Antes Tarde do que Nunca

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Como um país perdulário chegou a uma crise energética improvável e como - apesar de tudo - pode sair dela aprendendo com os erros. Lançamos uma série de produtos sobre conjuntura, perspectivas e planejamento na energia: o desafio da escassez pode nos tornar eficientes.

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Como um país perdulário chegou a uma crise energética improvável e como - apesar de tudo - pode sair dela aprendendo com os erros.

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Como um país perdulário chegou a uma crise energética improvável

e como - apesar de tudo - pode sair dela aprendendo com os erros.

Lançamos uma série de produtos sobre conjuntura, perspectivas

e planejamento na energia: o desafio da escassez pode

nos tornar eficientes.

Na hora da crise, estimulamos o consumo de mais energia, em vez de pou-pá-la. Baixamos as tarifas por meio de medidas insustentáveis, com o re-sultado final de aumentá-las. Concentramos o investimento público em energia elétrica apenas em geração, e ainda em megaprojetos destinados a atrasar e encarecer. Deixamos de planejar e racionalizar a demanda. Apostamos todas as fichas - na área de combustíveis - em projetos de ris-co que podem jamais sair do papel, como o pré-sal, ao mesmo tempo em que abandonamos inexplicavelmente o etanol. Esquecemos de incentivar

a competitividade de nossa economia, deixando a indústria se tornar paradoxalmen-te menos eficiente do que era no começo do século. Entre as principais 16 economias do mundo, nos tornamos a penúltima em eficiência energética. Socializamos o custo do desperdício e do roubo de energia, enquanto as perdas já se tornaram o terceiro maior destino da geração elétrica. Temos um setor endividado, vulnerável e com es-cassa capacidade de investimento, tanto na área de eletricidade quanto naquela de combustíveis, além de uma conta alta a pagar enquanto consumidores e enquanto contribuintes.

Mesmo assim, o tamanho do desperdício, por um lado, e a diversidade de alternativas disponíveis, por outro, permitem - desde que haja planejamento - superar esta conjun-tura em alguns anos. Não com mágicas, mas investindo em inovação, diversificação e racionalização. Parte dos recursos destinados a serem concentrados em poucas apostas de risco nem sequer estão mais disponíveis hoje. A escassez pode ajudar o Brasil a se tornar eficiente e transformar algumas de suas vantagens comparativas em competiti-vas. A aceleração tecnológica que viabiliza hoje as fontes fotovoltaica (fora e dentro da rede) e eólica, em escala sem precedentes, contribui de forma complementar.

Desde março de 2014, Amigos da Terra passou um ano estudando e ouvindo espe-cialistas sobre o tema. Naquele momento a conjuntura já estava séria, mas não era percebida, nem reconhecida, como tal. Agora se tornou dramática, o que gera outro risco, aquele de priorizar apenas medidas imediatistas.

Lançamos hoje 6 produtos com o resultado desse trabalho. Estão disponíveis na web a partir da página www.eco-financas.org.br/energia2015 . São realizados numa inter-face com ilustrações, que visa incluir neste debate um público bem mais amplo do que apenas os especialistas do setor. Nosso objetivo é o de fomentar um debate amplo e estratégico, além dos embates sobre obras individuais. Apresentamos aqui 24 destaques, que podem ser aprofundados visualizando nossos produtos, com infográficos e ilustrações para facilitar a leitura.

Agradecemos o tempo precioso que figuras como Luiz Pinguelli, Ildo Sauer, Mário Veiga, Maurício Tolmasquim, José Goldenberg, Roberto Schaeffer, Gilberto Jannuzzi, Sérgio Bajay generosamente dedicaram a responder a nossas indagaçoes, autorizan-do também a gravação e disponibilização de parte de nossas conversas. Assim como a equipe técnica que realizou a pesquisa, sob a coordenação de Roberto Kishinami e com a participação de Shigueo Watanabe Jr. e Clauber Barão Leite.

1. NÃO FOI SÓ A CHUVAA falta de chuva só explica uma parte da atual crise elétrica. Há outros fa-tores, como graves falhas na regulamentação do setor, em um quadro de atraso na construção de grandes hidroelétricas e de linhas de transmissão, assim como estímulos ao aumento do consumo e falta de realização do de-ver de casa na eficiência energética.

2. LUCRANDO NA CRISENo período que levou à atual crise, por uma falha regulatória as termoelé-tricas têm sido remuneradas por preços muito acima do seu custo, com um lucro descomunal para seus donos. Quem mais tem aproveitado os preços artificialmente altos da energia elétrica é, paradoxalmente, a Petrobras, que possui contratos vigentes até 2019. Sua mais recente demonstração contábil - divulgada no meio da polêmica sobre os efeitos da investigação sobre corrupção - aponta que só ao longo de 9 meses (entre janeiro e se-tembro de 2014) a empresa lucrou quase um bilhão (R$ 0,95 bi) no setor de energia e gás, ou seja 7% de seu lucro total.

3. PELA CULATRA Em 2012 o governo tomou decisões drásticas, com o objetivo declarado de reduzir expressivamente a conta de energia ao consumidor em 20%. Isso resultou num estímulo ao aumento do consumo de energia, em vez da necessária economia. O governo pretendia seguir um conceito de modici-dade tarifária, mas na prática agiu de forma populista, com preços insus-tentavelmente baixos no curto prazo, que agora acabam disparando para pagar o rombo criado no passado recente.

5. ELEFANTES AZUISAs mega- usinas hidroelétricas - . As hidroelétricas na Amazônia são hoje do tipo a fio d’ água, com reservatórios relativamente menores e, portanto, re-duzida capacidade de acumular água para geração elétrica. Esse modelo foi adotado para supostamente superar objeções ambientais, reduzindo o ala-gamento para formar grandes reservatórios. Na realidade, isso tem levado a diminuir o fator de capacidade das usinas, ou seja a geração firme em rela-ção à potência instalada. Temos assim um enorme parque de turbinas que apenas funciona alguns meses por ano, tornando economicamente pouco viáveis as usinas. Já os impactos ambientais, em sua maioria indiretos pois afetam os entornos, muito além da área inundada, continuam a acontecer.

4. NÃO FALTOU AVISO As mega- usinas hidroelétricas - Santo Antônio, Jirau e Belo Monte - têm atrasa-do seus cronogramas e aumentado expressivamente seus custos em relação ao que fora inicialmente planejado. Isso contribui para a atual crise e ocorre porque custos e cronogramas foram subestimados para justificar a decisão de construí--las. Por estarem na Amazônia, problemas logísticos, ambientais, fundiários, tra-balhistas, sociais e de engenharia se multiplicam, a partir de estudos omissos e licenças concedidas de forma superficial. Conflitos, atrasos e aumentos de custos foram previstos em estudos e documentos da sociedade civil, mas ignorados por governo, grandes empreteiras e bancos públicos, principalmente o BNDES.

7. DOS DOIS BOLSOS O custo da energia elétrica tem dois componentes. Um é pago diretamente pelo consumidor, por meio da conta de eletricidade. Outro é pago indiretamente - por cada indivíduo ou empresa enquanto contribuinte - a partir de impostos e contribuições que subsidiam investimentos que o capital privado não bancaria, e que acabam competindo com os investimentos sociais, como saúde, educa-ção, segurança, meio ambiente etc.. Apenas em novos investimentos em gera-ção (portanto incluindo perdas e desperdícios) deve se gastar, nos próximos dez anos, R$ 223,10 bilhões, quase exclusivamente com recursos públicos.

8. MAIS DO MESMOO planejamento oficial continua priorizando, na geração, a atual matriz hidro-elétrica com termoelétricas alimentadas por combustíveis fósseis. Os estudos científicos apontam para alterações significativas no regime de chuva, com even-tos extremos como enchentes e secas prolongadas. Nesse quadro aumentar a de-pendência da hidroeletricidade, que já representa quase 70% da matriz, contri-bui ainda mais para a vulnerabilidade e intermitência do sistema. Por outro lado, num círculo vicioso, as emissões das termoelétricas contribuem para agravar as mudanças climáticas que afetam o ciclo das chuvas.

9. OBSOLETOSNo Brasil, boa parte dos equipamentos domésticos não apresenta a me-lhor qualidade e tecnologia disponíveis. Uma comparação com geladeiras americanas e canadenses mostra como o padrão mais avançado do Brasil (Procel A, ou seja o menos intensivo em consumo) seja aproximadamente 20% menos eficiente do padrão mais atrasado (mais intensivo) naqueles países. Esta situação fica ainda mais grave no setor de equipamentos in-dustriais, que influenciam parcela maior do consumo total.

10. PASSOS DE CARANGUEIJOA eficiência energética influencia a competitividade da economia bra-sileira como um todo frente ao cenário internacional. Ao analisar a in-tensidade energética - ou seja, a quantidade de produto interno bruto (PIB) gerada por cada unidade de energia utilizada - de alguns países selecionados, constata-se que o recente desempenho do Brasil, em vez de acompanhar a tendência de melhora dos concorrentes, tem apon-tado um recuo. Isso ocorre apesar do recente crescimento relativo do setor de serviços, que consome menos energia para gerar valor adicio-nado à economia.

6. PARADOS NO TEMPOO planejamento de energia elétrica se limita essencialmente aos leilões de usinas de geração, como ocorria 40 anos atrás, quando iniciou o modelo de planejamento que vige até hoje, mas está ultrapassado. Hoje há uma base instalada de mais de 134 GW e desenvolvimento tecnológico para renováveis e aumento de eficiência. O que se deveria aprender com a atual crise , entre outras lições, é a necessidade de comparar custos reais das opções de geração e comparar todas elas com o custo do aumento da eficiência na geração, transmissão, distribuição e consumo da energia.

11. ZONA DE REBAIXAMENTO. O desafio principal da eficiência reside na intensidade energética da indús-tria. Um indicador do Balanço Energético Nacional realizado pela Empresa de Pesquisa, Energético, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, mostra que, ao longo dos últimos dez anos, não só não houve progresso na intensi-dade energética, mas paradoxalmente a média chegou a piorar um pouco. Isso faz com que o Brasil esteja quase na lanterninha internacional no item da eficiência energética, isto é em 15o lugar entre as 16 principais economias do planeta: distante não apenas dos países mais desenvolvidos, mas também dos concorrentes diretos entre os BRICS, como China, Índia e Rússia.

14. SOLTANDO GÁS Cada dia, 4 milhões de m3 de gás associado à exploração de petróleo da Petro-bras são queimados em flares ou emitidos diretamente para a atmosfera. O gás desperdiçado só na exploração poderia alimentar uma usina de 762 MW, suficiente para suprir a energia de uma cidade como Porto Alegre. Pelo plane-jamento oficial, este valor não é destinado diminuir, e sim a dobrar, atingindo 8 milhões de m3/dia até 2023.

12. NO BURACO O Balanço Energético Nacional de 2014, com dados de 2013, comprova que as perdas na transmissão e distribuição representam o terceiro maior consumi-dor de energia elétrica do Brasil, depois da indústria e das residências. As per-das - sem considerar aqui a ineficiência no consumo - atingiram o dobro, por exemplo, do consumo de todo o setor público do País, de hospitais a escolas, de iluminação pública a tratamento de água. Também foram superiores ao con-sumo de todo o setor comercial do País, que inclui, entre outros, a refrigeração, iluminação e equipamentos utilizados por todos os atacadistas e varejistas.

13. MAIS PASSOS DE CARANGUEIJOHoje, nosso planejamento nem sequer considera melhorar nossa intensi-dade energética, isto é as unidades de valor geradas pela economia nacio-nal com um determinado consumo de energia (total e elétrica). De acordo com o PDE 2023, a intensidade total seguiria oscilando em torno de 60 tep/R$1.000, enquanto a intensidade elétrica até chegaria a piorar no período. A intensidade da atividade industrial brasileira também ficaria estagnada no valor de 2010, de 100 tep/ R$ milhão.

15. PERDENDO O TREM No transporte de cargas há diferenças gritantes de eficiência entre os modais. Quando se compara o modo rodoviário ao ferroviário, temos um custo de US$ 133 por TKU (tonelada por quilômetro útil) no caso do caminhão e apenas US$ 22 por TKU no caso do trem. Paradoxalmente, num país das dimensões do Brasil o transporte ferroviário quase inexiste. Migrar para ele tornaria o país competi-tivo, reduzindo drasticamente os custos de logística.

16. MAIS RISCO AÍA exploração de gás de folhelho (xisto) representa, hoje, uma aposta de alto risco econômico e ambiental. Relatórios técnicos do próprio governo apontam como “temerária e lamentável” a exploração com base no estado atual do co-nhecimento. Na crise hídrica que assola o país, a atividade “pode gerar enorme pressão sobre os recursos hídricos e ainda ter impactos negativos significati-vos (...) tanto no presente quanto nas reservas estratégicas para consumo futu-ro”. Já a falta de estrutura regulatória “gera insegurança tanto para a indústria quanto para a sociedade”.

17. ROLETA BRASILEIRASe for mantido o atual preço do petróleo, entre US$ 50 e US$ 60 por barril, o investimen-to no pré-sal seria inviável, pois o custo de extração seria próximo ao preço de venda. Mesmo num cenário mais viável, na faixa de US$ 80, o retorno do investimento seria bem mais longo do esperado inicialmente (a partir de 2020). Considerada também a atual reduzida capacidade de investimento e captação da Petrobras, agora rebaixada para grau especulativo, o retorno facilmente passaria de 2030, quando a Agência In-ternacional de Energia estima que a demanda estará quase estagnada. Neste quadro, insistir em destinar 62% de todos os investimentos em energia do País a esta atividade (R$ 778 bi de R$ 1.263 bi) seria uma verdadeira aposta de roleta.

18. VAI DESENCALHAR? As reservas globais provadas de combustíveis fósseis continham 2.860 Gt CO2, em 2011. Na BOVESPA, por exemplo, havia 48 Gt Co2 desse mon-tante, apenas em petróleo, principalmente na Petrobras. O valor dessas empresas tem lastro em suas reservas, mas hoje o risco decorre do excesso de reservas em relação a quanto delas poderá ser utilizado. Para a tempe-ratura do planeta não aquecer mais de 2 graus - o limite para evitar im-pactos catastróficos - as emissões máximas até 2050 são estimadas entre 565 e 886 Gt. CO2. Se o que pode ser queimado é algo entre 20% a 30% das reservas provadas, já não é financeiramente sustentável o ciclo de inves-timentos destinados a explorar tais reservas. A alternativa é a progressiva diversificação dos ativos dessas empresas em direção aos renováveis, para evitar a exposição aos chamados ativos encalhados e proteger os interesses dos investidores.

19. DILUIR O RISCOSe ainda houver mercado que remunere os investimentos no pré-sal após 2030, a humanidade não teria evitado mudanças climáticas catastróficas. Já se o aquecimento for limitado a 2 graus, os investimentos no Pré–Sal nun-ca seriam pagos. Os investimentos em energia são subsidiados pelo Tesou-ro Nacional: reduzir o comprometimento com o pré-sal é, portanto, uma medida de redução de risco nas finanças públicas. Do lado da demanda, precisa deixar de incentivar o uso de gasolina e diesel, investindo em trens, metrôs, veículos de média capacidade, carros elétricos e modais não motori-zados. Do lado da oferta, eficiência energética, geração eólica, fotovoltaica, biocombustíveis e biomassa são alternativas que reduzem referido risco.

21. JÁ TEM A LEI A busca da eficiência energética, além de ser interessante economicamente e am-bientalmente, já é obrigação legal desde 2001, e a lei foi até regulamentada no mesmo ano. A lei foi votada pelo Congresso em resposta à crise energética da-quele ano, que gerou medidas emergenciais de racionamento. Um efeito dessas medidas foi a redução do consumo, que caiu em 12% e voltou ao nível anterior apenas em 2005, sem portanto afetar o crescimento econômico daqueles anos. Mas a lei visava tornar a eficiência uma política permanente, mas os governos se omitiram na implementação.

22. ENERGIA BARATA É ENERGIA POUPADA Aumentar a eficiência equivale, para todos os efeitos, a gerar energia no ponto de consumo. Esta abordagem já deu origem, na Europa e nos Estados Unidos, a leilões de eficiência, nos quais os consumidores vendem reduções futuras de consumo ao governo ou às concessionárias. Compra-se a redução porque é mais barato pagar para o consumidor reduzir sua demanda, do que enfrentar o custo de ampliar os sistemas de geração, transmissão e distribuição.

23. BANDEIRA 2.0 Hoje a tecnologia permite evoluir para redes inteligentes. É preciso gerar informa-ção e big data com medidores sobre onde e quanto se consome, dentro das residên-cias ou empresas, e onde e quanto se perde na transmissão e distribuição. A Ban-deira Tarifária recentemente adotada deve ser complementada por medidas como diferenciação do preço da energia ao longo do dia, medidores conectados na web e possibilidade de autogeração de eletricidade em micro escala nas residências. As empresas também devem parar de poder repassar as perdas para o consumidor.di-versificação dos ativos dessas empresas em direção aos renováveis, para evitar a ex-posição aos chamados ativos encalhados e proteger os interesses dos investidores.

24. ELIMINAR PEDÁGIOS É urgente corrigir as distorções de regulação que vão na contramão do inte-resse público, por exemplo aperfeiçoando o modelo de remuneração e ope-ração das fontes de geração distribuída. O preço pago a essas fontes deve-ria variar de forma inteligente, dependendo de sua conexão direta com as redes de distribuição local ou com a rede básica do SIN. Plantas de geração de energia elétrica de menor porte – como sistemas de cogeração a bagaço de cana, plantas de aproveitamento do biogás de aterros ou da biodigestão dos materiais orgânicos do resíduo sólido urbano – são ligadas às linhas da rede de distribuição local de energia elétrica. Assim não oneram a ope-ração das linhas de transmissão. É preciso reconhecer o benefício do custo evitado com a transmissão e com o melhor balanceamento das redes de distribuição, por situarem-se em pontos próximos aos centros de consumo.

20. COMPENSAInvestir em eficiência energética pode ter hoje custo inferior em 20% ao de construir usinas que poderiam ser evitadas (ou adiadas). Usando valores de 2014 da Agência Internacional de Energia (IEA), simulamos o impacto de re-duzir, em cinco anos, apenas 16 GWh dos 77GWh que perdemos hoje. O inves-timento em geração equivalente seria de R$ 12 bilhões (hidro) mais R$ 1,3 bi-lhões em térmica a gás, por um total de R$ 13,3 bilhões. Já o investimento em redução de perdas permitiria atingir o mesmo resultado com R$ 11 bilhões.