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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
ÂNGELA MÁRCIA DAMASCENO T. BARBOSA
ANTIGOS CONTOS, NOVAS HISTÓRIAS: A LITERATURA INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
FEMININA
Salvador 2010
ÂNGELA MÁRCIA DAMASCENO T. BARBOSA
ANTIGOS CONTOS, NOVAS HISTÓRIAS: A LITERATURA INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
FEMININA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens - PPGEL da Universidade do Estado da Bahia como requisito para obtenção do título de mestre. Orientador: Sílvio Roberto dos Santos Oliveira.
Salvador 2010
FICHA CATALOGRÁFICA – Biblioteca Central da UNEB Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592
Barbosa, Ângela Márcia Damasceno Teixeira Antigos contos, novas histórias: a construção da identidade feminina na literatura infantil / Ângela Márcia Damasceno Teixeira Barbosa. – Salvador, 2010. 118 f. Orientador: Silvio Roberto dos Santos Oliveira. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus I. 2010. Inclui referências. 1. Literatura infanto-juvenil. 2. Contos de fadas. 3. Mulheres na literatura. 4. Liderança em mulheres. I. Oliveira, Silvio Roberto dos Santos. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 808.899282
ÂNGELA MÁRCIA DAMASCENO T. BARBOSA
ANTIGOS CONTOS, NOVAS HISTÓRIAS: A LITERATURA INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
FEMININA
DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM, PARA OBTENÇÃO
DE TÍTULO DE MESTRE.
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
SALVADOR, 08 DE outubro DE 2010
Apresentada à Comissão Examinadora composta pelos professores:
ORIENTADOR:
PROFESSOR DOUTOR SÍLVIO ROBERTO DOS SANTOS OLIVEIRA Professor do Departamento de Letras da Universidade do Estado da Bahia
Doutor em Teoria e História Literária EXAMINADORES:
PROFESSORA DOUTORA REHENIGLEI REHEM Professora Adjunta do Departamento de Letras e Artes da Universidade
Estadual de Santa Cruz Doutora em Teoria Literária
PROFESSORA DOUTORA VERBENA MARIA CORDEIRO ROCHA Professora Titular da Universidade do Estado da Bahia
Doutora em Teoria Literária
A minha mãe e meu pai (in memorian), que sempre me incentivaram na busca pela realização dos meus sonhos. Em especial à minha avó Guiomar (in memorian), minha fonte de sabedoria e exemplo de vida. Ao meu esposo Nixon, pelo apoio e dedicação.
AGRADECIMENTOS
Agradecer é reconhecer a importância do outro em nossas vidas.
Para a Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT o agradecimento é parte opcional da dissertação, entretanto para mim agradecer é parte essencial além de ser um gesto de carinho. Ninguém vive sozinho e a todo o momento precisamos do outro e aprendemos com ele. É claro que existem pessoas que participam mais das nossas vidas e tornam-se especialíssimas. Elas nos ajudam, nos apoiam e estão presentes em todos os momentos. É para essas pessoas especiais que escrevo estas palavras e quero agradecer de todo o meu coração por existirem em minha vida.
A DEUS, meu pai onipresente, que na sua infinita bondade nunca me desampara. Se estou feliz ou triste sinto a tua presença. E no momento da construção dessa dissertação o Senhor me orientou, me apontou o caminho das ações e das palavras, me deu sabedoria para continuar e me carregou quando mostrei cansaço.
A minha avó Guiomar Damasceno (in memorian), fonte de sabedoria, meu exemplo, será eternamente amada. Nunca me esquecerei das suas orações para que eu conseguisse prosseguir na minha formação acadêmica.
A meu pai (in memorian), por ser o incentivador que privilegiava a minha formação; por ser para mim exemplo de força; por me mostrar que há sempre motivos para seguir em frente e me fazer aprender tanto.
A minha mãe, por ter sido o contínuo apoio em todos esses anos, ensinando-me, principalmente, a importância da construção e coerência de meus próprios valores. Agradeço por ter me ensinado a ser gente, a lutar pelos meus objetivos. Agradeço, de forma muito carinhosa, a atuação de minha mãe no período de construção deste trabalho. Sua crença absoluta na capacidade de realização a mim atribuída foi, indubitavelmente, o elemento propulsor desta dissertação. Minha pequena, meu chaveirinho, meu amor, minha vida.
A Nixon Barbosa de Souza, meu esposo, amigo e companheiro nesta trajetória, que soube compreender a fase pela qual eu estava passando. Durante a realização deste trabalho, sempre tentou entender minhas dificuldades, angústias e minhas ausências. Agradeço-lhe, carinhosamente, por tudo isto. Amo-te.
A Jorge (grande e amado Popa – in memorian), Iracy, Flávia, Alan e Aline Damasceno pelo apoio e torcida.
A Valdice Guimarães de Souza Santos (in memorian), por me ensinar a ser guerreira sempre.
A Sanny (in memorian) e Osmar agradeço pelo exemplo de companheirismo e amizade. Amo vocês.
Aos meus psicólogos preferidos, Kátia Antas e Tonivaldo Barbosa, pela disponibilidade em ajudar sempre e incentivar a minha entrada no mestrado.
Um agradecimento especial à Laion, Indira e Olga que tornam os dias da tia mais encantados e para Ravena, boas-vindas!
A Universidade do Estado da Bahia pelo acolhimento e por me proporcionar a oportunidade de aprender cada vez mais.
Ao Professor Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira agradeço a consideração de ter aceitado a orientação desta dissertação. Agradeço também suas sugestões, correções e a confiança em mim depositada.
Incluo, de forma especial, o nome das professoras: Doutora Reheniglei Rehem e Doutora Verbena Maria Cordeiro Rocha, pois suas ideias e sugestões durante a qualificação permearam meu trabalho. Reheniglei, meu exemplo de profissional, e Verbena pela atenção dispensada a todos aqueles que solicitam sua ajuda e orientação.
Não posso esquecer de agradecer aos professores do PPGEL. Entramos com sede de conhecimento e vocês nos incentivaram a buscá-lo nas obras e na vida.
A Camila e Danilo, funcionários do PPGEL que nos atendem com gentileza e competência.
Agradecer aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens – PPGEL não é tarefa fácil, mas vou tentar. Vocês são companheiros de academia e de vida. Esses dois últimos anos foram anos difíceis e encontrei nos colegas do mestrado o apoio e gestos de carinho. O meu muito obrigada. Nunca me esquecerei de vocês.
A Marcos Bispo dos Santos e Marcos Dal Bello pelas correções e apoio.
A Elisabeth pela disponibilidade na feitura do abstract, além da amiga atenciosa que és.
A Juliana Santos Menezes pelo companheirismo na formação acadêmica desde a graduação.
A Rafael Ângelo e Nixon Barbosa de Souza, pelo apoio técnico e paciência com as minhas angústias.
Aos meus alunos da Universidade do Estado da Bahia – Campus II – Alagoinhas e do Instituto Federal da Bahia – IFBA, Camaçari – Dias D’Ávila, pela torcida e carinho.
Aos meus amigos que, de uma forma ou de outra, contribuíram com sua amizade para a realização deste trabalho, gostaria de expressar minha profunda gratidão.
Literatura é isso, um texto com face oculta, fundo falso, passagens secretas, um texto com
tesouro escondido que cada leitor encontra em lugar diferente e que para cada leitor é outro.
Marina Colasanti
Livros não mudam o mundo; quem muda o mundo são as pessoas; os livros mudam as
pessoas.
Mário Quintana
RESUMO
A identidade tem se destacado como uma questão central nas discussões contemporâneas no momento em que se discute o contexto das reconstruções globais das identidades nacionais e a reafirmação das identidades pessoais e culturais. Dessa maneira, esta dissertação tem por objetivo principal apresentar um estudo sobre as funções sociais, destinadas à figura feminina, presentes nas narrativas infantis contemporâneas produzidas por escritoras e escritores brasileiros, entendendo a relevância desses textos na identificação/construção de novas identidades para as mulheres na sociedade. Para tanto, a metodologia utilizada consistiu em uma análise descritiva e conceitual fundamentada em estudos teóricos e pesquisas sobre a revisitação dos contos infantis numa perspectiva cultural, comparativista e intertextual. No segundo capítulo, abordam-se as representações identitárias femininas na sociedade. No terceiro capítulo, faz-se uma análise de duas obras produzidas por escritores brasileiros com o objetivo de averiguar quais funções sociais são atribuídas às personagens femininas criadas por eles. São elas: O fantástico mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira e Príncipes e princesas, sapos e lagartos, de Flávio de Souza. Por fim, no quarto capítulo, analisam-se obras de escritoras brasileiras com o mesmo objetivo do capítulo anterior. As obras escolhidas foram: Mulheres de Coragem, de Ruth Rocha e História meio ao contrário, de Ana Maria Machado. A conclusão das análises mostra narrativas nas quais se encontram antigas e novas funções sociais sendo exercidas pelas mulheres. Mulheres frágeis e fortes, boas e más, defendidas e defensoras, que buscam sua emancipação, desconstroem estereótipos. Assim, a literatura propicia uma reorganização das percepções do mundo e, desse modo, possibilita uma nova ordenação das experiências existenciais da criança. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Infanto-Juvenil. Contos de Fadas. Papel Social das Mulheres. Intertextualidade.
ABSTRACT
Identity has taken a central role in contemporary discussions in the moment when the context of national identities global reconstructions and the reaffirmation of personal and cultural identities are debated. Thus, the main objective of this dissertation is to present a study about the social functions designated to feminine figure, present in contemporary children narratives produced by Brazilian writers, extending the relevance of these texts to the identification/construction of new identities for women in society. With this purpose, the methodology is a descriptive and conceptual analysis based in theoretical studies and researches about revisitation of children stories in a cultural, comparativist, and intertextual perspective. In the second chapter, they board feminine identity representations in society. In the third chapter, it have made an analysis of two works produced by Brazilian writers with the objective of examining the social functions attributed to the feminine characters in the works: O fantástico mistério de Feiurinha, by Pedro Bandeira, and Príncipes e princesas, sapos e lagartos, by Flávio de Souza. Finally, in the fourth chapter, it analyze works by female Brazilian writers with the same objective of the previous chapter. The chosen works were: Mulheres de Coragem, by Ruth Rocha and História meio ao contrário, by Ana Maria Machado. The conclusion of research shows narratives in which it find old and new social functions practiced by women. Women who are fragile and strong, good and bad, which is defended, but can defend as well, who search for emancipation, and deconstruct stereotypes. Therefore, literature facilitates a reorganization of world perceptions, what enables a new ordering of child’s existential experiences. KEY-WORDS: Children’s Literature. Fairy Tales. Women Social Role. Intertextuality.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Capa da obra O fantástico mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira.
37
Figura 2 – Branca Encantado almoça com a família.
40
Figura 3 – Branca Encantado costurando enquanto aguarda o nascimento do sétimo filho.
49
Figura 4 – Senhorita Chapeuzinho Vermelho observa as amigas grávidas.
55
Figura 5 – Cinderela exercendo atividades domésticas.
57
Figura 6 – Rapunzel Encantado e sua longa trança.
61
Figura 7 – Bela Adormecida Encantado bocejando.
64
Figura 8 – Desabafo de Bela-Fera Encantado com a amiga Branca Encantado.
67
Figura 9 – Jerusa contadora de histórias.
68
Figura 10 – Feiurinha e as Bruxas Malvada, Ruim e Piorainda.
70
Figura 11 – Capa da obra Príncipes e Princesas, sapos e lagartos: histórias modernas de tempos antigos, de Flávio de Souza.
73
Figura 12 – Princesa Linda do laço-de-fita.
78
Figura 13 – Úrsula de Bronislávia.
80
Figura 14 – Beijo do sapo.
84
Figura 15 – Príncipe que voltou a ser sapo.
85
Figura 16 – Princesa Silvana do Reino de Vronka.
86
Figura 17 – Capa da obra Mulheres de Coragem, de Ruth Rocha.
89
Figura 18 – Atividades destinadas às mulheres e desenvolvidas, também, pelas filhas do barão de Aragão.
90
Figura 19 – Isabel participa da guerra.
92
Figura 20 – Isabel se prepara para encontrar o príncipe.
94
Figura 21 – Casamento da princesa Beatriz com o príncipe Filipe.
99
Figura 22 – Mulheres de coragem salvam e carregam seus maridos.
102
Figura 23 – Capa da obra História meio ao contrário, de Ana Maria Machado.
103
Figura 24 – A pastora e o príncipe. 107
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
14
2 REPRESENTAÇÕES IDENTITÁRIAS 20
2.1 IDENTIDADES FEMININAS EM CONSTRUÇÃO 20
2.2 CONTO DE FADA, DE ENCANTAMENTO OU MARAVILHOSO 27
2.3 CONTO DE FADA: PERCORRENDO O CAMINHO DO ENCANTAMENTO
30
3 ELAS POR ELES: ESCRITORES E IDENTIDADE FEMININA
34
3.1 INTERTEXTUALIDADE E LITERATURA INFANTIL NO BRASIL 34
3.2 DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS ENTRE HISTÓRIAS ENCANTADAS 36
3.2.1 Princesas, bruxas e contadoras de história revisitadas e recriadas em O
fantástico mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira
44
3.2.2 Branca de Neve
46
3.2.3 Chapeuzinho Vermelho
50
3.2.4 Cinderela
57
3.2.5 Rapunzel
59
3.2.6 A Bela Adormecida
62
3.2.7 Bela-Fera
65
3.2.8 Jerusa: Contadora ou Encantadora de histórias?
68
3.2.9 Feiurinha
69
3.3 MULHERES NA OBRA PRÍNCIPES, PRINCESAS, SAPOS E LAGARTOS, DE FLÁVIO DE SOUZA
73 3.3.1 Princesas e Príncipes (Des) Encantados
74
3.3.2 A Princesa e a solidão
77
3.3.3 Amores e Desamores para Úrsula da Bronislávia
78
3.3.4 Princesa solteira procura... 80
3.3.5 A Princesa que se casou com um Príncipe namorador
82
3.3.6 Princesas que beijaram (ou engoliram) sapos
83
4 ELAS POR ELAS: ESCRITORAS E IDENTIDADE FEMININA
87
4.1 PRINCESAS E ESPOSAS REINVENTADAS NA OBRA MULHERES DE CORAGEM, DE RUTH ROCHA
87
4.1.1 Lenda da Moça Guerreira 87
4.1.2 Romancinho Romanceiro
96
4.1.3 Mulheres de Coragem 99 4.2 PRINCESAS E CAMPONESAS DE UMA HISTÓRIA MEIO AO CONTRÁRIO,
DE ANA MARIA MACHADO
102 5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
109
REFERÊNCIAS
113
1 INTRODUÇÃO
As mulheres são temas de diversos estudos no mundo inteiro. E um dos pontos que
suscita mais debates e discussões são os papéis sociais destinados às mulheres. Esses papéis
destinados às mulheres, como também aos homens, são socialmente construídos e
diferenciados, e implicam em assumir responsabilidades que lhes são atribuídas pela
sociedade.
Por muito tempo a mulher, assumiu o papel de “sexo frágil”, emotiva, dependente,
instintivamente maternal e esposa dedicada ao marido e aos filhos. Esposa que também
deveria ser seguidora dos costumes que regulavam o comportamento delas em sociedade.
Nesse contexto quando solteira passava o tempo (ou deveria passar) aprendendo a bordar,
costurar, cozinhar, dentre outras atividades aprendidas, quase sempre, com a finalidade de
arranjar um bom esposo. A mulher parecia não realizar mais nada ou, pelo menos, deveria se
concentrar nessas atividades. Elas se preocupavam com o casamento e os pais buscavam
acordos com outras famílias e, nessas conversas, noivos e noivas eram escolhidos, na maioria
das vezes, por interesses políticos ou financeiros. Entretanto, essa realidade parece não mais
traduzir de forma integral a situação da mulher na sociedade.
No século XXI, elas ocupam funções e papéis sociais bem distintos. Numerosas
transformações ocorridas no campo dos costumes e da vida privada comprovam essas
mudanças: os casamentos acontecem sem a intromissão dos pais, discute-se sobre a divisão de
tarefas entre homens e mulheres, casa-se por amor, as feministas defendem o respeito e os
desejos de liberação da classe, várias profissões, antes destinadas aos homens, agora são
ocupadas por mulheres e algumas destas não veem mais o casamento como ideal de
felicidade.
Em contrapartida, existem estudos que afirmam que as mulheres possuem a
necessidade de proteção e querem ser cuidadas, como a tese da pesquisadora Colette Dowling
denominada Complexo de Cinderela. Em sua tese a autora aborda um fenômeno que estaria
profundamente “enraizado” nas mulheres: o desejo psicológico de serem cuidadas por
alguém, de serem salvas, que se apresenta como um sistema de vontades reprimidas,
memórias e atitudes distorcidas que tem início na infância, na crença da menina de que
sempre haverá outra pessoa mais forte a sustentá-la e protegê-la. Esta crença, na maioria das
vezes, é alimentada e com o tempo se solidifica, “seguindo” a mulher em sua vida adulta e
resultando em dependência, realizações e/ou descontentamentos.
Dessa forma, pode-se observar que, na contemporaneidade, muita coisa mudou e
outras permanecem bastante semelhantes ao que a sociedade considerava o papel social do
“sexo frágil”. Nesse movimento de emancipação ou dependência das mulheres, deparamo-nos
com a busca por reconhecimento de uma identidade feminina, através do tempo, nas diversas
sociedades.
Paralelo a isso, autores criaram obras literárias protagonizadas por mulheres que
colocaram em prática antigas e novas posturas diante do vivido. Vale dizer que o
entendimento da literatura a ser desenvolvido nesse estudo é o de linguagem influenciada e
influenciadora da história e das mudanças sociais. O texto literário traduz visões de mundo e
intencionalidades do autor e, consequentemente, pode influenciar a visão de mundo do leitor e
despertar seu senso crítico através das situações vividas por seus personagens. Podemos citar,
como exemplo de personagens em obras que podem mudar ou cristalizar crenças a respeito da
função destinada às mulheres, a postura das princesas das histórias de Charles Perrault e dos
Irmãos Grimm: as meninas ou mulheres protagonistas pareciam esperar que um príncipe
“encantado” viesse para salvá-las e protegê-las de todos os perigos, postura que ilustra o
“Complexo de Cinderela”. Avistamos o contrário também em contos desses três autores, por
exemplo, na versão do conto A Dama e o Leão, dos Irmãos Grimm, no qual a protagonista
mostra uma força e coragem, características tidas como atributos exclusivos dos homens.
No Brasil, na literatura dita para “adultos”, os leitores encontram Iracemas, Virgílias,
Aurélias; entretanto, não sabíamos o que poderíamos descobrir através da leitura de obras
infanto-juvenis contemporâneas escritas por autores brasileiros. O assunto provocou-nos
alguns questionamentos, tais como:
i. Qual será o papel social da mulher nessas obras escritas, a princípio, para um público
infantil?
ii. Haverá diferença nas atitudes das protagonistas das obras de Charles Perrault e dos
Irmãos Grimm quando compararmos com as protagonistas de intertextos desses contos
escritos por autores brasileiros?
iii. Quais funções sociais estão destinadas à mulher em obras de escritoras e escritores no
nosso país?
A vontade de tentar responder a essas perguntas nos motivou à pesquisa. Dessa
maneira, esta dissertação tem por objetivo principal apresentar um estudo sobre as funções
sociais destinadas à figura feminina, presentes nas narrativas infantis contemporâneas
produzidas por escritoras e escritores brasileiros, entendendo a relevância desses textos na
identificação/construção de novas proposições identitárias para as mulheres na sociedade.
Levantamos algumas hipóteses: acreditamos que as obras escritas por escritoras
possuem personagens femininas independentes, fortes e corajosas e nas obras produzidas por
escritores as mulheres ainda são descritas como dependentes, submissas, sensíveis e frágeis;
alguns intertextos, escritos por autores brasileiros que são objetos de estudo desta dissertação,
rememoram personagens femininas das obras de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, mas
elas não possuem as mesmas funções sociais das versões europeias.
O nosso corpus é constituído por algumas obras da literatura infantil editadas no Brasil
nos últimos trinta anos. E para poder colocar em prática a análise comparativa escolhemos
obras de dois escritores e duas escritoras. São elas: O fantástico mistério de Feiurinha, de
Pedro Bandeira; Príncipes e Princesas, sapos e lagartos, de Flávio de Souza; Mulheres de
Coragem, de Ruth Rocha; Uma história meio ao contrário, de Ana Maria Machado. A
metodologia utilizada consiste em uma análise descritiva e conceitual fundamentada em
estudos teóricos e pesquisas sobre a revisitação dos contos infantis numa perspectiva cultural,
comparativista e intertextual.
No segundo capítulo, abordaremos parte da base teórico crítica sobre as representações
identitárias e alguns estudos sobre as funções exercidas pela mulher na sociedade já que a
identidade tem se destacado como uma questão central nas discussões contemporâneas no
momento em que se discute o contexto das reconstruções globais das identidades nacionais e
a reafirmação das identidades pessoais e culturais. Neste capítulo, trabalhamos com a
concepção de identidade defendida por Hall (2005) e a concepção de representação de
Chartier (1990). Esses autores afirmam, dentre outras coisas, que as possibilidades de
identificação são inúmeras, podendo o indivíduo ter identidade pessoal, coletiva, profissional,
de classe, de gênero, entre outras, construídas através das relações sociais.
Muitas dessas identificações, com relação às mulheres na sociedade, também foram
estudadas por Mary Del Priore na obra História de amor no Brasil, O Segundo Sexo, de
Simone de Beauvoir, Teoria Feminista e As filosofias do homem, de Andréa Nye, Visões
Sociais de Homem e de Mulher: um estudo do conhecimento social acerca do ser homem e do
ser mulher, da psicóloga Kátia Cordeiro Antas, dentre outras. Essas concepções de identidade,
representação e as pesquisas dessas estudiosas foram imprescindíveis para o nosso estudo,
pois pudemos averiguar quais identidades estão presentes nas obras da literatura infantil
brasileira, além de poder fazer um estudo comparativo das funções sociais atribuídas às
mulheres nas últimas décadas no nosso país e ainda constatar o que é “ser mulher” e o que
elas desejam ser, o que já conquistaram e o que almejam conquistar. Tudo isso nos auxiliou
na análise das obras da literatura infantil.
Ainda no segundo capítulo, averiguamos a possível definição e origem do conto de
fadas. Essa necessidade surgiu ao perceber que algumas histórias de autores brasileiros
escolhidas para esse estudo são intertextos e seus criadores se apropriaram das obras de
Charles Perrault e dos Irmãos Grimm. Estes autores, por sua vez, adaptaram histórias orais
francesas e alemãs e todos, europeus e brasileiros, denominaram suas histórias de “contos de
fadas”. A origem dessas narrativas foi comentada na obra “O Grande Massacre de Gatos”, do
historiador Robert Darnton (1986). Segundo este último, a princípio, as histórias dos
camponeses franceses utilizadas por Charles Perrault, por exemplo, tinham características de
pesadelo e não eram destinadas ao divertimento das crianças. Perrault recolheu esse material
da tradição oral do povo camponês, retocou muitos detalhes e modificou outros para atender
ao gosto da maioria dos leitores que pertenciam às classes altas aos quais ele dedicou a
primeira versão publicada de Mamãe Ganso, de 1697. Em outra época, fins do século XVIII,
os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm recolheram da memória popular as tradicionais narrativas
maravilhosas. E, no século XIX (1812-1822), começaram a publicá-las com o título de Contos
de fadas para crianças e adultos. No Brasil, o escritor Figueiredo Pimentel (1869-1914)
publicou coletâneas como os Contos da Carochinha (1894), nas quais o leitor pode encontrar
as histórias de fadas europeias, narrativas coletadas em algumas regiões do Brasil, histórias de
origem portuguesa, bem como narrativas contadas pelas escravas que cuidavam das crianças
brasileiras no século XIX.
Destarte, percebemos como a denominação “conto de fadas” é antiga e foi usada por
diversos escritores em épocas e países diferentes. Esse uso não só cria certa dificuldade para
supor em que momento esse gênero começou a ser produzido, mas a sua definição desperta a
atenção de muitos pesquisadores.
Assim, adentramos em questões terminológicas que envolvem os contos de fada, de
encantamento e conto maravilhoso. Para tentar esclarecer algumas dúvidas com relação às
semelhanças entre eles, recorremos à concepção de conto de fada elaborada por Nelly Novaes
Coelho (1998) e às pesquisas de Michele Simonsen (1987) que, ao afirmar que a palavra
conto possui utilização comprovada desde 1080 e apontar para o sentido dela em épocas
diferentes, chama a atenção para o pertencimento dessas narrativas, enquanto prática do
relato, tanto à tradição oral quanto à literatura escrita. Além de definir o conto popular e
propor uma classificação para ele, Simonsen aborda a difusão dos contos populares dando
uma atenção especial às diferenças e semelhanças do grande número de relatos. Para detalhar
melhor sua análise e explicar como acontece essa difusão e apropriações dessas narrativas
pelos contadores, ela informa que os folcloristas da escola finlandesa, Kaarle Kron e Annti
Aarne distinguiram as noções de conto-tipo, versão e variante. Noções importantes para o
nosso estudo porque ao estudar intertextos podemos distinguir, dentre as obras analisadas, os
contos-tipos, as versões particulares e as variantes. Ressaltamos também a participação e
importância do brasileiro Luis da Câmara Cascudo com suas pesquisas sobre essas narrativas.
No terceiro capítulo, fizemos uma análise de duas obras produzidas por escritores
brasileiros com o objetivo de averiguar quais funções sociais são atribuídas às personagens
femininas criadas por eles. São elas: O fantástico mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira e
Príncipes e Princesas, sapos e lagartos, de Flávio de Souza. Essas obras estabelecem um
diálogo intertextual com histórias europeias. Por esse motivo, recorremos as concepções de
intertextualidade segundo Kristeva (1989), Koch, Bentes e Cavalcante (2007), Greimas,
Bakhtin (2002) e aos comentários críticos de estudiosos que abordam o assunto como Proença
Filho (1988), Cascudo (1986), Diniz (2005) e Zilberman (2005).
Pedro Bandeira nos apresenta uma história que reúne várias princesas dos contos de
fadas conhecidas pelo grande público. Participam dessa aventura: Chapeuzinho Vermelho,
Branca de Neve, Cinderela, Bela-Fera, Rosaflor Della Moura Torta, Rapunzel, Bela
Adormecida e uma princesa ainda desconhecida, chamada de Feiurinha. A história apresenta
também mulheres que personificam o correspondente ao “mau”, mais conhecidas por bruxas
que raptam a protagonista. Mulheres princesas, bruxas e outras são contadoras de histórias
como Jerusa, uma mulher que desempenha essa função de forma encantadora e ajuda a
desvendar o mistério do desaparecimento de Feiurinha.
Ao averiguar que Pedro Bandeira relembra as histórias dessas princesas e até dá
continuidade aos acontecimentos após o final de suas histórias, sentimos a necessidade de
realizar um estudo comparativo entre os contos de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, nos
quais essas princesas são protagonistas, e a obra O fantástico mistério de Feiurinha. Processo
semelhante realizamos com a obra Príncipes e Princesas, sapos e lagartos, de Flávio de
Souza, na qual o autor produziu algumas histórias novas, com personagens que fazem
referência aos antigos príncipes e princesas. As pequenas histórias acontecem nas Terras
Médias, entre os reinos de Velda e Melra, enquanto acontece a Guerra dos Mil e Um Anos.
Em plena guerra nasce o amor do príncipe Leo Lourival com a princesa Miranda. Entre os
encontros e desencontros do casal, surgem intercaladas com essa história de amor, outros
contos com bruxas e magos, príncipes transformados em sapos, princesas aprisionadas em
torres, um dragão que não passa de lagarto, um príncipe com trezentas namoradas e os dois
primeiros beijos de todos os tempos.
Por fim, no quarto capítulo analisamos obras de escritoras brasileiras com o mesmo
objetivo do capítulo anterior. As obras escolhidas foram: Mulheres de Coragem, de Ruth
Rocha (contendo três contos: Mulheres de Coragem, Romancinho Romanceiro e Lenda da
Moça Guerreira) e História meio ao contrário, de Ana Maria Machado. Nelas, encontramos
mulheres submissas e independentes que parecem servir de modelos para outras pessoas,
modelos que podem gerar ou desconstruir estereótipos. Para entendermos melhor como isso
acontece, buscamos a concepção de estereótipo de pesquisadores como Krüger (2004) e
Bhabha (1998). Com base nessas concepções, buscamos observar se, nessas obras, a mulher
foi descrita de forma estereotipada ou as autoras tentaram desconstruir representações sociais
cristalizadas, proporcionando aos leitores um momento para refletir sobre os estereótipos
existentes na sociedade.
A escolha de obras da literatura infantil foi feita por acreditar que a leitura das
histórias infanto-juvenis permite à criança a possibilidade de estabelecer um contato, de forma
reflexiva, com situações que retratam papéis sociais destinados à mulher na sociedade.
Histórias que, na quase totalidade dos casos, são produzidas por adultos que estão
transmitindo, consciente ou inconscientemente, valores e tipos de comportamento que
poderão ser assimilados pelos pequenos receptores, por estarem em fase de formação ou como
leitores críticos as crianças e jovens podem não assimilar, mas desconstruir preconceitos
existentes e denunciados ou reproduzidos pelos escritores.
2 REPRESENTAÇÕES IDENTITÁRIAS
2.1 IDENTIDADES FEMININAS EM CONSTRUÇÃO
Como já foi insinuado anteriormente nesse texto, a identidade tem se destacado como
uma questão central nas discussões contemporâneas, tempo de reconstruções globais das
configurações identitárias e culturais. Segundo Hall (2005, p. 07), isso vem acontecendo
porque “[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão
em declínio, fazendo surgir novas identidades [...]”. Indivíduos que compartilham sua cultura
e princípios de visão comum, que se unem em comunidades, formam grupos que cultivam
valores e interesses e que enfim identificam-se, povoam a sociedade contemporânea. As
possibilidades de identificação são inúmeras, podendo o indivíduo ter identidade, pessoal,
coletiva, profissional, de classe, de gênero, entre outras. Hall também define as identidades
culturais como sendo “[...] aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso
‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais
[...]” (HALL, 2005, p. 08). E complementa:
[...] Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais. [...] (HALL, 2005, p. 09)
Essas identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos
pelos quais elas são representadas. E a representação, ainda segundo Hall (1997a apud
WOODWARD, 2007, p. 08), “[...] atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas
relações no seu interior [...]”. Woodward (2007, p. 17) complementa o comentário de Hall ao
afirmar:
[...] A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeitos. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. [...]
Dessa maneira, a produção de significados, através das representações, está
estreitamente vinculada com a construção das identidades. A ênfase na representação e o
papel-chave da cultura na produção dos significados que permeiam todas as relações sociais
levam a uma preocupação com a “identificação”, que, para Nixon (1997 apud WOODWARD,
2007, p. 18), é o “[...] processo pelo qual nos identificamos com os outros, seja pela ausência
de uma consciência da diferença ou da separação, seja como resultado de supostas
similaridades [...]”. Esse conceito tem sua origem na psicanálise e está sendo retomado pelos
Estudos Culturais.
Chartier (1990, p. 23) também aborda o assunto. Para ele, a representação permite
articular três modalidades na relação com o mundo social. São elas:
[...] em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns “representantes” (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade. [...] (CHARTIER, 1990, p. 23)
Bourdieu (1989), por sua vez, analisa os sistemas simbólicos, a construção de sentidos,
os sistemas de representação, inclusive no tocante a identidade, quando afirma:
[...] sabe-se que os indivíduos e os grupos investem nas lutas de classificação todo o seu ser social, tudo o que define a ideia que eles têm deles próprios, todo o impensado pelo qual eles se constituem como “nós” por oposição a “eles” aos “outros” a qual estão ligados por uma adesão quase corporal. É isto que explica a força mobilizadora excepcional de tudo o que toca à identidade. [...] (BOURDIEU, 1989, p. 124)
Vale ressaltar que as pesquisas mais recentes descrevem a identidade como relacional,
pois depende, para existir, de outra identidade que fornece condições para que ela exista.
Segundo Woodward (2007, p. 25),
[...] as identidades que são construídas pela cultura são contestadas sob formas particulares do mundo contemporâneo – num mundo que se pode chamar de pós-colonial. Este é um período histórico caracterizado, entretanto, pelo colapso das velhas certezas e pela produção de novas formas de posicionamento. [...]
Se a questão da construção da identidade envolve o “tornar-se”, homens e mulheres
estão a todo o momento mudando a sua posição na sociedade e na literatura, construindo
novas identidades. Dessa forma, elas são marcadas pela diferença e pelas similaridades. De
certa maneira, essas pesquisas reafirmam o pensamento de Bourdieu (1989), pois a ideia que
o indivíduo possui de si está diretamente ligada ao que constitui o “nós”, por oposição a
“eles” e aos “outros”. Os homens, por exemplo, tendem a construir posições sociais para as
mulheres tomando a si próprios como ponto de referência e o contrário também é verdadeiro,
isto é, as mulheres exercem funções sociais a partir das ações do homem. Assim, a cultura
molda a identidade.
A mulher vem sendo moldada através de atribuições e papéis que deve exercer.
Segundo Dowling (1987), o problema remonta à infância, fase em que a criança sente a
necessidade de apoiar-se em alguém, ser cuidada e preservada dos males e até certo ponto isso
é normal tanto para os homens quanto para as mulheres. Ela ainda afirma que, para as
meninas, essa necessidade de dependência perdura, em alguns casos, durante toda a vida e que
qualquer mulher sabe quão destreinada foi para sentir-se confiante perante ideia de cuidar de
si própria, afirmar-se como pessoa e defender-se. Já os homens, foram educados para a
independência desde o dia de seu nascimento. Além de comparar a educação de meninos e
meninas, a autora faz uma referência a um possível “conto de fadas” que seria vivido pelas
mulheres na vida real. Nas palavras de Dowling,
[...] as mulheres são ensinadas a crer que, algum dia, de algum modo, serão salvas. Esse é o conto de fadas, a mensagem da vida que ingerimos juntamente com o leite materno. Podemos aventurar-nos a viver por nossa conta por algum tempo. Subjacente a isso tudo, porém, está o conto de fadas, dizendo: aguente firme, e um dia alguém virá salvá-la. [...] (DOWLING, 1987, p. 13)
Dowling defende que pais das décadas de 40 e 50 falharam na educação das filhas
dando orientações que não serviram para a formação de mulheres independentes. A partir de
suas pesquisas, essa pesquisadora constatou que o que ela denominou de “desejo de salvação”
pareceu ser provavelmente o ponto mais importante no estudo do comportamento das
mulheres, pois elas foram criadas para depender de um homem e, consequentemente, sentem-
se “nuas” e apavoradas sem ele. Além disso, ainda segundo a autora, as meninas são
ensinadas a crer que, por serem mulheres, não são capazes de viver por sua conta, são frágeis,
delicadas demais e que possuem uma absoluta necessidade de proteção. Assim, a um só
tempo, a mulher almeja liberta-se dos “grilhões” e ter quem cuide dela. A estudiosa relata que
a dependência está profundamente enraizada e a quantidade de mulheres tentando a
independência é enorme, pois a pressão social aumenta cada vez mais. Dowling tece diversos
comentários sobre o assunto e escreveu uma obra, usando teorias psicológicas e psicanalíticas,
intitulada Complexo de Cinderela. Nela a estudiosa declara que
[...] Existe somente um instrumento para obtermos a “libertação”, e esse é emancipar-nos desde dentro. A tese deste livro é a de que a dependência psicológica – o desejo inconsciente dos cuidados de outrem – é a força motriz que ainda mantém as mulheres agrilhoadas. Denominei-a “complexo de cinderela”: uma rede de atitudes e temores profundamente reprimidos que retém as mulheres numa espécie de penumbra e impede-as de utilizarem plenamente seus intelectos e criatividade. Como Cinderela, as mulheres de hoje ainda esperam por algo externo que venha transformar suas vidas. [...] (DOWLING, 1987, p. 26, grifo da autora)
Essa declaração da autora muito nos auxiliou na análise das mulheres dos contos de
fadas, muitas delas princesas frágeis, sonhadoras, à espera de um príncipe para salvá-las, da
felicidade eterna, e a literatura vem retratando situações vivenciadas pelas mulheres reais.
Essas são identificações culturais que sofreram muitas mudanças na passagem do século XIX
para o século XX. Priore aponta algumas dessas mudanças na obra A história do amor no
Brasil:
[...] Na passagem do século XIX para o XX, enquanto consolidava-se entre nós a República, é lentamente percorrido todo um pedregoso caminho para que os indivíduos ousassem se libertar da influência da religião, da família, da comunidade ou das redes sociais estabelecidas pelo trabalho. [...] novos comportamentos tiveram início no fim do XIX, comportamentos marcados por enorme transformação social e econômica. Essa corrente influenciará as formas de viver e pensar, provocando, no meio do século XX, uma fenomenal ruptura ética na história das relações entre homens e mulheres. Pouco a pouco, pioneiros anônimos engajam-se nessa via. E eles vão dissolvendo, passo a passo, os modelos que lhes eram impostos; e vão correndo cada vez mais riscos. E as mulheres – essa é de fato uma mudança – começam a dizer cada vez mais “não”. Gradativamente, também, o be-a-bá do casamento muda. Os casais começam a se escolher porque as relações matrimoniais tinham de ser fundadas no sentimento recíproco. O casamento de conveniência passa a ser vergonhoso e o amor... bem, o amor não é mais uma ideia romântica, mas o cimento da relação. [...] (PRIORE, 2006, p. 231)
No século XX, as pessoas poderiam aceitar as posições sociais impostas pela
sociedade machista ou reivindicar outras. E foi o que aconteceu: indivíduos se libertaram das
imposições da comunidade em que viviam e novos comportamentos foram colocados em
prática. Priore (2006) ressalta que as mulheres começam a demonstrar os seus desejos e, como
consequência, a relação a dois muda. Por isso, algumas reivindicações na formação das
identidades das mulheres contemporâneas acontecem por meio do apelo a antecedentes
históricos e ao fazê-lo elas podem estar se construindo, assumindo-se e/ou identificando-se
com novas identidades. Assim, a construção da identidade é, além de simbólica, social e
histórica.
Louro (2001), por sua vez, afirma que as identidades de gênero seriam as formas pelas
quais os sujeitos se identificariam histórica e socialmente como masculinos e femininos.
Dessa maneira, estamos entendendo gênero como constituinte das identidades do sujeito,
como acontece com a etnia, a classe, a raça e outros marcadores sociais. Do mesmo modo,
entendemos que as identidades são instáveis, móveis, plurais.
O tema Gênero tem sido abordado por diversos pesquisadores em seminários,
encontros e congressos. Entretanto, citaremos apenas alguns aspectos da produção teórica e
crítica sobre gênero, representações femininas e masculinas e identidade que serão
importantes para dar início ao nosso estudo.
Kofes (1993) apresenta aos estudiosos da área algumas definições de Gênero. Uma
delas foi elaborada ainda nos anos 80, por Scott (1988), para quem Gênero seria o
conhecimento sobre a diferença sexual e as diferenças entre os sexos seriam,
fundamentalmente, culturais. Além de comentar a obra de Scott, Kofes também faz um breve
comentário sobre a obra Macho e Fêmea, de Margareth Mead, na qual Mead compara
sociedades do Pacífico com a sociedade americana. No primeiro parágrafo, questiona: “Como
devem pensar homens e mulheres sobre sua masculinidade e feminilidade?” e logo após
afirma: “Não conheço cultura que tenha concretamente afirmado que não há diferença entre
homem e mulher”. Essas considerações serão relevantes para o nosso trabalho, pois nos
ajudarão no processo de análise.
Em O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, a autora tece estudos sobre a mulher. E
já no seu primeiro parágrafo o leitor se depara com uma afirmação curiosa: Beauvoir afirma
que hesitou muito tempo em escrever um livro sobre a mulher, pois o tema é, segundo ela,
“irritante” principalmente para as mulheres. A partir daí, seguem diversas colocações
pronunciados por homens de várias épocas e lugares distintos, desde a história do Gênese,
passando por Sócrates e Platão, chegando até os séculos XVIII e XIX com Diderot e Stuart
Mill. Beauvoir se utiliza dessas conceituações do que é uma mulher para levantar alguns
questionamentos como, por exemplo: Que lugar a mulher ocupa no mundo ou deveriam
ocupar? Esses questionamentos vêm acompanhados de outras concepções sobre a mulher, só
que dessa vez, do ponto de vista da biologia, da psicanálise e do materialismo histórico.
Já em Teoria Feminista e as filosofias do homem (1995), Andréa Nye também
desenvolve um estudo sobre a mulher, só dessa vez, a partir da Filosofia. Nos primeiros
parágrafos do segundo capítulo, intitulado: Liberte, Égalité et Fraternité- Liberalismo e
Direitos das Mulheres no Século XIX, a autora também usa exemplos de discursos
masculinos sobre o papel da mulher na sociedade. Um desses discursos foi enunciado por
David Hume. Para ele, os homens são chefes naturais do lar e há diferentes virtudes para as
mulheres como recato e castidade. Ele ainda reafirma que só para mulheres, não para os
homens. As mulheres são vistas como “o belo sexo”. E salienta que essas restrições às
mulheres são necessárias. Para Rosseau (apud NYE, 1995), as mulheres são naturalmente
mais fracas, apropriadas para a reprodução, mas não para a vida pública. Nye (1995) conclui
parte do seu estudo citando algumas obras que reabriram a questão da extensão dos ideais da
Revolução Francesa às mulheres, como a Declaração dos direitos do Homem e do cidadão,
aprovada pela Assembleia Francesa, em 1789, que proclamava a igualdade entre todos os
seres humanos. Igualdade desejada por muitos, mas que nem sempre é colocada em prática.
As pesquisadoras Eveline Assmar e Mª Cristina Ferreira (2004, p. 92-93) também não
deixam de comentar os papéis sociais de homens e mulheres na sociedade:
O que se observa nas últimas décadas é que os papéis sociais de homens e de mulheres vêm-se tornando mais semelhantes, especialmente devido à crescente participação das mulheres na força de trabalho e em funções de maior prestígio social. Com isso, redefine-se o papel social da mulher, o que, provavelmente, irá levar a novas configurações dos estereótipos de gênero, que incorporem as características identificadas como inerentes ao desempenho dessas novas atividades. Particularmente no que tange ao estereótipo feminino, é possível que ele sofra modificações capazes de absorver atributos mais instrumentais e menos expressivos que os atributos tradicionais, estereotipicamente associados ao papel doméstico.
Sobre essas possíveis novas configurações dos estereótipos de gênero, a psicóloga
Kátia Cordeiro Antas abordou, em sua dissertação do mestrado em Psicologia Social, as
relações entre homens e mulheres. Nesse estudo, a pesquisadora deteve-se, em parte, na
identificação de um conjunto de visões sociais acerca do que é ser homem e do que é ser
mulher, bem como a construção dessas visões do ponto de vista cognitivo, identitário e
cultural. Nas suas conclusões, ela afirma:
[...] os resultados obtidos indicam, acima de tudo, uma percepção bem definida e tradicionalista a respeito das visões sociais que se tem da figura masculina e da figura feminina. O homem como determinado, competente, inteligente, forte, chefe de família, honesto e machista; a mulher como meiga, sensível, frágil, amiga, forte, batalhadora, sensata, dona de casa, boa esposa, feminina e mãe. Isso faz pensar que, apesar de todo o avanço nas questões de gênero, a sociedade em geral continua reproduzindo os papéis sexuais de forma tradicional e polarizada, contribuindo, portanto, para a manutenção da imagem do homem como forte e voltado ao espaço público e da mulher como meiga e voltada para o espaço privado. Analisando essas concepções, pode-se concluir que elas ajudam a manter a hegemonia masculina em detrimento da submissão feminina. [...] Entretanto, nesse conjunto de visões, foram encontradas algumas novas formas de conceber o que é ser homem e o que é ser mulher. Como exemplos, tem-se a mulher vista como lutadora, independente e racional e o homem visto como sensível, inseguro e bom marido. [...] (ANTAS, 2005, p. 119)
É interessante notar como ainda mantemos essas visões tradicionais do que é ser
homem e mulher e dos papéis que eles ocupam ou deveriam ocupar na sociedade. Parece uma
visão ultrapassada, mas que persiste. Dessa maneira, observamos que a hegemonia masculina
permanece junto com a submissão da mulher, contudo os novos papéis sociais começaram a
ser partilhados e defendidos. Quanto ao aspecto identitário da questão, a pesquisadora
complementa:
[...] homens e mulheres praticamente não apresentaram diferença na maneira de definirem-se e de definirem o sexo oposto, demonstrando um compartilhamento das concepções dos papéis masculino e feminino, resultado, provavelmente, de todo o movimento realizado em prol desta causa. Acredita-se também que as mudanças sociais e econômicas forçaram homens e mulheres a ocuparem novos espaços e a assumirem novos papéis, até então tidos como exclusivamente masculinos ou exclusivamente femininos. Como exemplo disso, têm-se os homens atuando nas tarefas domésticas e nos cuidados com os filhos e as mulheres trabalhando fora de casa e gerenciando a renda familiar. Surgem as chamadas “mulheres masculinas” e os “homens femininos”. [...] (ANTAS, 2005, p. 120)
Nessa citação, o compartilhamento das concepções dos papéis sociais para homens,
mulheres e a influência das mudanças sociais e econômicas apresentam-se como fatores
imprescindíveis para que as transformações aconteçam.
Já Oakley (1998), afirma que produzir e disseminar saberes que não sejam apenas
sobre ou por mulheres, mas também de relevância para as mulheres e suas (nossas) lutas é o
objetivo maior do projeto feminista na ciência e na academia. Mostrar a nossa singularidade.
Singularidade que não significa querer igualdade, nem destacar diferenças como afirma
Torres:
[...] O Movimento Feminista, até os anos 60, tinha como meta o paradigma de igualdade, no qual o masculino era o modelo e o ideal a ser seguido. Nos anos 70, o neofeminismo reformula a definição de igualdade, que assumiu a conotação de afirmação da diferença. Mais tarde, essa igualdade foi substituída pela busca e invenção da identidade e do desejo femininos: a mulher não quer mais ser o espelho do homem, nem mesmo o seu avesso ou contrário; quer encontrar a sua própria marca, seus valores e direitos, suas satisfações e desígnios próprios, sua feminilidade, sua identidade; aquilo que a faz ser único, numa mudança de consciência e de atitude. […] (TORRES, [199-], p. 10, grifo do autor)
Os autores da literatura infantil acompanham essas transformações que estão
acontecendo na sociedade e tentam demonstrar que os textos, ditos “para crianças”, à medida
que retratam essas transformações, podem auxiliar no autoconhecimento e na construção
dessas novas identidades coletivas e pessoais que nascem e mudam a depender da época.
Além disso, segundo Bettelheim (1980, p. 12-13)
[...] A criança, à medida que se desenvolve, deve aprender passo a passo a se entender melhor; com isto, torna-se mais capaz de entender os outros, e eventualmente pode-se relacionar com eles de forma mutuamente satisfatória e
significativa. [...] e através dos contos de fadas pode-se aprender mais sobre os problemas interiores dos seres humanos, e sobre as soluções para seus predicamentos em qualquer sociedade, do que com qualquer outro tipo de história. [...]
Na contemporaneidade, os escritores produzem cada vez mais e as obras são, muitas
vezes, destinadas a esses leitores. Elas vão surgindo e abordando temas considerados
importantes para que a criança possa ser capaz de se entender e conviver com os outros
respeitando e sendo respeitada.
Dentre tantas produções, o chamado conto de fadas tradicional e contemporâneo vem,
realmente, conquistando espaço pela qualidade das produções e pelos novos formatos. Essas
remodelações dos contos provocam novas percepções também sobre as formas. Daí faz-se
necessário repensar algumas definições de alguns gêneros.
2.2 CONTO DE FADA, DE ENCANTAMENTO OU MARAVILHOSO
Os contos infantis, orais ou impressos, vêm encantando gerações de crianças no
mundo inteiro e despertando o interesse investigativo de muitos pesquisadores. Esses autores
desenvolveram pesquisas nas quais conceituam a palavra conto e sugerem uma classificação
para os diversos tipos existentes. A respeito da diversidade dessas narrativas que fazem parte
das produções da Literatura Infantil, Coelho declara:
[...] Desse imenso caudal narrativo (hoje transformado ou simplificado em literatura folclórica ou literatura infantil), duas formas destacam-se, não só pela divulgação que alcançaram através dos séculos, mas principalmente pela identificação feita entre uma e outra, como se ambas tivessem a mesma natureza. O que não é verdade. Trata-se do conto de fadas e do conto maravilhoso, formas de narrativa maravilhosa surgidas de fontes bem distintas, dando expressão a problemáticas bem diferentes, mas que, pelo fato de pertencer ao mundo do maravilhoso, acabaram identificadas entre si como formas iguais. […] (COELHO, 1998, p. 11)
Após afirmar que pesquisadores e estudiosos do assunto confundem o conto de fada
com o conto maravilhoso, a autora oferece ao seu leitor possíveis concepções dessas duas
formas narrativas. A primeira concepção relaciona-se ao conto de fada:
[...] Com ou sem a presença de fadas seus argumentos desenvolvem-se dentro da mágica feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida
etc.) e têm como eixo gerador uma problemática existencial. Ou melhor, tem como núcleo problemático a realização que, via de regra, está visceralmente ligada à união homem-mulher. […] (COELHO, 1998, p. 13, grifo da autora)
E quando define o conto maravilhoso afirma:
[...] São narrativas que sem a presença de fadas, via de regra se desenvolvem no cotidiano mágico (animais falantes, tempo e espaço reconhecíveis ou familiares, objetos mágicos, gênios, duendes etc.) e têm como eixo gerador uma problemática social (ou ligada à vida prática, concreta). Ou melhor, trata-se sempre do desejo de auto-realização do herói (ou anti-herói) no âmbito socioeconômico, através da conquista de bens, riquezas, poder material etc. […] (COELHO, 1998, p. 14, grifo da autora)
Se considerarmos essas afirmações e concepções, alguns dos textos que foram
escolhidos como objetos de estudo desta dissertação são contos de fadas, pois o eixo gerador
deles é uma problemática existencial ligada à união homem – mulher. São eles: O fantástico
mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira, alguns contos da obra Príncipes e Princesas, sapos
e lagartos, de Flávio de Souza, os três contos da obra Mulheres de Coragem, de Ruth Rocha e
Uma história meio ao contrário, de Ana Maria Machado.
Outra pesquisadora dos contos, Michele Simonsen, faz uma análise do sentido
dispensado à palavra conto em épocas diferentes e chama a atenção para o pertencimento
dessas narrativas, enquanto prática do relato, tanto à tradição oral quanto à literatura escrita,
salientando que “[...] um conto popular é um conto que se diz e se transmite oralmente [...]”
(SIMONSEN, 1987, p. 05). Além disso, apresenta uma classificação dos contos populares
segundo o catálogo francês Delarue-Tenéze e o catálogo internacional Aarne-Thompson. Para
a autora, os contos são classificados em: contos propriamente ditos (divididos em contos
maravilhosos, realistas, religiosos e histórias de ogros estúpidos), contos de animais e contos
humorísticos (divididos em relatos que caçoam dos ricos, dos valores oficiais, dos fracos e
doentes, contos de mentiras, giros). Simonsen faz ainda as seguintes observações sobre o que
considera ser o conto maravilhoso:
[...] contos maravilhosos, frequentemente designados em francês pelo nome de ‘contos de fadas’, impróprio porque demasiado restrito, já que raramente se trata de fadas. Os contos maravilhosos, de estrutura complexa, comportam elementos sobrenaturais, originalmente não-cristãos (encantadores, metamorfoses, objetos mágicos, etc.). […] (SIMONSEN, 1987, p. 07)
O maravilhoso pode estar relacionado às características e atitudes do personagem anti-
herói (bruxas, lobos, etc.), herói (príncipes, fadas, etc.) ou aos desfechos, nos quais: princesas
acordam de sonos que duraram cem anos, outras acordam quando todos acreditavam que
tinham morrido etc.; O tempo e espaço dessas narrativas estão fora da realidade conhecida e
os contos começam com termos formulares que dão a ideia de tempo incerto: “Certo dia [...]”
(CLAUDIO, 1923, p.121 apud CASCUDO, 1986, p. 110), “Certa vez [...]” ([História da
menina que foi devorada pelo lobo], [17-] apud DARNTON, 1986, p. 21) e o famoso “Era
uma vez [...]” usado, tanto por Perrault (2005, p. 64), quanto por Grimm (2000, não
paginado).
Além de definir o conto popular e propor uma classificação para ele, Simonsen (1987)
aborda a difusão dos contos populares dando uma atenção especial às diferenças e
semelhanças do grande número de relatos. Para esclarecer melhor como acontece essa difusão
e apropriações dessas narrativas pelos contadores, ela informa que os folcloristas da escola
finlandesa, Kaarle Kron e Annti Aarne distinguiram:
[...] as noções de conto-tipo, versão e variante. Os relatos cujas semelhanças são maiores que as diferenças pertencem ao mesmo conto tipo. Cada escrito atestado concretamente constitui uma versão particular, e os motivos de que é constituído apresentam variantes em relação às outras versões do mesmo conto-tipo. […] (SIMONSEN, 1987, p. 31, grifo da autora)
Essas noções são importantes para o nosso estudo porque ao estudar intertextos
podemos distinguir, dentre as obras analisadas, os contos-tipos (como, por exemplo: a história
da menina devorada pelo lobo), as versões particulares (como a versão de Perrault e a versão
dos Grimm para a história da menina devorada pelo lobo) e as variantes (a “continuação” das
histórias na obra O fantástico mistério de Feiurinha).
No Brasil, Luis da Câmara Cascudo (1986) elaborou uma proposta de classificação
dos contos. Nessa obra, ele afirmou: “[...] de todos os materiais de estudo, o conto popular é
justamente o mais amplo e mais expressivo. É, também, o menos examinado, reunido e
divulgado [...]” (CASCUDO, 1986, p. 15). Essa afirmação faz parte de uma da obra intitulada
Contos tradicionais do Brasil, que Câmara Cascudo dedicou ao estudo e classificação dos
contos brasileiros. Esse livro apresenta 100 contos coletados na oralidade popular e que ele
dividiu em doze tipos como tentativa de sistematização. Os textos foram classificados em:
contos de encantamento, de exemplo, de animais, religiosos, etiológicos, demônio logrado, de
adivinhação, natureza denunciante, acumulativos, ciclo da morte e tradição.
Através dessas afirmações, podemos notar que as concepções e classificações que
esses autores elaboraram acerca do conto podem apresentar semelhanças e diferenças. E, se
fizermos uma análise das concepções de conto de outros autores, poderemos encontrar outras
diferenças e semelhanças. Reconhecemos a importância dos diversos estudos realizados na
área, acompanhamos a ruptura dos paradigmas que envolvem os gêneros literários na
contemporaneidade e, por consequência, as dificuldades que os teóricos têm encontrado para
produzir seus estudos. Segundo Soares (2000, p. 71),
[...] o escritor romântico propõe e pratica uma ruptura dos paradigmas clássicos dos gêneros literários, os movimentos de vanguarda do nosso século levam essa ruptura às últimas consequências, promovendo uma desestruturação tão violenta que, muitas vezes, não é possível sequer delimitar prosa e poesia, narrativa e poema, ficando-nos somente a noção de texto. [...]
Portanto não pretendemos nos estender nessa discussão, apenas gostaríamos de
salientar que usamos as concepções de conto de fadas elaboradas pelos pesquisadores citados
para escolher e analisar as obras que serviram de objetos de estudo.
Gostaríamos ainda de ressaltar o quanto é relevante conhecer os conceitos,
concepções, classificações propostas pelos diversos pesquisadores da área para que possamos
desenvolver um trabalho mais coerente e proveitoso no sentido de conhecer concepções e
reconhecer a importância desses contos para a construção da identidade de seus leitores. Uma
valoração atribuída por estudiosos como Bettelheim (1980, p. 32) ao proferir:
[...] Os contos de fadas, à diferença de qualquer outra forma de literatura, dirigem a criança para a descoberta de sua identidade e comunicação e também sugerem experiências que são necessárias para desenvolver ainda mais o seu caráter. Os contos de fadas declaram que uma vida compensadora e boa está ao alcance da pessoa apesar da diversidade – mas apenas se ela não se intimidar com as lutas do destino, sem as quais nunca se adquire verdadeira identidade. [...]
2.3 CONTO DE FADA: PERCORRENDO O CAMINHO DO ENCANTAMENTO
Segundo Franz (1981), o conto de fadas tem em sua origem muitas controvérsias. Os
textos fontes ou matrizes desse caudal da literatura popular são de origem anônima e coletiva.
Os vestígios mais antigos remontam há séculos antes de Cristo e têm nascedouro em fontes
orientais e célticas que, a partir da Idade Média, foram incorporadas por textos de fontes
europeias. Boa parte da literatura medieval advém da tradição oral popular.
Na obra O Grande Massacre de Gatos, o historiador Robert Darnton (1986) ressalta
que o conto denominado A Bela Adormecida apareceu num romance arturiano do século XIV
e Cinderela veio à tona em 1547, na obra Propus rustiques, de Noel Du Fail, que fez a
primeira descrição por escrito da instituição francesa, a Veillée, reunião junto à lareira, à
noite, quando os homens consertavam suas ferramentas e as mulheres costuravam, escutando
as histórias que seriam registradas pelos folcloristas trezentos anos depois. Os contos
retratavam realidades bem peculiares e chamavam a atenção dos camponeses ao abordar
situações do seu tempo, oferecendo estratégias para enfrentá-las. Esses textos franceses fazem
referência à França moderna, e principalmente àquela França que existiu entre os séculos XV
e XVIII. No século XVII, por exemplo, esse país vivia um período de guerra, epidemias e
fome. Os homens trabalhavam do amanhecer ao anoitecer, as mulheres davam à luz cinco ou
seis filhos, dos quais apenas dois ou três sobreviviam até a idade adulta.
Algumas histórias orais coletadas por Darnton (1986) como A menina que foi
devorada pelo lobo, Cinderela, dentre outras, possuem como característica marcante a
proximidade com a realidade, constituindo-se em micro-narrativas que Peter Burke (1992)
define como “[...] a narração de uma história sobre as pessoas comuns no local em que estão
instaladas. [...]”. Vale lembrar que essas narrativas não eram direcionadas apenas ao público
infantil, mas serviam também para divertir os adultos. De qualquer maneira, eram um alerta
para as classes populares, pois expunham as condições reais nas quais grande parcela da
população vivia. Ódio, inveja e conflitos de interesses ferviam na sociedade camponesa.
Nesse contexto, sobreviver significava manter-se acima da linha que separava pobres de
indigentes. A vida era uma luta inexorável contra a morte. Cerca de 45% dos franceses
nascidos no século XVIII morriam antes da idade de dez anos. Não se pensava nas crianças
como criaturas inocentes, nem na infância como uma fase diferente da vida. Elas trabalhavam
junto com seus pais desde muito cedo.
Reconhecendo o valor dessas produções, os folcloristas franceses registraram cerca de
dez mil contos em muitos dialetos diferentes, em todos os cantos da França. A maioria dos
contos do repertório francês foi recolhida por escrito entre 1870 e 1914 e quem narrou essas
histórias foram camponeses que afirmavam ter aprendido todo o repertório na infância, antes
da alfabetização. Robert Darnton coloca à disposição do leitor as narrativas daqueles
camponeses em outra época que não a nossa e a partir desse estudo podemos entender um
pouco da sociedade em que eles viviam. O historiador ainda reafirma: “[...] os contos
populares são documentos históricos. Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram
diferentes transformações, em diferentes tradições culturais [...]” (DARNTON, 1986, p. 26). E
ele realmente tem razão.
Como as histórias dos camponeses franceses tinham essas características de pesadelo
(violência, fome, miséria, dentre outros temas) apontadas por Robert Darnton, Charles
Perrault, apesar de recolher seu material da tradição oral do povo camponês, retocou muitos
detalhes e modificou outros para atender ao gosto dos sofisticados frequentadores dos salões
aos quais ele dedicou a primeira versão publicada de Mamãe Ganso, de 1697. Darnton, ao
comentar a produção de Charles Perrault, afirma: “[...] Perrault, mestre do gênero, realmente
recolheu seu material da tradição oral do povo (sua principal fonte, provavelmente, era a babá
de seu filho) [...]” (1986, p. 24).
Em fins do século XVIII, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm recolheram da memória
popular as tradicionais narrativas maravilhosas. E no século XIX (1812-1822) começaram a
publicá-las com o título de Contos de fadas para crianças e adultos. Darnton, também tece
comentário sobre a obra dos irmãos Grimm:
[...] os Grimm o conseguiram, juntamente com “O gato de botas”, “Barba Azul” e algumas poucas outras histórias, com Jeannette Hassenpflug, vizinha e amiga íntima deles, em Cassel; e ela ouviu as histórias de sua mãe, que descendia de uma família francesa huguenote. Os huguenotes trouxeram seu próprio repertório de contos para a Alemanha, quando fugiram da perseguição de Luís XIV. Mas não os recolheram diretamente da tradição popular oral. Leram-nos em livros escritos por Perrault, Marie Catherine d’ Aulnoy e outros. […] (DARNTON, 1986, p. 24)
No Brasil, o escritor Figueiredo Pimentel publicou coletâneas como os Contos da
Carochinha (1894), nas quais o leitor pode encontrar as histórias de fadas europeias,
narrativas coletadas em algumas regiões do Brasil, histórias de origem portuguesa bem como
narrativas contadas pelas escravas que cuidavam das crianças brasileiras no século XIX. Toda
essa diversidade de textos compõe a cultura do nosso país. Para Geertz (1989), a cultura de
um povo é formada por essas “teias de significados” que os homens tecem.
[...] Acreditando que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. […] (GEERTZ, 1989, p. 15)
Teias de significados que os homens tecem com o registro de histórias orais em
diversos países e algumas releituras de autores brasileiros que estabelecem um diálogo
intertextual com a literatura oral, com a obra de Charles Perrault e Irmãos Grimm e, ainda,
demonstram uma eterna redescoberta do interesse por temas considerados possíveis “portas de
acesso” ao desvendamento de algumas experiências humanas pelas crianças ao terem contato
com obras da literatura infantil contemporânea. Desvendamento abordado por Bettelheim
(1980, p. 14):
[...] Quanto mais tentei entender a razão dessas histórias terem tanto êxito no enriquecimento da vida interior da criança, tanto mais percebi que estes contos, num sentido bem mais profundo do que outros tipos de leitura, começam onde a criança realmente se encontra no seu ser psicológico e emocional. Falam de suas pressões internas graves de um modo que ela inconscientemente compreende e – sem menosprezar as lutas interiores mais sérias que o crescimento pressupõe – oferecem exemplos tanto de soluções temporárias quanto permanentes para dificuldades prementes. [...]
Ele ainda complementa: “[...] Para a criança e para o adulto que sabe que ainda existe
uma criança dentro do indivíduo mais sábio os contos de fadas exprimem verdades sobre a
humanidade e sobre a própria pessoa [...]” (BETTELHEIM, 1980, p. 83). Dessa forma, morte,
separações, fome, dificuldade de relacionamento e preconceito são alguns dos temas das obras
infanto-juvenis da contemporaneidade. Como não podemos estudar todos eles, escolhemos
fazer uma análise da construção da identidade feminina em obras consideradas contos de
fadas.
3 ELAS POR ELES: ESCRITORES E IDENTIDADE FEMININA
3.1 INTERTEXTUALIDADE E LITERATURA INFANTIL NO BRASIL
Em diferentes épocas e países, muitos leitores foram seduzidos pelos contos de
fadas. E de leitores apaixonados, alguns passaram a escritores dedicados à produção de
obras destinadas ao público infanto-juvenil. Assim, muitos desses contos foram criados,
reescritos e / ou eternizados por leitores-escritores que não esqueceram seus personagens
encantados. Alguns desses escritores tornaram-se criadores de narrativas que dialogam com
os antigos contos de fadas, rememorando belas princesas que acabavam as histórias com um
príncipe sempre encantado ou subvertendo estereótipos e contando novas histórias com finais
surpreendentes. Seja qual for os procedimentos, essas narrativas elevam ao máximo os
processos intertextuais. Por esse motivo, cabe dizer algo sobre os procedimentos intertextuais
mais proeminentes que, em nossa consideração, avultam nos textos.
Quando estabelecem essa relação intertextual, humorística e reversora, em alguns
casos, esses textos são conhecidos como paródias. A paródia é definida através de um “jogo”
intertextual. A esse respeito, Sant’Anna (2004, p. 08) declara: “[...] surge a paródia como
efeito metalinguístico (a linguagem que fala sobre outra linguagem), e é possível distinguir
não apenas uma paródia de textos alheios (intertextualidade) como uma paródia dos próprios
textos (intratextualidade)”. E ainda salienta: “[...] Nesta linha, mesmo autores mais
contemporâneos definem a paródia também por contigüidade, considerando-a um mero
sinônimo de pastiche, ou seja, um trabalho de ajuntar pedaços de diferentes partes de obra de
um ou de vários artistas […]” (SANT’ANNA, 2004, p. 13, grifo do autor). Segundo alguns
estudiosos o entendimento de Sant’Anna sobre pastiche é bem restrito, pois o termo já
mereceu reavaliação, sendo bem mais estimado contemporaneamente.
Mas, vale dizer que além dessa definição de paródia como “mero sinônimo de
pastiche” o autor também tece considerações sobre as diferenças entre o procedimento
caracterizado por ironias e a paráfrase. A paráfrase é definida como a reafirmação, através de
palavras diferentes, do mesmo sentido de uma obra escrita. Para afirmar isso o autor utiliza o
dicionário de termos literários de Karl Beckson e Arthur Ganz edição publicada em 1965 em
Nova York. Nele a paráfrase é definida como a reafirmação, através de palavras diferentes, do
mesmo sentido de uma obra escrita.
Em nossa opinião, são sutis as diferenças entre os procedimentos intertextuais, dos
quais poderíamos ainda elencar mais alguns como a citação, a alusão etc. As considerações
atuais, mesmo adotando às vezes um mesmo termo para indicar diversas intenções, marcam
bem as peculiaridades da paródia e do pastiche. Se a paródia é sabidamente irônica e
complementar, o pastiche apresenta um humor menos derrisório e mais suplementar. Ou seja:
não desconstrói a idéia anterior, acrescenta algo a ela. Acreditamos que os “novos contos de
fadas” desenvolvam em seus cernes paródias e pastiches.
Assim, queremos apenas frisar que o significado de pastiche ou paródia não se esgota
em uma ótica. Há diversos entendimentos. Contemporaneamente, pastiche é uma obra que
homenageia outra e cabe nessa nova obra apropriadora o humor do gracejo, não irônico, tão
presente nas históricas que aqui serão aludidas.1
Dessa forma, a paródia e a paráfrase representam a multiplicidade de caminhos que se
cruzam e é importante ressaltar que as obras da literatura infanto-juvenil escolhidas para este
estudo são intertextos, e esse recurso está tão presente nas obras produzidas na
contemporaneidade que vários pesquisadores, estudiosos e críticos de Literatura apresentam
concepções e classificações para a Intertextualidade. Contudo, isso não significa que a paródia
seja uma invenção recente como afirma Sant’Anna (2004, p. 07):
[...] Ela existia na Grécia, em Roma e na Idade Média. Talvez o que tenha ocorrido modernamente seja não apenas uma intensificação do seu uso e, por isso, um interesse maior da crítica, o que faz com que, de repente, pareça que a paródia seja um traço da nossa época. [...]
Intensificado o uso por escritores e estudada por pesquisadores, as concepções de
intertextualidade são importantes para esse estudo, pois a maioria das obras em análise são
intertextos. Dos diversos estudos na área utilizaremos as concepções de Kristeva (1989),
Koch; Bentes; Cavalcante (2007), Greimas, Bakhtin (2002).
Segundo o Dicionário de linguagem e linguística, de Trask (2004, p. 147), “[...] O
conceito de intertextualidade foi introduzido na década de 1960, pela crítica literária francesa
Julia Kristeva e pode ser aplicado aos casos célebres em que uma obra literária faz alusão à
outra obra literária [...]”. A própria autora comenta: “[...] qualquer texto se constrói como um
1 PASTICHE Linda Hutcheon utiliza o termo paródia sob uma compreensão ampla, cabendo nessa compreensão muitas das considerações sobre pastiche. V.: Já Sílvio Roberto Oliveira percebe pastiche enquanto “homenagem”.
mosaico de citações e é a absorção de um (sic) outro texto [...]”. (KRISTEVA, 1974, p. 60
apud KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 14). É nessa mesma linha de pensamento
que Greimas (1966 apud KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 14) afirma: “[...] Todo
texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais
ou menos reconhecíveis [...]”. A linguística textual, por sua vez, incorporou o postulado
dialógico de Bakhtin (2002) segundo o qual “[...] um texto está sempre em diálogo com
outros textos [...]”. Importante sublinhar, que de modo geral, interessa-nos a idéia de fluidez e
cruzamento de imagens e sentidos.
As concepções e os exemplos do uso do intertexto são variados. Podem-se encontrar
as mais conhecidas personagens dos contos de fadas em diversos textos veiculados em nossa
sociedade. Textos que estabelecem um diálogo intertextual com os clássicos da literatura
infanto-juvenil ao utilizar imagens de princesas como Cinderela e Branca de Neve em
propagandas publicitárias de algumas lojas de cosméticos ou ao citar o príncipe encantado em
composições que fazem parte do repertório da música popular brasileira como o modelo de
homem desejado por mulheres de várias faixas etárias na vida real. Tal diálogo também pode
ser encontrado nos textos da literatura infanto-juvenil. E algumas das obras do nosso corpus
são intertextos como, por exemplo: O Fantástico mistério de Feiurinha e Príncipes e
Princesas, sapos e lagartos.
3.2 DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS ENTRE HISTÓRIAS ENCANTADAS
A partir deste tópico, começaremos a tentar enxergar as possíveis relações
intertextuais nos textos dos escritores e escritoras, atentando bem mais aos efeitos que aos
procedimentos em si, apesar de que, como já dissemos, foi muito necessária a compreensão
dos diálogos entre as histórias. Isto tudo se fez necessário, a nosso ver, para que refletíssemos
sobre as presenças e reconfigurações das protagonistas. Recomecemos então por Pedro
Bandeira e a sua Feiurinha.
Pedro Bandeira de Luna Filho nasceu em Santos, SP, em 9 de março de 1942, onde
dedicou-se ao teatro amador até mudar para São Paulo a fim de estudar Ciências Sociais, na
Universidade de São Paulo (USP). Além de professor, trabalhou em teatro profissional até
1967 como ator, diretor, cenógrafo e com teatro de bonecos. Mas, desde 1962, já trabalhava
também na área de jornalismo e publicidade, começando na revista Última Hora e depois na
Editora Abril, onde escreveu para diversas revistas e foi convidado a participar de um coleção
de livrinhos infantis. O primeiro livro, O dinossauro que fazia au-au, fez um grande sucesso,
mas foi com A Droga da Obediência que ele se consagrou. Desde então, a partir de 1983,
Pedro Bandeira dedicou-se inteiramente à literatura. Com a obra O fantástico mistério de
Feiurinha o autor ganhou o Prêmio Jabuti, em 1986, como melhor texto infantil. E em 2009
esta produção foi adaptada para o cinema e o filme já foi assistido por mais de um milhão de
pessoas.
Nessa história, Ilustrada por Avelino Guedes, o escritor Pedro Bandeira é narrador
personagem e conta detalhes sobre a busca desesperada de algumas das “damas” dos contos
de fadas pela amiga Princesa Feiurinha, que desaparecera. A participação do escritor torna-se
possível porque ele não coloca limites entre o mundo real e o mundo das personagens dos
contos de fadas e transita livremente entre ambos. Ao mesmo tempo em que participa da
narrativa, o autor, usando o intertexto, rememora e dá continuidade a algumas histórias
conhecidas no mundo todo. São elas: Branca de Neve, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, A
Bela e a Fera, Rapunzel, Bela Adormecida e A Moura Torta.
Figura 1 - Capa da obra O Fantástico mistério de Feiurinha. Fonte: BANDEIRA, Pedro. O Fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD, 1999.
Como podemos observar as princesas estão presentes nas imagens que compõe a capa
da obra. Todas preocupadas com a amiga desaparecida. Na capa e nas conversas no castelo de
Branca de Neve
[...] — Estamos com um problema grave nas mãos. Feiurinha desapareceu! — Como?! Todas olharam para Dona Branca espantadíssimas. — Feiurinha desapareceu? – Dona Rosaflor Della Moura Torta Encantado estava de olhos arregalados. – Mas isso é impossível! — O que é que houve? – perguntou Bela-Fera, muito preocupada.
— Não sei – respondeu Dona Branca, desalentadamente. – Só sei que ela desapareceu bem desaparecida e pronto. [...] (BANDEIRA, 1999, p. 35)
Essas princesas participam ativamente dos acontecimentos relacionados a Feiurinha
(protagonista da obra), porque estão preocupadas em descobrir o mistério que ronda o sumiço
da amiga princesa. Mistério que deveria ser descoberto, pois havia a temor de que, se a amiga
sumiu, todas as outras princesas poderiam sumir também. O trecho a seguir retrata essa
preocupação:
[...] — Que tristeza! — Tristeza? – lembrou Dona Branca. – É muito mais que isso. É um problema enorme para todas nós que terminamos nossas histórias com a promessa de vivermos felizes para sempre. Se algum mal aconteceu com Feiurinha, isso significa que a felicidade eterna de qualquer uma de nós pode ser destruída de uma hora para outra! Se o encanto foi quebrado para uma, pode ter sido quebrado também para todas nós. [...] (BANDEIRA, 1999, p. 35-36)
Até os títulos dos capítulos que compõe esse livro retratam a procura por Feiurinha.
Parece que a história só começa no último capítulo denominado “Capítulo Um”. E é quase
isso. Todos os capítulos que antecedem o “Um” narram a busca pela protagonista e no último
o narrador reconta a história de Feiurinha. São eles: Capítulo Zero, Capítulo Zero e meio,
Capítulo Zero e três quartos, Capítulo Zero, três quartos e mais um pouquinho, Capítulo Zero,
três quartos e outro pouquinho, Capítulo Zero e cinco sextos, Capítulo Zero, cinco sextos e
tanto, Capítulo Zero, quase um, Capítulo Zero, quase caindo no Um e, finalmente, Capítulo
Um.
Importante atentar para as informações biográficas e bibliográficas que o leitor pode
encontrar ao fim da história na contracapa do livro. Além de informações sobre o escritor
Pedro Bandeira, o comentarista ainda revela a paixão do criador de Feiurinha pelos contos de
fadas, desde a infância:
[...] Desde pequeno, os contos de fada sempre tiveram enorme presença em seu imaginário, de modo que criar Feiurinha é, ao mesmo tempo, prestar uma homenagem a todas as fantásticas heroínas, como Branca de Neve, Chapeuzinho, Cinderela e Rapunzel, foi um grande prazer e uma grande honra. […] (Quem é Pedro Bandeira, 1999, p. 92)
E ainda complementa “[...] Pedro Bandeira sempre se considerou um eterno devedor
não só de Monteiro Lobato, Charles Perrault, Jacob e Wilhelm Grimm, Hans Christian
Andersen, Esopo, ou La Fontaine, mas, principalmente, das antigas contadoras de histórias
[...]” (Quem é Pedro Bandeira, 1999, p. 92). Talvez a partir dessas duas últimas afirmações
possamos tentar entender o porquê Pedro Bandeira criou Feiurinha. Como ficou explícito na
citação: quis homenagear autores brasileiros e estrangeiros e suas “fantásticas heroínas”, que
tiveram um papel importante na sua infância criando esse intertexto. Homenagem que começa
com as reminiscências dos contos escritos pelos autores que Pedro Bandeira admirava, nas
ilustrações com imagens de vários escritores (como a figura 1 demonstra) e continua num dos
capítulos dessa obra, quando o escritor-narrador expõe que as princesas perceberam que
nenhuma sabia recontar a história de Feiurinha e não sabiam quem a escreveu, então
resolveram descobrir essas informações importantes para a investigação do desaparecimento
da amiga. Dessa forma, elas relembram grandes autores da literatura infanto-juvenil mundial.
[...] — Da Feiurinha eu não sei – respondeu Dona Chapeuzinho Vermelho. – mas a minha eu sei que foi Charles Perrault. Um francês ma-ra-vi-lho-so que só esqueceu de botar um Príncipe Encantado no final. — Acho que não foi ele – disse Dona Branca. – Vai ver foram os Wilhelm e Jacob, os irmãos Grimm, aqueles dois alemãezinhos adoráveis que contaram minhas aventuras de modo tão sensacional... — Os Grimm? Não, não foram eles – intrometeu-se Dona Bela-Fera. – Não terá sido Anderson? — Hans Christian Andersen, o sapateiro? Não, vai ver foi Esopo. — Muito antigo. Na certa, foi La Fontaine. — Talvez tenha sido Lobato... — O do Sítio do Picapau Amarelo? Já estive lá. Não foi ele não. [...] (BANDEIRA, 1999, p. 44-45)
Vale ressaltar que críticos, como o Domício Proença Filho, confirmam a presença
marcante da intertextualidade na contemporaneidade:
[...] Torna-se frequente também a presença marcante da intertextualidade à luz das teorias de Bakthin do diálogo ou cruzamento de vários textos. Na literatura contemporânea isso se dá com o aproveitamento intencional de obras do passado. […] (PROENÇA FILHO, 1988, 39)
Tal aproveitamento foi realizado por Pedro Bandeira ao construir uma nova história
com personagens que fazem referência aos antigos príncipes e princesas, apontando algumas
semelhanças e diferenças entre eles, e os acontecimentos que podemos encontrar em suas
respectivas histórias. O autor nos surpreende quando a história começa e termina de uma
forma diferente. Ele se utiliza da metalinguagem já no “Capítulo zero” e o leitor pode
perceber as dificuldades e anseios de Pedro Bandeira, narrador-personagem, ao escrever a
história:
[...] É difícil explicar direito como é que eu fui me meter nessa história. Naquela época, eu era um autor iniciante, com muitas ideias na cabeça e poucas no papel. Observava as pessoas, os bichos e a mim mesmo, tentando entender tudo e a tudo transformar em histórias que tivessem verdade, que tivessem calor, que tivessem
graça. [...] O engraçado é que eu me meti no meio da confusão, mas não no meio de história nenhuma. Eu me meti no fim de todas as histórias. […] (BANDEIRA, 1999, p. 9)
Realmente ele estava metido, por vontade, no meio de outras histórias ao usá-las na
construção do fantástico mistério que ronda o desaparecimento de Feiurinha. E o capítulo
inicial dessa obra começa com questionamentos sobre o que acontece depois da frase tão
conhecida: “viveram felizes para sempre” que finaliza os contos clássicos. Entretanto, o autor
faz questão de lembrar que essa frase, na maioria das vezes, significava que a heroína se
casava com o príncipe encantado e pronto: iam viver “felizes para sempre”. Observe o trecho
no qual o narrador nos expõe a dúvida sobre a possibilidade do casamento representar a
felicidade para as “damas dos contos de fadas”:
[...] Mas o que significa ‘viver feliz para sempre’? Significa casar, ter filhos, engordar e reunir a família no domingo para comer macarronada? Quer dizer que a felicidade é não viver mais nenhuma aventura? Nada mais de anõezinhos, maças vermelhas envenenadas e sapatinhos de cristal? Como é que alguém pode viver feliz sem aventuras? Ah, não pode ser! Não é possível que heróis e heroínas tão sensacionais tenham passado o resto da vida assistindo ao tempo passar feito novela de televisão. É preciso saber o que acontece depois do fim. […] (BANDEIRA, 1999, p. 10)
O comentário acima vem acompanhado de uma ilustração que sugere uma situação
produzida pela imaginação de Pedro Bandeira ao refletir sobre as vivências das princesas após
o matrimônio. Nela aparece Branca Encantado almoçando com a sogra, a filha e o esposo.
Este último com características bem distintas dos príncipes encantados dos contos clássicos:
um senhor de meia idade, careca, deselegante e barrigudo.
Figura 2 - Branca Encantado almoça com a família. Fonte: BANDEIRA, Pedro. O Fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD, 1999, p. 10-11.
Nessa busca para saber e mostrar o que aconteceu depois do fim, o escritor provoca
quem lê no momento em que questiona o casamento das princesas e, como também é
personagem, relata que as aventuras continuam depois do fim das histórias e continuarão
existindo. De certa forma, o casamento é mostrado como algo que não impede a heroína e o
herói de continuar vivendo aventuras que dão “sabor” à existência e o casamento não cairá na
“possível” rotina da vida a dois.
Narrador e personagem, Pedro Bandeira se envolveu numa dessas aventuras: O
fantástico mistério de Feiurinha. Nesse momento, mais precisamente na passagem do
“Capítulo Zero” para o “Capítulo Zero e meio”, o mundo encantado dos contos de fadas e o
mundo real serão, por algum tempo, unidos num só. Na casa do escritor Pedro Bandeira, algo
inusitado aconteceu: as maiores “damas dos contos de fadas”, como são chamadas pelo
escritor, o procuraram para que ele as ajudasse a descobrir o que aconteceu com Feiurinha,
que estava desaparecida: “[...] Todas juntas, uma senhora de chapéu vermelho, mais cinco
princesas grávidas e de meia-idade entraram pela minha sala [...] todas elas! Todas as heroínas
da minha infância, em carne e osso! […]” (BANDEIRA, 1999, p. 52). A partir daí, o autor
participa como personagem até o “fim” daquela aventura.
Zilberman (2005) também tece comentários acerca dessa tendência intertextual
utilizada por Pedro Bandeira:
[...] O processo, porém, é compreensível, pois foi como se a literatura infantil precisasse retornar ao início - do conto de fadas, nascido na Europa; dos Contos da Carochinha, como os que Figueiredo Pimentel narrou, nos primeiros anos da história do gênero no Brasil -, para tomar impulso necessário para cruzar fronteiras e impor novas regras de criação e leitura de textos destinados à infância. [...] (ZILBERMAN, 2005, p. 56-57)
Regina Zilberman tem razão: A literatura infantil retornou aos contos de fadas
cruzando fronteiras e criando releituras. Exemplo disso é a presença dessas princesas na obra
do autor brasileiro.
Para Diniz (2005), alguns desses diálogos intertextuais desvalorizam os textos pré-
existentes, outros reescrevem em outro estilo; outros reelaboram e outros ainda modernizam
obras anteriores, acentuando certas características do clássico. Pedro Bandeira usa a
intertextualidade como estratégia narrativa transformando a obra em ponto de encontro entre
personagens famosas: Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Rapunzel, Bela Adormecida,
Branca de Neve e a Bela-Fera como já foi dito. A novidade é que, em O fantástico mistério de
Feiurinha, o autor dá continuidade às histórias e por isso quase todas elas casaram, tiveram
filhos, algumas estão grávidas, serão mães pela primeira vez, outras pela segunda vez, (exceto
Chapeuzinho Vermelho, porque, segundo o narrador, na sua história não tinha príncipe e ela
não casou, ficou “solteirona” e “encalhada”), envelheceram e em sua maioria estão
completando 25 anos de casadas com seus respectivos príncipes encantados. Vinte e cinco
anos de convivência e muitas histórias para contar sobre a vida a dois.
A obra tornou-se ponto de encontro das princesas e de reminiscências de trechos dos
contos protagonizados por elas. Elas rememoram suas histórias e até brigam por não aceitar
possíveis semelhanças entre elas. O que nos parece é que as protagonistas, na narrativa escrita
por Pedro Bandeira, gostariam que suas histórias fossem singulares, únicas e a possibilidade
disso não acontecer provoca situações em que fica explícito o incômodo e até inveja dos
acontecimentos das outras narrativas. Exemplo dessas brigas são os desentendimentos entre
Dona Branca Encantado X Dona Cinderela Encantado. Na discussão, as duas parecem boas
amigas quando se reencontram
[...] — Cinderela, que bom que você veio! Puxa, você também está esperando nenê? — Estou para o mês que vem. — Que coincidência! O meu também é para o mês que vem... — Pois é na próxima semana eu e o Príncipe Encantado vamos fazer Bodas de Prata. O nenê vai nascer um pouco depois. — Outra coincidência! Eu também vou fazer Bodas de Prata na semana que vem![...] — É... Infelizmente em nossas histórias tem uma ou outra coincidência... — Espera aí! – protestou Dona Branca, aceitando a provocação. – Não me venha comparar as bobagens da sua história com as emoções da minha. Na minha história... — Tem muito mau gosto! – cortou Dona Cinderela. – Onde já se viu ficar morta anos e anos ao relento! Aí vem o Príncipe Encantado dar um beijo numa defunta que está morta e esticada há anos e anos! E depois, se muitos e muitos anos se passaram, o teu príncipe já devia estar velho como uma múmia. Até que combinaria, não é? Uma múmia beijando a outra... Que mau gosto! — Calma meninas... – interveio Dona Chapeuzinho. — Mau gosto? – Dona Branca ficou furiosa. – Ora, você não sabe que, nos contos de fada, anos e anos passam num minuto? Que é só virar a página? — Mesmo assim! – continuou Dona Cinderela. – Beijar um defunto na boca é de muito mau gosto. Parece até história de vampiro... — Ah, é, queridinha? – Dona Branca já estava de pé e o sangue avermelhava-lhe as faces brancas como a neve. – E a sua história, hein? Quer mau gosto maior do que o Príncipe ficar experimentando o sapatinho de cristal no chulé de todas as mulheres do reino? Se ele estava tãããão apaixonado, não era capaz de reconhecer a dona do chulé certo simplesmente olhando sua cara? — É que o Príncipe é meio míope, coitadinho... – defendeu-se Dona Cinderela. — Tinha de ser míope mesmo, para casar com uma sirigaita como você! — Branca! Cinderela! – acudiu aflita Dona Chapeuzinho. – Não briguem, meninas! Dona Cinderela levantou ofendidíssima. — Você... você não é branca como a neve coisa nenhuma! Você é branca como um defunto fedorento! Dona Branca avançou fuzilando de ódio, disposta a dar um pisão no pé descalço de Cinderela. — Sua... sua Gata Borralheira! Aquela era a maior ofensa que alguém poderia fazer a Cinderela: — O quê?! Repita isso! — Repito sim: Gata Borralheira! — Defunta! — Borralheiríssima!
— Vampira! — Borralheirona toda borrada! — Cadavérica! Como você vê, a discussão já não estava mais naquele nível elegante de duas senhoras princesas de fino trato. [...] (BANDEIRA, 1999, p. 24-27)
Logo após esse extenso momento de discussão, fica evidenciada a empatia que Branca
nutria por Cinderela, e vice versa, numa disputa contínua de qual história era mais bonita e
significante. Discussão que faz as protagonistas relembrarem de fatos importantes que
aconteceram em suas histórias. Acontecimentos usados com o objetivo de ofender a outra.
Para o leitor, fica a oportunidade de relembrar os contos. E o narrador ainda provoca a
imaginação de quem lê ao comparar o comportamento de Branca e Cinderela com suas
posturas em versões anteriores que indicavam, segundo ele, elegância e educação. Ao fim de
todas as brigas entre as princesas, Pedro Bandeira afirma aliviado: “[...] Pois é. Até as
distintas princesas perdem a classe às vezes. Na verdade, as heroínas dos contos de fadas
tinham um pouquinho de ciúmes das histórias umas das outras. Nada grave. Nada que não
pudesse ser resolvido com um bom argumento [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 34-35)
Sobre esse tipo de aproveitamento, Cascudo (1986, p. 14) afirma que “[...] a memória
conserva os traços gerais, esquematizadores, o arcabouço do edifício. A imaginação modifica,
ampliando pela assimilação, enxertias ou abandono de pormenores, certos aspectos da
narrativa [...]”. Dessa forma não é difícil encontrar obras nas quais essas apropriações que
modificam, ampliam e/ou enxertam aconteçam. O folclorista ainda acrescenta: “[...] o
princípio e o fim das histórias são as partes mais deformadas na literatura oral [...]”
(CASCUDO, 1986, p. 15). Muda-se o início, o fim, inverte-se a história, características de
personagens são transformadas, ou seja, ao se utilizar de textos de outros autores os escritores
da contemporaneidade criam, muitas vezes, um mosaico de narrativas.
Mosaico intertextual que, em O fantástico mistério de Feiurinha, apresenta outro fato
bastante curioso: na passagem em que as “damas” já estavam perdendo as esperanças de achar
Feiurinha e começavam a acreditar que talvez elas também pudessem desaparecer, acabam
chegando a conclusão de que a história da amiga nunca havia sido escrita e por esse motivo
ela sumiu. E outro agravante é que quase ninguém mais sabia contar a história de Feiurinha.
Se o conto não foi escrito, nem impresso e os contadores de histórias não sabiam nada sobre a
nossa princesa desaparecida, então ela foi esquecida. Desaparecer, no sentido de esquecer, ou,
se as princesas forem esquecidas, desaparecerão da memória de todos. Foi então que a
“personagem” Pedro Bandeira entrou na história, isto é, transformou-se em narrador-
personagem para investigar o sumiço de Feiurinha.
Na ocasião Pedro Bandeira ressaltou a importância dessas princesas na vida das
crianças:
[...] Nada disso Branca de Neve! Você jamais desaparecerá. Você é eterna como o Sol, como a Lua! Sua história foi escrita e reescrita pelos maiores artistas da Humanidade e é lida todos os dias por milhões de crianças no mundo todo, o tempo todo. Você está viva nas risadas das crianças, nas narrativas das vovós, na memória de adultos como eu! […] (BANDEIRA, 1999, p. 58-59)
Desvendado o mistério, as princesas resolveram que o autor Pedro Bandeira recontaria
a história de Feiurinha, para que suas aventuras se eternizassem através dos séculos nas
risadas e emoções das crianças fato que aconteceu com outras histórias, como a de Branca de
Neve. Por esse motivo, elas jamais serão esquecidas, porque são reinventadas e/ou
relembradas a todo o momento em diversos países por escritores e/ou leitores.
Destarte, nesse contexto a intertextualidade é aliada dos escritores em prol de leitores
das novas gerações, das personagens que se eternizam, da desconstrução de estereótipos e da
construção de novas identidades para as mulheres.
3.2.1 Princesas, bruxas e contadoras de história revisitadas e recriadas em O fantástico
mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira
As princesas dos contos de fadas revisitadas por Pedro Bandeira, em O fantástico
mistério de Feiurinha, possuem semelhanças e diferenças com relação às versões dos Irmãos
Grimm e Charles Perrault. Consideramos importante para a nossa pesquisa realizar um estudo
comparativo entre o intertexto de Pedro Bandeira e os contos dos Grimm e de Perrault para
que possamos averiguar como a mulher vem sendo descrita nessas narrativas.
Em princípio, é preciso esclarecer, para que não haja confusões, que as princesas, na
obra produzida por Pedro Bandeira, não são mais chamadas pelo nome e sobrenome de
batismo, mas pelo nome que consta na certidão de casamento, ou seja, o nome de solteira e
um dos sobrenomes do esposo, hábito praticado ao longo dos últimos séculos, no Brasil.
Dessa maneira, os nomes das princesas pós matrimônio ficaram assim: Senhora ou Dona
Branca Encantado, Senhora ou Dona Cinderela Encantado, Senhora ou Dona Rapunzel
Encantado, Senhora ou Dona Bela Adormecida Encantado e a Senhora ou Dona Rosaflor
Della Moura Torta Encantado. Inicialmente, nos questionamos sobre o porquê de todas elas
possuírem o sobrenome Encantado, entretanto logo veio a resposta com explicação detalhada
do narrador: “[...] O nome da tal senhora era Branca Encantado. Nos tempos de solteira, o
sobrenome dela era ‘De neve’, mas depois que se casou com o príncipe Encantado, Dona
Branca passou a usar o sobrenome do marido [...]”. (BANDEIRA, 1999, p. 15). O mesmo
aconteceu com as outras princesas que também casaram com príncipes com sobrenome
Encantado. O narrador explicita que algumas vezes as personagens se confundem ao fazer
referência a um dos príncipes
[...] — O Príncipe está no castelo? — O Príncipe? Que Príncipe? — O Príncipe Encantado. Seu marido. — Ah, não está não. Foi à caça. — Pois então vamos ao assunto. Eu falei com Rapunzel e ela me disse que o Príncipe... — O Príncipe? Que Príncipe? — O Príncipe Encantado. Marido de Rapunzel. — Ah... — Pois é. O marido de Rapunzel encontrou-se com o Príncipe... — O Príncipe? Que Príncipe? — O Príncipe Encantado. Marido de Cinderela. — Ah... [...] (BANDEIRA, 1999, p. 19-20)
O narrador esclarece o porquê da confusão: “[...] A família Encantado tinha fornecido
muitos príncipes para casar com as heroínas dos contos de fada. Por isso, quase todas as
princesas tinham o mesmo sobrenome e eram cunhadas entre si [...]” (BANDEIRA, 1999, p.
20). Príncipes estereótipos de homens perfeitos para o papel de companheiros, desejados
quando as princesas ainda eram solteiras, contudo não tão idealizados por Pedro Bandeira.
Nessa história, os príncipes, que tradicionalmente aparecem com perfis de grandes heróis, são
“desnudados” através dos comentários das suas respectivas esposas.
Interessante notar como dos personagens surgem os estereótipos: a princesa passiva e
piedosa e o príncipe ativo, heroico. Entretanto, vale dizer que, na história O fantástico
mistério de Feiurinha, o que acontece é o contrário do que acontecia nos contos tradicionais:
os príncipes não são aventureiros nem heróis e as princesas vão em busca e conseguem
desvendar o enigma proposto (que era descobrir onde estava Feiurinha). Elas se reúnem,
discutem sobre o que fazer e, às vezes, criam uma “briga intertextual” para decidir qual
história vivida por cada uma delas é a mais bonita. No decorrer da conversa, Chapeuzinho
Vermelho retoma, em determinado momento, o antigo assunto: a passividade dos príncipes
quando exalta a coragem dos caçadores: “[...] — É... Os únicos decididos são os caçadores.
Eu devia ter casado com o caçador que matou o lobo [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 22).
Com esse comentário, Chapeuzinho faz lembrar que antes mesmo do casamento os
príncipes já eram passivos nas histórias e nunca participavam de ações o tempo todo, só nos
finais das narrativas. E eles realmente não participam da busca por Feiurinha confirmando a
ausência de grandes aventuras dos príncipes após o casamento, como sugere o narrador. E
quando as damas continuam as descrições dos seus respectivos maridos aumentam o espanto e
a curiosidade dos leitores que possuem uma determinada “imagem” dos príncipes
“encantados”, antes descritos como belos, corajosos e sedutores. Estereótipo que foi sendo
construído ao longo do tempo e de uns anos, ou histórias, para cá está sendo revisto.
Passemos a refletir, então, sobre essa “revisão” das princesas e de seus encantamentos.
3.2.2 Branca de Neve
No conto Branca de Neve, escrito pelos Irmãos Grimm, a protagonista é descrita como
uma criança que foi idealizada pela mãe: “[...] — Quem me dera minha filhinha fosse branca
como a neve, corada como o sangue e negra como o ébano da moldura da janela [...]”
(GRIMM, 2008, p. 118). E quando jovem demonstra ser muito inocente. Tão inocente que foi
enganada pela madrasta malvada por quatro vezes. Numa primeira armadilha para matar
Branca de Neve, a rainha ordenou a um de seus criados que levasse a menina para a floresta e
lá acabasse com ela; numa segunda tentativa, a madrasta se disfarçou de vendedora de
mercadorias finas (fitas e fios de todas as cores); na terceira a megera usou o mesmo disfarce,
só que dessa vez vendia travessas; e, na quarta e última tentativa, preparou uma maçã
envenenada. Na primeira, a princesa sobreviveu porque o criado da rainha teve misericórdia,
mas, nas outras três armadilhas, Branca se deixou enganar pela mulher que casou com seu pai.
Esta última demonstrou ser malvada, invejosa e orgulhosa, características que lhe dão
coragem para mandar matar outra mulher só para ser a mais bela do reino. Ao final do conto,
ao perceber que não conseguiu matar a princesa, a rainha morre por não suportar a beleza da
enteada. Bruno Bettelheim comenta a existência de personagens malvados nos contos de fadas
e as possíveis reações dos leitores ao terem contato com esses contos. Vejamos o que ele diz:
[...] Ao contrário do que acontece em muitas histórias infantis, nos contos de fadas o mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente todo conto de fadas o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas figuras e de suas ações, já que bem e mal são onipresentes na vida e as propensões para ambos estão presentes em todo
homem. É esta dualidade que coloca o problema moral e requisita a luta para resolvê-lo. [...] Nos contos de fadas, como na vida, a punição ou o temor dela é apenas um fator limitado de intimidação do crime. A convicção de que o crime não compensa é um meio de intimidação muito mais efetivo, e esta é a razão pela qual nas estórias de fadas a pessoa má sempre perde. [...] (BETTELHEIM, 1980, p. 15)
Outro trecho bastante curioso é o momento do encontro dos anões com Branca na casa
deles. No início, ficaram surpresos, depois assustados, contudo, após conhecer a menina,
gostaram dela e uma grande amizade começou. Além da amizade que surgiu, fizeram um
acordo com ela:
[...] Branca de Neve narrou-lhes toda a história e eles se apiedaram dela declarando que, se mantivesse tudo em ordem, cozinhasse e lavasse, tricotasse e fiasse para eles, poderia ficar onde estava que cuidariam bem dela. Saíram então para trabalhar todo o dia buscando ouro e prata nas montanhas, e Branca de Neve permaneceu em casa. [...] (GRIMM, 2008, p. 121)
Mesmo não sendo um matrimônio, a convivência dependia de uma distribuição bem
conhecida de papéis sociais: homens trabalham fora e mulheres cuidam da casa, ou seja, “não
trabalham”, apenas exercem atividades domésticas.
No final dessa versão, prevalece o amor à primeira vista, o final feliz com o casamento
da princesa Branca de Neve com o príncipe encantado e o perdão, pois até a madrasta foi
convidada para o matrimônio.
[...] o pedaço de maça caiu dos lábios da menina, e Branca de Neve acordou, perguntando: — Onde estou? E o príncipe respondeu: — Estás a salvo comigo – contou-lhe o que acontecera e disse -, amo-te mais do que tudo no mundo. Vem comigo para o palácio de meu pai e serás minha mulher. E Branca consentiu e foi com o príncipe, e o casamento foi preparado com muita pompa e esplendor. [...] Branca de Neve e o príncipe viveram e reinaram felizes por muitos e muitos anos. (GRIMM, 2008, p. 126)
Os leitores, em muitos casos, se envolvem e torcem pelo final feliz para a
protagonista, como aconteceu com Branca de Neve. Segundo Bettelheim (1980, p. 15-16),
“[...] Não é o fato de a virtude vencer no final que promove a moralidade, mas de o herói ser
mais atraente para a criança, que se identifica com ele em todas as suas lutas [...]”.
Branca de Neve é rememorada por Pedro Bandeira, só que passou a ser chamada Dona
Branca Encantado. Ela não é mais aquela menina inocente e exerce o papel de líder na busca
por Feiurinha, ao convocar a reunião com as outras princesas para que pudessem decidir o que
iriam fazer para encontrar a amiga desaparecida e ao enviar Caio, o seu lacaio (uma espécie
de rapaz de recados), para solicitar o apoio do escritor Pedro Bandeira na investigação. Na
maioria das vezes, é Branca quem toma a frente e assume a liderança da situação, como no
trecho a seguir: “[...] — Calem a boca! As duas! Vamos deixar a vaidade de lado. O perigo
que corremos é muito mais sério. Não há tempo a perder! [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 42).
Ou ainda: “[...] Dona Branca era a dona do castelo e era também quem tomava as decisões
[...]” (BANDEIRA, 1999, p. 45).
Líder da investigação e geniosa, Branca fica irritada quando percebe que o autor Pedro
Bandeira ainda não conseguiu descobrir onde estava Feiurinha, seu príncipe, seu castelo e
todo o seu reino. Vejamos o trecho no qual ela demonstra sua irritação:
[...] Branca de Neve voltou para mim aqueles lindos olhos negros que haviam virado a cabeça do mais elegante dos príncipes: — E então, senhor Autor? Já encontrou a Feiurinha? Como eu ainda estivesse mudo pela surpresa, Dona Branca Encantado veio em meu auxílio: — Pare de ficar com a boca aberta feito um palerma e responda a minha pergunta. Encontrou ou não encontrou a Feiurinha? [...] (BANDEIRA, 1999, p. 50-51)
Além de ser descrita como uma mulher destemida e geniosa, o escritor-narrador-
personagem nos conta fatos, criados por ele, que teriam acontecido depois do final feliz na
história de Branca de Neve ao dar início ao “Capítulo Zero e meio”:
[...] Era uma vez, há muitos, muitos anos atrás mais vinte e cinco anos, uma senhora de cabelos negros como o ébano, onde já começavam a aparecer alguns fios brancos como a neve, bem da cor da pele dela, que também era branca como a neve. O nome da tal senhora era Branca Encantado. [...] Dona Branca estava com uma barriga enorme, esperando o seu sétimo filho, para ser afilhado do sétimo anãozinho, que vivia reclamando pelo fato de todos os outros anões já serem padrinhos de filhos de Dona Branca e faltar um para ser afilhado dele. Dali a uma semana ia fazer vinte e cinco anos que Dona Branca havia se casado para ser feliz para sempre. E, como você sabe, quem fica vinte e cinco anos casado com a mesma pessoa faz uma bruta festa para comemorar as Bodas de Prata. Feliz com tudo isso, Dona Branca tricotava um casaquinho de lã para o principezinho que ia nascer, sozinha no grande salão do castelo, forrado de mármore cor-de-rosa e veludo vermelho. Os filhos maiores estavam na escola e os menores com as amas. O Príncipe Encantado, como sempre, estava caçando. [...] (BANDEIRA, 1999, p. 15-16)
No início do trecho, parece-nos que o escritor está contando a versão dos Irmãos
Grimm ao rememorar o nome da personagem, a presença dos sete anões e, principalmente, no
que se refere a descrição física da princesa (cabelos negros, pele branca como a neve). Só
mais adiante é que se pode perceber que a personagem está casada, já é mãe de seis filhos,
está grávida do sétimo e possui alguns fios de cabelos brancos simbolizando a maturidade de
Branca. Assim, é-nos apresentada uma princesa corajosa e ao mesmo tempo exercendo
funções e ações destinadas à mulher após o casamento: mãe dedicada, costurando roupas para
o próximo filho (como mostra a ilustração a seguir) e demonstrou ser muito caseira.
Figura 3 – Branca Encantado costurando enquanto aguarda o nascimento do sétimo filho. Fonte: BANDEIRA, Pedro. O fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD, 1999, p. 14.
Por outro lado, os homens não são nada caseiros. O príncipe, esposo de Branca
Encantado, por exemplo, estava caçando segundo o narrador “como sempre”. Outra prática
que a sociedade apresenta como feminina é a conversa ininterrupta, isto é, falar demais, não
deixar que outros falem. O narrador chama as princesas de “princesas faladeiras”. E elas não
ficam só na falação ininterrupta partem para a prática de falar da vida alheia, conversa mais
conhecida como fofoca que algumas vezes denunciava a inveja das outras princesas. Essa
situação é abordada por Pedro Bandeira ao narrar uma conversa entre Chapeuzinho e Branca.
[...] — Menina, você não imagina o que aconteceu... — Aconteceu? O que foi que aconteceu? Ah, vamos, conta logo! Sou doida por uma fofoca. Vai ver que foi aquela sirigaita da Gata que... — Branca, Branca! – censurou Chapeuzinho, balançando a cabeça. — Você sabe que Cinderela Encantado detesta ser chamada de Gata Borralheira... — Ah, deixa pra lá. Continue! Olhando em volta para ver se ninguém a ouvia, Chapeuzinho perguntou: — O Príncipe está no castelo? — Ah, não está não. Foi à caça. — Pois então vamos ao assunto. [...] — Resumindo: O Príncipe da Rapunzel encontrou-se com o Príncipe da Cinderela, que tinha passado no castelo de Feiurinha Encantado... — Feiurinha! – exclamou Dona Branca. — Há quanto tempo não vejo minha querida Feiurinha Encantado... — Pois é exatamente essa a fofoca: há muito tempo ninguém vê a Feiurinha! — Ela desapareceu? — Isso mesmo. O Príncipe deve estar desconsolado... — Que Príncipe? — O Príncipe Encantado. Marido de Feiurinha. — Ah... – Dona Branca interpretou à sua maneira o desaparecimento de Feiurinha. — Será... será que ela abandonou o marido?
— E fugiu com outro? Acho difícil. A essa altura não existe mais nenhum Príncipe Encantado solteiro. Eu que o diga! Estou cansada de ser solteirona. Tenho procurado feito louca, mas só encontro príncipe casado... (BANDEIRA, 1999, p. 20-21)
As princesas estavam preocupadas com a amiga, mas não deixam de fazer suposições
maldosas sobre o seu paradeiro: “fugiu com outro”. Destarte, o público leitor pode conhecer,
através dessa narrativa, uma Branca de Neve bem diferente daquela personagem daquela
descrita no conto dos Irmãos Grimm.
3.2.3 Chapeuzinho Vermelho
O conto que é conhecido, na contemporaneidade, pelo título de Chapeuzinho
Vermelho não foi apenas rememorado por Pedro Bandeira em O fantástico mistério de
Feiurinha, ele também fazia parte do repertório dos camponeses franceses no século XVII, só
que não era conhecido com esse título, e a menina, protagonista da narrativa, nem possuía o
tal chapéu vermelho. É provável que uma das poucas semelhanças com outras versões seja a
descrição da menina como extremamente ingênua. Darnton (1986), coleta e narra, talvez, uma
das primeiras versões dessa história. Ela possui episódios conhecidos pela maioria dos leitores
do mundo inteiro, mas com algumas diferenças que podem ser assustadoras: a menina (sem
nome) que atende ao pedido da mãe e vai levar pão e leite para sua avó, no caminho, encontra
com um lobo falante que logo pergunta para onde ela está indo. Ela, ingenuamente, responde;
ele chega antes dela à casa da vovó. Nesse trecho, a mãe não ensina o caminho menos
perigoso e o lobo mata a vovó com indícios de crueldade. Crueldade, provavelmente, difícil
de ser encontrada em textos impressos destinados às crianças. Dessa forma, a parte mais
assustadora da narrativa tem início: “[...] Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e
chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou sua carne
em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado
na cama, à espera [...]” ([História da menina que foi devorada pelo lobo], [17--] apud
DARNTON, 1986, p. 22).
Assim que a menina chega à casa da avó, o lobo oferece carne e vinho (carne e sangue
da avó), para ela. Ela aceita e sem saber, come ensopado preparado com carne da própria avó.
Vale dizer que o final desse conto não é indicado para aqueles leitores que apreciam finais
felizes. No final, o lobo, monstruosamente mau, devora a menina:
[...] — Ah, vovó! Como você é peluda! — É para me manter mais aquecida, querida. — Ah, vovó! Como são compridas suas unhas! — É para me coçar melhor, querida. — Ah, vovó! Que dentes grandes você tem! — É para comer você melhor, querida. E ele a devorou. ([História da menina que foi devorada pelo lobo], [17--] apud DARNTON, 1986, p. 22)
O historiador Robert Darnton ainda cita, no capítulo “Histórias que os camponeses
contam: o significado de Mamãe Ganso” da obra O grande massacre de gatos, um estudo
realizado por Paul Delarue sobre trinta e cinco versões da história da menina devorada pelo
lobo. Ele ressalta que, em todas elas, existem semelhanças com a versão dos camponeses.
Esse fato vem demonstrar a importância das pesquisas dos historiadores para que possamos
fazer um estudo intertextual sobre as obras da literatura infantil.
Seguindo as “trilhas” do intertexto nos deparamos com a versão de Charles Perrault.
Ele acrescentou alguns elementos ao conto como, por exemplo, o chapéu vermelho que a avó
costurou para sua neta, ressaltando o carinho e cuidado que a avó e a mãe dedicavam à
menina. Esta última, pelo uso contínuo do chapéu vermelho, recebeu o apelido de
Chapeuzinho Vermelho como podemos observar no trecho a seguir: “[...] Era uma vez uma
pequena camponesa, a mais bonita que se possa imaginar. Sua mãe era louca por ela e sua avó
mais ainda. [...] A avó fez-lhe um pequeno chapéu vermelho que lhe assentava
maravilhosamente bem. Por isso, em toda parte, passaram a chamá-la Chapeuzinho Vermelho
[...]” (PERRAULT, 2005, p. 64).
O pão e leite presentes na versão oral são substituídos por bolos folhados e um pote de
manteiga fresca para a vovó que está adoentada. Além de acrescentar e substituir alguns
elementos e situações, o autor descreve Chapeuzinho de maneira bem semelhante às outras
versões: uma menina ingênua, meiga, “pobre criança”. Uma criança incapaz de saber o perigo
que corria ao ter contato com lobos e capaz de apostar com ele para ver quem chegava mais
rápido a casa da vovó. A avó é descrita como “boa avozinha” e o lobo como esperto, veloz e
faminto “[...] ele se jogou sobre a mulher e a devorou num piscar de olhos, pois havia três dias
que não comia [...]” (PERRAULT, 2005, p. 66). E com Chapeuzinho aconteceu o mesmo: o
lobo se vestiu de avó, enganou e devorou a menina. Reafirmando o já dito, Charles Perrault
também contribuiu de forma singular para que a história dessa menina seja conhecida no
mundo todo. Acredita-se que a sua versão seja a mais conhecida no Brasil.
No século XVIII, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm constroem as suas histórias. E
nas narrativas criadas por eles pode-se observar alguma influência das obras de Charles
Perrault. Constatamos essa influência, por exemplo, na versão da história de Chapeuzinho
Vermelho escrita pelos Irmãos Grimm. Há algumas semelhanças e diferenças com o conto de
Perrault e a versão dos camponeses franceses, no que diz respeito, entre outras coisas, ao
chapéu vermelho que a menina usava e ao descrever Chapeuzinho como “graciosa”,
“valiosa”, ingênua. A mesma ingenuidade que, mais uma vez, fez com que ela não tivesse
medo de apostar corrida com ele:
[...] Era uma vez, numa pequena cidade às margens da floresta, uma menina de olhos negros e louros cabelos cacheados, tão graciosa quanto valiosa. Um dia, com um retalho de tecido vermelho, sua mãe costurou para ela uma curta capa com capuz; ficou uma belezinha, combinando muito bem com os cabelos louros e os olhos negros da menina. Daquele dia em diante, a menina não quis mais saber de vestir outra roupa, senão aquela e, com o tempo, os moradores da vila passaram a chamá-la de “Chapeuzinho Vermelho. […] (GRIMM, 2000, não paginado)
Além de semelhanças a versão dos Grimm difere das outras duas ao afirmar que quem
costurou o capuz vermelho foi a mãe de Chapeuzinho e não a avó como a versão de Charles
Perrault, a descrição física da menina também não foi tão detalhada por esse último autor, o
lanche levado para a avó não era mais composto por leite, pão, bolo, mas de broas, um pote de
geleia e manteiga feitas pela mãe da protagonista. E a grande diferença dá-se no momento em
que a matriarca pede para a filha ter cuidado quando passar pela floresta, pois ela possui
perigos, pedido que não realizado no conto escrito por Perrault.
Ainda na versão dos Grimm, uma característica se faz presente de forma
marcante: a descrição do lobo como bicho “enorme”, “de pelo escuro e olhos brilhantes” e
que sabia usar a astúcia para enganar pessoas:
[...] Chapeuzinho Vermelho pegou o cesto e foi embora. A mata era cerrada e escura. No meio das árvores somente se ouvia o chilrear de alguns pássaros e, ao longe, o ruído dos machados dos lenhadores. A menina ia por uma trilha quando, de repente, apareceu-lhe na frente um lobo enorme, de pêlo escuro e olhos brilhantes. Olhando para aquela linda menina, o lobo pensou que ela devia ser macia e saborosa. Queria mesmo devorá-la num bocado só. Mas não teve coragem, temendo os cortadores de lenha que poderiam ouvir os gritos da vítima. […]
(GRIMM, 2000, não paginado)
Nas outras versões supracitadas, o lobo não parecia tão assustador. Perrault (2005)
chama o animal de “compadre lobo” e na versão dos camponeses franceses, eles apenas o
denominam de “lobo” sem qualquer qualificativo. Na narrativa dos Grimm, o animal parece
mau, faminto, usa seus dotes para enganar a avó e a menina. Nesse ponto, a história parece
seguir o mesmo desfecho trágico, com um lobo de barriga cheia e duas pessoas mortas. Entre
elas a “pobre Chapeuzinho” descrita, outra vez, como uma menina indefesa:
[...] — Oh, vovozinha, que braços longos você tem! — São para abraçá-la melhor, minha querida menina! — Oh, vovozinha, que olhos grandes você tem! — São para enxergar também no escuro, minha menina! — Oh, vovozinha, que orelhas compridas você tem! —São para ouvir tudo, queridinha! — Oh, vovozinha, que boca enorme você tem! — É para engolir você melhor!!! Assim dizendo, o lobo mau deu um pulo e, num movimento só, comeu a pobre Chapeuzinho. […] (GRIMM, 2000, não paginado)
Eis que surge o elemento surpresa para a alegria de alguns leitores: o final, que dessa
vez, é feliz. Fim de conto surpreendente no qual o caçador surge e retira a neta e a avó, vivas,
da barriga do lobo:
[...] Algumas horas mais tarde, um caçador passou em frente à casa da vovó, ouviu o barulho e pensou: “Olha só como a velhinha ronca! Estará passando mal!? Vou dar uma espiada.” Abriu a porta, chegou perto da cama e… quem ele viu? O lobo, que dormia como uma pedra, com uma enorme barriga parecendo um grande balão! O caçador ficou bem satisfeito. Há muito tempo estava procurando esse lobo, que já matara muitas ovelhas e cabritinhos. — Afinal você está aqui, velho malandro! Sua carreira terminou. Já vai ver! Enfiou os cartuchos na espingarda e estava pronto para atirar, mas então lhe pareceu que a barriga do lobo estava se mexendo e pensou: “Aposto que este danado comeu a vovó, sem nem ter o trabalho de mastigá-la! Se foi isso, talvez eu ainda possa ajudar!”. Guardou a espingarda, pegou a tesoura e, bem devagar, bem de leve, começou a cortar a barriga do lobo ainda adormecido. Na primeira tesourada, apareceu um pedaço de pano vermelho, na segunda, uma cabecinha loura, na terceira, Chapeuzinho Vermelho pulou fora. — Obrigada, senhor caçador, agradeço muito por ter me libertado. Estava tão apertado lá dentro, e tão escuro… Faça outro pequeno corte, por favor, assim poderá libertar minha avó, que o lobo comeu antes de mim. O caçador recomeçou seu trabalho com a tesoura, e da barriga do lobo saiu também a vovó, um pouco estonteada, meio sufocada, mas viva. […] (GRIMM, 2000, não paginado)
E o lobo ainda pagou pelo mau que fez, pois o caçador colocou várias pedras na
barriga dele, costurou tão bem que ele quase não conseguia levantar. Portanto, sempre que
fizermos a leitura de um intertexto vamos encontrar apropriações que o modificam, o
ampliam e/ou lhe enxertam. No final da versão dos Grimm, os maus são punidos e os bons
foram salvos do perigo: final bastante usado pelos autores da literatura infantil.
Com base na leitura dos textos notam-se algumas semelhanças e diferenças em todas
as versões citadas. Semelhante por fazer referência ao momento em que no conto o lobo,
vestido de vovó, conversa com Chapeuzinho para tentar devorá-la. E uma das diferenças
quando o leitor percebe os diversos finais.
Já Pedro Bandeira, em O fantástico mistério de Feiurinha, ao transformar a obra em
ponto de encontro entre personagens famosas de várias histórias, dialoga com os contos de
Charles Perrault e Irmãos Grimm, principalmente com o conto tipo A menina devorada pelo
lobo. Chapeuzinho, nesse caso, é chamada de “Senhorita Vermelho” ou “Dona Chapeuzinho”
e é descrita como fofoqueira, obesa, solteirona, encalhada e invejosa. Observe o comentário
do narrador: “[...] Chapeuzinho era a mais solteira das amigas de Dona Branca e uma das
poucas que não era princesa. A história dela tinha terminado dizendo que ela ia viver feliz
para sempre ao lado da Vovozinha, mas não falava em nenhum príncipe encantado […]”
(BANDEIRA, 1999, p. 16). Nesse trecho, fica notório a afirmação acerca do fim da história
de Chapeuzinho Vermelho, que não era princesa e não se casou. O autor enfatiza
[...] a mais solteira das amigas [...]. Como se o ideal de felicidade de toda mulher fosse o casamento. As personagens até colocam em prática algumas simpatias e crenças populares para ver se a amiga conseguia um casamento: [...] As duas deram-se três beijinhos, um numa face e dois na outra, porque o terceiro era para ver se Chapeuzinho desencalhava. [...] (BANDEIRA, 1999, p. 17)
Durante todo o texto Chapeuzinho Vermelho lamenta não ter se casado. Ainda
comenta com as amigas que deveria ter casado com o caçador, já que em sua história não tem
príncipe e que esses últimos realmente não servem para nada, pois só aparecem no fim das
histórias para o casamento, depois que as protagonistas passaram por diversos perigos,
sozinhas. E reafirma que os personagens realmente corajosos eram os caçadores. Em outro
trecho, enquanto Rapunzel fala mal do marido, que sobe por suas tranças mesmo estando
obeso, Chapeuzinho continua sonhando: “[...] Chapeuzinho suspirou, pegando nas suas
pequeninas tranças: - Quem me dera eu tivesse um príncipe para subir pelas minhas tranças!
Quem sabe o Pequeno Polegar... [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 29).
Outra função feminina que Chapeuzinho não consegue realizar é a de gerar um filho.
Ela afirma não encontrar nenhum homem solteiro por aqueles reinos e por isso atrela o fato de
não ter filhos ao de não ter se casado. Mostra-se muito incomodada com isso e fica todo o
tempo repetindo que todas as outras serão mães, menos ela, sentimento que foi retratado na
ilustração a seguir, no olhar de Chapeuzinho para as grávidas: Branca e Cinderela Encantado
Figura 4 – Senhorita Chapeuzinho Vermelho observa as amigas grávidas. Fonte: BANDEIRA, Pedro. O Fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD, 1999, p. 24.
Bandeira também se refere às versões da história de Chapeuzinho de maneira bastante
inusitada num diálogo entre as amigas como podemos observar na citação a seguir:
[...] — Minha amiga Branca! Por que você tem esses olhos tão grandes? — Ora, deixe de besteira Chapéu! — Ahn... quer dizer... desculpe, Branca... É que eu sempre me distraio... — atrapalhou-se toda a Chapeuzinho. — É que estou sempre pensando na minha história. Ela é tão linda, com o Lobo Mau, tão terrível e o Caçador, tão valente... [...] (BANDEIRA, 1999, p. 17)
Dessa forma, a graciosa Chapeuzinho, dos irmãos Grimm, aparece como uma jovem
senhora que parece infeliz por não realizar o que a sociedade acredita que toda mulher deveria
realizar, principalmente casamento e maternidade. Dessa forma, vive de lembranças da sua
história e de inveja das histórias das outras princesas. No trecho a seguir, o narrador confirma
essa afirmação quando a menina do chapéu vermelho acompanha a chegada de Cinderela
Encantado à casa de Branca Encantado: “[...] Dona Chapeuzinho olhou com inveja para os
sapatinhos enquanto Dona Branca vinha dar as boas-vindas à cunhada [...]” (BANDEIRA,
1999, p. 23). E, como não tem jeito, lamenta também o fato de não estar completando bodas:
“[...] — Só eu que não vou fazer boda nenhuma... – suspirou Dona Chapeuzinho [...]”
(BANDEIRA, 1999, p. 24).
Esses sentimentos preocupam a personagem durante toda a obra. Vejamos outro trecho
que comprova essa repetição:
[...] Nesse instante, a enorme porta do salão abriu-se novamente e o lacaio Caio anunciou: — A Senhora Bela Adormecida Encantado! E a Senhora Princesa Rosaflor Della Moura Torta Encantado! — Mais duas grávidas! – exclamou Chapeuzinho Vermelho. – E aposto que também estão para fazer Bodas de Prata... As duas espantaram-se e fizeram a mesma pergunta: — Estou mesmo! Como adivinhou? — Intuição, queridinhas, intuição... (BANDEIRA, 1999, p. 31-32)
Uma jovem senhora invejosa e irônica. É assim que Chapeuzinho é descrita. Mas, não
é só isso ou tudo isso, tem mais algumas características dessa personagem que o autor não
deixou de citar. Não podemos esquecer que a jovem senhorita possui outra característica,
apontada pelo narrador, nessa obra: comilona.
Dona Chapéu, como é chamada, vive comendo muito e por isso engordou com o
passar dos anos, perdendo o ideal de beleza perseguido por muitos numa sociedade em que a
aparência é sempre muito importante como o leitor pode constatar nas citações a seguir:
[...] Dona Chapeuzinho sentou-se confortavelmente, colocou a cestinha ao lado (ela não largava aquela bendita cestinha!), tirou um sanduíche de mortadela e pôs-se a comer (aliás, Dona Chapeuzinho tinha engordado muito desde aquela aventura com o Lobo Mau). — Aceita um brioche? – ofereceu a comilona, de boca cheia. [...] (BANDEIRA, 1999, p. 18).
E se a amiga não aceita o brioche, “Dona Chapeuzinho” continua seus lamentos e se encarrega do lanche que trouxe na cestinha: [...] — Ai, ai, menos eu... – suspirou Dona Chapeuzinho, comendo mais um brioche. [...] (BANDEIRA, 1999, p. 32)
Em síntese, as versões estudadas atestam para a presença da intertextualidade desde
sempre na literatura mundial. As temáticas giram em torno de algumas inversões,
principalmente nas atitudes dos personagens. Nos contos tradicionais, temos uma
Chapeuzinho graciosa, medrosa e ainda menina. Nas versões mais atuais, ela é descrita como
corajosa (após o enfrentamento com o lobo), senhora, encalhada, invejosa e obesa. Talvez um
pouco infeliz por não ter se casado e não ter tido filhos. Vale dizer que nem todos os críticos
concordam com as mudanças das versões atuais, entretanto, admitimos que tanto as versões
antigas como as contemporâneas contribuem para que todos os contos de fadas,
encantamentos e maravilhosos continuam proporcionando uma diversidade de textos que
podem ser lidos por leitores de diversas faixas etárias.
3.2.4 Cinderela
Na versão do conto Cinderela, escrito por Charles Perrault, a protagonista parece feliz
com a sua família e sua vida de princesa. Todavia, algo muito triste acontece e marca a
princesa de forma profunda: a morte de sua mãe. Após esse fato, o pai da menina se casa
novamente com uma mulher aparentemente agradável, carinhosa e honesta. Tempos depois da
união, Cinderela começou a sofrer por causa da madrasta e das duas filhas dela. Mulheres
descritas como “arrogantes, e geniosas”, que só mostraram quem eram verdadeiramente após
o casamento daquela mulher com o pai de Cinderela. A madrasta não suportava a bondade da
menina, porque as atitudes dela acentuavam a antipatia das enteadas de seu pai.
Já Cinderela é descrita como bela, filha bondosa, doce, humilde e como alguém que
sofria, mas não reclamava dos maus tratos e suportava tudo com paciência para não
entristecer seu pai. Pai que, durante toda a narrativa, não toma nenhuma providência contra a
madrasta e a favor da menina. Ele parece querer não enxergar as ações da segunda esposa.
Além de ter que suportar a falta de amor da madrasta, Cinderela ainda levava uma vida
muito difícil mesmo morando na casa de seu pai. A menina dormia sobre um colchão de
palha, fazia as tarefas da casa como lavar, passar e engomar roupas, além de usar roupas
muito velhas, como o podemos constatar através da ilustração abaixo
Figura 5 – Cinderela exercendo atividades domésticas. Fonte: Contos de Andersen, Grimm e Perrault. Tradução Maria Luisa de Abreu Lima Paz. São Paulo: Girassol, 2005, p. 214.
Ainda segundo o narrador, Cinderela era mil vezes mais bonita que suas irmãs, sempre
bem vestidas. A protagonista recebeu esse apelido porque, quando terminava as tarefas,
sentava-se sobre as cinzas perto de um fogão de lenha.
Entretanto, nesse conto, não existem apenas mulheres arrogantes e outras bondosas
demais; há outro tipo de figura feminina que aparece como um ser encantado capaz de realizar
desejos e ajudar aqueles que precisam, muitas vezes usando uma varinha de condão. Nos
contos de fadas tradicionais ou contemporâneos, essa mulher foi apelidada de fada-madrinha.
Foi ela quem ajudou Cinderela para que a princesa pudesse ir ao baile e conquistar a todos,
principalmente o príncipe encantado. Vale lembrar que, nessa versão, a fada afirma que
resolveu ajudar só porque a personagem é “uma boa menina”.
[...] Quando Cinderela apareceu, lindíssima, no salão onde os convidados estavam reunidos, todos ficaram impressionados. Ouviram-se sussurros de admiração, e todos perguntavam quem era aquela princesa desconhecida. O príncipe, deslumbrado, convidou a recém-chegada para dançar. E não se separou dela a noite toda, parecia enfeitiçado. [...] (PERRAULT, 2005, p. 218)
É nesse baile que tudo acontece. Cinderela apaixona-se pelo príncipe e vice-versa, e
perde o sapatinho de cristal na saída do castelo. Observe o trecho no qual as meio-irmãs da
protagonista contam o ocorrido para ela e o narrador reafirma o nascimento da inveja
daquelas mulheres para com a moça do baile e comentam o amor, a primeira vista, do
príncipe: “[...] Mortas de inveja, confessaram que o príncipe parecia apaixonado pela
desconhecida. E era verdade, pois dias depois o príncipe mandou anunciar em todo o reino
que se casaria com a dona do sapato [...]” (PERRAULT, 2005, p. 220). E isso aconteceu. Os
soldados do príncipe encontraram a moça após calçar o sapatinho de cristal em quase todas as
mulheres do reino e até de reinos vizinhos. Sobre os sapatinhos de Cinderela Bruno
Bettelheim afirmou:
Quando ‘Borralheira’ foi inventada, o estereótipo comum contrapunha o tamanho grande do homem ao tamanho pequeno da mulher, e o pezinho da heroína a tornaria especialmente feminina. Os pés grandes que não cabem no sapato fazem as irmãs mais masculinas que Borralheira, e, portanto menos desejáveis. [...] (BETTELHEIM, 1980, p. 307)
Ao final do conto de Charles Perrault a princesa Cinderela se casou com o príncipe
(como mostra a ilustração acima) e demonstrou que perdoou as duas irmãs, levando todas
para morar em seu castelo e ainda arranjou casamento para elas.
O conto Cinderela também é rememorado por Pedro Bandeira. E como aconteceu com
as outras princesas, o autor relembra, comenta e adapta trechos de versões clássicas desse
conto como a de Charles Perrault. Exemplo disso é a presença do sapatinho de cristal usado
por Cinderela no baile tão conhecido. Segundo o narrador: a princesa completará 25 anos de
casada com o Príncipe Encantado e ainda usa o mesmo sapatinho de cristal da época de
solteira o que provoca calos nos pés
[...] — Ai, ai, ui, ui... Dona Cinderela Encantado entrou mancando e logo procurou uma cadeira. Tirou os sapatos e soltou um uf de alívio, enquanto mexia os dedinhos dos pés para reativar a circulação. — Esses sapatinhos de cristal estão me matando! Já estou cheia de calos... [...] (BANDEIRA, 1999, p. 23, grifo do autor)
Pedro Bandeira relembra versões anteriores e propõe uma continuação da história
dessa mulher. Para tanto, usa algumas estratégias narrativas como provocar uma briga
intertextual entre as princesas. Cinderela discute com Dona Branca Encantado e, na discussão,
rememora fatos da versão continuada de Pedro Bandeira. Nela o escritor sugere que príncipe
era míope e por causa desse problema de vista ele não reconheceu Cinderela ao procurá-la
após o baile e quando saiu pelo reino com um dos sapatinhos de cristal à procura da mulher
que estivera com ele.
Interessante notar que Cinderela parece se incomodar com os fios de cabelos brancos
que já podiam ser vistos e simbolizavam a passagem dos anos na vida das princesas que, em
algumas versões, não envelheceriam jamais: “[...] Dona Cinderela ajeitou os cabelos louros
que ajudavam a esconder os fios brancos [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 24).
Todo o tempo as personagens repetem que vão ser felizes para sempre. Talvez esses
comentários possam confundir as princesas e até o leitor, que tentam entender como alguém
que está envelhecendo pode viver e ser feliz para sempre. Dúvida que Pedro Bandeira não
esclarece durante a sua narração. O que fica enfatizado é que todas as princesas se
incomodam com os fios brancos e Cinderela tenta escondê-los, demonstrando a vaidade
feminina e o cuidado com a aparência.
3.2.5 Rapunzel
A versão de Charles Perrault aborda um problema muito recorrente nos contos de
fadas: o casal que deseja, mas só consegue ter filhos depois de muitas tentativas. O casal era
vizinho de uma bruxa. E por causa de um desejo da esposa grávida, o homem roubou, mais de
uma vez, verduras fresquinhas da horta que ficava no quintal da bruxa. Esse fato desencadeou
a fúria da bruxa e o homem teve que pagar muito caro pelo seu erro. A bruxa exigiu que ele
entregasse para ela o seu bebê quando nascesse. E assim aconteceu: a criança nasceu e o casal
entregou a menina para a bruxa. Eis o trecho:
[...] Quando sua filhinha nasceu, a bruxa apareceu, deu-lhe o nome de Rapunzel e a levou. Rapunzel era uma menina muito bonita. Quando completou doze anos, a bruxa fechou-a numa torre sem portas nem escadas, no meio do bosque. Somente na parte mais alta havia uma minúscula janela. Quando a bruxa queria entrar na torre, chamava Rapunzel para que jogasse pela janela suas tranças douradas. Eram tão compridas, que a velha subia por elas. [...] (PERRAULT, 2005, p. 178)
Através desse trecho podemos perceber a maldade da bruxa e o aparecimento das
longas tranças que caracterizam Rapunzel em quase todos os intertextos relacionados com
esse conto. Longas tranças que possibilitaram o encontro da moça com o príncipe. O rapaz
ouviu Rapunzel cantando, percebeu que a moça que cantava estava numa torre alta e ficou
tentando descobrir como poderia fazer para conhecê-la. Viu como a bruxa fazia e resolveu
imitar. Conseguiu subir e Rapunzel ficou muito assustada ao ver que não era a bruxa que
estava ali, mas um belo rapaz. O príncipe agiu como a maioria dos príncipes encantados dos
contos tradicionais: aproximou-se com cuidado, foi educado, atencioso e conquistou a
confiança de Rapunzel conversando muito com a moça. Nem surgiu uma amizade e os
príncipes pedem as mulheres em casamento assim acontece nos contos de fadas. O amor surge
à primeira vista, porém, nessa narrativa, um fato nos chamou a atenção. Rapunzel aceita se
casar com aquele homem e justifica a sua resposta: “[...] Rapunzel perdeu o medo e, quando
ele perguntou se queria ser sua esposa, ela respondeu: — Sim, quero sair desta torre com você
[...]” (PERRAULT, 2005, p. 180-181). O que nos parece é que o príncipe estava realmente
encantado com a voz e a beleza da princesa, entretanto ela parece querer mais a liberdade do
que demonstra afeição ou encantamento pelo príncipe, nesse primeiro momento. Eles
continuaram se encontrando e combinaram como seria a fuga de Rapunzel, contudo a bruxa
descobriu o plano e como castigo cortou as tranças da moça e a levou para o deserto. No
momento em que o príncipe retornou para ver sua amada, a bruxa já o esperava e armou uma
emboscada para o rapaz. Observe uma passagem que pode ser considerada o clímax do conto
[...] Nesse mesmo dia, a feiticeira amarrou as tranças cortadas na janela e, quando o príncipe subiu por elas, deu de cara com a velha. — Jamais voltará a ver Rapunzel! – grunhiu a perversa mulher. Com o coração partido pela dor, o príncipe atirou-se do alto da torre. Não perdeu a vida, mas caiu sobre uma touceira de espinhos e ficou cego. Começou a vagar pelo bosque, alimentando-se de raízes e chorando a perda de sua amada. E assim andou
por vários anos, sem rumo e sem consolo, até que chegou ao deserto onde Rapunzel vivia. Ao ouvir seu belo canto, reconheceu a voz da amada e Rapunzel abraçou-o, chorando. Duas lágrimas suas caíram sobre os olhos do príncipe, que recuperou a visão imediatamente. [...] (PERRAULT, 2005, p. 182-183)
Dessa maneira, o maravilhoso se apresenta na versão de Charles Perrault para
Rapunzel. Um príncipe cego conseguiu viver num deserto sozinho e chegou ao local exato
que a bruxa escondeu a princesa. E ainda ficou curado da cegueira por causa das lágrimas da
mulher amada. No fim da história a moça parece afeiçoada ao príncipe e fica muito feliz ao
vê-lo. Por último, o narrador segue uma característica que se repete em outras histórias: final
feliz com o casamento da princesa e do príncipe e a confirmação de que eles viveram felizes
por muitos anos.
Essa felicidade é questionada por Pedro Bandeira mais uma vez. Rapunzel é
rememorada em O fantástico mistério de Feiurinha através do seu símbolo: as longas tranças.
Avelino Guedes, o ilustrador da obra, destaca o tamanho das tranças daquela princesa.
Segundo ele, Dona Rapunzel Encantado arrastava cinco metros de tranças como o leitor pode
constatar na ilustração a seguir.
Figura 6 – Rapunzel e sua longa trança. Fonte: BANDEIRA, Pedro. O Fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD, 1999, p. 27.
Elas são tão grandes que três páginas antes da chegada de Rapunzel ao castelo de
Branca Encantado, as tranças já aparecem através da ilustração de Avelino Guedes. E além do
cabelo trançado, a princesa carregava uma bolsa de gelo que comprimia contra a testa o tempo
todo porque estava com uma tremenda dor de cabeça. Questionada pelas amigas, Rapunzel
logo explicou razão dessa dor. No trecho seguinte Rapunzel explica o porquê da dor de
cabeça e lamenta.
[...] — Não aguento mais de dor de cabeça! Ai, que dor de cabeça! O Príncipe... — O Príncipe? Que Príncipe? – perguntou Dona Branca. — O Príncipe Encantado, meu marido. — Ah... — Pois é por causa dele que eu estou com essa dor de cabeça. Toda noite ele esquece a chave do castelo e cisma de entrar em casa subindo pelas minhas tranças. Não aguento mais de dor de cabeça! O príncipe já não é tão magrinho como antigamente... (BANDEIRA, 1999, p. 28-29)
Príncipe gordinho e que gosta de sair muito, segundo Rapunzel, “todas as noites”. Um
homem um tanto desencantado que deixa a esposa sozinha durante parte do dia e provoca
dores de cabeça na mulher de longas tranças.
3.2.6 A Bela Adormecida
Assim como na versão de Rapunzel, de Charles Perrault, a versão de a Bela
Adormecida, dos Irmãos Grimm também aborda o desejo e as dificuldades de um casal para
ter um filho. A diferença é que os pais de Rapunzel eram camponeses e os pais de Botão-de-
Rosa (era esse o nome da Bela Adormecida) fazem parte de uma família real. Depois de
algumas tentativas, eles tiveram uma filha descrita como uma bela menina. Para comemorar,
realizaram uma grande festa e todos do reino foram convidados, inclusive as fadas.
Entretanto, existiam treze fadas naquele reino e os pais da menina só convidaram doze delas,
justificando que só possuíam doze pratos de ouro para servi-las. As fadas compareceram e
presentearam a princesa com o que elas consideravam suas melhores dádivas como, por
exemplo, virtude, beleza, riqueza, dentre outras. Assim que quase todos os presentes foram
dados, apareceu a décima terceira fada, furiosa porque não fora convidada e disposta a se
vingar. É incomum encontrarmos uma fada malvada nos contos de fada, mas, nessa versão,
uma fada malvada se vinga da princesa. A princípio, a fada furiosa desejou que a menina, ao
completar quinze anos, iria ferir-se no fuso de uma roca e morreria, só que a décima segunda
fada, que ainda não tinha dado o seu presente, amenizou o feitiço, pois o encanto não podia
ser desfeito por outra fada, apenas pode ser amenizado. Então, o décimo segundo presente
salvou a vida da princesa. Ao completar quinze anos, ela e todos os habitantes do seu reino
iriam dormir profundamente durante cem anos, se a profecia da fada má se realizasse.
Enquanto a princesa crescia, o rei comprou e mandou destruir todas as rocas do reino, todavia
restou uma no alto de uma velha torre e o que todos temiam aconteceu. A bela princesa
recebeu todos os presentes das fadas: era bela, virtuosa, delicada, bem comportada, sábia,
amável e aos quinze anos adormeceu após ferir o dedo numa roca. Não sabemos se o rei
contou para sua filha o que ocorreu na sua infância. Ou Botão-de-Rosa sabia do perigo e
demonstrou ingenuidade ou não sabia de nada e por isso tocou a roca.
[...] — Ora avozinha – perguntou a princesa – o que fazes? — Estou fiando – respondeu a velhinha, balançando a cabeça. — como é bonito o movimento desta roda! – a menina exclamou, e tomou da roca para fiar. Porém, mal encostou a mão no fuso, a profecia se cumpriu, e ela foi dar sem vida no chão. Mas não estava morta, apenas caída em um sono profundo; e o rei e a rainha, que haviam acabado de chegar, e toda a corte igualmente mergulharam no mesmo sono profundo. Os cavalos nos estábulos, os cães no pátio, os pombos no telhado das casas e as moscas nas paredes. Até o fogo na lareira deixou de esquentar e adormeceu. [...] (GRIMM, 2008, p. 58)
Com o reino adormecido, uma densa cerca de espinhos cresceu ao redor do palácio e,
a cada ano, príncipes tentavam entrar por entre os espinhos e chegar até o palácio. Não
conseguiram e muitos morreram tentando, até que outro príncipe afirmou que veria Botão-de-
Rosa e, perseverando, realizou a proeza. Segundo o narrador, ele fez isso no dia em que o
encantamento completava cem anos. E, dessa vez, o encantamento da décima segunda fada se
realizou: a princesa foi acordada após dormir durante cem anos.
[...] naquele dia completavam-se cem anos desde o encantamento, e quando o príncipe se aproximou dos arbustos de espinhos, nada encontrou a não ser belas moitas de flores entre as quais passou facilmente, mas que depois fecharam-se por trás dele tão firmemente quanto antes. [...] o príncipe foi adentrando mais e mais o palácio e tudo estava tão quieto que podia ouvir sua própria respiração, até que chegou à velha torre e abriu a porta do pequeno quarto no qual estava Botão-de-Rosa. E lá a encontrou, profundamente adormecida, tão linda que ele não conseguia tirar dela os olhos, e, curvando-se, beijou-a. Mas no instante em que a beijou, a menina despertou, abrindo os olhos, e sorriu pra ele. [...] (GRIMM, 2008, p. 59)
O maravilhoso justifica o dormir e acordar das profecias e tudo se cumpre como
previsto pelas fadas. Todo o reino voltou à vida, despertando do mesmo sono profundo da
princesa e ela sentiu-se feliz com a chegada do seu salvador. A narrativa é finalizada com o
casamento de Botão-de-Rosa com seu príncipe salvador e com a conhecida frase dos finais de
contos de fadas: “os dois viveram felizes para sempre”.
Na obra O fantástico mistério de Feiurinha, a Bela adormecida passou a ser chamada
“Dona Bela Adormecida Encantado” após o casamento. Entretanto, Pedro Bandeira mostra
que ela mudou o nome, mas acontecimentos de versões anteriores não são deixados de lado,
pois, sempre que pode, ela dorme em qualquer lugar e ocasião. Talvez essa sonolência de
Bela Adormecida seja resquício de outras versões nas quais a menina havia dormido por cem
anos até ser acordada pelo príncipe encantado. Na história de Feiurinha, ao chegar ao palácio
de Branca de Neve, podemos comprovar essa característica de Bela: “[...] Dona Bela
Adormecida Encantado entrou bocejando e logo procurou a poltrona mais acolhedora,
ajeitando-se confortavelmente [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 32). O sono de Bela não é mais
por causa de algum feitiço. O autor nos apresenta uma personagem com sono exagerado sem
motivo aparente. Num outro trecho, enquanto as amigas se preocupam com o sumiço de
Feiurinha, Bela dorme profundamente: “[...] Todas olharam para Branca espantadíssimas.
Todas menos Dona Chapeuzinho, que já sabia da história, e Dona Bela Adormecida
Encantado, que já dormia a sono solto na poltrona [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 35).
O autor realmente enfatiza a sonolência de Bela demonstrando que nem mesmo num
momento tão delicado, em que todas estavam reunidas para discutir e encontrar uma solução,
Bela conseguia ficar acordada, passa a história quase toda dormindo pelos cantos e, quando
acorda, fica bocejando como podemos visualizar na ilustração 7.
Figura 7 – Bela Adormecida Encantado bocejando. Fonte: BANDEIRA, Pedro. O Fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD, 1999, p. 30-31.
Essa atitude deixa as amigas furiosas com a Bela Adormecida e dá a entender que ou
Bela tem algum problema com o seu sono, ou ela não está preocupada com aquela situação.
[...] Todas entreolharam-se, apreensivas. Todas, menos Dona Bela Adormecida, que continuava adormecida, roncando tranquilamente. Cinderela deu-lhe um discreto pontapé: — Para de roncar, desgraçada! — É isso mesmo! – apoiou Rapunzel. – Vê se vira Bela Acordada, porque adormecida você é um horror! — Ahn? Hum? Que foi? – perguntou Dona Bela Adormecida, despertando toda atrapalhada. [...] (BANDEIRA, 1999, p. 36)
Atrapalhada, desinformada e vista como um alguém que não vai ajudar em nada como
Chapeuzinho afirma nessa passagem: “[...] — Acho melhor deixar Bela Adormecida dormir –
propôs Dona Chapeuzinho. – Assim ela atrapalha menos [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 36).
Não demorou muito para que, após as ofensas e cutucadas, Bela ficasse bem acordada para
tentar entender o que estava acontecendo. E o narrador afirma que ela conseguiu essa proeza:
ficou acordada, percebeu que os tempos de felicidade eterna poderiam acabar como o
desaparecimento de Feiurinha indicava. A partir daí, ela ficou bem acordada para tentar ajudar
a resolver o mistério.
3.2.7 Bela-Fera
O conto que narra a história da moça que se apaixonou por uma fera é conhecido pelo
título A Dama e o Leão, na versão dos Irmãos Grimm. Nessa narrativa, encontramos um
mercador que tinha três filhas, sendo que duas são descritas como apegadas aos bens materiais
e a terceira aparenta ser carinhosa, simples e, segundo o narrador, a predileta do pai. Prova
disso é que o pai pergunta qual o presente que elas gostariam de receber e as duas primeiras
moças respondem que querem joias e pérolas, enquanto a terceira filha pede a seu pai que lhe
traga uma rosa.
Na viagem, o mercador compra as joias das duas outras e tem dificuldade de encontrar
a rosa, pois naquela época estavam em pleno inverno. Até que acabou encontrando um castelo
muito estranho, no qual nevava e ao mesmo tempo o sol brilhava como no verão. O mercador
viu um belo jardim próximo desse palácio e pegou uma rosa para presentear sua fila predileta.
Entretanto algo de muito ruim aconteceu no momento em que o homem encontrou o dono
daquele jardim. O susto foi grande quando um leão feroz apareceu na estrada e avisou que o
ladrão das rosas iria morrer. O homem suplicou para viver e a fera fez um acordo com ele:
“[...] – Quem se atreve a roubar minhas rosas é comido vivo! [...] a não ser que me prometas
quem primeiro te saudar ao chegares em casa [...]” (GRIMM, 2008, p. 139). Temendo por
sua vida o homem concordou. E o que jamais imaginara, aconteceu. A filha preferida
apareceu antes de qualquer pessoa para saudar o retorno de seu pai. Este último lhe contou o
ocorrido, avisou do risco que ela corria afirmando que o leão “selvagem” iria despedaçá-la e
comê-la. A moça não ficou amedrontada, demonstrou coragem e sugeriu que a promessa fosse
cumprida. Coragem que nem o próprio pai e seu companheiro de viagem tiveram ao ver o
leão. Para muitas pessoas da sociedade em questão, nenhuma mulher seria capaz de enfrentar
tal perigo de morte. Todavia, aquela moça cumpriu a promessa e tentou salvar a vida de seu
pai. Observe como o narrador destaca a bravura da filha do mercador: “[...] Na manhã
seguinte, ela informou-se do caminho a ser tomado, despediu-se do pai e, valente, partiu para
a floresta [...]” (GRIMM, 2008, p. 140).
O que o pai daquela mulher não sabia é que o leão era um príncipe encantado; de dia
ele e sua corte eram leões, e de noite voltavam à sua forma física verdadeira. Por causa do
encantamento, quando chegou ao palácio da fera, o que a moça encontrou foi um atencioso
príncipe. Ela ficou no castelo e morando com o príncipe/fera a vida do seu pai estava fora de
perigo. Ele cativou a moça e dessa amizade surgiu um afeto. Tempos depois, ela aceitou casar
com ele mesmo sabendo do encanto. O narrador afirma que eles foram felizes por muitos anos
e tiveram uma filha. Feliz, mas sem se esquecer da sua família, a moça voltou algumas vezes
para visitar seu pai e suas irmãs e, numa dessas visitas, o príncipe, que não podia ficar na
claridade, foi exposto à luz e se transformou num pombo. Como pombo, o esposo da moça foi
obrigado a vagar pelo mundo durante sete longos anos e ela mostrou ser mais corajosa ainda.
A dama seguiu o rastro de penas deixado pelo amado durante os sete anos. Ficou aflita
quando num determinado instante perdeu as pistas que indicavam a direção do pombo. Então,
para continuar a ser perseverante pediu ajuda ao sol, à lua, aos ventos (noturno, Leste, Oeste e
Sul). Eles ajudaram a dama e ela prosseguiu na sua busca. Quando conseguiu encontrar o
pombo, ele estava lutando com um dragão (que na verdade era uma princesa). A moça ajudou
a derrotar o dragão, os encantos foram quebrados, entretanto a princesa roubou o príncipe da
dama. Mais uma vez ela mostrou sua determinação e vontade de retomar o seu casamento e
sua felicidade: foi ao castelo da princesa e arrancou o seu príncipe de lá. O trecho a seguir
representa o final do conto: “[...] E os dois fugiram do palácio secretamente durante a noite
(pois temiam muito a princesa) e viajaram de volta para casa, onde reencontraram a folhinha
já crescida, elegante e bela, e juntos viveram felizes até o fim de seus dias [...]” (GRIMM,
2008, p. 145).
Assim nos é apresentada uma mulher diferente que muda seu destino através da
coragem e perseverança. A filha do mercador da versão dos Irmãos Grimm, Bela, como é
conhecida em versões anteriores, passou a ser conhecida como “Senhora Princesa Bela-Fera
Encantado” após o matrimônio, na obra O fantástico mistério de Feiurinha. Na versão dos
Irmãos Grimm, podemos relembrar que foi durante o período que antecede o casamento que
Bela, com o seu amor, transformou a Fera em príncipe, mas Pedro Bandeira relata que a vida
de casada dessa princesa não está sendo fácil. E um dos motivos da difícil convivência de
Bela com seu príncipe é o fato da princesa não consegue dormir. E ela desabafa com Branca
como podemos observar na ilustração a seguir:
Figura 8 – Desabafo de Bela-Fera Encantado com a amiga Branca Encantado. Fonte: BANDEIRA, Pedro. O Fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD, 1999, p. 33.
O narrador não aponta nenhum problema de insônia, contudo acrescenta um fato
inusitado na vida conjugal e no príncipe de Bela: o marido dela passa a noite toda uivando
para lua, com saudades do seu tempo de Fera.
[...] — A Senhora Princesa Bela-Fera Encantado! Dona Bela-Fera Encantado também estava esperando nenê e também ia fazer Bodas de Prata. Só que também estava bocejando. — Uááá... Que sono! Dona Branca fez uma cara penalizada. — Ah, querida Bela-Fera! Meu lacaio tirou você da cama... Só que bocejos não combinam bem com a sua história. Combinam melhor com a da nossa amiga ali, a Bela Adormecida... — É que eu não consegui dormir a noite toda. Ontem foi noite de lua cheia... — e o que é que tem isso? — Nessas ocasiões, meu marido passa a noite toda uivando pra lua. Vocês sabem, não é? Ele tem saudades do seu tempo de Fera... (BANDEIRA, 1999, p. 32-33)
O fragmento acima mostra semelhanças com versões anteriores, ao rememorar a Fera
que virou príncipe, o comportamento e a história da Bela Adormecida. Duas princesas
sonolentas estão na reunião convocada por Branca Encantado. Adormecidas umas, outras que
gostam de confusão.
Exemplos de outra briga intertextual são os desentendimentos entre Dona Rosaflor
Della Moura Torta Encantado X Dona Bela-Fera Encantado. Na discussão entre Rosaflor e
Bela, o desentendimento começa quando Rosaflor “alfineta” a amiga ao falar do príncipe
casado com ela:
[...] Dona Rosaflor Della Moura Torta Encantado deu sua alfinetada: — Desse jeito, o seu Príncipe vai acabar virando lobisomem...
Bela-Fera fuzilou-a com o olhar: — Ele era lobisomem, sua fofoqueira! Fui eu quem o fez voltar a ser príncipe! Rosaflor continuou com a provocação: — Aquilo? Príncipe? Não me faça rir! — Ah, é? Quem é você para falar da minha história? Logo você, que casou com um príncipe que não via a menor diferença entre você e a Moura Torta! — Mas, no fim eu casei com um Príncipe de verdade, e não com um lobisomem... — Bruxa! Horrorosa! — Mulher de lobisomem! [...] (BANDEIRA, 1999, p. 34, grifo do autor)
Mais uma vez, as brigas são uma oportunidade para rememorar alguns acontecimentos
das histórias das princesas, nesse caso as histórias de Bela e Rosaflor. Ao rememorá-las,
podemos comparar a descrição das mulheres e dos príncipes nas duas versões. Princesas
invejosas sempre querendo minimizar o marido da outra. Todavia, ao fim das briguinhas, tudo
volta à tranquilidade, segundo o autor.
3.2.8 Jerusa: Contadora ou Encantadora de histórias?
Figura 9 – Jerusa contadora de histórias. Fonte: BANDEIRA, Pedro. O fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD, 1999, p. 60.
Outra mulher muito importante para o reaparecimento de Feiurinha, depois de
desvendado o mistério, foi Jerusa. Essa personagem é a empregada doméstica de Pedro
Bandeira e uma excelente contadora de histórias. História que ouviu de sua avó, que, por sua
vez, aprendeu com a bisavó de Jerusa há muito tempo atrás. Segundo a personagem, o conto
de que ela mais gostava era a história de Feiurinha. Vale lembrar que Pedro bandeira e todas
as princesas estavam procurando em vários países alguém que soubesse recontar a história da
nossa princesa desaparecida para que ela fosse escrita e, dessa forma, pudesse ser lida por
leitores de todo o mundo. Assim, Feiurinha reapareceria e nunca mais seria esquecida.
Segundo o narrador, o único erro deles foi procurar tão longe e não perguntar a quem estava
tão perto.
Através da personagem Jerusa o escritor Pedro Bandeira reafirma a importância das
contadoras de história e lembra que na sua maioria existem mais mulheres que contam
histórias do que homens. Exemplo disso é Jerusa, sua avó e sua bisavó. Importância
reconhecida por Branca de Neve: “[...] Branca de Neve interrompeu o que eu ia dizer. Pegou
as mãos gordas de Jerusa nas suas pequeninas mãos e beijou-as. — Jerusa, por favor, conte
pra nós. Só você pode trazer Feiurinha de volta [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 61).
Logo depois do pedido de Branca, Jerusa começou a narrar a história de Feiurinha
com riqueza de detalhes e com a intromissão das princesas uma vez ou outra para fazer
comentários sobre os fatos contados. A narração começou assim: “[...] — A história de
Feiurinha é dos antigos. Quem me contou, há mais de sessenta anos atrás, foi minha avó, que
também ouviu da avó dela. Era a minha história preferida [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 62).
3.2.9 Feiurinha
A personagem Pedro Bandeira ouviu a história de Jerusa atentamente. Nela Feiurinha
aparece, ao nascer, como uma “linda menina” que residia numa casa humilde e era membro
de uma família pobre, mas repleta de amor e felicidade. A menina foi raptada por bruxas
ainda quando era criança e, segundo o narrador, a sua mãe era bondosa, dedicada e sofreu
muito com o desaparecimento da filha. O que os pais não ficaram sabendo é que Feiurinha foi
criada como empregada das mulheres malvadas e nem desconfiavam que a menina fosse
muito maltratada no casebre em que morava. As bruxas cutucavam, puxavam os cabelos e
beliscavam a moça e se autodenominavam: “Malvada, Ruim, Piorainda e Belezinha”,
respectivamente. Essa última bruxa, sobrinha das demais, foi descrita como o bebê mais feio
do mundo cujas características eram: dentes cariados, birolha, caspenta e com verruga na
ponta do nariz, estereótipo das bruxas dos contos de fadas tradicionais. Na ilustração abaixo,
podemos verificar as características das bruxas segundo o ilustrador Avelino Guedes.
Figura 10 – Feiurinha e as Bruxas Malvada, Ruim e Piorainda. Fonte: BANDEIRA, Pedro. O Fantástico mistério de Feiurinha. São Paulo: FTD, 1999, p. 69.
Em contrapartida, as mulheres ensinaram a Feiurinha que ser bela era ser como as
bruxas, invertendo o que a sociedade defende ser uma mulher bonita. Observe o trecho em
que as bruxas tentam fazê-la acreditar nisso: “[...] — Ihhh! Você deveria se envergonhar! –
comentava Ruim. — Você é feia demais! — É isso mesmo – acrescentava Malvada. — Nunca
vi garota mais feia! — Você é um horror! – completava Piorainda [...]” (BANDEIRA, 1999,
p. 66). A menina raptada possuía dentes brancos e alinhados, cabelos louros e macios,
cheirando a alfazema, nariz reto, pequeno e delicado, pele rosada, olhos de “um azul
profundo” características de mulheres muito feias, segundo as bruxas.
O belo deveria se assemelhar ao que elas eram: dentes cariados, cabelos grossos,
espetados, cheios de caspa e piolhos, e os narizes eram curvos, enrugados, enormes (quase
chegando ao queixo). Bruxas estereotipadas e princesa também. A “menina feia” possuía
traços valorizados pela narradora Jerusa, que todo o tempo, afirma que a menina era “a coisa
mais linda que já tinha nascido e se tornara a mais linda jovem que qualquer mortal já viu”
(BANDEIRA, 1999, p. 66). É uma protagonista idealizada semelhante aos contos de fadas
dos Grimm e de Charles Perrault. A diferença, nessa narrativa, talvez esteja na crítica que
parece estar presente nessa descrição de Feiurinha. Ela acredita nas mulheres que a criaram e
se sente envergonhada da própria feiura, por isso as bruxas a chamaram de Feiurinha.
Vale ressaltar que as descrições das personagens não ficam apenas nas características
físicas; Belezinha, por exemplo, demonstrou ser “[...] uma bruxinha tremenda de ruindade,
que não perdia ocasião de atormentar a vida de Feiurinha [...]” (BANDEIRA, 1999, p. 68). A
sobrinha das bruxas mostrava a tremenda ruindade com suas atitudes ao fazer maldades e
arreliar Feiurinha, entornar o caldeirão quando a comida estava quase pronta, obrigando a
menina a cozinhar tudo de novo, enchia o colchão da empregada de espinhos e não se
esquecia de lembrar que ela ainda não tinha verruga. Já Feiurinha é meiga, obediente, não se
queixava dos trabalhos que era obrigada a fazer, era “infeliz” e chorosa por causa da sua
feiúra. A tristeza dela aumentava ao perceber que as verrugas que tanto desejava não nasciam
em parte alguma do seu corpo, enquanto as bruxas possuíam verrugas enormes e cabeludas na
ponta do nariz e no queixo e a protagonista queria ser “bonita” como as mulheres que a
criaram. Não queria ser malvada, apenas bonita. Outra característica de Feiurinha é a
ingenuidade típica das mulheres protagonistas dos contos de fadas tradicionais. Ingênua por
acreditar nas bruxas malvadas que afirmam serem fadas e ela acreditava. Não sabe distinguir
entre pessoas boas e más, bem como perceber quando alguém se preocupa de verdade com a
sua felicidade. A diferença da atitude ingênua dessa protagonista para outras como Branca de
Neve, por exemplo, é que Feiurinha não conhecia mais ninguém além das bruxas que a
criaram e não poderia compará-las com outros indivíduos, enquanto Branca conhecia muitos
habitantes do reino de seu pai e de reinos vizinhos e não conseguiu identificar ações más de
sua madrasta.
Nessa obra também temos um príncipe encantado. Inicialmente, ele aparece como o
bode que vive na casa das bruxas e é o melhor amigo de Feiurinha. Ele é descrito como “[...]
um bode velho, com pelos sujos, cheio de pulgas e piolhos, lindo e fedido como as bruxas.
Mas era um amigo, que acompanhava Feiurinha por todo lado [...]” (BANDEIRA, 1999, p.
70).
O príncipe havia ficado assim depois de um feitiço daquelas bruxas. O que talvez
surpreenda os amantes de literatura infantil é a forma como o feitiço foi desfeito sem fada,
vara de condão ou encanto. Quem desfaz o feitiço é Feiurinha só que ela não sabia que tinha
esse poder. Vejamos o momento exato em que o Bode voltou a ser príncipe:
[...] — Se ao menos eu tivesse uma verruga! Uma verruguinha só, para mostrar a elas que eu não sou tão feia assim... Feiurinha mirando-se no rio, começou a procurar atentamente em todo o rosto. Nada... O Bode arregalou os olhos. Depois pesquisou os braços, as mãos, os pés e as pernas. Nada! E o Bode arregalou os olhos. — Quem sabe não nasceu uma verruguinha em alguma parte? Tirou a saia e continuou procurando. Tirou as anáguas, o corpete... O Bode arregalou ainda mais os olhos. ... até mirar-se nuazinha nas águas do rio. Nesse instante... Puf! ... uma nuvem azul envolveu o Bode! Feiurinha assustou-se: — O que é isso? De dentro de uma nuvem, surgiu o mais horroroso dos jovens. Feiíssimo! Alto, forte, musculoso, cheio de dentes brancos na boca, de olhos verdes e penetrantes como a luz do amanhecer. Assustada com tanta horripilância, Feiurinha tentou fugir, mas o braço forte do rapaz enlaçou-a pela cintura: — Por favor, não fuja, Feiurinha! Passei esses anos todos ao seu lado, sonhando com esse momento. Eu sou um Príncipe Encantado que foi transformado em bode
pelas três bruxas. Sua beleza me libertou da maldição. [...] (BANDEIRA, 1999, p. 73-74)
Príncipe feio, se seguirmos os parâmetros das bruxas para o que é ser belo, tão feio
que a menina se assustou ao vê-lo. O mesmo não aconteceu quando ele viu Feiurinha nua,
pelo contrário ficou tão embevecido que a maldição foi quebrada. Interessante notar que a
narradora usa a palavra “beleza” ao invés de “nudez”, talvez porque estamos nos referindo a
uma narrativa produzida para crianças e/ou jovens e há quem defenda que certas palavras ou
expressões devem ser evitadas. A narradora pode até ter evitado abordar a nudez da moça,
mas os olhos do bode denunciam que a experiência impactante provocou uma transformação
difícil de acontecer.
Após o príncipe voltar à sua forma física, ele declarou sua admiração por Feiurinha,
prometeu libertá-la das bruxas e fez uma proposta: “[...] Logo virei buscá-la. Espere por mim!
Vamos nos casar e seremos felizes para sempre, para sempre, para sempre! [...]”
(BANDEIRA, 1999, p. 74). Diante disso, a moça “encheu o coração de paz, de uma confiança
que ela nunca havia conhecido antes”; passou a acreditar que seria feliz para sempre e ainda
sorriu pela primeira vez em toda a sua existência. Até as provocações de Ruim, Malvada, Pior
Ainda e Belezinha não perturbavam a menina. Ela vivia suspirando e desatenta, pois estava
pensando no seu príncipe e sonhando com outra vida. As malvadas percebem e lançam uma
maldição sobre Feiurinha transformando-a em bruxa como elas. Fato que é pretexto para o
escritor expor a generosidade da moça no momento em que o príncipe aparece para salvá-la e
ela pede que ele não mate as mulheres e perdoe o mau que lhe fizeram. Através dessa atitude,
é que ele reconhece a moça transformada em bruxa e desfaz o encanto com sua espada de
prata. Dessa maneira, o homem exerce o papel de salvador, forte e corajoso, aquele que muda
o destino da mulher. Ele, realmente, pune as malvadas e liberta Feiurinha, ou seja, cumpriu a
promessa, e ainda leva a amada para reencontrar os pais. Contudo, não se sabe se a
protagonista e seu príncipe viveram felizes para sempre já que Pedro Bandeira dá
continuidade a vários contos, menos o que narra à história de Feiurinha. Assim a história
acaba sem que se saiba o que ocorreu a partir do “viveram felizes para sempre”.
3.3 MULHERES NA OBRA PRÍNCIPES, PRINCESAS, SAPOS E LAGARTOS, DE FLÁVIO DE SOUZA
Outro exemplo de história infantil que revê estereótipos através dos diálogos
intertextuais pode ser encontrado na obra Príncipes e Princesas, sapos e lagartos: histórias
modernas de tempos antigos, de Flávio de Souza e ilustrada por Paulo Ricardo Dantas. Flávio
de Souza nasceu em São Paulo, em 1955. É dramaturgo, roteirista, diretor e ator de teatro,
cinema e televisão. Criou e escreveu roteiros para a série de TV Mundo da Lua, escreveu e
dirigiu a peça Fica comigo esta noite e o curta-metragem Lembranças do futuro, entre muitas
outras produções. Em 1987, recebeu o prêmio APCA de melhor livro infantil. Como exemplo
de algumas obras publicadas por Flávio de Souza, temos: A mãe da menina e a menina da
mãe, Papai, vovô e eu, Filho de artista, Meu herói, A chegada do invasor, O rato que queria
ser Mickey. Começou sua carreira de escritor traduzindo histórias em quadrinhos do inglês,
tais como Luluzinha e A pantera cor-de-rosa. Dirigiu a ópera João e Maria e o filme
Lembranças do Futuro, dentre outras produções.
Figura 11 – Capa da obra Príncipes e Princesas, Sapos e Lagartos: histórias modernas de tempos antigos. Fonte: SOUZA, Flávio de. Príncipes e Princesas, sapos e lagartos: histórias modernas de tempos antigos. São Paulo: FTD, 1996. Com essa capa e título sugestivos, o autor produziu algumas histórias novas, com
personagens que fazem referência aos antigos príncipes e princesas. As pequenas histórias
acontecem nas Terras Médias, entre os reinos de Velda e Melra, enquanto acontece a Guerra
dos Mil e Um Anos. Em plena guerra, nasce o amor do príncipe Leo Lourival com a princesa
Miranda. Entre os encontros e desencontros do casal, surgem intercaladas com essa história de
amor, outros contos com bruxas e magos, príncipes transformados em sapos, princesas
aprisionadas em torres, um dragão que não passa de lagarto, um príncipe com trezentas
namoradas e os dois primeiros beijos de todos os tempos.
3.3.1 Príncipes e Princesas (Des) Encantados
Em uma das narrativas de Flávio de Souza pode-se encontrar a história do Príncipe
desencantado. O título se refere ao príncipe, mas vamos nos concentrar na análise da princesa
que também fará parte desse conto, pois o referido príncipe desperta essa princesa com um
beijo. Vale dizer que a moça estava adormecida há cem anos. Ao começar a leitura, o leitor,
provavelmente, lembrará do conto de fadas que narra a história da Bela adormecida, na versão
dos Irmãos Grimm e/ou Charles Perrault. Como fizemos uma comparação da versão dos
Irmãos Grimm com a continuação da história da Bela Adormecida, elaborada por Pedro
Bandeira em O fantástico mistério de Feiurinha, comparemos agora o conto de Flávio de
Souza ao desfecho da versão europeia de Charles Perrault:
[...] caminhou para o castelo, que via no fim de uma comprida alameda e, um pouco surpreendido, percebeu que, do seu pessoal, ninguém tinha podido segui-lo, porque as árvores se haviam reaproximado de novo, assim que ele passara. Não deixou, por isso, de continuar seu caminho: um Príncipe jovem e apaixonado é sempre valente. [...]. Afinal entrou num quarto, que tinha ao fundo um leito recamado de ouro e prata. Os cortinados estavam abertos e deixaram o Príncipe contemplar o mais belo espetáculo que jamais tinha visto: uma Princesa, que parecia ter quinze ou dezesseis anos, e que resplandecia com uma luz que lhe pareceu divina. Aproximou-se tremendo e pôs-se de joelhos, perto dela. Então, como o fim do encantamento tinha chegado, a Princesa acordou. E olhando para ele, com olhos mais ternos do que é habitual em um primeiro encontro, disse: - És tu, meu Príncipe? Como demoraste! O Príncipe, encantado com essas palavras e, principalmente, com o tom em que foram ditas, só encontrou uma maneira de testemunhar toda a sua alegria e reconhecimento: Eu te amo mais do que a mim mesmo – disse. [...] (PERRAULT, 2005, p. 13)
Como podemos verificar nesse trecho, o encontro entre o príncipe e a princesa
adormecida foi um momento de encantamento e despertou o amor nos protagonistas. A
princesa é descrita como menina linda, sorridente, “luz que parecia divina”, “detentora de
olhos ternos”; o príncipe é descrito com algumas semelhanças em relação aos outros príncipes
de outras versões europeias: rapaz corajoso, sensível demais e com palavras apaixonadas. A
semelhança mais recorrente é a coragem, entretanto uma diferença chama a atenção: a
sensibilidade exagerada que nem sempre encontramos nos príncipes.
Entretanto, ao compararmos essa versão com as narrativas de Flávio de Souza, logo
percebemos que a princesa e o desfecho desses novos contos são bem diferentes. Na versão de
Charles Perrault, o príncipe se apaixona pela bela adormecida, eles se casam e vivem felizes
para sempre. Já na versão contemporânea, o príncipe fica decepcionado no momento em que
conhece a princesa, pois após ser despertada com um beijo do príncipe, ela começou a falar
sem parar e requerer os seus “direitos” como, por exemplo: se o príncipe lhe deu um beijo
deveria se casar com ela por causa da sua reputação. De início fica a sensação de que ela
realmente está preocupada com a reputação, logo depois outro motivo surge para justificar a
atitude da princesa que pediu (ou exigiu) aquele homem para se casar com ela. Observe um
trecho do diálogo que se estabelece entre a bela, agora acordada, e o seu salvador:
[...] Assim que foi beijada, ela acordou e começou a falar: PRINCESA- Muito obrigada querido príncipe. Você por acaso é solteiro? PRÍNCIPE - Sim, minha querida princesa. PRINCESA – então temos que nos casar, já! Você me beijou, e foi na boca, afinal de contas não fica bem, não é mesmo? PRÍNCIPE – É querida princesa. PRINCESA - Você tem um castelo, é claro. PRÍNCIPE - Tenho... princesa. PRINCESA - E quantos quartos tem o seu castelo? Posso saber? PRÍNCIPE – Trinta e seis. PRINCESA – Só? Pequeno, hein! Mas não faz mal, depois a gente faz umas reformas. [...] (SOUZA, 1996, p. 34)
E as perguntas e exigências dela não se restringiram apenas a solteirice do príncipe. A
princesa quis averiguar se ele possuía todos os requisitos que ela desejava num homem para
contrair matrimônio. A bela acordada pareceu se interessar muito mais nos bens que ele disse
possuir do que no beijo de amor que recebeu. Além disso, fez várias perguntas, reclamou de
algumas respostas, demonstrou insatisfação com o tamanho do castelo e deixou bem claro ser
demasiadamente gananciosa e materialista. Na citação a seguir pode-se comprovar essas
preferências materiais dessa mulher:
[...] PRINCESA - Ah, eu não quero nem saber. Eu não pedi para ninguém vir aqui me beijar, e já vou avisando que quero umas roupas novas, as minhas devem estar fora de moda, afinal passaram-se cem anos, não é mesmo? E quero uma carruagem de marfim, sapatinhos de cristal e... e... jóias, é claro! Eu quero anéis, pulseiras, colares, tiaras, coroas, cetros, pedras preciosas, semipreciosas, pepitas de ouro e discos de platina! PRÍNCIPE – Mas eu não sou o rei das Arábias, sou apenas um príncipe... PRINCESA – Não me venha com desculpas esfarrapadas! Eu estava aqui dormindo e você veio e me beijou e agora vai querer que eu ande por aí como uma gata borralheira? Não, não e não, e outra vez não e mais uma vez não. [...] (SOUZA, 1996, p. 34)
O exagero de pedidos materiais assusta o príncipe e aqueles leitores acostumados às
princesas que se apaixonavam à primeira vista e que não são tão materialistas ou, pelo menos,
não exigem tanto ao conhecerem seus prováveis maridos.
Na citação acima, também há uma referência a outra história conhecida como
Cinderela. Nessa narrativa, a protagonista é apelidada de Gata Borralheira porque ficava
próxima das cinzas do fogão que usava para cozinhar para as duas irmãs e sua madrasta.
Cinderela usava roupas sujas e rasgadas o tempo todo, fato rememorado por Flávio de Souza
nesse conto, no momento em que a princesa materialista e resmungona afirma não querer ficar
como “uma gata borralheira”.
Outro episódio que não podemos deixar de fora dessa breve análise do conto O
príncipe desencantado se refere ao papel da mulher no casamento. Observe o trecho em que a
princesa questiona quem fará as atividades domésticas no castelo do príncipe depois do
casamento.
[...] Deixa eu pensar quantas amas eu vou ter que contratar... Umas quarenta eu acho que dá! PRÍNCIPE – Tantas assim? PRINCESA – Ora, meu caro, você não espera que eu vá gastar as minhas unhas varrendo, lavando e passando, não é? [...] (SOUZA, 1996, p. 33)
A princesa reivindica o papel de esposa, todavia já esclarece que não colocará em
prática atividades executadas por mulheres na maioria das vezes: não vai varrer, lavar, passar
e a meu ver não vai fazer nada referente ao cuidado com a casa, para isso ele deve contratar as
quarenta amas. Ainda expõe o hábito de cuidar da beleza, demonstrando ser vaidosa, quando
não quer “gastar as unhas” nos serviços do lar.
O príncipe conseguiu conhecer um pouco as características e manias daquela mulher e
isso foi suficiente para que no meio da conversa, ela deixasse de ser chamada de “querida
princesa” e ele se arrependesse de ter ido até o castelo beijar aquela princesa. Então esperou a
princesa ficar distraída, e deu outro beijo nela. O segundo beijo fez com que a mesma caísse
num sono profundo outra vez. Nesse momento, o leitor pode até pensar que a desencantada é
a princesa. O que é fato. Mas, o que talvez justifique o título do conto é o seu desfecho, no
qual o príncipe foi embora e assim que isso aconteceu, a notícia se espalhou, e os outros
príncipes passam correndo pela frente do castelo onde ela dorme, assobiando e olhando para o
outro lado sem demonstrar que tem qualquer interesse em despertar a bela moça.
3.3.2 A Princesa e a solidão
Outra princesa que parece bem diferente das princesas dos contos de fadas tradicionais
pode ser encontrada no conto Princesa Linda Laço-de-Fita. Como o título sugere, essa
princesa era linda e, segundo o narrador, sempre foi linda. Tudo que está relacionado a ela é
descrito como de uma beleza estonteante, desde as suas roupas até o castelo em que residia.
Talvez a surpresa do leitor tenha início no momento em que o narrador informa que ela
envelheceu sozinha:
[...] Passou a vida na janela do quarto, recebendo visitas de príncipes que vinham de muito longe e de bem perto também para pedi-la em casamento. Mas, sendo linda como era, e muito vaidosa da própria lindeza, não aceitava nenhum pedido, pois nenhum príncipe era forte, rico ou... lindo o suficiente para se casar com ela. Com o passar dos anos, os príncipes cansaram desse papo furado e desistiram. Hoje em dia, ela já está bem velhinha, ainda linda, uma linda velhinha. Sozinha, na janela, espera algum príncipe passar e parar para conversar. [...] (SOUZA, 1996, p. 44)
Nessa perspectiva, o que é belo, feio ou encantado é questionável. Não era comum
encontrar princesas lindas sozinhas no fim da história. As princesas dos contos de fadas eram
lindas, bondosas e sempre arranjavam um príncipe para casar ou casavam por causa de
casamentos arranjados. Todavia essa princesa linda com laço de fita parece ser diferente das
outras no que se refere a vaidade. O fato de se considerar melhor que todos os homens que a
cortejavam não deixava que ela escolhesse um pretendente, porque nenhum deles era digno
dela: “[...] Mas, sendo linda como era, e muito vaidosa da própria lindeza, não aceitava
nenhum pedido [...]”. Por esse motivo a princesa envelheceu sozinha e na terceira idade se
encontra carente à espera de um príncipe que possa, pelo menos, conversar com ela. A solidão
dessa senhora denuncia a decepção dos príncipes que “cansaram” do “papo furado” da
princesa e desistiram de cortejar, namorar, casar e até de ser amigo dela. Esse
envelhecimento e solidão são ilustrados pela figura 12, a seguir
Figura 12 – Princesa Linda do laço-de-fita. Fonte: SOUZA, Flávio de. Príncipes e Princesas, sapos e lagartos: histórias modernas de tempos antigos. São Paulo: FTD, 1996, p. 44.
Será que vale a pena tanta vaidade e orgulho para depois ficar sem ninguém? Essa
pergunta não era comum nas histórias das antigas princesas, já que elas não eram tão esnobes
como a princesa linda do laço de fita. E em consequência disso os finais de suas narrativas
tinham a participação de príncipes encantados e casamentos, sem a presença da solidão, ou
seja, finais considerados felizes.
Mudam-se os tempos e as sociedades, logo a literatura infantil também mudou.
Estereótipos são colocados em pauta para uma reflexão no momento da leitura. Existem
homens encantados e mulheres perfeitas? O belo é sempre o que a sociedade dita? A literatura
vem fazendo a sua parte a depender da intencionalidade de seus autores e da participação de
um leitor crítico.
3.3.3 Amores e Desamores para Úrsula da Bronislávia
Amores encantados à primeira vista, princesas que acordam com um beijo de amor e o
casamento como ideal de felicidade são temas presentes nos contos de fadas. Porém, os
tempos mudaram e as histórias acompanharam algumas mudanças. Existem nas últimas
décadas novos amores, desamores e alguns casamentos nas narrativas da literatura infantil.
Outra princesa da obra Príncipes e Princesas, sapos e lagartos: histórias modernas de
tempos antigos, de Flávio de Souza, ficou conhecida, no reino, como Princesa Úrsula da
Bronislávia. Ela modificou seu destino e possui atitudes que parecem estabelecer uma ruptura
com as características das personagens femininas dos contos tradicionais. Descrita como um
nenê que não chorava, rugia. Com características que a sociedade atribuiu aos homens por
muito tempo, como, por exemplo: sempre foi forte, brava e passava os dias desenvolvendo
seus músculos. Contudo, o que talvez surpreenda alguns leitores é novamente o desfecho
dessa narrativa.
[...] Aos vinte e sete anos cansou-se de ouvir que estava ficando para tia, que já era tempo de casar [...]. Não agüentando os pedidos insistentes para que se casasse, ela gritou bem alto: — Tudo bem. Não é legal viver sozinha. Importou vinte odaliscas das Arábias, o que foi considerado um escândalo na época, já que odaliscas gastam pouco em panos, mas muito em cosméticos, perfumes e sandálias de plástico. Não demorou para que Úrsula amizade com uma das odaliscas e hoje elas vivem felizes e contentes no castelo particular que a princesa possui à beira do mar Nacarado. […] (SOUZA, 1996, p. 36-37)
Como podemos observar, o autor descreve Úrsula como uma princesa bem diferente
que não se preocupa com o que os outros vão dizer sobre as suas escolhas. E sutilmente
sugere, no desfecho do conto, o que parece ser o ideal de felicidade de Úrsula. A princesa não
cedeu aos apelos familiares de casamento com um príncipe. Ela resolveu mudar seu destino
não seguindo imposições nem aceitando um casamento arranjado. Decisão que parece ter sido
respeitada pelas pessoas que conviviam com a princesa.
Figura 13 – Úrsula de Bronislávia. Fonte: SOUZA, Flávio de. Príncipes e Princesas, sapos e lagartos: histórias modernas de tempos antigos. São Paulo: FTD, 1996, p. 36-37.
Como mostra a ilustração produzida por Paulo Ricardo Dantas, Úrsula escolheu ser
feliz rodeada por odaliscas no seu castelo, nutrindo uma amizade especial por uma delas.
Decisão considerada “um escândalo” à época e que surpreendeu a todos. Entretanto o que
parece importar para o narrador é mostrar que essa protagonista consegue viver “feliz e
contente” com o caminho que escolheu.
3.3.4 Princesa solteira procura...
Em outro conto da mesma obra, intitulado O dragão que era lagarto, Flávio de Souza
nos apresenta uma princesa que demonstra ser, a princípio, uma moça frágil, presa numa torre
e que precisa ser salva por um príncipe forte e corajoso. Vejamos o início da história:
[...] Existiu certa vez, no reino da Brondolândia, uma princesa que foi aprisionada numa torre de cristal por um mago. Isso aconteceu com a pobre princesa porque seu pai, o rei Brondo, era muito mau e o mago cansou de ver os camponeses maltratados. Mas a jovem poderia ser salva se um bravo príncipe matasse o dragão que ficava tomando conta da torre. [...] (SOUZA, 1996, p. 19)
Essa narrativa se assemelha ao conto já mencionado denominado Rapunzel. Uma das
diferenças entre a versão de Rapunzel, dos Irmãos Grimm, e a história da princesa do conto O
dragão que era lagarto é que esta última foi aprisionada por um mago que queria se vingar do
pai da moça e quem afugentava os príncipes, que pretendiam salvá-la, era um lagarto que
fingia ser um dragão. Já na versão europeia, a própria bruxa malvada fazia de tudo para
ninguém ter contato com a moça e nem saber que ela existia.
Outro aspecto que podemos usar para o nosso estudo comparativo é a despreocupação
de Rapunzel com relação ao casamento e o desejo da outra princesa em conseguir, o mais
breve, possível um pretendente para casar-se com ela. O narrador expõe esse desejo na
passagem a seguir: “[...] A princesa vivia chorando e puxando os cabelos, desesperada,
porque já estava na hora de se casar e nada de um príncipe aparecer para tirá-la da prisão [...]”
(SOUZA, 1996, p. 19). O desespero que fez com que a moça começasse a chamar, gritar, com
a ajuda de um microfone, e fazer sua autopromoção para todo e qualquer príncipe que
passasse pelas redondezas: “[...] — Socorro! Socorro! Gentil príncipe, venha me salvar! Aqui,
no alto dessa torre de cristal! Sou uma bela princesa, sei ler, escrever, cozinhar! Salve-me
[...]” (SOUZA, 1996, p. 20).
Esse quadro é importante porque coloca a mulher não apenas como aquela que deve se
ocupar das atividades domésticas, mas como uma princesa preocupada com a aquisição de
conhecimentos através da leitura e escrita. Em contrapartida, essa descrição parece reafirmar
que a maioria das mulheres do reino não sabe ler e escrever por isso a princesa apresenta esse
argumento como um diferencial que possui. Após ouvir essa autopromoção, alguns príncipes
passavam e se interessavam, todavia quando ouviam a palavra dragão fugiam amedrontados;
outros, quando descobriam que o dragão era um lagarto, ficavam aborrecidos achando que a
princesa estava brincando com eles e ainda havia aqueles que faziam acordos com o lagarto e
fugiam fingindo estar com medo só para o lagarto não perder o emprego remunerado pelo
mago que aprisionou a princesa. Até que ela resolve enfrentar o dragão, ação que não é
praticada por mulheres, ao se cansar das atitudes dos príncipes e descobriu que o mago lhe
enganou. Brigou com o lagarto e foi-se embora da torre de cristal. No mundo fora da torre,
encontrou outra princesa que lhe alertou:
[...] foi logo conversar com umas princesas e ficou sabendo da terrível realidade: — Os príncipes de hoje em dia não querem mais casar com princesas comuns! — Eles só se interessam por princesas ‘difíceis’! — Só estão arrumando marido as princesas presas em torres, cavernas e grutas guardadas por leões, ursos e dragões! — Mas está caro contratar esses bichos! — E o preço do aluguel de torres, cavernas e grutas está altíssimo! [...] (SOUZA, 1996, p. 21-22)
Com essa informação, ficamos sabendo que as princesas fazem de tudo para arranjar
um príncipe corajoso e se casar. Os aluguéis de castelos e o contrato com dragões
denunciavam a prática realizada para enganar aqueles príncipes que gostavam de conquistas
“difíceis”. Sabendo disso, a princesa retornou para a floresta onde ficava a torre de cristal e
fez um acordo com o lagarto para que eles usassem uma lente de aumento e enganassem o
primeiro príncipe que por ali passasse. Ao descobrir que corria o risco de não mais se casar, a
moça inventou outra estratégia de autopromoção que foi colocada em prática com uma
rapidez surpreendente: a princesa espalhou por todos os lugares o seguinte anúncio: “[...]
Atenção! Nesta direção existe uma torre de cristal, guardada por um terrível dragão, onde
mora gentil princesa com intenções de se casar! [...]” (SOUZA, 1996, p. 23). Além do
anúncio, da lente de aumento, do acordo com o lagarto, a mulher ainda usou técnicas teatrais
como, por exemplo, fumaça produzida por uma máquina, e contratou um artista de circo para
ensinar o seu “dragão” a soltar fogo pela boca. A cilada deu certo e a princesa conseguiu o
que almejava:
[...] Meia hora depois, surgiu um príncipe muito chique, com armadura brilhante e cacho de plumas coloridas no alto do capacete. A princesa gritou desesperada, e ligou uma máquina de fazer fumaça para o príncipe não enxergar direito o lagarto aumentado pela lente. O príncipe se enfiou fumaça adentro e deu uns golpes de espada no ar. O lagarto deu uns pulos, soltou fogo pela boca e gritou: — Ai, ai, estou ferido por ter lutado com tão valente príncipe!
Então o bicho se jogou no chão, fazendo-se de morto. O príncipe abriu orgulhoso a porta da torre e nem teve de subir, porque a princesa desceu correndo e se jogou em seus braços, dizendo: — Muito obrigada, meu herói! Que grande cavaleiro és tu! Salvaste-me da besta-fera e só me resta casar contigo em troca de tão belo e generoso ato! E, assim, a princesa conseguiu se casar. [...] (SOUZA, 1996, p. 23-24)
A princesa mentiu para aquele que agora era seu marido, cumpriu o acordo com o
lagarto que foi morar no castelo do casal, e segundo o narrador, foi “feliz para sempre”. O que
não é dito é se um dia, nessa relação matrimonial, a mentira foi descoberta.
3.3.5 A Princesa que se casou com um Príncipe namorador
Outra história, criada por Flavio de Souza, bastante curiosa tem como título O
casamento do príncipe Arnaldo. Esse conto também possui uma princesa inteligente e que
coloca em prática estratégias para conseguir se casar com um príncipe. Este, por sua vez, é
diferente dos príncipes “encantados” por causa da sua fama, comprovada, de namorador e
covarde. Covarde porque viajou durante anos, tendo o cuidado de fingir que não tinha
conhecimento que uma Guerra de Mil e Um Anos estava acontecendo; ele justificava essa
atitude afirmando que não lutaria em uma guerra que nem sabia por que começou. Namorador
porque namorou quase todas as mulheres do seu reino e de outros reinos vizinhos. O narrador
afirma que ele além de namorar enganou muitas moças.
O príncipe Arnaldo namorou sem compromisso por muitos anos até que fez uma
descoberta importante para ele: “[...] ao olhar-se no espelho, o príncipe Arnaldo viu um fio de
cabelo branco entre os castanhos que cobriam sua cabeça. – Pronto! – disse ele para si
mesmo, sorrindo. – Está na hora de escolher uma noiva para casar! [...]” (SOUZA, 1996, p.
63).
A partir dessa decisão, ele escolhia noivas, namorava suas escolhidas, prometia
casamento, assinava os papéis e, logo após, ia embora e não mais voltava. Não conseguiu
escolher apenas uma e enganava todas. Com esse costume, a lista de noivas aumentou,
segundo o narrador: “[...] nesse logo se passou quase um ano, em que o príncipe ficou noivo
de mais de trezentas princesas [...]” (SOUZA, 1996, p. 64).
Informação importante apresenta-se no momento em que o príncipe namorador
escolhe as suas noivas. Ele afirmava, como grande conhecedor das mulheres, que um rostinho
encantador não basta para um casamento feliz. Era primordial, para ele, conversar com as
pretendentes para escolher a mais inteligente. Um exemplo de que ele estava levando a sério o
critério para escolher sua futura esposa são os comentários que ele e o narrador fazem acerca
de uma das suas noivas mais conhecida por Fedora. O narrador nos lembra que essa princesa
não era feia, mas não era a mais bonita do reino. E foi justamente essa escolhida que
conseguiu criar uma armadilha para Arnaldo e acabou se casando com ele, tornando-se mais
um casal que “viveu feliz para sempre” com filhos, netos e bisnetos. E quanto às outras
noivas, mais de trezentas mulheres, continuam esperando o retorno daquele príncipe.
Assim, o que mudou é a forma como príncipes e princesas se encontram, se
apaixonam e escolhem seus parceiros. O que passou a ter importância, nesse conto, foi a
inteligência da princesa e não a beleza. E o escritor Flávio de Souza também se utiliza de uma
maneira inteligente para finalizar a história de Fedora e Arnaldo. Observe o desfecho desta
narrativa:
[...] E no reino de Violétia, ainda hoje, costuma-se dizer que os noivos não devem perder tempo em escolher demais suas noivas, porque quem escolhe mesmo são elas, de uma maneira inteligente como a princesa Fedora: ‘O peixe abocanha a minhoca, mas quem é que fica preso no anzol?’ [...] (SOUZA, 1996, p. 67-68)
3.3.6 Princesas que beijaram (ou engoliram) sapos
Há, nos contos de fadas, princesas que conseguem realizar sonhos através da
persistência. Contudo, nem sempre são felizes, muitas vezes acabam “engolindo sapos”
quando erram nas algumas escolhas ou acabam acertando quando menos esperam. Exemplos
disso são os contos Sapo dando sopa, O sapo sapo e O sapo que foi e voltou, todos escritos
por Flávio de Souza, na mesma obra desse escritor, já citada. Os três contos têm como
protagonista um sapo que sabe cantar a música de chamar princesas. Algumas princesas
daqueles reinos, segundo o narrador, beijam sapos em troca de uma pepita de ouro, umas com
o objetivo de enriquecer e outras com o objetivo de averiguar se aqueles sapos são príncipes
encantados que poderão, após desfeito o encantamento, casar-se com elas. Os sapos sabem
desse interesse e cantam quando possuem pepitas para trocar por beijos.
Muito semelhantes, essas histórias também possuem suas peculiaridades. As
diferenças são notadas quando, no primeiro conto, intitulado Sapo dando sopa, a princesa
atende ao chamado do sapo e acaba virando sapa, isto é, nem o sapo virou príncipe nem a
princesa ganhou a pepita de ouro pelo beijo dado. Ao virar sapa, ela confidencia ao sapo que
era uma sapa transformada em princesa. Ele também confidenciou para ela que nunca foi
príncipe, era um sapo e cantava a música de chamar princesas só para enganar princesas
ganhando beijos. A sapa aproveita o ensejo para oferecer seus beijos ao sapo e eles ficam
juntos como mostra a ilustração abaixo:
Figura 14 – Beijo do sapo. Fonte: SOUZA, Flávio de. Príncipes e Princesas, sapos e lagartos: histórias modernas de tempos antigos. São Paulo: FTD, 1996, p. 70.
No segundo conto, denominado O sapo sapo, o protagonista sapo pensava que era
príncipe. Ele possuía muitas lembranças do tempo em que era ser humano como: vestir roupas
de seda, cavalgar, etc. O príncipe sapo sabia que para voltar a ser o que era, precisava do beijo
de uma princesa, mas não tinha nenhuma pepita de ouro para oferecer em troca do beijo, por
esse motivo resolveu pintar uma pedra para enganar as filhas dos reis da redondeza. A
primeira que passou perto da lagoa acreditou no sapo e deu um beijo bem demorado no
mentiroso. Pouco depois, o narrador revela a verdade de que o sapo nunca fora príncipe,
porém a princesa não sabe disso e fica triste achando que seu beijo não funcionou. Antes de
partir, a moça jogou a pedra falsa fora e atingiu, sem querer, a cabeça do sapo. Com a pancada
ele lembrou que havia sonhado que era príncipe. Diante disso, ele resolve cometer suicídio.
Antes que conseguisse realizar a terrível ação, viu uma sapa tomando sol na lagoa e se
apaixonou. Observe a passagem do desfecho do conto que narra esse inusitado encontro: “[...]
seu coração bateu depressa, sua língua se esticou para fora da boca. A sapa piscou pra ele,
dengosa. E lá se foi o sapo, nadando nas águas da lagoa [...]” (SOUZA, 1996, p. 46).
O terceiro conto, O sapo que foi e voltou, tem como protagonista um príncipe
transformado em sapo por uma bruxa. No início, o narrador informa que ele, após ser
transformado em sapo, morou sozinho numa lagoa profunda e escura por muitos anos. Além
de sozinho, era triste e saudoso das coisas que não fez como príncipe por causa do feitiço
daquela mulher. E quando decide mergulhar para se distrair e esquecer as lembranças, acabou
achando algumas pepitas de ouro. As pedras foram a sua moeda de troca para voltar à vida no
seu reino. O sapo príncipe fez como todos os outros sapos: cantou a melodia conhecida como
“música de chamar princesas que dão beijos em troca de pepitas de ouro” e logo apareceu
uma princesa bastante exigente. Essa mulher, assim que se aproximou do sapo, pediu as
pepitas para que pudesse examinar: “[...] – Deixe-me examinar essa pepita, que eu não sou
boba! Uma vez eu beijei um sapo e depois descobri que a pepita de ouro dele era uma pedra
pintada com uma tinta dourada! [...]” (SOUZA, 1996, p. 48).
A moça observou, comprovou o que queria e beijou o sapo que imediatamente se
transformou em príncipe, mas não quis saber dele e nem o príncipe quis saber dela. O
interesse da mulher era adquirir pepitas e o príncipe só queria acabar com a maldição da bruxa
e retomar a sua vida normal. A partir daí, não sabemos o que aconteceu com a princesa. O
príncipe voltou para o seu reino e ficou decepcionado com a recepção que teve: ao chegar,
enviaram-no para lutar na Guerra dos Mil e Um Anos. Lá, ele não entendia porque deveria
matar outros homens. Então, depois de muito refletir, decidiu fugir ao compromisso assumido
e retornou para a floresta.
Figura 15 – Príncipe que voltou a ser sapo. Fonte: SOUZA, Flávio de. Príncipes e Princesas, sapos e lagartos: histórias modernas de tempos antigos. São Paulo: FTD, 1996, p. 49.
Logo após, reconheceu que o mundo dos homens estava muito complicado para viver
em paz e decidido pagou uma bruxa para que o transformasse em sapo outra vez. No
desfecho, o narrador informa que o sapo príncipe está em paz na lagoa e espera que o mundo
melhore para que ele gaste a sua última pepita de ouro e volte para seu reino outra vez.
Esses três contos demonstram que nem toda princesa consegue encontrar seu príncipe
beijando sapos. Às vezes, nem estão interessadas em encontrar um parceiro para um possível
relacionamento, mas ficam fascinadas por ouro e fazem de tudo para ganhar pepitas. O
mesmo acontece com os príncipes que preferem ficar sozinhos e usam as princesas apenas
para “quebrar” o encantamento provocado pelas bruxas. Tanto eles quanto elas escolhem o
caminho que desejam seguir em busca dos seus objetivos.
As princesas dos contos de fadas fazem suas escolhas e nem sempre acabam suas
histórias com um “final feliz”, ou nem sempre foram felizes durante sua existência. Um
exemplo marcante é o conto escrito por Flávio de Souza e intitulado Princesa Silvana do
reino de Vronka. O sorriso dessa princesa, como podemos observar na Figura 16 era
considerado o mais encantador de todos os reinos das Terras Quentes (local em que ficava
localizado o reino de Vronka e diversos outros).
Figura 16 – Princesa Silvana do Reino de Vronka. Fonte: SOUZA, Flávio de. Príncipes e Princesas, sapos e lagartos: histórias modernas de tempos antigos. São Paulo: FTD, 1996, p. 32.
Por causa do seu riso, essa protagonista ganhou vários concursos de Miss Simpatia em
toda a sua vida. O que poucas pessoas sabiam é que o sorriso daquela moça era consequência
de uma queda, ainda na infância, que deformou o rosto dela. Por isso a menina nunca parava
de sorrir e ninguém nunca viu Silvana séria ou triste.
Ao longo da vida a deformidade virou aprendizado e a princesa aprendeu a ser feliz,
apesar dos problemas ou tristezas. Dessa forma os a literatura infanto-juvenil tematiza a
possibilidade de ser feliz apesar das adversidades e a princesa Silvana demonstra força e
amadurecimento apesar da deformidade sofrida.
4 ELAS POR ELAS: ESCRITORAS E IDENTIDADE FEMININA
4.1 PRINCESAS E ESPOSAS REINVENTADAS NA OBRA MULHERES DE CORAGEM, DE RUTH ROCHA
4.1.1 Lenda da Moça Guerreira
Os autores dos contos de fadas contemporâneos relembram, em suas obras, os papéis
sociais exercidos pela mulher em contos anteriores, proporcionando aos leitores um momento
para refletir sobre os estereótipos existentes na sociedade. As personagens femininas eram
frágeis e passivas nos contos de fadas clássicos e consideramos importante averiguar se
mudanças são percebidas nos contemporâneos. Algumas situações que envolvem a mulher
vêm sendo abordadas na literatura infanto-juvenil e envolvem as princesas e seus
companheiros. Sônia Salomão Khéde, após longa pesquisa sobre o assunto, comenta as
descrições dos príncipes e princesas mais usadas por escritores do mundo todo nas narrativas
tradicionais:
[...] Príncipes e princesas são personagens mais predispostos às aventuras. Os primeiros desempenham papéis ativos, heroicos e transgressores, servindo, muitas vezes, como intermediários, num resgate. As princesas são caracterizadas pelos atributos femininos que marcam a passividade e a sua função social como objeto do prazer e da organização familiar. Belas, virtuosas, honestas e piedosas, elas mereceram, como prêmio o seu príncipe encantado. [...] (KHÉDE, 1990, p. 33)
Temos, como exemplo dessas tendências, a postura dessas personagens em histórias
conhecidas por grande parte dos leitores: antes coragem, força e esperteza pareciam ser
atributos primordialmente masculinos e o que é lido como natural na masculinidade pode ser
lido como não natural e ameaçador na feminilidade. O “natural” seria que a personagem
feminina tivesse seus medos e fosse frágil, características tradicionalmente ligadas ao
feminino como afirma Khéde (1990). Entretanto, nas histórias escritas nas últimas décadas, os
autores descrevem as princesas muito mais destemidas, autônomas e na maioria das vezes não
são mais submissas aos príncipes. Elas não esperam para serem libertadas, mas lutam com
inimigos e conseguem a liberdade, não aguardam príncipes e casamentos para terem
felicidade, pois decidiram que podem ser felizes de várias outras formas e escolhem seu
próprio destino; quando resolvem se casar, escolhem seus maridos sem interferência familiar.
Ainda a respeito dessas tendências contemporâneas da literatura infantil, Sonia Salomão
Khéde afirma que “[...] De modo geral, as histórias de fadas da literatura infanto-juvenil
contemporânea estão a favor da desconstrução de estereótipos que aprisionem as atitudes
comportamentais das crianças. Inscrevem-se na linha da paródia e da crítica social […]”
(KHÉDE, 1990, p. 33).
A preocupação dos autores parece ser: despertar a consciência crítica das crianças e
não impor modelos de conduta e comportamento. Modelos que podem gerar estereótipos.
Estes últimos foram entendidos por vários pesquisadores, dentre eles Krüger (2004), como:
[...] crença coletivamente compartilhada acerca de algum atributo, característica ou traço psicológico, moral ou físico, atribuído extensivamente a um agrupamento humano, formado mediante a aplicação de um ou mais critérios, como por exemplo, idade, sexo, inteligência, moralidade, profissão, estado civil, escolaridade, formação política e filiação religiosa. (KRUGER, 2004, p. 36-37)
Já para Bhabha (1998, p. 105), o estereótipo é “[...] uma forma de conhecimento e
identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já conhecido, e algo que deve ser
ansiosamente repetido [...]”. Nas sociedades, repete-se a função social das mulheres: belas,
doces, frágeis, inocentes e sonhadoras. Sonham com companheiros e casamentos. E antes de
encontrá-los, preparam-se para a “vida a dois”, bordando, costurando e aprendendo a cuidar
da casa (lavar, passar, cozinhar, etc.).
Exemplos de mulheres que desafiam as funções sociais a elas destinadas encontramos
nas personagens da obra Mulheres de Coragem, escrita por Ruth Rocha. Paulista e membro da
Academia Paulista de Letras desde 25 de outubro de 2007, Ruth Rocha ocupa a cadeira de
número 38. Formou-se em sociologia política e começou a trabalhar como orientadora
educacional. Além disso, começou a escrever, em 1967, artigos sobre educação para várias
revistas. Em 1976 publicou seu primeiro livro intitulado Palavras muitas Palavras, entretanto
foi com a obra Marcelo, marmelo, martelo que vendeu mais de um milhão de livros.
Atualmente tem mais de 130 livros títulos publicados com tradução para 25 idiomas. No ano
de 1998 foi condecorada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso com a Comenda da
Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura. Vale lembrar também que em 2002, com
a obra Escrever e Criar recebeu o prêmio jabuti.
Mulheres de Coragem é uma obra ilustrada por Lúcia Hiratsuka. E a parceria entre
esta ilustradora e a autora parece ter dado muito certo porque as ilustrações dialogam com as
histórias contadas de forma harmônica. Desde a capa, já se percebe o uso de imagens que
possivelmente provocarão a imaginação de quem lê e despertarão suposições:
Figura 17 – Capa da obra “Mulheres de Coragem”.
Fonte: ROCHA, Ruth. Mulheres de Coragem. São Paulo: FTD, 2006.
Como podemos observar, o título aparece em destaque e as palavras Mulher e
Coragem foram grafadas com iniciais maiúsculas, a imagem de mulher está cercada de
símbolos femininos: cabelos compridos, vestido, espelho e cuidado com a aparência com a
ajuda de duas outras damas (provavelmente serviçais responsáveis por cuidar das filhas do
barão) e, na parte inferior da capa, a ilustradora usou uma imagem de cavaleiro vestindo
armadura, empunhando sua espada e acompanhado de sua montaria. A aparência dessa última
imagem, a princípio, parece ser de um cavaleiro, mas na verdade com a leitura da obra o leitor
descobrirá que ela pode ser uma imagem de uma amazona. Na contracapa da obra, antes do
início das narrativas, encontramos outra provocação da escritora e/ou ilustradora: a imagem
de uma mulher, com traços delicados e usando batom, vestida com a armadura semelhante
àquela da capa do livro. Essa obra possui três contos: Mulheres de Coragem, Romancinho
Romanceiro e Lenda da Moça Guerreira. Neste último conto, o narrador não identifica a
época em que os fatos acontecem, apenas o lugar: “[...] Há muitos e muitos anos, nas terras da
Europa havia muitos reinos. Cada reino com seu rei, seus barões, seus castelos [...]”
(ROCHA, 2006, p. 12).
Segundo Bruno Bettelheim (1980), esses inícios sugerem que o que se segue não
pertence ao aqui e agora que todos conhecem, mas simboliza que estamos deixando o mundo
concreto da realidade comum. E nesse conto, em especial, logo após o início do texto, o
narrador descreve os reinos e seus habitantes. Observe o trecho a seguir no qual ele
caracteriza homens e mulheres que habitavam esses reinos:
[...] Os reinos estavam sempre em luta, que a ocupação favorita dos cavaleiros era ir à guerra. Pois quem ia à guerra e, principalmente, quem a ganhava, voltava com muitos bens e com muita glória. Como hoje, eram os homens que iam à guerra. Por isso, desde pequenos os meninos eram treinados na esgrima, na cavalaria, no manejo de muitas armas. As meninas aprendiam bordados, tapeçaria e artes. E com isso passavam seu tempo. […] (ROCHA, 2006, p. 12)
Responsabilidades, glória para os homens e tempo livre para que as mulheres
pudessem se distrair com atividades consideradas “femininas”. De acordo com o narrador
enquanto homens eram, desde pequenos, preparados para a guerra, as meninas bordavam e
faziam outras artes para “passar o tempo”, ou seja, funções sociais bem definidas e
delimitadas para homens e mulheres, sem mudanças aparentes com relação aos contos de
fadas clássicos e pela sociedade. Na imagem a seguir, podem-se observar as atividades
desenvolvidas pelas filhas do barão de Aragão:
Figura 18 – Atividades destinadas às mulheres e desenvolvidas, também, pelas filhas do barão de Aragão.
Fonte: ROCHA, Ruth. Mulheres de Coragem. São Paulo: FTD, 2006, p.13.
Interessante citar que o barão de Aragão tinha duas filhas e por não ter filho varão não
teria um representante nas guerras, não conseguiria bens nem glória com as lutas constantes
entre os reinos: “[...] E, embora gostasse muito das filhas, se entristecia, pois gostaria que os
estandartes de sua casa pudessem tremular ainda nos campos de luta [...]” (ROCHA, 2006, p.
12).
Foi percebendo a vontade e tristeza do pai que Isabel, a filha mais velha do barão,
decidiu se preparar e ir para guerra representar a família: começou a cavalgar, manejar todo
tipo de arma, participou de competições que os cavaleiros organizavam e em todos os jogos
que eram próprios dos rapazes. A decisão provocou um enorme estranhamento, pois essas
atividades eram vistas como masculinas pela sociedade em que vivia e o pai de Isabel
questionou a filha ao perceber que ela estava decidida
[...] E, então veio a guerra entre Aragão e França. Todos os rapazes em idade de combater foram partindo para o campo de batalha a fim de emprestar ao rei a sua espada. O velho barão se lamentava com a mulher: — Estou velho e não posso mais combater pelo meu rei. Se tivéssemos filho homem, nossa casa poderia ainda cobrir-se de glórias. Dona Isabel foi então ao pai e disse: — Eu levarei os estandartes, meu pai. Vou combater ao lado do rei pela glória maior de nossa casa. — Minha filha – disse o pai -, mulheres não vão à luta. — Eu me disfarço, meu pai. Não me reconhecerão! — Suas formas são de mulher. — Me aperto numa armadura. Não me reconhecerão! — Seus cabelos, minha filha... — Esconderei minhas tranças. Não me reconhecerão! — Suas mãos, tão delicadas... — Usarei luvas de ferro. Não me reconhecerão! — Seus pés são tão pequeninos... — Usarei botas grosseiras. Não me reconhecerão! — Seus olhos, filha, seus olhos... — Abaixarei os meus olhos. Não me reconhecerão! [...] (ROCHA, 2006, p. 14)
Primeiro veio a surpresa do barão, depois os questionamentos e em todos eles o fato de
ser mulher era o impedimento para não ir à guerra. Cada questão foi formulada utilizando o
porte físico como frágil e despreparado: mãos delicadas, pés pequeninos e olhos e cabelos
bem femininos em contraste com armadura, luvas de ferro, botas grosseiras, elementos que
parecem caracterizar os homens nessa narrativa. Para se parecer com eles, tudo isso foi
necessário e muito mais. Outras duas estratégias foram usadas para completar o disfarce: um
nome masculino, João foi o nome escolhido, e a mudança no comportamento daquela moça.
[...] e lá se foi Isabel. E se misturou aos homens. E combateu como um homem. Foi chamada de Dom João. E, como um homem, dormiu ao relento. E para se banhar saía do acampamento à noite, entre as sombras. Ninguém conheceu que era mulher. E se cobriu de glórias, por sua valentia, e foi combater ao lado do próprio príncipe real, que a tomou como companheiro de lutas. [...] (ROCHA, 2006, p. 14 - 15)
Isabel comportou-se como homem, foi aceita no grupo por causa do seu disfarce e
conseguiu o que almejava: a glória e reconhecimento. Outra vez fica claro que a sociedade da
qual esses personagens faziam parte, na Europa, acreditava nas diferenças e/ou características
masculinas e femininas. Dormir ao relento, viver sem conforto e ser valente era algo para
homens; as mulheres não eram capazes, até então, de enfrentar a guerra, pois não possuíam
esses atributos. Daí a afirmação do pai de Isabel de que mulheres não vão à luta. Essa
distribuição de papéis sociais, denunciada pela literatura, foi comentada por Guacira Lopes
Louro: “[...] O casamento e a maternidade eram efetivamente constituído como a verdadeira
carreira feminina [...]” (LOURO, 2001, p. 454). Dessa maneira, mulheres da vida real eram
preparadas para casar e ser mães, jamais deveriam participar de atividades consideradas
“masculinas”.
Ao mesmo tempo em que Isabel consegue ser amazona valente e começa a combater
ao lado do príncipe, o inusitado acontece: por trás da armadura, a mulher começa a se
envolver com seu companheiro durante a guerra e o que nos parece é que o sentimento de
amizade é recíproco, ou seja, o príncipe retribui o afeto e atenção àquele “bravo cavaleiro”.
Companheirismo ilustrado pelas imagens de Lúcia Hiratsuka.
Figura 19 – Isabel participa da guerra. Fonte: ROCHA, Ruth. Mulheres de Coragem. São Paulo: FTD, 2006, p. 15.
E pelos sentimentos do príncipe e de Isabel descritos pelo narrador no trecho a seguir
[...] Nas longas noites no acampamento, os dois conversavam muito. No começo o príncipe estranhou os modos daquele moço esquivo, que falava pouco e nunca levantava os olhos para ele. Mas com o tempo afeiçoou-se ao rapaz e não queria ninguém mais ao seu lado, sentia sua falta quando ele se afastava e chamava por ele sempre que estava longe. E Isabel se afeiçoou ao príncipe. Seu coração, que não tremia diante do inimigo, tremia quando o via, tão valente, no campo de batalha. [...] (ROCHA, 2006, p. 15)
De fato, Isabel estava apaixonada e o príncipe confuso. Ela nunca encarava os
companheiros de luta com medo de perder o disfarce. E os olhos realmente parecem ser “o
espelho da alma”, porque, num descuido da amazona, o príncipe suspeita do rapaz que lhe
acompanha
[...] Um dia o príncipe caiu ferido. Seus homens logo o cercaram e o retiraram da luta, levando-o para o acampamento e colocando-o em sua tenda. O príncipe não quis que ninguém, senão Isabel, se ocupasse dele. E, uma noite, Isabel velava enquanto o príncipe dormia. Ela, que já sabia que sua afeição pelo príncipe era mais que afeição de companheiro de armas, se pôs a olhar longamente o rosto do moço. E o moço de repente acordou. Seus olhos se cruzaram por um instante. E, nesse instante, os olhos de Isabel brilhavam tanto... que o príncipe pensou: ‘Os olhos de Dom João... Olhos de homem não são...’ E quis olhar de novo nos olhos de Isabel, mas Isabel já os tinha baixado, como sempre fazia. [...] (ROCHA, 2006, p. 16)
Confusa ficou a rainha ao reconhecer mais que admiração no momento em que seu
filho demonstrara afeto por Dom João. Neste instante, o príncipe relata a sua desconfiança à
mãe e esta orienta o rapaz para que ele prepare armadilhas com o objetivo de descobrir afinal
de Dom João era homem ou mulher. O interessante das armadilhas montadas é que a rainha
ensinou ao filho as prováveis escolhas de uma mulher ao visitar um pomar e uma feira.
Segundo ela, se Dom João fosse mulher, escolheria do pomar as maçãs e da feira iria se
interessar pelas fitas. Entretanto Isabel desconfiou das intenções do príncipe e agiu como um
homem provavelmente agiria: escolheu limões e adagas. As escolhas entristeceram o rapaz,
que não perdeu as esperanças de Dom João ser mulher, por mais improvável que isso
parecesse para uma época em que mulheres não lutavam em guerras. Todavia, novo encontro
aconteceu e ele foi provocado pela rainha outra vez. Dessa vez, a rainha continuou usando um
conhecimento do que pode ser a identidade coletiva das mulheres daquele reino, só que nessa
nova tentativa ela tentou sensibilizar Isabel e conseguiu. Uma das frases mais repetidas, pela
mãe do príncipe, nesse conto, foi: “Se for mulher”, com certeza, Dom João se comportará de
determinada forma. Acreditando na solidariedade e amizade de Dom João, a família real
enviou um comunicado para Isabel. Assim que ela leu o documento avisando que o estado de
saúde do príncipe, seu amigo, ou o amigo de Dom João havia piorado por causa dos
ferimentos contraídos na guerra, a princesa resolveu visitá-lo, só que não mais disfarçada de
homem.
[...] Iria imediatamente, partiria incontinenti, se daria a conhecer. E então quis ficar bonita. Quis ser de novo mulher: — Quero minhas tranças longas. Todos me conhecerão! — E suas luvas de ferro? — Tiro minhas mãos das luvas. Todos me conhecerão! — E suas formas de mulher? — Tiro armadura e gibão. Todos me conhecerão! — E seus pés, tão pequeninos? — Tiro essas botas grosseiras. Todos me conhecerão! — Seus olhos, como fará? — Levanto os olhos para ele. Ele me reconhecerá! [...] (ROCHA, 2006, p. 18)
Podem-se observar detalhes instigantes, na passagem acima transcrita. Isabel, como já
foi dito, usou diversas estratégias para que todos acreditassem que ela era um cavaleiro.
Contudo, a citação demonstra que o processo contrário também aconteceu: ela “E então quis
ficar bonita. Quis ser mulher de novo” como se ela tivesse deixado de ser bonita para se
assemelhar aos homens e, por consequência, deixou de ser mulher no momento do disfarce.
Para voltar a “ser mulher”, retirou a armadura, passou a usar vestidos, soltou os cabelos,
cuidou da aparência. Na ilustração a seguir, pode-se acompanhar a transformação e verificar
como algumas características são descritas como femininas.
Figura 20 – Isabel se prepara para encontrar o príncipe. Fonte: ROCHA, Ruth. Mulheres de Coragem. São Paulo: FTD, 2006, p. 19.
Interessante notar que a protagonista afirma que todos do reino não a “conhecerão”,
pois nunca a viram e apenas o príncipe a “reconhecerá” sem o disfarce. Isabel ainda diz que,
dessa vez, ela levantará os olhos para ele. Mesmo tendo mantido os olhos baixos durante todo
o tempo em que esteve na guerra, ela acredita que o príncipe lembrar-se-ia do olhar do amigo
Dom João e, finalmente, descobriria que suas desconfianças não surgiram do nada. No fundo,
algo no amigo Dom João denunciava que ele era diferente dos outros cavaleiros. Dessa
maneira, o desenlace da história se dá nas últimas páginas com a narração de um final
bastante usado nos contos de fadas tradicionais: enlace do casal e o viveram felizes
[...] Nas ruas da capital ouviu-se grande tropel. Era Isabel que passava, montada no seu corcel. Quando chegou junto ao muro, os seus olhos levantou. O príncipe, embora enfermo, apoiava-se à muralha. Os olhos nela pousou. Na mesma hora entendeu: — Os olhos de Dom João... não são olhos de homem, não! Casaram-se então os dois, viveram muito felizes. Esta história é muito antiga. Ouvi de uma contadeira. Chegou até nós com o nome de Lenda da Moça Guerreira. [...] (ROCHA, 2006, p. 20)
No título, a Moça é chamada de Guerreira, talvez por ter ido literalmente à luta, ter
mudado seu destino, atendido seus desejos sem se importar com o que outros pensariam e ter
rompido com os padrões de comportamento, ou seja, Isabel construiu uma identidade pessoal
singular.
Na sociedade brasileira, fato semelhante já aconteceu: meninas também eram
preparadas para exercer atividades destinadas às mulheres quando solteiras, contudo em sua
maioria elas esperavam pelo “príncipe encantado”, aquele que seria o homem perfeito, para a
união matrimonial, o que não aconteceu com Isabel no conto Lenda da Moça Guerreira. Esta
última partiu para viver a vida da forma que queria, fez a vontade do pai e acabou
encontrando um companheiro, mas não foi para a guerra em busca da realização amorosa.
Desde a década de 1980, Franchetto (1981) já comentava algumas reivindicações das
mulheres. De acordo com esse autor, elas vêm recusando a representação de “segundo sexo”
ou “sexo frágil” por excelência. Afirmam-se como sexo, mas em sua singularidade, se
descobrem, ou se querem, sujeitos de seus próprios corpos, de sua sexualidade, de sua vida,
ocasionando as mais diversas consequências políticas, econômicas e culturais. Desejos
defendidos pelo movimento feminista que, ainda segundo Franchetto (1981), reivindica para
as mulheres, um espaço de atuação política. Postula que, na história da humanidade, as
mulheres tenham sido sempre submetidas a uma ordem dominantemente masculina, mas que
agora adquiriram consciência de sua opressão milenar e dos seus interesses que, muitas vezes,
só elas podem defender. Esses interesses exprimir-se-iam na luta contra a discriminação da
mulher na sociedade, o que pode ser traduzido no rebelar-se contra a imposição de um papel
social alocado a um sexo, no caso o “segundo sexo”, ou o “sexo frágil”.
Franchetto (1981) tem razão quando afirma que as mulheres adquiriram consciência
de sua opressão e, na contemporaneidade, a literatura infanto-juvenil é prova disso. As
escritoras, como Ruth Rocha, por exemplo, estão produzindo obras e revendo estereótipos.
Quem sabe assim podem contribuir para mudar essa situação. E elas não ficaram sozinhas
nessa “luta”, existem escritores colaborando e que não ficaram alheios a essa discriminação.
Uma literatura consciente para leitores críticos. Prática que não passou despercebida nos
estudos de Bettelheim (1980, p. 20). Para ele: “[...] Enquanto diverte a criança, o conto de
fadas esclarece coisas sobre si mesma e favorece o desenvolvimento de sua personalidade.
Oferece significado em tantos níveis diferentes, e enriquece a existência da criança [...]”.
Dessa forma, percebemos a literatura como um recurso poderoso para combater preconceitos.
4.1.2 Romancinho Romanceiro
Se, no conto Lenda da Moça Guerreira, Isabel pode escolher com quem casaria, no
conto Romancinho Romanceiro, a escolha dos noivos pelas famílias é algo corriqueiro e que
causa tristeza para os príncipes e princesas. Os pais continuam “ajeitando” um casamento para
os filhos. Nesse caso, o Duque Frederico escolhe o marido para a Princesa Beatriz, costume
denominado de “contrato” pelo narrador da história. Um dos motivos do arranjo matrimonial
era interesse financeiro, para que nobres se casassem entre eles e mantivessem suas fortunas e
seu poder como podemos observar na citação a seguir:
[...] Os nobres, naquele tempo, eram muito importantes e só se casavam entre eles, para que as terras, que eram a maior riqueza, não fossem divididas. No Castelo das Sete Torres, a princesa Beatriz estava triste. Seu pai, o Duque Frederico, havia contratado seu casamento com um príncipe de terras distantes, que a princesa nem conhecia. Ela sabia que, mais tarde ou mais cedo, teria de se casar. [...] (ROCHA, 2006, p. 22)
Outro fato que chama a atenção é que Beatriz nem conhece o príncipe e vai se casar
com ele sem amor, só para satisfazer a vontade do pai e continuar obedecendo aos costumes.
Atitude que faz aumentar a tristeza da princesa: vai casar, ficar longe da família e dos amigos
além de ser obrigada a “[...] ter de se recolher, fiando e tecendo como as outras mulheres [...]”
(ROCHA, 2006, p. 23). Além dessas exigências a própria moça desconfiava que o seu futuro
marido não iria concordar com algumas atitudes dela: “[...] brincava com seus irmãos rapazes
como se fosse um deles, cavalgava, lutava com espada e lança. E ela sabia que o noivo que
viesse buscá-la não iria aprovar seus modos [...]” (ROCHA, 2006, p. 23).
Vale lembrar que o narrador salienta a alegria de Beatriz quando solteira afirmando
que a moça era alegre e expansiva e a possibilidade de conviver com alguém que não
conhecia e que provavelmente iria exigir dela um determinado comportamento é que
provocava a tristeza em Beatriz. Exigência que existia nas sociedades do século XIX. Guacira
Lopes Louro comenta essas imposições incentivadas, desde muito cedo, na educação dos
meninos e meninas.
[...] Ler, escrever e contar, saber as quatro operações, mais a doutrina cristã, nisso consistiam os primeiros ensinamentos para ambos os sexos; mas, logo, algumas distinções apareciam: para os meninos, noções de geometria; para as meninas, bordado e costura. [...]. (LOURO, 2001, p. 44)
Na obra de Ruth Rocha, assim como as outras mulheres do reino, as funções sociais
das princesas já estavam decididas, mas não por elas e sim pela sociedade. O enredo dessa
narrativa gira em torno dos casamentos arranjados pelas famílias e ressalta o comportamento
das mulheres pós matrimônio, diferente do conto anterior no qual o foco estava na descrição
da vida das mulheres no período que antecede o enlace e o matrimônio aparece apenas no
desfecho. Se Isabel pôde decidir ir à guerra e casar com um homem que ela escolhesse e
mudar seu destino, Beatriz, apesar da tristeza, seguiu as regras e orientações familiares. O
pesquisador Bruno Bettelheim (1980) defende a importância dos contos de fadas abordarem
esses dilemas existenciais e ressalta que essa abordagem é realizada com muita seriedade.
Nessa relação contratual entre famílias reais, a autora Ruth Rocha não deixa de
abordar a situação dos homens nobres que não podem fugir ao costume também. O príncipe
escolhido para casar com Beatriz também estava triste.
[...] O príncipe Felipe estava triste. Seu pai, o Duque Ferdinando, havia contratado seu casamento com uma princesa que ele nem conhecia. Ele sabia que, mais tarde ou mais cedo, teria que casar. E sabia que a noiva seria sempre escolhida por seu pai. Mas, agora que a hora tinha chegado, ele gostaria de esperar mais um pouco. As moças que ele conhecia viviam tecendo e fiando, eram pálidas e tímidas e não gostavam de nada do que ele gostava, de cavalgar, de caçar, de se banhar nos lagos [...]. (ROCHA, 2006, p. 24)
Como podemos observar, parece que o maior incômodo dos futuros noivos é o fato de
não conhecer o seu pretendente já que toda a negociação era realizada pelos pais, entretanto o
príncipe Felipe destacou, no trecho acima, algo mais que também o incomodava: a descrição
física das moças que conhecia como pálidas e tímidas e as atividades cotidianas das mesmas
que dão a ideia de que todas fazem as mesmas coisas e não possuem nenhum diferencial. O
príncipe parece desejar escolher sua companheira, mas sabe que é a família que se encarrega
disso.
Entretanto, um fato surpreendente acontece nessa história: Beatriz conhece Felipe no
momento em que ela brincava com amigas num bosque próximo do castelo onde residia. Por
causa de um banho de rio, a princesa, sem querer, molhou seu vestido e precisou se vestir com
roupas de camponesa para poder voltar para o castelo. O príncipe se encantou pela moça que
não parecia com aquelas que ele conhecia, sem saber que a mulher vestida de camponesa era a
princesa prometida para ele: “[...] No meio delas, o príncipe notou a presença de uma que ele
achou muito linda e muito graciosa [...]” (ROCHA, 2006, p. 24). Então o príncipe se
aproximou e as moças, assustadas, correram. Apenas Beatriz se manteve no mesmo lugar,
sem demonstrar medo nem acanhamento. Os dois conversaram e riram muito como se fossem
velhos conhecidos, todavia não revelaram suas identidades. Ele, vestido com roupas de
viagem sem nada que o denunciasse e ela, vestida como filha de camponeses. Não se
identificaram como príncipe e princesa; naquela hora eram homem e mulher sem nomes,
sobrenomes que indicassem poder ou posição social. Segundo o narrador: “[...] Felipe ficou
muito impressionado com a moça. E pela primeira vez se revoltou contra a vontade de seu
pai, que tinha contratado seu casamento por motivos políticos [...]” (ROCHA, 2006, p. 26).
Após o encontro e conversa com aquela “camponesa”, ele constatou que deveria se
envolver com alguém por vontade e não poderia aceitar um casamento arranjado. Então,
Felipe resolveu desmanchar o contrato entre seu pai e o Duque Frederico mesmo tendo a
certeza de que sua atitude traria problemas para ele e para seu pai, que dera a sua palavra ao
Duque. Ao chegar ao seu destino, o castelo no qual habitava sua futura esposa, o Duque o
recebeu com honras até o momento em que Felipe explicitou a sua vontade de não mais casar
com a filha de Frederico e deixou claro que estava ali para romper o contrato. O pai de Felipe
com certeza ficaria furioso e o Duque ficou ofendido. Por conta disso, trocaram palavras
ásperas e Frederico desafiou o jovem príncipe para um duelo. Se ganhasse, Felipe estaria livre
do acordo e poderia ir para seu reino em paz e, se perdesse, o príncipe deveria se casar com a
filha do Duque.
De todos os filhos do Duque, Beatriz foi a que ficou furiosa com a atitude do príncipe
e no trecho a seguir o narrador explica o porquê: “[...] Beatriz ficou furiosa, não pelo
casamento, que ela até preferia que não acontecesse, mas naquele tempo as pessoas levavam
muito a sério estas questões de honra e a princesa via como seu pai estava ofendido [...]”
(ROCHA, 2006, p. 27). E além de furiosa ela decidiu que lutaria com o príncipe Felipe: “[...]
— Sou eu quem vai lutar com este pretensioso! - Os pais e os irmãos de Beatriz quiseram se
opor ao plano, mas sabiam que, apesar de mulher, era ela quem melhor manejava a lança
naquele ducado [...]” (ROCHA, 2006, p. 27).
Mais uma vez, o preconceito se estabelece através do comentário: “apesar de ser
mulher”. Decidida, corajosa e mulher. Assim era Beatriz. É provável que a sociedade
acreditasse que quem iria enfrentar o príncipe seria o pai ou os irmãos da princesa, entretanto
ela decidiu o que fazer e foi para a batalha. No momento da luta, quando os dois contendores,
nas suas armaduras prateadas, entraram na liça, Felipe viu, de relance, os olhos do cavaleiro;
distraiu-se e perdeu o duelo. Desconfiou daqueles olhos, lembrou-se da camponesa que não
saía dos seus pensamentos. O príncipe achou que teve uma visão, porque mulheres não lutam.
E agora ele não poderia fugir do acordo com o Duque. Sendo assim, Felipe se casou com a
princesa, que manteve o rosto coberto durante toda a cerimônia. Só no final, o príncipe
descobre que a camponesa, o cavaleiro que o derrotou e a filha do Duque eram a mesma
pessoa.
A autora também conclui essa narrativa com um final feliz, com a realização do
casamento entre os protagonistas, final tradicionalmente usado pelos escritores nos contos de
fadas clássicos. Esse desfecho foi representado por Lúcia Hiratsuka com a ilustração abaixo.
Figura 21 – Casamento da princesa Beatriz com o príncipe Filipe. Fonte: ROCHA, Ruth. Mulheres de Coragem. São Paulo: FTD, 2006, p. 31.
Os finais felizes e a importância da fantasia são comentados por Bruno Bettelheim
(1980, p. 79), que afirma:
Tendo levado a criança numa viagem ao mundo fabuloso, no final o conto devolve a criança à realidade, da forma mais reasseguradora possível. Isto lhe ensina o que mais necessita saber neste estágio de desenvolvimento: que não é prejudicial permitir que a fantasia nos domine um pouco, desde que não permaneçamos presos a ela permanentemente.
Deixar que a fantasia nos envolva por algum tempo, sem permanecer nela, retornando
à realidade, parece ser um caminho interessante para desfrutar do maravilhoso e estimular o
imaginário além de aprender a lidar com o real.
4.1.3 Mulheres de Coragem
Ainda nessa obra de Ruth Rocha, o leitor encontrará outra história de mulheres de
coragem que participaram ativamente de uma guerra entre as tropas do Imperador Conrado III
e do Rei Welfo VI. No fim dessa guerra, quando o castelo do Rei Welfo VI já estava cercado
pelas tropas do Imperador Conrado III, os habitantes do castelo fugiram nas suas carroças, nos
seus carros de boi ou mesmo a pé. Ficaram apenas os cavaleiros para a defesa do castelo e
suas esposas, que permaneceram com seus maridos até o fim do conflito, mesmo que isso
significasse morrer com e por eles. A situação dos que ficaram se complicava a cada dia: a
comida estava acabando, a água foi se tornando cada vez mais difícil, as doenças começavam
a se espalhar, os feridos se arrastavam pelo castelo sem tratamento algum. Outra preocupação
do Rei era a invasão do castelo, pois ele sabia que seus inimigos não poupariam ninguém. O
momento de fugir já havia passado e mulheres e crianças, vistos como mais frágeis, seriam os
primeiros a sair, como sempre acontece, mas as esposas não aproveitaram a chance e agora
poderiam morrer, se a invasão fosse realizada. Além disso tudo, o Rei Welfo VI percebia o
desânimo e tristeza de seus soldados.
O cerco já durava dois anos e as mulheres perseveravam ao lado dos seus
companheiros. A coragem dessas esposas impressionou até o inimigo.
[...] Um dia o imperador mandou ao rei um cavaleiro, levando uma mensagem. Impressionado com a lealdade das mulheres, que haviam permanecido com seus maridos, Conrado oferecia a elas a salvação: poderiam sair do castelo, atravessar o acampamento de suas tropas, que não seriam maltratadas. E poderiam, ainda, carregar consigo o que tivessem de mais precioso. [...] (ROCHA, 2006, p. 7)
Após conhecer o conteúdo da mensagem, enquanto os homens se preparavam para a
batalha, as mulheres discutiam sua fuga. Durante um bom tempo, discutiram até que
decidiram sair do castelo com uma grande bandeira branca e se dirigiram para o acampamento
do inimigo. A princípio, pareceu que elas haviam concordado com a proposta do inimigo.
Mas o que queriam era falar com o imperador e “[...] Conrado recebeu-as, cada vez mais
impressionado com sua valentia. As mulheres tinham vindo perguntar ao imperador se
podiam, realmente, contar com a sua palavra: - Palavra de Rei não volta atrás! [...]” (ROCHA,
2006, p. 08).
Conrado era a representação do poder afinal o destino daqueles homens e mulheres
poderia ser decidido com uma ordem sua. Impressionado com a coragem delas ele nem
percebeu a armadilha que elas estavam preparando. Se era incomum mulheres participarem de
uma guerra, imaginemos a reação dos soldados inimigos ao perceber o que acontecia.
Terminada a conversa, as esposas retornaram ao castelo para pegar o que tinham de mais
precioso, como combinado
[...] Daí a pouco começaram a sair, envoltas em suas pesadas capas de viagem, caminhando com dificuldade. Pois nos ombros traziam o que tinham de mais precioso. Ante o olhar atônito dos homens de Conrado, as mulheres passavam, com seus maridos nos ombros [...]. (ROCHA, 2006, p. 8)
Conrado manteve sua palavra e nenhum de seus soldados atacou aqueles homens e
suas mulheres. Segundo o narrador, depois desse desfecho, o castelo não foi invadido, os reis
fizeram um acordo de paz e a guerra acabou.
Nesse conto, as mulheres não são sinônimos de fragilidade, mas de força e amor.
Companheiras até nas horas mais difíceis e perigosas. Amor que dá a vida pelo outro, se for
preciso. E ainda foram capazes de acabar com a guerra de forma inteligente e salvar as suas
vidas e de seus esposos. Sobre essa inversão de papéis Bruno Bettelheim, na década de 80,
comentava:
[...] Figuras masculinas e femininas aparecem nos mesmos papéis nos contos de fadas. Como há milhares de contos de fadas, podemos inferir seguramente que provavelmente há um número equivalente de exemplos de coragem e determinação das mulheres salvarem os homens, e vice-versa. É assim que deve ser, pois os contos de fadas revelam verdades importantes sobre a vida. [...] (BETTELHEIM, 1980, p. 267)
Esse conto de Ruth Rocha é exemplo do comentário do estudioso. Nele homens são
salvos por suas mulheres e descritos como o bem mais precioso que elas possuíam. Essas
esposas não se comportam como o tão conhecido “sexo frágil”, mas apresentam-se como
Mulheres Guerreiras.
Figura 22 – Mulheres de coragem salvam e carregam seus maridos. Fonte: ROCHA, Ruth. Mulheres de Coragem. São Paulo: FTD, 2006, p. 09.
A imagem acima, das mulheres que conseguiram acabar com uma guerra através da
inteligência e perseverança, e o final feliz desse conto nos faz lembrar o que Bruno
Bettelheim afirma sobre a mensagem dos contos de fadas. Segundo ele:
[...] Esta é exatamente a mensagem que os contos de fadas transmitem à criança de forma múltipla: que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte
intrínseca da existência humana – mas que se a pessoa não se intimida mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos e, ao fim, emergirá vitoriosa. [...] (BETTELHEIM, 1980, p. 14)
4.2 PRINCESAS E CAMPONESAS DE UMA HISTÓRIA MEIO AO CONTRÁRIO, DE ANA MARIA MACHADO
História meio ao contrário foi escrita por Ana Maria Machado e ilustrada por
Humberto Guimarães. A autora nasceu no Rio de Janeiro em 24 de dezembro de 1941.
Estudou no Museu de Arte Moderna do mesmo estado e no MoMa de Nova York, tendo
participado de exposições individuais e coletivas no país e no exterior, enquanto fazia o curso
de Letras. Formou-se em Letras Neolatinas, em 1964, na então Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil, e fez estudos de pós-graduação na UFRJ. Deu aulas na
Faculdade de Letras na UFRJ (Literatura Brasileira e Teoria Literária), na Escola de
Comunicação da UFRJ e na PUC-Rio (Literatura Brasileira). Também lecionou em Paris, na
Sorbonne (Língua Portuguesa) e na Universidade de Berkeley, Califórnia – onde já havia sido
escritora residente.
No final de 1969, depois de ser presa pelo governo militar e ter diversos amigos
também detidos deixou o Brasil e partiu para o exílio. Na bagagem para a Europa, levava
cópias de algumas histórias infantis que estava escrevendo a convite da revista Recreio. Lá
trabalhou como jornalista na revista Elle, em Paris, e no Serviço Brasileiro da BBC de
Londres, além de se tornar professora de Língua Portuguesa na Sorbonne. Nesse período,
participou de um seleto grupo de estudantes na École Pratique des Hautes Études cujo mestre
era Roland Barthes, e terminou sua tese de doutorado em Linguística e Semiologia sob a sua
orientação, em Paris. A tese resultou no livro Recado do Nome, sobre a obra de Guimarães
Rosa.
Ana Maria Machado também criou e dirigiu por 18 anos, com duas sócias, a primeira
livraria do país especializada em livros infantis, a Malasartes. Também foi editora e uma das
sócias da Quinteto Editorial. Há 25 anos vem exercendo intensa atividade na promoção da
leitura e fomento do livro, tendo dado consultorias, participado de seminários da UNESCO
em diferentes países e foi vice-presidente do IBBY (International Board on Books for Young
People). Em 1993, se tornou hors concours dos prêmios da Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Recebeu vários prêmios no país e no exterior, entre eles o Casa de Las Americas
(Cuba, 1980), o Hans Christian Andersen, internacional, pelo conjunto de sua obra infantil
(2000), o Machado de Assis pelo conjunto da obra, da Academia Brasileira de Letras (2001).
Foi também agraciada, em alguns casos mais de uma vez, com prêmios como: Jabuti, Prêmio
Bienal de SP, João de Barro, Cecília Meireles, O Melhor para a Criança, e menções no
APPLE (Association Pour la Promotion du Livre pour Enfants, Instituto Jean Piaget, Génève),
no FÉE (Fondation Espace Enfants, Suíça) e Americas Award (Estados Unidos).
A autora publicou mais de cem livros no Brasil, muitos deles traduzidos em cerca de
vinte países. Escondida por um pseudônimo ganhou o prêmio João de Barro pelo livro
História meio ao contrário, em 1977.
Figura 23 – Capa da obra História meio ao contrário, de Ana Maria Machado. Fonte: MACHADO, Ana Maria. História meio ao contrário. São Paulo: Editora Ática, 2001.
Nessa obra, como o título indica, a história começa após o “e viveram felizes para
sempre”. Estratégia narrativa também usada por Pedro Bandeira em O fantástico mistério de
Feiurinha. Uma das diferenças entre as duas obras é a não participação das princesas
Cinderela, Rapunzel, Branca de Neve, Bela-Fera, Bela Adormecida e Rosaflor na história
produzida por Ana Maria Machado. A narradora nos alerta para a estratégia narrativa que
escolheu ao dar início à história, no qual conversa com o leitor e torna o texto metalinguístico:
[...] E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como um raio de sol e viveram felizes para sempre... Tem muita história que acaba assim. Mas este é o começo da nossa. Quer dizer, se a gente tem que começar em algum lugar, pode ser bem por aí. [...] Tem gente que gosta, acha divertido. Tem gente que só quer saber de histórias muito exatas e muito bem arrumadinhas – então é melhor mudar de história, porque esta aqui é meio atrapalhada mesmo e toda ao contrário. [...] (MACHADO, 2001, p. 4-5)
Como bem disse a narradora, que se apresenta como contadeira de histórias, os
acontecimentos foram narrados ao contrário e estão relacionados ao casal que viveu feliz para
sempre e sua filha. Interessante notar a ideia de vida feliz daquela família, criada por Ana
Maria Machado. Os membros conviviam em paz e harmonia, com saúde e gostavam muito
um do outro. Esses fatores foram essenciais para que eles resolvessem todos os problemas que
apareciam no reino, sempre com disposição e otimismo. E o mais importante: por mais que
ficassem aborrecidos, preocupados, chateados e até infelizes, o rei repetia que tudo, de ruim,
passaria e a vida no reino voltaria à normalidade. O jeito de viver deles era resolver as coisas
e ser feliz.
Na verdade, a narradora deixa claro que boa parte da narrativa contará a história da
princesa. Antes, porém, ela opta por contar detalhes do amor que envolveu os pais da moça:
“[...] Eles eram rei e uma rainha de um reino muito distante e encantado. Para casar com ela,
ele tinha enfrentado mil perigos, derrotado monstros, sido ajudado por uma fada, tudo aquilo
que a gente conhece das histórias antigas [...]” (MACHADO, 2001, p. 6).
Esse é outro conto bem semelhante aos contos de fadas antigos em que os homens
corajosos enfrentam mil perigos para libertar ou ajudar a mulher sempre indefesa e aquela que
assume as atividades domésticas destinadas às esposas naquele reino e que permanecem, em
alguns casos, até os dias atuais como, por exemplo, preparar as refeições e o banho do esposo:
[...] — Majestade, Dona Rainha está chamando. Disse para Vossa Majestade vir jantar, que a real comida já vai para a real mesa e está realmente deliciosa. [...] — Majestade, Dona Rainha está chamando. Disse para Vossa Majestade vir logo tomar seu banho, que a real banheira já está cheia e a real água vai acabar esfriando. [...] —Majestade, Dona Rainha está chamando. Disse para Vossa Majestade vir tirar sua real sujeira na água morninha da real banheira, que ela não gosta de dormir com quem não toma banho. [...] (MACHADO, 2001, p. 8-9)
A mulher continua organizando e preparando tudo e ainda suporta a demora ou falta
de vontade do rei de tomar banho antes de dormir. Quanto a isso, ela reclama e, com relação
ao jantar, faz as refeições com a princesa depois de esperar um tempo razoável pela boa
vontade do rei. Eles eram felizes e conseguiam, com “esperteza”, contornar as diferenças dos
costumes e hábitos pessoais. Inclusive a rainha não apenas se queixa das atitudes do rei, ela
tece elogios também. Para ela, o esposo dizia sempre a verdade e resolvia problemas difíceis
como o rapto do dia. Entretanto, no decorrer da história, pode-se observar que esse governante
vivia muito mais no castelo do que acompanhando os problemas e dificuldades do seu povo.
Num determinado trecho, ele demonstra nem saber o que é o “povo”. Um rei bem diferente e
sem ser descrito como governante perfeito. Era feliz com sua família real, mas pareceu um
tanto distante das outras funções atribuídas aos reis. No momento em que o rei viu o
entardecer e o que acreditava ser o rapto do dia, teve de investigar o fato e defender seu reino.
Depois de muito investigar, descobriram que um monstro enorme que ficava no céu e tinha
um olho só roubava o sol todos os dias. As pessoas daquele reino acreditavam existir esse
monstro, não entendiam o entardecer e achavam que a lua era o olho do ladrão tão temido.
Nesse trecho é que a princesa retorna ao seu posto de personagem protagonista no
momento em que seu pai não demonstra mais tanta coragem como antes do casamento e
promete a “mão” da princesa ao homem que matar o monstro.
Assim, reencontramo-nos com um fato bem comum nos contos infantis e/ou juvenis:
os casamentos arranjados são aceitos pelas princesas, com algumas exceções. Contudo, é uma
prática criticada entre as moradoras da aldeia que ficava próxima do castelo: “[...] — Eu é que
não queria ter que casar com um desconhecido só porque é bom de briga... – disse a Pastora
[...]” (MACHADO, 2001, p. 22).
As mulheres também duvidavam de que alguém tão corajoso aparecesse para aceitar o
desafio. Os homens, por sua vez, não viam no casamento com a princesa um motivo que os
motivassem. É claro que, nessa história, há um príncipe disposto a aceitar o desafio. A
diferença dos outros príncipes dos contos de fadas é que ele não é visto como um homem
encantado, mas é descrito pela Pastora como um Príncipe Encantador. O adjetivo não foi
usado por acaso. O Príncipe, antes de chegar ao castelo para aceitar o desafio, se encontrou
com a Pastora e demonstrou ser um rapaz educado:
[...] Não era um Príncipe Encantado, mas a Pastora, que o tinha visto chegar, afirmava que era um Príncipe Encantador. Ele falou com ela, foi muito gentil e simpático, pediu um pouco d’água para seu cavalo e explicou que ia se apresentar no castelo. — Só para casar com a Princesa? – ela foi logo perguntando. Ele sorriu um sorriso bonito e explicou: — Nada disso. O principal é não ficar parado. Não tenho nada para fazer o dia inteiro, tudo o que eu quero alguém faz pra mim. E adoro me movimentar, andar a cavalo, enfrentar desafios. Quando soube desse monstro, logo achei que ia ser uma aventura maravilhosa. [...] (MACHADO, 2001, p. 24-25)
Há um príncipe que enfrentará o monstro, contudo o seu objetivo não é casar com a
bela princesa e sim se divertir, viver aventuras numa vida que ele descreve como tão sem
graça, repleta de criados para fazer tudo por e não o deixar realizar nada. Em outros contos
antigos, não era comum encontrar príncipes infelizes com o excesso de cuidados e tão
sedentos por viver coisas novas. E as aventuras e perigos geralmente estavam relacionados
com o salvamento de mulheres indefesas e ao encontro de um grande amor.
A chegada do príncipe despertou algumas preocupações nos camponeses. Eles
começaram a tentar entender o dia, o entardecer e a noite como acontecimentos necessários a
vida deles e da natureza. Observaram que, se o monstro (a noite) não roubasse o sol, não
poderiam descansar e trabalhariam sem parar, as plantas ficariam secas com tanto sol, as
colheitas acabariam secas e queimadas, ninguém teria o alimento para suas famílias etc.
Então, decidiram ajudar o monstro que roubava o sol para que ele não fosse derrotado pelo
príncipe corajoso. Dessa forma, convidaram um Gigante que morava ali perto para apoiar o
“Dragão Negro”, foi assim que a noite passou a ser chamada.
Durante todo o tempo, a Pastora mostrou sua inteligência e perseverança para
conseguir o que eles almejavam. Vejamos um dos trechos em que ela expõe o que pensa e sua
atitude perseverante: “[...] A Pastora, porém, não desistia. Era uma moça muito decidida e não
gostava de largar pelo meio as coisas que queria fazer. Nem desistia de uma boa ideia só
porque a situação estava meio preta [...]” (MACHADO, 2001, p. 26). Uma mulher forte que
ajudou a elaborar o plano, executou tudo em parceria com os outros camponeses e com o
Gigante e ficou para assistir ao confronto. A maioria dos componentes voltou para casa ou
porque estavam com medo ou estavam muito cansados. Ana Maria Machado retrata essa
postura feminina que desconstrói estereótipos e sugere novas identidades pessoais para as
mulheres na literatura infantil enquanto Raquel Soihet aborda o assunto fazendo referência às
mulheres do século XX:
[...] Apesar da existência de muitas semelhanças entre mulheres de classes sociais diferentes, aquelas das camadas populares possuíam características próprias, padrões específicos, ligados às suas condições concretas de existências... em grande parte, não se adaptavam as características dadas como universais ao sexo feminino: submissão, recato, delicadeza, fragilidade. [...] fugindo, em grande escala, aos estereótipos atribuídos ao sexo frágil. [...] (SOIHET, 2004, p. 36)
Na sociedade, elas recusam o estereótipo da fragilidade e na narrativa também existem
mulheres que participam de um grupo coeso que estava criado para salvar a todos. E quando
escureceu a narradora mais uma vez personificou a noite e a lua:
[...] Quando escureceu o Dragão chegou, soltando suas fagulhas que pisca-piscavam por toda parte, todos foram começando a ouvir ainda bem longe o galope do cavalo que se aproximava. Era o Príncipe Encantador e Valente, que vinha com toda a sua coragem enfrentar o monstro. Só com a coragem, não. Vinha também com sua lança, sua espada, seu escudo. Com armadura, elmo e tudo. Ouvindo o barulho, o Dragão tratou de ver o que estava acontecendo. E seu olho foi aparecendo aos
pouquinhos, enorme, redondo, prateado. [...] O Dragão começou a achar que o plano do Gigante não ia dar certo. Teve a ideia de usar um recurso extremo e lançar o fogo dos raios em cima do Príncipe, pedindo reforço a todas as Trovoadas que conseguisse encontrar acordadas naquela hora. Mas antes tratou de olhar muito bem olhado o seu adversário, respeitando a coragem daquele Príncipe que, mesmo sem saber muito bem por que, não parava diante de nenhum obstáculo. [...] (MACHADO, 2001, p. 32-33)
Noite e Lua personificadas como Dragão e olho do monstro, respectivamente
estão na batalha, respeitam o homem valente, mas reelaboram um possível plano para acabar
com o adversário. Na hora do confronto, o Príncipe Valente, com a ajuda da claridade da Lua,
viu a Pastora na floresta, percebeu o quanto ela era bonita e desistiu de enfrentar o Dragão e
de casar com a princesa. Temos um desfecho com uma história de amor entre um príncipe e
uma camponesa. O homem valente confessou para aquela camponesa que não queria viver
coisas iguais para sempre e muito menos coisas eternas. Amor que surpreende e é retratado
pela imagem abaixo
Figura 24 – A pastora e o príncipe. Fonte: MACHADO, Ana Maria. História meio ao contrário. São Paulo: Editora Ática, 2001, p. 35.
O rei também percebeu que a noite e o dia são igualmente importantes e não ficou
procurando o ladrão do sol ou da lua. Porém, manteve sua palavra e disse que permitiria que o
Príncipe valente e encantador se casasse com a princesa como prêmio pelo seu esforço para
matar o Dragão. O Príncipe nem precisou recusar, pois a princesa tomou a palavra e
surpreendeu a todos:
[...] — Meu real pai, peço desculpas. Mas se o casamento é meu quem resolve sou eu. Só caso com quem eu quiser. O Príncipe é muito simpático, valente, tudo isso. Mas nós nunca conversamos direito. E ainda quero conhecer o mundo. Até hoje eu nem sabia que o sol voltava todo dia tão bonito. Tem muita coisa mais que eu quero saber. Isso de ficar a vida inteira fechada num castelo é muito bonito, mas eu vi que aqui fora, nesses campos e nesses bosques, tem muita coisa mais. Não quero me casar agora. [...] (MACHADO, 2001, p. 38)
O rei ficou exageradamente bravo; a rainha explicou que casar com um príncipe, que
vence dragões e gigantes era o destino de “todas” as princesas. Lembrou também que o casal
viveria feliz para sempre, mas nem com essa informação a princesa desistiu da decisão que
tomou. Em sua discussão com os pais, a moça ainda completou: “[...] — Nada disso. Minha
história quem faz sou eu. Posso até casar com esse Príncipe. Mas só se ele e eu quisermos
muito. [...]” (MACHADO, 2001, p. 38). E ambos não queriam casar. Após constatar isso,
cada um seguiu um rumo diferente. A princesa viajou para viver aventuras, conheceu outras
pessoas, outras terras e fez algo significativo para uma mulher naquela época: estudou numa
das repúblicas por onde passou e, de vez em quando, retorna, de férias, para o seu reino,
sempre cheia de novidades para contar. O príncipe ficou naquele reino trabalhando como
vaqueiro só para ficar perto da Pastora, conhecê-la melhor e já estavam pensando em se casar.
Com a leitura dessas histórias o leitor tem a oportunidade de se divertir e aprender.
Sobre essa oportunidade, Bruno Bettelheim (1980) salienta que como toda grande arte, os
contos de fadas tanto agradam como instruem na idade em que estas histórias são mais
significativas para a criança, seu problema principal é colocar alguma ordem no caos interno
de sua mente de modo a poder se entender melhor. Sendo assim, a literatura pode auxiliar no
despertar do senso crítico dos leitores.
A obra de Ana Maria Machado, que é vista como uma história meio ao contrário, bem
como outras que analisamos neste estudo, servirá como instrumento para que isso aconteça.
Narrativa que terminou não com o “viveram felizes para sempre”, mas com a possibilidade de
viver feliz com o caminho que a princesa escolheu seguir. Escolhas que geralmente só eram
permitidas para os homens, pois mulheres só obedeciam aos pais, que escolhiam seus
destinos. Dessa forma, na contemporaneidade, a literatura infantil nos apresenta protagonistas
que buscam a felicidade e mudam seus destinos demonstrando que homens e mulheres não
são iguais, contudo possuem direito de tomar suas próprias decisões.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o objetivo de expor as considerações finais do presente trabalho, cujo objetivo
principal foi apresentar um estudo sobre as funções sociais destinadas à figura feminina,
presentes nas narrativas infantis contemporâneas produzidas por escritoras e escritores
brasileiros, faço, a seguir, alguns comentários acerca do estudo realizado.
No segundo capítulo, abordamos as representações identitárias femininas na sociedade
e na literatura infantil. Nesse capítulo, trouxemos o conceito de identidade de Hall (2005) e a
concepção de representação de Chartier (1990). Esses autores afirmam, dentre outras coisas,
que as possibilidades de identificação são inúmeras, podendo o indivíduo ter identidade
pessoal, coletiva, profissional, de classe, de gênero, entre outras, e que essas identificações
são construídas através das relações sociais. À luz desses comentários teóricos, busquei
conduzir minha análise no sentido de poder averiguar quais identidades femininas estão
presentes nas obras da literatura infantil brasileira, além de poder fazer um estudo
comparativo das funções sociais atribuídas às mulheres nas últimas décadas no nosso país e,
ainda, constatar o que é “ser mulher” e o que elas desejam ser, o que já conquistaram e o que
almejam conquistar. Vale ressaltar que as pesquisas que fizeram um estudo da mulher na
sociedade foram importantes para a nossa análise, pois disseminaram saberes sobre e por
mulheres.
Preocupei-me, igualmente, em salientar que a questão da construção da identidade gira
em torno do “tornar-se”, por isso homens e mulheres estão a todo o momento mudando a sua
função na sociedade e na literatura, construindo novas identidades. Dessa forma, elas são
marcadas pelas diferenças e pelas similaridades. De certa maneira, a análise do corpus
comprovou que a ideia construída pelo indivíduo sobre si está diretamente ligada ao que se
constitui o “nós” por oposição a “eles” aos “outros”. Os homens, personagens das obras
analisadas, por exemplo, tendem a construir posições sociais para as mulheres, tomando a si
próprios como ponto de referência e o contrário também é verdadeiro, isto é, as mulheres
exercem funções sociais a partir das ações do homem. São pais, namorados e esposos, em sua
maioria, tentando a todo o momento “moldar” o comportamento das mulheres, definir funções
que devem ser exercidas e decidir o destino delas. Essas identificações puderam ser
constatadas através dos comentários realizados no segundo e terceiro capítulos desta
dissertação.
No terceiro capítulo, fizemos uma análise de duas obras produzidas por escritores
brasileiros com o objetivo de averiguar quais funções sociais são atribuídas às personagens
femininas criadas por eles. As obras O fantástico mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira e
Príncipes e princesas, sapos e lagartos, de Flávio de Souza estabelecem um diálogo
intertextual com histórias europeias. Pedro Bandeira nos apresenta uma história que reune
várias princesas dos contos de fadas conhecidas pelo grande público. Participam dessa
aventura: Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Cinderela, Bela-Fera, Rapunzel, Bela
Adormecida, e entra em cena uma princesa ainda desconhecida chamada de Feiurinha. A
história apresenta também as mulheres que representam a maldade, mais conhecidas por
bruxas, e Jerusa, uma mulher que desempenha a função de contadora de histórias, atividade
usada para desvendar o mistério do desaparecimento de Feiurinha. Ao perceber que o Pedro
Bandeira relembra as histórias dessas princesas e até dá continuidade aos acontecimentos após
o final de suas histórias, realizamos um estudo comparativo entre os contos de Charles
Perrault e dos Irmãos Grimm, nos quais essas princesas são protagonistas, e a obra O
fantástico mistério de Feiurinha. Processo semelhante de análise realizamos com a obra
Príncipes e princesas, sapos e lagartos, de Flávio de Souza, na qual o autor produziu algumas
histórias novas, com personagens que fazem referência aos antigos príncipes e princesas.
Ainda no terceiro capítulo, ao colocar em prática a comparação entre a obra escrita por
Pedro Bandeira e os contos de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, descobrimos que, nos
intertextos, quase todas as protagonistas ganharam algumas semelhanças e muitas diferenças
com relação à identidade pessoal que possuíam nas versões europeias como, por exemplo, o
fato de as princesas não serem descritas de forma idealizada e frágil, mas como destemidas,
corajosas, aventureiras. Contudo, demonstram também que ainda são vistas como “aquela que
cuida” de marido e dos filhos. O instinto maternal e a maternidade continuam sendo
valorizados, pois quase todas se preocupam com seus esposos e estão grávidas de oito meses;
são caseiras, até descobrirem o sumiço de Feiurinha, e não trabalham; vivem costurando
roupas para o próximo filho e tomando conta dos outros como é o caso de Branca de Neve.
Outro aspecto que não podemos esquecer diz respeito aos elementos considerados símbolos
de feminilidade como “os pés pequenos”, de Cinderela, que permanecem valorizados. Já na
obra de Flávio de Souza, a maior parte das protagonistas não se identifica com antigos papéis
sociais exercidos por mulheres, dentre elas Úrsula, Princesa linda do laço de fita e a princesa
que foi acordada com um beijo; todas mostraram ser donas do seu destino e escolheram viver
como desejavam para que pudessem conseguir alcançar objetivos e a felicidade. Dessa forma,
algumas funções destinadas às mulheres foram mantidas e novas surgiram.
Por fim, no quarto capítulo, analisamos obras de escritoras brasileiras com o mesmo
objetivo do capítulo anterior. Nas obras escolhidas, encontramos mulheres submissas e
independentes. Algumas serviram de modelos de obediência aos pais, outras decidiram
exercer funções antes destinadas aos homens como lutar numa guerra. Enquanto algumas
personagens podem manter outras podem desconstruir estereótipos. Para entendermos melhor
como isso acontece, buscamos a concepção de estereótipo de pesquisadores como Krüger
(2004) e Bhabha (1998). Com base nessas concepções, fomos analisando as obras de Ruth
Rocha e Ana Maria Machado e, ao concluir a nossa análise, podemos afirmar que as autoras
tentaram desconstruir identificações sociais cristalizadas, proporcionando aos leitores um
momento para refletir sobre os estereótipos existentes na sociedade.
Dessa forma, através do estudo efetuado, verificamos que nem todas as hipóteses
inicialmente levantadas foram confirmadas em seus pontos basilares, a saber: as obras escritas
por escritoras possuem personagens femininas independentes, fortes e corajosas e nas obras
produzidas por escritores acontece algo semelhante, e as mulheres não são descritas como
dependentes, submissas, sensíveis e frágeis; os intertextos, escritos por autores brasileiros,
que são objetos de estudo desta dissertação rememoram personagens femininas das obras de
Charles Perrault e dos Irmãos Grimm e a maior parte delas não possui as mesmas funções
sociais das versões europeias.
Vale ressaltar que a escolha de obras da literatura infantil foi feita por acreditar que a
leitura das histórias infanto-juvenis permite à criança a possibilidade de estabelecer um
contato, de forma reflexiva, com situações que retratam papéis sociais destinados à mulher na
sociedade. Histórias que, na quase totalidade dos casos, são produzidas por adultos e eles
estão transmitindo, consciente ou inconscientemente, valores e tipos de comportamento que
poderão ser assimilados pelos pequenos receptores, por estarem em fase de formação ou como
leitores críticos as crianças e jovens podem não assimilar, mas desconstruir preconceitos
existentes e denunciados pelos escritores.
Destarte, as mudanças e/ou semelhanças com os estereótipos já existentes em nossa
sociedade, encontradas nas obras estudadas, atestam mais inovações do que repetições na
forma de representação do feminino, questionando o que é belo ou feio, a mulher frágil ou
forte, o príncipe encantado ou desencantado e, dessa maneira, podem despertar o senso crítico
dos leitores. Não existem papéis ou funções sociais que devem ser destinados a homens e
mulheres, mas cada um deve preservar a sua singularidade. Diante disso, através da análise
das quatro obras de escritores e escritoras, averiguamos que as personagens desejam encontrar
a sua identidade pessoal, possuir “a sua marca”, e a literatura infantil aborda essa busca e as
opções escolhidas por cada uma delas. Assim, a literatura propicia uma reorganização das
percepções do mundo e, desse modo, possibilita uma nova ordenação das experiências
existenciais da criança.
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