, traduzindo as diretrizes dos Parâmetros em práticas de planejamento de articu-lação entre as disciplinas e as áreas.

Nessa reestruturação ambiciosa pode-se ensaiar pequenas reorganizações cur-riculares, primeiramente no interior de cada área do conhecimento, ou seja, junto

às Ciências Humanas e suas tecnologias; às Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias e às Linguagens, códigos e suas tecnologias. Isso porque os saberes do interior de cada área compartilham objetos de estudo e viabilizam mais facilmente uma comunicação. Posteriormente, junto a cada disciplina dessas áreas, como é o caso da Língua Portuguesa, da Matemática, da Geografia etc., esses ensaios preliminares cer-tamente poderão favorecer outras articulações. Não se trata apenas de uma exigência

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Os diálogos propostos nos Parâmetros e expressos na interdisciplinaridade podem resul-tar num ambiente escolar mais democrático. Esse é um caminho político, garantido pelas atuais leis do ensino e que impõe importantes desafios às escolas. Quando selecionamos conteúdos, oferecemos aos alunos mais do que um repertório para passar de ano, nós tratamos de saberes que permitirão refletir e mudar a própria vida escolar. Os modos de se ensinar (métodos, organização das atividades, conceitos e práticas sociais) podem favore-cer a autonomia, a participação e cooperação, princípios básicos defendidos pelos PCNs. A democracia e a cidadania não são para o futuro, devem ser vividas agora na escola, nas formas como a instituição se relaciona com a comunidade, nas relações entre a equipe escolar, entre professores e alunos, nas relações com o conhecimento.

Não existe receita para isso nem a garantia de que esse seja um processo harmonioso, isento de conflitos. Embora a escola não possa garantir o resultado desse processo, ela pode assumir em seu projeto uma ação comprometida com o exercício da cidadania. Não queremos que o aluno amanhã, apenas ao sair da escola, seja um cidadão. Ele é um cida-dão na escola e deve ter, na escola, espaços de intervenção e reflexão sobre a realidade.

Tópico 2 Os Temas Transversais: possibilidades de construção

A escolha, seleção e apresentação dos saberes que se quer ensinar na escola são questões cruciais na organização do currículo. Como pudemos explicar, a elaboração dos PCNs foi o resultado de debates acerca do currículo tal como ele era pensado no Brasil. O desafio é grande, mas valioso: trata-se de garantir uma certa unidade aos conteúdos ensinados para os alunos brasileiros e, ao mesmo tempo, respeitar as características de cada lugar, tomando-as como pontos-de-partida para a elaboração de partes específicas do currículo. Daí o título Parâmetros Curriculares Nacionais também ser muito sugestivo. Nesses docu-mentos, obrigatórios aos diretores, coordenadores e professores brasileiros, são propostas mudanças no cotidiano das salas de aula, naquilo que chamamos de currículo real. É nessa perspectiva que os PCNs sugerem a organização dos saberes: divisão em ciclos e não nas tradicionais séries, ao longo dos quais os saberes estão organizados de acordo com as áreas (Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia, Artes e Educação Física) e com os chamados Temas Transversais. E o que são os Temas Transversais?

Atualmente, os temas transversais já são mais comuns entre os educadores. Afinal de contas, os PCNs incorporaram discussões pedagógicas dos anos 1980 e 1990 e a sua publicação contribuiu para divulgar esse tipo de conteúdo. Os objetivos e conteúdos dos temas transversais devem ser incorporados nas áreas já existentes e no trabalho educativo da escola. Conforme já dissemos anteriormente, essas áreas podem ser chamadas também de disciplinas e matérias escolares tradicionalmente trabalhadas, referentes à Língua Por-tuguesa, à Matemática, às Ciências, à História, à Geografia, às Artes e à Educação Física.

formal, essa integração só pode ser afirmada quando presente no “currículo vivido” pelas escolas. Trata-se de um desafio para transformar um trabalho pedagógico tradicio-nalmente marcado pelo isolamento dos professores e, às vezes, pela competição que pode se instaurar entre o corpo docente.

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41Tema 4 Diálogos: os novos desafios postos ao currículo

Os Temas Transversais, por sua vez, correspondem a questões importantes, urgentes e presentes sob várias formas, na vida cotidiana. Cabe a cada escola abrir espaço para esse debate e, nesse sentido, o papel do gestor é fundamental. Ele é quem vai motivar, favorecer e possibilitar tal debate. Que tal organizar entre os professores um levantamento dos problemas enfrentados pelos alunos?

Evidentemente, a complexidade dessas questões requer que, além de sua exposição, elas sejam obje-to de estudos, que podem ser pensados a partir da organização de grupos de trabalho compostos pela equipe escolar. Cada grupo poderá identificar pesquisas já feitas sobre a temática, compartilhar os principais resultados e procurar conhecer outras experiências educacionais que também se depararam com essas questões. Que alternativas são possí-veis à escola? Quais caminhos se quer trilhar?

O conjunto de temas propostos nos PCNs é o seguinte: ética, meio ambiente, pluralida-de cultural, saúde e orientação sexual. O documento ainda indica a metodologia proposta para sua inclusão no currículo e seu tratamento didático. Esses temas foram escolhidos dada a sua urgência social, abrangência nacional, a possibilidade de serem ensinados no nível fundamental e o fato de que eles favorecem a compreensão da realidade e a partici-pação social. Podemos sistematizar cada um dos temas da seguinte forma:

∙ Ética: diz respeito às condutas humanas e às reflexões sobre elas e remete para tomadas de posição valorativas. A ética revela-se na escola em vários aspectos: quando a instituição assume os princípios de equidade e igualdade; quando ela se propõe a formar cidadãos autônomos; na configuração das relações entre os alunos e a equipe escolar; no interior das disciplinas, pois nenhum conhecimento é neutro. Eixos de trabalho: respeito mútuo, justiça, diálogo e solidariedade, expressos já na Constituição Brasileira.

∙ Pluralidade Cultural: a sociedade é plural e sua convivência exige o respeito às diferentes culturas e grupos. A pluralidade está no interior de cada região e as regi-ões brasileiras apresentam características culturais múltiplas, o que muitas vezes conduz a preconceito e discriminação. A escola deve ser local de valorização dos grupos, de diálogo, de aprendizagem de uma convivência respeitosa.

∙ Meio ambiente: as relações com o meio ambiente são entendidas em suas dimen-sões físicas e biológicas, e também na integração do homem e das relações culturais, econômicas e sociais aí estabelecidas. É preciso refletir sobre como devem ser essas relações socioeconômicas e ambientais, para se tomar decisões adequadas, na dire-ção do crescimento cultural, da qualidade de vida e do equilíbrio ambiental.

∙ Saúde: a saúde reflete, para além do estado físico de um indivíduo, as suas condições de vida, suas relações com o meio físico, social e cultural. Falar de saúde implica considerar a qualidade do ar que se respira, a miséria, o consumismo, a desnutrição.

∙ Orientação sexual: trata-se de transmitir informações e problematizar questões relacionadas à sexualidade, incluindo posturas, crenças, tabus e valores a ela asso-ciados. Não tem cunho psicoterapêutico, pois na escola é uma intervenção coletiva, focada nas dimensões sociológica, psicológica e fisiológica da sexualidade. Visa o exercício da sexualidade de forma responsável e prazerosa, organizando-se em três eixos fundamentais: corpo humano, relações de gênero e prevenção a doenças

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sexualmente transmissíveis. Os alunos devem conhecer e respeitar o próprio corpo, questionar papéis sociais de homens e mulheres, respeitar portadores de HIV, adotar condutas preventivas.

∙ Temas locais: a realidade pode mudar e ter especificidades em cada região, Esta-do, cidade ou escola. Uma vez reconhecida a urgência social de um problema local, este poderá receber o mesmo tratamento dados aos outros temas transversais. Exemplo: trânsito e o modo como o tema remete para a reflexão de modos de vida e relações sociais.

Nenhuma das disciplinas convencionais pode abordar um tema transversal isolada-mente. Eles atravessam os diferentes campos do conhecimento. Ao mesmo tempo, nas várias áreas do currículo escolar ensina-se alguns aspectos dos temas transversais. Con-siderando esses fatos, experiências pedagógicas brasileiras e internacionais de trabalho com educação ambiental, orientação sexual e saúde têm apontado a necessidade de que tais questões sejam trabalhadas de forma contínua e integrada, uma vez que seu estudo remete à necessidade de se recorrer a conjuntos de conhecimentos relativos a diferentes áreas do saber. Por isso, elas são integradas ao currículo por meio da transversalidade, pois integram as áreas convencionais, estão presentes em todas elas e relacionam-se com questões atuais. A integração, a extensão e a profundidade do trabalho podem se dar em diferentes níveis, segundo o domínio do tema ou a prioridade que se eleja nas diferentes localidades. Isso se efetiva mediante a organização didática eleita pela escola.

O que se quer é estabelecer pequenos projetos envolvendo alguns professores? Projetos de curta duração, relativos a uma ou duas disciplinas? Projetos maiores, envolvendo toda a escola, durante todo o ano letivo? Isso depende da equipe pedagógica, das necessidades dos alunos e, principalmente, das metas que se estabelece para a vida em cada institui-ção. Ao gestor cabe possibilitar e estimular tais iniciativas, que podem se concretizar também em planos de aulas combinados entre professores de diferentes disciplinas, numa semana de estudo sobre um tema, em seminários ou exposições propostos aos alunos em diferentes momentos e de diferentes maneiras.

Nós nunca podemos nos esquecer que os Temas Transversais não são novas matérias; exigem uma maior consciência no trabalho com os valores e atitudes esperados em todas as áreas; impõem uma nova cultura escolar. Os temas integram as disci-plinas e isso não é uniforme, varia de acordo com as especificidades de cada área. Existem afinidades maiores entre determinadas áreas e determinados temas, como é o caso de meio ambiente (tema trans-versal) e ciências (área); pluralidade cultural (tema transversal) e história e geografia (área). Assim, os conteúdos das disciplinas devem se articular com os temas transversais.

Os conteúdos dos temas transversais não estão apresentados por ciclo, pois não há nada que, em princípio, justifique uma sequenciação de seus conteúdos. Eles podem ser estudados pelos alunos em qualquer ciclo. As práticas racistas, por exemplo, podem ser tratadas nas mais diversas séries do Ensino Fundamental e até mesmo em todas ao mesmo tempo, variando apenas o grau de profundidade e abrangência com que a temática será trabalhada. Ela será abordada de acordo com cada realidade, capacidade cognitiva dos

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43Tema 4 Diálogos: os novos desafios postos ao currículo

alunos e o próprio tratamento didático dado aos conteúdos das diferentes áreas. Essa temática pode integrar o conteúdo da Língua Portuguesa, Matemática, das Ciências Natu-rais, da História, da Geografia, da Arte e da Educação Física, respeitando sempre as espe-cificidades e limites de cada disciplina. Enquanto Tema Transversal, as práticas racistas não configuram um aprendizado à parte. Também não se pode definir a priori quando elas serão tratadas porque estão abertas a situações não programáveis, emergentes.

Desde finais da década de 1990, muitas experiências se consolidaram com os Temas Transversais, mas certamente há muito a se construir ainda. E isso considerando unidades escolares às vezes muito próximas, talvez até mesmo aquelas onde nós atuamos. Por isso, uma boa iniciativa dos gestores é dar visibilidade a essas iniciativas, tomadas às vezes por um ou outro professor, com resultados que vale a pena conhecer pela sua relevância e pelo potencial de mudança da escola para melhor. Sugerimos, assim, que o gestor planeje com sua equipe a produção de relatórios para serem socializados com outros professores, aprofundando propostas e consolidando práticas bem-sucedidas. Trata-se de um aprendi-zado longo e processual, tanto para professores quanto para alunos. Este é um desafio que pode produzir bons resultados.

Tópico 3 Os antecedentes políticos, institucionais e normativos e suas traduções nas escolas onde trabalhamos

As reformas curriculares propostas nos Parâmetros Curriculares Nacionais e a ideia de que as escolas devem ser cada vez mais responsáveis pelas suas decisões não correspondem a

Na organização do currículo, além da avaliação, da seleção e organização dos saberes, convém atentar para os materiais usados como recursos didáticos. Não se

trata de uma decisão isolada porque os materiais didáticos expressam valores e con-cepções a respeito do que está sendo ensinado. Como falar, por exemplo, sobre a participação de todos no processo democrático se nas aulas de história falamos apenas das grandes personagens? É preciso, portanto, discutir sobre o que veiculam os livros didáticos, jornais, revistas, livros, fotos, propaganda ou programas de TV, enfim, um conjunto variado de textos que podem ser usados com os alunos. Se algum material nos parecer negativo, ao invés de simplesmente descartá-lo – o que nem sempre é possível – é possível examinar em sala de aula suas mensagens sobre valores e papéis sociais. Como os próprios PCNs assinalam, isso favorece o “desenvolvimento da capa-cidade de analisá-los criticamente, de tal forma que os alunos, na medida de suas possibilidades e cada vez mais, os compreendam, percebam sua presença na sociedade e façam escolhas pessoais e conscientes a respeito dos valores que elegem para si.” (p.36). Assim, a organização dos saberes passa pela elaboração de projetos educativos, pelo planejamento de aulas, pela análise do material didático, tanto em seu conteúdo como também em seus usos.

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iniciativas isoladas ao caso brasileiro. As exigências políticas, institucionais e normativas que se colocam nessa perspectiva articulam-se às necessidades impostas pelo mundo globalizado e pela velocidade do progresso científico e tecnológico. Documentos como os PCNs do Ensino Médio (2000) explicam esse movimento ao afirmarem que:

A globalização econômica, ao promover o rompimento de fronteiras, muda a geografia política e provoca, de forma acelerada, a transferência de conheci-mentos, tecnologias e informações, além de recolocar as questões da sociabi-lidade humana em espaços cada vez mais amplos. A revolução tecnológica, por sua vez, cria novas formas de socialização, processos de produção e, até mesmo, novas definições de identidade individual e coletiva. Diante desse mundo globalizado, que apresenta múltiplos desafios para o homem, a edu-cação surge como uma utopia necessária indispensável à humanidade na sua construção da paz, da liberdade e da justiça social. (p. 13)

A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) e, mais especificamente, sua Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, afirma o papel da educação nesse sentido, assinalando-a como um caminho pelo qual poderemos, no mundo todo, chegar a um desenvolvimento mais harmonioso, mais autên-tico, superando a pobreza, a exclusão social e as guerras. Na verdade, as ideias expressas pela UNESCO são compartilhadas por muitos de nós, principalmente se trabalhamos com educação. Elas também não são novas e, como pudemos evidenciar já no Tema 1, impul-sionaram a construção da escola desde o século XIX.

Países como o Brasil e outros da América Latina, empenhados em participar do projeto internacional hoje organizado pela UNESCO, querem também superar suas desvantagens no que se refere aos seus índices de escolarização, quando comparados com os índices apresentados pelos países mais ricos. É inegável a necessidade de ampliar a oferta de vagas e melhorar a qualidade do ensino que oferecemos. Essas são prioridades indicadas em estudos desenvolvidos no Brasil por instituições como o INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), por meio do SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), refletindo as exigências hoje postas à educação em nível nacional e internacional.

Essa participação insere-se nas exigências e utopias do mundo contemporâneo. Por isso, o que se propõe é que os educadores repensem a escola, cuja construção de sua cul-tura remonta ao século XIX e anos iniciais do XX, quando outros propósitos, necessidades e buscas se colocavam. Mas, isso significa estruturar as práticas escolares e seu currículo

Cada vez mais responsável pelas suas decisões, a escola não pode perder essas exigências de vista. Se os PCNs são diretrizes nessa tarefa, outro ponto de partida

que não se pode negar diz respeito à história da escola e às experiências vividas por sua equipe. A gestão, nesse sentido, deve oferecer condições para que a coordenação, junto aos professores, tenha possibilidade de discutir e estabelecer um currículo coe-rente com as demandas da comunidade atendida. Currículo esse a ser redimensionado segundo a avaliação do corpo docente. Os próprios PCNs destacam que conhecer a realidade escolar é imprescindível para se construir uma educação de qualidade. Além dos Parâmetros, há que se definir o que e como será ensinado de acordo com a unidade escolar, levando em conta a sua localização, seus alunos, seus profissionais e suas condições de funcionamento.

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45Tema 4 Diálogos: os novos desafios postos ao currículo

calcado no mercado de trabalho, por exemplo? Não é disso que estamos falando aqui. Busca-se, sim, pensar, sobretudo não só no núcleo de saberes e seu modo de organiza-ção, como também no tratamento dado a esse e as relações com o saber estabelecidas. Como instituição obrigatória e destinada a todos, ela pode e deve consistir num espaço de acesso aos bens culturais, de exercício da cidadania, da autonomia, da responsabilidade.

Não se trata de virar as costas para o passado, o que se quer é incorporar práticas férteis e, ao mesmo tempo, reinventar o currículo de modo a torná-lo mais apto ao que a sociedade nos oferece e, também, ao que queremos para a sociedade, garantindo espaços mais justos e uma vida democrática mais autônoma e responsável. É essa a identidade que queremos para os nossos alunos e, embora a escola possa dar conta de apenas uma parte importante desse processo, isso não é pouco. Ao encerrarmos a presente disciplina queremos favorecer as reflexões sobre esses desafios e, para isso, perguntamos a vocês: será que a cultura escolar poderá ser reinventada em nome de práticas de ensino mais produtivas e democráticas de, por exemplo, continuarmos a propor aos nossos alunos apenas cópias dos conteúdos da lousa? Você, como diretor (a), pode contribuir para que os professores pensem em possíveis articulações entre suas opções metodológicas e o papel de suas intervenções para a aprendizagem dos alunos dos conteúdos em suas dife-rentes categorias.

A todos um bom trabalho!

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Uma sugestão de trabalho com sua equipe seria solicitar que os (as) professores (as) tanto dos primeiros anos quanto do sexto ano em diante façam uma reflexão dos

conteúdos que têm trabalhado de modo a pensarem na abrangência que têm dado a esses. Não esqueça de pedir sempre o registro daquilo que é realizado pelos professores de modo a constituírem documentos da escola, ou melhor, construir o histórico das discussões também é valorizar a produção dos professores. Evidentemente, essa não é uma receita, tampouco a panacéia para os males da escola. Estamos traçando caminhos e, enquanto caminhos, eles trazem em si dúvidas, resistências, dificuldades e também aprendizagens e avanços. Esperamos que a presente disciplina evidencie o quanto a escola pode ser responsável por esses caminhos, afirmando o grande sentido de seu trabalho: a aprendizagem dos alunos.

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