Antígona Final

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Antígona, os separados. Ensaio introdutório, tradução e notas para Antígona entre os Franceses, de Antonin Artaud por Fabiano Lemos. I É no vazio de uma cena antes tomada pela sua presença que ela não para de se anunciar. Mulher fálica, no momento em que, enfim, se assenhora daquilo que era seu antes dela mesma, ela se oferece tão inteira, embora tão brevemente, como espetáculo. “Olhem, notáveis filhos de Tebas, a última de suas princesas” 1 .Para depois sumir, retirando-se da vida com as próprias mãos, suicida altiva, e alcançar um destino que ninguém poderia lhe tomar, posto que a única lei capaz de conduzi-la era a sua. O que ela deixa atrás de si é o rastro de um abandono voluntário, intolerável: avesso e espelho de um amor desmedido. Um amor com os olhos fora do corpo, e que só pode amar o corpo como cadáver. Um amor de transcendência com ares de imperativo categórico, mas desonerado das prerrogativas morais deste, porque esse amor mesmo é fundador de uma moralidade outra, próprio de uma dinastia outra, que cumprirá, portanto, um destino igualmente outro. Eis aí, portanto, a ausência brilhante 1 SÓFOCLES, Antígona, doravante citada como Ant.,vv. 940-941.

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Antígona Final

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Antgona entre os franceses

Antgona, os separados.

Ensaio introdutrio, traduo e notas para Antgona entre os Franceses, de Antonin Artaud

por Fabiano Lemos.

I

no vazio de uma cena antes tomada pela sua presena que ela no para de se anunciar. Mulher flica, no momento em que, enfim, se assenhora daquilo que era seu antes dela mesma, ela se oferece to inteira, embora to brevemente, como espetculo. Olhem, notveis filhos de Tebas, a ltima de suas princesas.Para depois sumir, retirando-se da vida com as prprias mos, suicida altiva, e alcanar um destino que ningum poderia lhe tomar, posto que a nica lei capaz de conduzi-la era a sua. O que ela deixa atrs de si o rastro de um abandono voluntrio, intolervel: avesso e espelho de um amor desmedido. Um amor com os olhos fora do corpo, e que s pode amar o corpo como cadver. Um amor de transcendncia com ares de imperativo categrico, mas desonerado das prerrogativas morais deste, porque esse amor mesmo fundador de uma moralidade outra, prprio de uma dinastia outra, que cumprir, portanto, um destino igualmente outro. Eis a, portanto, a ausncia brilhante que nos pronuncia o nome de um destino: Antgona. E preciso saber ler os nomes.

O nome incessantemente dito: Antgona. Esse que inquietou nossa ratio ocidental desde a tragdia sofocleana, e que assombrou nosso bem urdido edifcio da razo moderna j que teria que assombr-lo, de qualquer modo, pela carga potencialmente destrutiva com que visa esfera da lei, mas tambm o domnio da vida. Desde que nos impusemos como tarefa construir o homem, Antgona ronda os cantos da arquitetnica de nossa racionalidade. Todo o movimento intelectual da Aufklrung e seus herdeiros mais distantes bem o souberam: de Hlderlin e Hegel a Brecht, o ritornelo se faz ouvir claramente, embora assumindo tonalidades diferentes.

Quando Antonin Artaud, de dentro do hospital psiquitrico de Rodez, em 1944, escreve seu pequeno texto Antigone chez les franais, ainda que para si mesmo, para deixar vazar de sua cabea a vastido de um mundo, nesse movimento ntimo, o gesto que se desenha duplo: o de uma tradio que se apresenta como universal, carregada intensamente no nome de Antgona, e uma inscrio, operada pela leitura personalssima que Artaud oferece desse nome. Antigone chez les franais, assim, demarca uma dinastia espiritual, a dinastia das Lumires. No o Esclarecimento do Gelehrter, do erudito, cuja figura Hegel e Hlderlin assumiram, apenas para nos mantermos nos exemplos citados, cada um a seu modo. O Esclarecimento, a Aufklrung, ainda exigia um encontro com o Uno, mesmo que sua figura fosse muito prxima do fogo Indiscernvel, como na leitura que Hlderlin faz da lava onde Empdocles se lanar, ou no resultado de uma luta que se traduz em antinomias resolvidas no Absoluto, como em Hegel. De uma ou de outra forma, a modernidade do idealismo alemo fez da origem um princpio, e mesmo um objetivo, um telos: um ponto de convergncia que sustenta as contradies no seio do Uno. Do outro lado do Reno, as Luzes j tomavam outros caminhos: a dinastia que nelas se anuncia a dos Iluminados.

A modernidade de Artaud uma modernidade de separados, desses seres que vislumbraram e foram tomados pelo amor que, h tantos sculos, atravessara Antgona e a dividira em duas: a viva, eterna, que deve cumprir seu destino transcendente, e a morta, o cadver, o corpo que se abandona. O texto de Artaud retraa os caminhos e modos dessa dinastia. Mas ele mesmo tambm pertence totalmente a ela. A Frana no girou menos em torno dessa herona grega to jovem e to insolente: do dramaturgo Robert Garnier, no sculo XVI, queles que eram contemporneos de Artaud, Jean Anouilh e Jean Cocteau, muitos foram os que lhe pagaram tributo. Fora do mbito literrio, no domnio mais profundo do imaginrio francs,talvez a linhagem de Antgona pudesse ser buscada mais alm, na insolncia incondicional de Joana DArc, como sugere o prprio Artaud, ou, como indica Cocteau no gesto sobretudo inflado do amor tortuoso de Charlotte Corday, que apunhalou Marat e se condenou morte em nome de uma transcendncia e de uma vida que no cabiam mais em seu corpo. O que torna os franceses fraternos a Antgona a medida de sua existncia bicfala: cadveres de si mesmos um corpo morto, abandonado voluntariamente, e uma alma pronta a enterr-lo, num gesto que uma homenagem, sobretudo a essa dinastia. Uma dinastia de separados.

II

Entre os franceses, como entre os alemes e mesmo os ingleses tambm Shelley e Thomas de Quincey pagaram seus tributos a Antgona : o retorno dessa que nos to familiar e to outra, no mais a personagem grega, mas a figura universal, a Antgona do Eterno, como dir Artaud , nunca assumiu tanto vulto quanto nos ltimos trezentos anos. Antgona entre os modernos desde quando Kant vem nos colocar essa incontornvel questo, O que o homem?, a voz do coro de Sfocles que surge, ao fundo, talvez no to ntida, e, certamente, no na mesma tonalidade, j que os problemas aqui ganharam uma dimenso propriamente crtica: Entre tantas maravilhas do mundo, a maior o homem [poll t dein koden anthrpou deinteron plei]. Mas para ns, modernos, o homem tornou-se opaco. E por isso, a pergunta, sempre retomada, traz consigo seus fantasmas.

A lio que os franceses aprenderam com Antgona, talvez mais que os alemes, foi o quanto a fora do transcendental, no tanto nos leva ao encontro do Uno contra a Vida, mas nos torna, em seu seio mesmo, separado dela. nessa condio que Antgona se universaliza: seu incestuoso amor de irm , sobretudo, um amor necrfilo, e esse amor, ao nos atravessar, reverte mesmo os valores da Vida e do que No-Vida. Foi Shelley quem percebeu agudamente esse movimento: Some of us have, in a prior existence, been in love with an Antigone, and that makes us find no full content in any mortal tie [Alguns de ns, em uma existncia anterior, se apaixonaram por Antgona, e isso nos leva a nenhum contentamento completo em nenhum lao mortal]. Talvez ningum tenha tido tanto essa mesma percepo quanto Antonin Artaud.

O contato de Artaud com a obra de Sfocles j era antigo quando o texto Antigone chez les Franais escrito; e lhe anterior,pelo menos, vinte anos: em 20 de dezembro de 1922, a adaptao de Jean Cocteau estria no Teatro Atelier de Paris. Nessa leitura extremamente sbria talvez pudssemos dizer mesmo minimalista da tragdia grega, Gnica Atanasiou, amiga ntima de Artaud, faria o papel ttulo, enquanto o prprio Artaud interpretaria o adivinho Tirsias, personagem carregado de um simbolismo muito prximo daquele que obras como Les nouvelles rvlations de ltre, anos mais tarde, viriam trazer luz. Se pensarmos nas j citadas referncias de Cocteau (Charlotte Corday), e do prprio Artaud em Antigone chez les Franais (Joana dArc), a relao com o universo alegrico de Antgona se amplia. Isso porque, em 1927, o papel de Marat apunhalado pela senhorita Corday no filme pico Napolon, de Abel Gance, interpretado por Artaud; e, no ano seguinte, o mesmo ocorre com o papel do monge Jean Massieu, em La passion de Jeanne dArc, de Carl Theodor Dreyer.

parte toda discusso em torno da datao precisa do texto de Artaud, certo que, poca em que escrito, Antgona ressurge fortemente no horizonte francs, com o vultuoso sucesso da adaptao de Jean Anouilh, que estria em 4 de fevereiro de 1944. Sucesso gerado, sobretudo, pela polmica em torno das questes polticas ali levantadas entre Antgona e Creonte, que em nada pareciam estranhas a uma opinio pblica submetida aos poderes da ocupao nazista deste perodo. Ao se desenharem no horizonte, esses elementos nos fornecem preciosas pistas sobre o movimento no qual o texto de Artaud se inscreve, ainda que, evidentemente, no possa dar conta dele como um todo. Afinal, como no encontrar nessa singular apologia do esprito francs, nesse grito contra o inimigo estrangeiro , uma reao s misrias da ocupao alem? Como no fazer de Antgona essa irm, que vir se colocar ao lado desses que foram divididos por dentro?

IIIA voz aguda de Artaud:

um verdadeiro Desesperado que vos fala, e que no conhece a felicidade de estar no mundo seno agora, que desistiu desse mundo, e que est absolutamente separado dele. Mortos, os outros no esto separados. Eles giram ainda ao redor de seus cadveres. Eu no estou morto, mas estou separado.

Nessa espcie de prefcio a Les nouvelles rvlations de ltre [As novas revelaes do ser], publicado por Artaud em 1937 sob a assinatura Le Rvl [O Revelado], o tema de Antigone chez les franais est adiantado, sucinta e sumariamente. Antonin Artaud faz parte de uma estirpe distinta da dos que rondam cegamente ao redor de seus cadveres; ele encontra o mundo somente sob a condio de estar separado dele. H, contra o ser que ns somos de fato, esse outro: o que nos vive. O verbo intransitivo viver utilizado em Antigone chez les Franais como transitivo direto, e essa construo fundamental. O outro nos separa no como algo que vivem em ns, ou atravs de ns, mas ns somos a sua prpria vida, como o esprito a vida do verdadeiro Ser. A inverso radical e se instala transcendentalmente: Ningum nunca pde ser Antgona sem ter sabido desde o incio dissociar de sua alma a fora que a compelia a existir, e ter sabido encontrar a fora contrria, de se reconhecer como diferente do ser que ela vivia e que a vivia

Antgona dupla, e ela o sabe desde o primeiro momento. A tragdia de Sfocles vem se alojar no instante de sua trajetria onde a jovem viva ouve o chamado da outra, a Eterna, que vem cumprir seu fatum. Seu destino se cumprir porque o singular destino de sua raa. Desde a remota meno de Homero sobre a dinastia de Antgona, sobre o suicdio da me de dipo (que aparece nesta altura como Epikaste, e no Jocasta) e do incesto que o desencadeou, fica claro que se trata de uma rvore genealgica muito particular, como o ser toda a dinastia dos Iluminados, dos Separados. A filha mais insurrecta de dipo no pertence cadeia contnua da humanidade, e isso exatamente por descender de sua infeliz estirpe: ela no se casar nem procriar, encerrando nela mesma uma dinastia que tambm no pode procriar, no sentido amplo do termo, j que Jocasta, s pode dar luz seus filhos na medida em que no saiu de sua prpria famlia o que faltou ao seu gesto foi precisamente a pro-criao. Na realidade, toda sua raa alheia desde sempre ao movimento reprodutivo dos homens: no foi o gesto universal da unio macho-fmea que gerou os Labdcidas; eles brotaram da terra, do gesto de Cadmus ao semear os dentes arrancados da serpente de Ares. Por isso o chamado da terra incontornvel: como parte da terra que Antgona reencontrar uma dinastia que se reverencia, no fundo de uma caverna incrustada na rocha com que acabar por se fundir. Ao lermos Sfocles com Artaud, reconhecemos o chamado: o verdadeiro Ser que responde ao apelo da terra.

pelo amor inelutvel, necrfilo e incestuoso, por Polinices, mas, em ltima instncia, por sua raa inteira,antes e depois dela, que Antgona se transformar em morta enquanto viva. A figura que melhor a representaria aqui seria a do kolosss, tal como definido por Jean-Pierre Vernant: enterrado na tumba vazia, ao lado de objetos pertencentes ao morto, o kolosss figura aqui como substituto do cadver ausente. Est no lugar do defunto. Ausente e presente ao mesmo tempo, Antgona um duplo. E dessa forma que ela aparecer em diversas passagens do texto como na que Creonte adverte Ismnia, quando esta chora a morte iminente da irm: No diga mais esta; ela no existe mais. Os separados vo ao encontro desse estado insustentvel em que a vida se recobriu de uma morte intermitente, para a qual o suicdio j havia comeado antes, bem antes.

Antecedendo Antigone chez les Franais quase vinte anos, e anunciando, surpreendentemente este, a resposta de Artaud a uma enqute proposta pela revista Rvolution surraliste faz ecoar a voz do kolosss que havia sido a filha de dipo, do escuro silencioso de sua cmara nupcial de pedra e terra:

O SUICDIO UMA SOLUO? No, o suicdio ainda uma hiptese. Eu pretendo ter o direito de duvidar do suicdio como de todo o resto da realidade.(...)Eu ignoro o que so as coisas, eu ignoro todo estado humano, nada do mundo se volta pra mim, se volta em mim. Eu sofro terrivelmente da vida. No h estado que eu possa suportar. E certamente eu j estou morto h muito tempo, eu j me suicidei. SUICIDARAM-ME, quer dizer.Mas o que pensarias de um suicdio anterior, de um suicida que nos faria voltar atrs, mas do outro lado da existncia, e no do lado da morte. Somente isso teria uma valor para mim. Eu no sinto o apetite para a morte, eu sinto o apetite de no existir, de no cair jamais nesse passatempo de imbecilidades, de abdicaes, de renncias e de encontros obtusos que o eu de Antonin Artaud, bem mais fraco que ele.O eu deste instvel errante e que, de tempos em tempos, vem apresentar sua sombra sobre a qual ele mesmo foi cuspido, e h muito tempo, esse eu de bengalas e se arrastando, esse eu virtual, impossvel, e que se encontra completamente na realidade. Ningum sentiu sua fraqueza como ele, que a fraqueza principal, essencial, da humanidade. De destruir, de no existir.Sobre a situao do texto e sua traduo

O texto Antigone chez les Franais, escrito por Artaud em 1944, enquanto ainda era interno do Hospital de Rodez, foi publicado primeiramente em 1977 em Nouveaux crits de Rodez, com prefcio de seu psiquiatra Gaston Ferdire ver adiante, nota 2 da traduo e integra o volume IX de suas Oeuvres compltes, editadas pela Gallimard (pginas 124 a 126), e o volume intitulado Oeuvres, publicado pela mesma editora, coleo Quarto (pginas 939 a 941) ambos nos serviram de base para a traduo. As notas das Oeuvres completes so assinaladas [O.C.]; as da coleo Quarto, [Q.]. As notas no assinaladas so nossas.No h notcia da publicao da traduo desse texto para outras lnguas, o que o torna, evidentemente, um texto muito pouco conhecido.

Como a maior parte dos textos de Artaud, Antigone chez les Franais carrega consigo as marcas de uma linguagem torturada: na polissemia mstica dos termos escolhidos, na repetio ritual desses mesmos termos, mas, sobretudo no aspecto oral. A escrita de Artaud exemplar nesse sentido, ela um grito e um grunhido mas no gritos e grunhidos quaisquer: fazem parte de uma arquitetura mgica do texto em que sua leitura se apresenta como encantao deve-se ler Artaud no apenas em voz alta, mas em plenos pulmes, nas dinmicas possveis de uma respirao.

Em nossa traduo pretendemos nos aproximar sempre dessa caracterstica elptica e vitalista do texto de Artaud. Por isso, adotamos a literalidade em detrimento de uma traduo mais potica, com cuidados especiais quanto s polissemias ao longo do texto, mantendo as repeties, as construes sintticas nem sempre convencionais, a maneira de grafar as palavras. Contudo, h uma exceo no que diz respeito sua pontuao, e, portanto, ao seu ritmo: o texto original tornar-se-ia incompreensvel para o leitor brasileiro caso modificaes nesse sentido no fossem feitas. Temos conscincia de que, com isso, uma parte importante do texto se perde. Mas essa perda intrnseca s opes que fizemos quanto ao sentido de uma traduo. Resta-nos apenas remeter o leitor fonte primeira do trabalho que empreendemos aqui: este, apenas como uma via de acesso provisria a um pensamento que no se deixa emaranhar nas sinuosidades da linguagem, mas faz dela a matria de uma impossvel e rara luminescncia.

Antgona entre os Franceses 1Antonin Artaud

Gaston Ferdire 2O nome da Antgona real, que caminhou para o suplcio na Grcia 400 anos antes de Cristo, um nome de alma 3 que no se pronuncia mais em mim seno como um remorso e como um canto. Caminhei bastante para o suplcio para ter o direito de enterrar meu irmo, o eu 4 que Deus me deu, e do qual eu nunca pude fazer o que queria porque todos os eus diferentes de mim mesmo 5, insinuados no meu prprio, como no sei quais parasitas, desde meu nascimento me impedem disso.

Que me restituir tambm minha Antgona para me ajudar nesse ltimo combate. O nome de Antgona um segredo e um mistrio, e para chegar a ter piedade de seu irmo a ponto de se arriscar morte e de caminhar para o suplcio por ele, foi preciso que Antgona trouxesse nela um combate que ningum nunca disse 6. Os nomes no vm do acaso nem do nada, e todo belo nome uma vitria que nossa alma alcanou contra ela no absoluto imediato e sensvel do tempo.

Para que esse nome indescritvel de vitria volte a mim na encarnao pessoal e formal de uma mulher e de uma irm, preciso que eu o tenha merecido como ela, e que ela o tenha merecido como eu.

No se irmo e irm sem se ter trazido esse supremo combate contra seus inimigos, de onde o eu pessoal saiu como uma prxima e familiar vitria sobre as foras de no sei que abominvel infinito.

O irmo de Antgona morreu na guerra, se debatendo contra seus inimigos, e mereceu que Antgona se aproximasse dele na hora de enterr-lo, mas ela mesma no pde merecer enterr-lo sem um combate familiar quele de seu irmo, no sobre o plano da vida real, mas sobre aquele do eterno infinito.

Ora, o infinito no nada seno esse alm que quer sempre ultrapassar nossa alma, e nos faz crer que est em outro lugar fora de nossa alma, quando o inconsciente de nossa alma que esse alm do infinito.

Antgona o nome dessa vitria terrvel que o eu herico do ser alcanou sobre as foras obtusas e fugidias de tudo o que em ns no nem ser nem eu, mas se obstina em querer se fazer tomar como o ser de nosso eu.

Ningum nunca pde ser Antgona sem ter sabido desde o incio dissociar de sua alma a fora que a compelia a existir, e ter sabido encontrar a fora contrria, de se reconhecer 7 como diferente do ser que ela vivia e que a vivia 8.

O ser que eu vivo no se apossar de mim, e eu no me apossarei desse ser para morrer e para sumir; mas para conseguir me desatar e no me obscurecer na iluso ltima, que consiste em crer que eu no sou seno o corpo onde a vida me manteve enterrado, necessria essa mo de piedade que a fora Antgona do ser soubera desatar de seu ser contra o ser onde ela se via.

Pois ningum pde chorar sobre um morto se ele no foi primeiramente chorado sobre si mesmo, e se ele no soube enterrar seu si mesmo 9 como o outro de seu eu: o morto.

Essa fora de piedade francesa. uma fora de honestidade interna que nos incita a 10 nos mantermos francos conosco, e a nunca nos mentirmos na tormenta do inconsciente e dos corpos.

Vrios corpos estrangeiros montam em ns a toda hora, querendo tomar o lugar intocado de nossa alma, e o Francs esse eu eterno que nunca abandonou sua alma, e como So Lus, considerou melhor morrer da peste que ceder aos seus inimigos 11.

E ns no temos maior inimigo no mundo que nosso corpo no momento da morte.

Ningum pde ser francs e nascer na Frana se no soube um dia se dissociar deste corpo que nos prende como um inimigo estrangeiro, e contra o qual ele ganhou sua natureza, e tudo o que est na Frana e Francs a conseqncia deste combate; mas que se lembra dele ainda hoje.

A terra da Frana foi o teatro de um estranho e misterioso combate que teve lugar em realidade e que tinha sua data na histria, mas a histria no fala dele. E por qu?

Milhares de homens morreram na Frana em grupo e por suas idias, e a histria no falou jamais disso.

Heris se fizeram queimar um dia como soldados que marcham no fogo, e eles o fizeram para perder seus corpos, e afim de reencontrar neles um outro do qual a Antgona da piedade eterna pudesse se aproximar para enterr-lo, e lhe dar algo para ressucitar.

E isso aconteceu numa poca vizinha a Joana dArc e seu suplcio, pois o suplcio de Joana dArc tudo o que a histria escrita soube guardar e relatar desta vontade de combusto corporal pela qual o eu Francs do homem se desembaraa do inimigo estrangeiro 12.

Eles morreram para superar seus corpos, esses Franceses, mas onde esto e onde esperam agora, que sua irm Antgona retorna, que lhes lembrar do fogo em um corpo, e dar uma terra a esse corpo, reconquistado atravs do fogo, para que sua alma pudesse sempre habit-lo?

Eles esto na Frana, e em corpos de Franceses vivos que eles esperaram at hoje que a Antgona do Eterno volte a ser quem lhes permitir reviver suas mortes.

Isso afim de reencontrar a vida.

A Frana no foi denominada a terra dos heris sem uma razo extraordinria, e porque ela foi a terra daqueles que mais preferiram ir ao fogo, e sob a terra, que consentir com esse corpo estrangeiro que vive sobre nossa alma como um estrangeiro. Desta terra onde eles tombaram, a Antgona da eterna luz descer para reergu-los.NOTAS

1. Esse texto, no assinado, est escrito com tinta azul escuro sobre uma folha dupla, de papel branco, de 19,9 x 30,9 cm. Alm das correes feitas com a mesma tinta, efetuadas no correr da redao, recebeu, posteriormente, correes a lpis, e, depois, com tinta preta. O sr. Chaleix, que garantiu a publicao de Nouveaux crits de Rodez, lanou a hiptese de que esse texto poderia ser datado dos dias que seguem uma carta escrita ao doutor Ferdire, prxima a 9 de maro de 1945, argumentando a partir do fato de que carta e texto so escritos com a mesma tinta e a mesma pena. De nossa parte, tnhamos notado que Antigone chez les Franais tinha sido escrita com uma tinta mais azul escuro, ainda que, para a carta, a tinta utilizada fosse claramente o azul. Por outro lado, a grafia de Antonin Artaud nesse texto est tambm completamente prxima daquela da carta escrita ao doutor Ferdire em 2 de abril de 1944, por exemplo, carta escrita tambm com tinta azul. verdade que sua escrita [criture] variou muito pouco de 1943 a 1945, e apenas no comeo de 1946, quando suas relaes com o exterior so precisadas, que a esperana de sua sada tomou corpo, que ela se transformou, e como que se liberou, verdadeiramente. A nica coisa que est certa a que esse texto posterior a 5 de fevereiro de 1944, j que, na dedicatria, o patrnimo Ferdire, que Antonin Artaud, desde sua chegada em Rodez, escrevia Ferdires, est ortografado corretamente. Ora, a ltima carta datada onde se observa a ortografia errnea a de 5 de fevereiro de 1944. Teramos, contudo, tendncia a pensar que o texto foi escrito em 1944, isso em razo mesmo do material: a folha dupla descrita acima. Com efeito, todos os textos escritos em 1943 e 1944 que pudemos ter em mos tinham como material folhas soltas, simples ou duplas, de diversos formatos, enquanto que, a partir de fevereiro de 1945, quando realmente voltou a escrever, Antonin Artaud utilizou pequenos cadernos escolares, dos quais destacava folhas quando queria passar um texto a limpo. Foi o caso, entre outros, das Mres ltable eCentre-Noeuds (Cf. Oeuvres completes, t. XIV, I, pp.28-31 e pp. 25-27). [O.C.]2. Gaston Ferdire (19071990) era diretor do hospital psiquitrico de Rodez quando aceitou em seu estabelecimento, por intermdio do poeta surrealista Robert Desnos, a internao de Antonin Artaud, que a chega no dia 11 de fevereiro de 1943. Amigo dos surrealistas, e ele mesmo com intenes poticas, o doutor Ferdire acompanhou atentamente o caso, conseguindo no apenas obter uma melhora geral de seu quadro, como tambm conquistar embora no de forma constante ou regular a prpria afeio de Artaud. A oscilao dos afetos de Artaud em relao ao diretor de Rodez comeou a se dar principalmente a partir de junho de 1943, quando o mdico inicia as sesses de eletrochoques tratamento ainda em fase experimental, inventado apenas cinco anos antes pelo psiquiatra italiano Ugo Cerletti que se estendero at a sada de Artaud do hospital, em 25 de maio de 1946. De todo modo, Gaston Ferdire incentivava irrestritamente a produo textual de Artaud, e foi responsvel, inclusive, pelo prefcio e pela organizao, em 1977, dos Nouveaux crits de Rodez.

3. Embora no seja possvel precisar quais so as referncias de Artaud nesse sentido, ou mesmo se h alguma referncia, o nome de alma [nom dme] entendido por diversas religies no ocidentais (especialmente entre as tribos indgenas ou africanas, como o caso dos Akan) como o nome que se ope ao nome dado a algum por ocasio de seu nascimento, que seria, assim, um nome provisrio, ou fictcio. O nome de alma, sendo o mais verdadeiro, se deixaria revelar, atravs de uma comunicao espiritual direta, como uma espcie de nome celeste, onde a misso ou o destino de cada um durante sua vida estaria registrada. Cf.. RADCLIFFE-BROWN, A.R. e FORDE, D. Sistemas Africanos de Parentesco e Casamento, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1981.

4. Ao longo do texto traduzimos ambas as palavras moi e je como eu, colocando o termo em itlico quando se trata do primeiro caso. S marcamos o vocbulo com a inicial maiscula quando o prprio Artaud assim procede.

5. No original, tout les moi autres que moi-mme.

6. Todo o incio do texto de Artaud est fundado sobre o jogo sonoro que ele ouve entre o nome de Antgona e o grego agn (luta, combate). [Q.]7. Antonin Artaud escreveu originalmente: que a compelia a existir, e se reconhecer..... Em um primeiro momento, adicionou a lpis na entrelinha superior o seguinte: e sem ter sabido encontrar a fora. Essa adio foi riscada com tinta preta e substituda pela seguinte: e ter sabido encontrar a fora contrria; da mesma forma de foi escrito em negrito com tinta preta sobre e. [O.C.]8. No original, ltre quelle vivait et qui la vivait, construo atpica de Artaud que se repetir em seguida.

9. [Originalmente], ...enterrar este si mesmo...[O.C.]

10. [Originalmente], segue riscado: saber. [O.C.]

11. Saint Louis, ou Louis IX, rei da Frana a partir de 1226, at sua morte, em 1270, durante uma epidemia de peste que dizimou o exrcito da oitava cruzada, organizada por ele. Louis IX ficou conhecido pela maneira como agregou s exigncias de seu governo a exaltao de sua f crist.12. [Originalmente], ...se desembaraa do estrangeiro.[O.C.]

BIBLIOGRAFIA

ANOUILH, Jean. Antigone, Paris: La Table Ronde, 1946.

ARTAUD, Antonin Oeuvres compltes, t. I, II, Paris: Gallimard, 1976.

________________, Oeuvres complptes, IX, Paris: Gallimard, 1979.

________________, Oeuvres, coll. Quarto, Paris: Gallimard, 2004.

COCTEAU, Jean Thtre, I, Paris: Gallimard, 1948.

HOMRE, Odysse, Paris: Garnier, 1964.SHELLEY, Percy Bysshe The Letters of Percy Bysshe Shelley Ed. Frederick L. Jones. 2 vols. Oxford: Clarendon Press, 1964.

SOPHOCLE, Antigone, trad. de Paul Mazon, d. bilingue, Paris: Les Belles Lettres, 1997

SOPHOCLE, Antigone in Thtre complet, trad. Robert Pignarre, Paris: Garnier-Flammarion,1999.

VERNANT, Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

SFOCLES, Antgona, doravante citada como Ant.,vv. 940-941.

Antigone chez les franais, doravante citada como AF, p. 126.

COCTEAU, J. Antigone Place de la Concorde in Thatre, t. I, p. 35.

Georges Steiner traa o percurso dessa personagem sofocleana e de suas conseqncias na histria do pensamento ocidental, das primeiras recepes entre os autores gregos at Brecht. Em seu Antigones (1984), livro a que o presente estudo deve muito, o limite desse amplo panorama e da profundidade de sua anlise lembrado pelo prprio autor: Nunca se elaborou, nem se poder elaborar um catlogo completo do tema de Antgona, explcito e implcito, desde suas origens pr-picas at o presente. O campo excessivamente vasto (Antgonas, trad. espanhola, p. 149).

AF, 126.

KANT, Lgica, Ak 25.

Ant., vv. 332- 333.

SHELLEY, P. B. Letter LX, October 22, 1821 in Letters from Italy, p. 32.

Muito embora o prprio Artaud, em carta esposa de Edouard Toulouse, psiquiatra e editor da revista Demain, parea minimizar a relevncia de seu papel: Antigone foi encenada, mas a pea muito curta (25 minutos), meu papel tem apenas vinte linhas, o que no suficiente para se fazer notar Cf.A madame Toulouse, vers la fin de dcembre 1922 in Oeuvres compltes, t. I, II, p. 95.

Sobre isso, ver a nota 1 da traduo.

AF,p. 126.

Sobre a situao de Artaud enquanto interno de um hospital psiquitrico, as provaes dos pacientes e a calamidade dos estabelecimentos mdicos durante a ocupao nazista, o filme La vritable histoire d'Artaud le Mmo, de Grard Mordillat (1993) nos oferece um excelente panorama.

ARTAUD, A. Les nouvelles rvlations de ltre in Oeuvres compltes, t. VII.

AF, p. 125.

HOMERO, Odissia, XI, 271.

Cf. Apollodorus 3.22, Pausanias 9.10.1, Argonautica 3.1179f, Hyginus Fab 178, Metamorphoses 3.874, Dionysiaca 4.352

Ant., v.949: HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=genea%3D%7C&bytepos=93020&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" geneai HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ti%2Fmios&bytepos=93020&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" tmios.

VERNANT, J.-P. Mito e pensamento entre os gregos, p. 308.

Ant. v. 567: HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ll%27&bytepos=58889&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" all' HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=h%28%2Fde&bytepos=58889&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" hde HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=me%2Fntoi&bytepos=58889&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" mntoi HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=mh%2F&bytepos=58889&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" m HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=le%2Fg%27&bytepos=58889&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" leg': HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ou%29&bytepos=58889&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" ou HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ga%2Fr&bytepos=58889&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" gar HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=e%29%2Fst%27&bytepos=58889&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" est' HYPERLINK "http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=e%29%2Fti&bytepos=58889&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0185" \t "morph" eti". A traduo de Paul Mazon, em outros pontos criticveis, parece ser mais precisa que a de Robert Pignarre. Aquele traduz Mais ne dis plus celle-ci; elle nexiste plus, enquanto esta parafraseia para: Ne parle plus de ta soeur: tu na plus de soeur. Cf. as tradues utilizadas na Bibliografia.

ARTAUD, Enqute in Oeuvres compltes, t. I, II, p.20-21.