Antonieta Cunha - Coleção Edição e Ofício

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Neste volume, Antonieta Cunha concede ao leitor o prazer de conhecer os caminhos que trilhou no mercado editorial. Apaixonada por seu ofício, ela compartilha diversas experiências: ser editora, escritora, professora, mãe, secretária de cultura e diretora de projetos. Sua forma doce de recontar a vida permite-nos viajar no tempo da fundação da editora Miguilim, em 1980, até sua atuação na editora Dimensão.

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Copyright © 2015 by Adriana Rodrigues, Breno Araújo, Gabriela Ferreira, Gilsemar José, Juliane Celene e Laís Bolina.

CoordenaçãoPablo Guimarães de Araújo

Projeto GráficoLetícia Santana

CapaTúlio Oliveira

RevisãoLourdes Nascimento

A635 Antonieta Cunha / organizadores Adriana Rodrigues... [et.al.].- Belo Horizonte: Ed. do autor, 2015.

52 p. – (Coleção: Edição e Ofício).Outros organizadores: Breno Araújo, Gabriela Ferreira, Gilsemar

José, Juliane Celene e Laís Bolina.

1. Biografia. 2. Editores mineiros. I. Rodrigues, Adriana. II. Araújo, Breno. III. Ferreira, Gabriela. IV. José, Gilsemar. V. Celene, Juliane. VI. Bolina, Laís. VII. Série.

CDD: 920

Nossos agradecimentos a Ceuzimar Barbosa, Jussara Santana, Luciene Franke, Michel Gannam, Mirian Alves e Sylvia Vartuli, pela colaboração em diferentes etapas da Coleção Edição e Ofício.

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[...] acho que uma empresa não precisa ter enormes lucros, acho que ela precisa ter lucros para manter o sonho.

Antonieta Cunha

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Ajeitar o travesseiro na cama, cobrir parte do corpo e fechar os olhos para escutar uma história: essa foi a sensa-ção de ouvir Antonieta Cunha*. A responsabilidade de rela-tar seus caminhos como editora foi suavizada por sorrisos e emoções. Foi como se alguém, ao nosso lado, abrisse o livro e nos contasse a história de uma aventureira que enfrentou um caminho que ninguém conhecia, ou que pelo menos ainda não era divulgado: o da literatura infantil.

Como se não bastasse escrever sobre tal, mais tarde ela se tornou mãe de um importante autor de livros infantis: Leo Cunha. Fundadora da Miguilim, da Biblioteca Pública Infan-til Juvenil de Belo Horizonte e atual editora da Dimensão, concedeu aos organizadores desta publicação o prazer de re-contar sua experiência de amor por seu ofício: a edição de livros.

* Depoimento concedido aos organizadores em 6/11/2014.

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É muito comum se referirem a mim com o ditado “fi-lho de peixe peixinho é”. Mas considero a referência muito injusta. Não injusta comigo, e sim com minha mãe. Afinal de contas, a atuação dela no campo da literatura e da educação é muito mais ampla e diversificada do que a minha.

Sou basicamente um escritor, tradutor e professor uni-versitário. Dona Antonieta Cunha, ao longo da vida, já foi: escritora, tradutora, professora universitária, bibliotecária, livreira, editora, divulgadora, consultora, palestrista, Secre-tária Municipal de Cultura por duas vezes, criadora e diretora da Biblioteca Pública Infantil de Belo Horizonte, Presidente da Câmara Mineira do Livro, Diretora da Fundação Biblioteca Nacional, organizadora e curadora de várias Feiras do Livro em todo o país, jurada duas vezes do Hans Christian Ander-sen, o mais importante prêmio da literatura infantil mundial etc, etc, etc.

Mas a diferença não é simplesmente que minha mãe atuou em muito mais áreas do que eu. A questão é que ela foi decisiva em todas elas. Como editora, por exemplo, à frente da Editora Miguilim – que ela fundou e comandou entre 1979 e 1992, ano em que se afastou da empresa – ela foi uma das maiores responsáveis pelo boom da literatura infantil brasi-leira nos anos 80 e 90. Nunca antes uma editora tão pequena conseguira lançar tantos artistas novos, tantos olhares novos,

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tanta ousadia em texto e imagem e influenciar tanto o mer-cado do livro infantil.

Entre os autores que a Miguilim lançou para o país esta-va, por exemplo, Bartolomeu Campos de Queirós, que tinha publicado dois livros nos anos 70, com tiragens mínimas e alcance restrito, ambos esgotados e esquecidos. A Miguilim relançou e distribuiu nacionalmente estes dois livros – “Pe-dro” e “O peixe e o pássaro” – e foi muito além:emendou com “Mário”, “Ciganos”, “Indez”, “Cavaleiros das sete luas”, “História em três atos”, “As patas da vaca” e muitos outros, fundamentais para se entender a obra e o estilo do Bartô.

Lançou também obras fundamentais para a literatura infantil da época, de autores como Elvira Vigna, Roseana Murray, Mirna Pinsky, Angela Lago, Antonio Barreto, Ronald Claver, Maria Heloisa Penteado, Sylvia Orthof e outros mais. Entre os ilustradores, abriu a porta para estreantes como Marilda Castanha, Ana Raquel, Paulo Bernardo Vaz, Adriana Leão e outros que atualmente estão entre os principais artis-tas da imagem, na literatura infantil brasileira. Felizmente a ousadia e o bom gosto da Miguilim renderam inúmeros prê-mios para a editora e seus artistas.

Nos anos 2000, após alguns anos ocupando cargos públi-cos, minha mãe voltou a atuar de forma mais constante como editora. Além de trabalhos esporádicos para editoras como FTD, Moderna e Global, passou a cuidar de todo setor de litera-tura da Editora Dimensão. E ali ela manteve o mesmo espírito

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da época da Miguilim, apostando sempre na literatura como Arte, com A maiúsculo, e não como um objeto auxiliar da pedagogia.

Tive o privilégio de acompanhar a carreira da minha mãe em todas as suas atividades e aprender um pouco. Não só o ofício propriamente, não só conceitos e procedimentos, mas sobretudo a paixão e a retidão com que ela se comporta em cada um de seus cargos e funções, trombando de fren-te com os poderosos, quando é preciso, nadando contra a corrente em termos estéticos, ideológicos e mercadológicos, questionando sempre o abuso de autoridade, defendendo sempre a transparência e a alternância de poder, jamais se agarrando a cargos ou títulos.

Se minha obra literária tem alguma relevância hoje em dia, certamente devo muito à biblioteca de 20 mil livros que minha mãe tem em casa, mas também a todo o tempo que passamos juntos, todas as conversas, discussões e aprendi-zado constante. O muito obrigado não é só meu, é de todo mundo que ama os livros, a literatura, a leitura, a arte, a beleza.

Leo Cunha Autor de cerca de 50 livros de literatura infantil e juvenil,

tradutor de outros 30, doutor em Artes pela UFMG, professor universitário desde 1997

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Nasci em junho de 1939. O mundo era um pouquinho diferente naquela época. Sou de uma cidade minúscula de Minas Gerais, a dez minutos de Lavras, que se chama Ribei-rão Vermelho, lugar que teve uma importância grande na época das ferrovias. Era um ponto de baldeação e lá havia uma oficina muito importante para conserto de máquinas. Quando eu tinha um ano e meio, meu pai era chefe de um departamento da ferrovia da cidade e nos mudamos para Cruzeiro. Ficamos lá por dois anos e meio e viemos para Belo Horizonte, porque meu pai veio trabalhar na Rede Mineira de Aviação. Minha mãe era grande pianista e tinha vários alu-nos. Ela fazia audições. Então vim para a capital com quase quatro anos e fui morar no bairro Floresta.

Sempre me interessei por livros, mas no primeiro ano de escola, com sete anos, tive um problema de visão que nun-ca ninguém diagnosticou. E eu tinha períodos quase de ce-gueira. Ainda assim fui tratada sabe-se lá como. Eu tinha dois óculos, uns eram rosas e outros pretos. Fiz um tratamento longuíssimo de sete a doze anos, tomava injeção e litros de cálcio. Finalmente, sem o diagnóstico, fui curada.

Eu estudava no Barão de Macaúbas e, enquanto eu não estava com problema de vista, eu lia feito uma desesperada. Quando eu estava ruim, minha mãe lia até os exercícios de casa para mim. Até os doze anos foi essa luta. Apesar disso,

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eu acho que li a biblioteca do Barão de Macaúbas inteira. E é muito importante dizer que o Barão de Macaúbas era a melhor escola de Minas Gerais. Os grandes intelectuais políti-cos disputavam lugar lá. Tive uma professora absolutamente sensacional. Acho que ela foi fundamental para eu ser profes-sora. Mas falar da dona Maria do Carmo é me fazer chorar!

Bom, então, a dona Maria do Carmo era excepcional. Na escola, trabalhavam mais duas irmãs dela, e eram tão sensacionais quanto ela. No recreio, nós ficávamos brigando para decidir qual das três irmãs era melhor: “A dona Maria do Carmo é melhor!” “Não, é a dona Maria do Socorro!”. Supo-nho que ela não tinha nenhuma formação específica. Fiquei muito amiga dela depois da escola e ela nunca me contou de ter feito nenhum curso especial. A aula era à tarde e acabava às quatro horas. Todos os dias, ao final da aula, a professora tirava um livro da bolsa, arredava os dois meninos da primei-ra fila, porque eram carteiras duplas, sentava-se na cadeira e começava a contar história.

Cada dia era um livro que ela trazia de casa. Então a gente já ficava olhando para a bolsa, imaginando a história. Mais ou menos às quatro horas, na hora em que tocava o sino, a história estava quase acabando, ou faltava uma frase, um parágrafo ou tinha terminado. Enfim, não sei como ela controlava isso.

Assim, diariamente, nós ouvíamos uma narrativa. Na época, não eram muito variadas. Eram basicamente os contos

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de fada clássicos e, às vezes, alguma história de um livro que não estava em nosso livro didático. Ela lia, a gente ia para a casa de alma lavada, triste ou mais alegre. No dia seguinte, aos olhos da nova didática era preciso fazer um questionário, perguntar sobre o enredo ou mandar fazer o que era comum: uma composição mudando o final da história. Mas, ao che-garmos à escola, às doze horas, a professora Maria do Carmo propunha problemas orais. Acho que existe isso até hoje. Ela montava uma narrativa que era um problema matemático e a gente tinha que fazer tudo oralmente e só entregava o re-sultado. E a história do dia anterior sequer era mencionada. Ela nunca discutiu isso comigo, naturalmente. Afinal quando é que eu ia imaginar que mexeria com livros? Mas tenho a intuição que ela tinha tanta certeza de que as histórias iam tocar a vida dos alunos que não se preocupava. Ela sabia que o essencial era o menino ter contato com a literatura. Isso apareceria como um valor na vida do menino, assim os ter-mos iam entrar na cabecinha, iam formar o vocabulário, o repertório da criança, ou em uma composição ela usaria al-gum tipo de personagem. Enfim, ela sabia que aquela história produziria um efeito, e um bom efeito, na vida da criança, e ponto final.

A minha mãe era uma devoradora de livros. Eu lia mui-to, na minha casa havia muito livro para adulto, mas, para criança, não. Mesmo porque não havia nenhuma livraria, ne-nhuma editora especializada nisso. Estávamos no princípio

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da década de 1940, imagina só que já na década de 1960, quando fui ser professora no Instituto de Educação, queixa-va-me dessas dificuldades, imagina 20, 25 anos antes.

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Nós tínhamos uma incrível professora de música no Barão de Macaúbas, a Josefina Franzino de Lima. A dona Fininha, como a chamávamos, era a esposa de um grande político. Todo dia tínhamos uma pequena audição de música no pátio da escola e aí cantávamos um monte de hinos. Ha-via muitas atividades de apresentação para inaugurações de espaços culturais. Nesse percurso, o senhor Milton Campos ligou para a escola para me convidar para cantar na inaugu-ração do Minas Centro. Depois disso, tive até um programa na rádio Guarani. Então a dona Fininha não só dava aula, ela promovia atividades de música! E isso demonstra como o Ba-rão de Macaúbas era de alguma forma um centro importante para a área de cultura.

Além disso, a dona Fininha tomava conta da biblioteca da escola. Na sexta-feira, ela batia na porta e carregava um caixote junto com a dona Maria, que era a cantineira. Quan-do batia na porta, a gente já sabia quem era e elas diziam: “gente, quem vai querer levar livro hoje?” Todo mundo! A gente fazia uma fila e ia escolher os livros nesse engradado que ela levava. Nesse momento, cada um falava: “ah, eu já li esse” e comentava com o outro se era bom, ali era uma pu-blicidade em torno do livro. A gente levava para casa, cada aluno podia levar dois. Eu sempre levava dois, eu ia ler ou a minha mãe ia ler para mim. Na segunda-feira, elas diziam:

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“gente, vocês trouxeram os livros?”, a maioria tinha trazido, entregava os livros. Às vezes, alguém dizia: “eu não pude ler”, dona Fininha respondia: “então traz amanhã!” e pronto. Não tinha nem ficha de livro, isto é, ninguém sabia que livro a Antonieta estava levando, mas eles tinham certeza de que a Antonieta ia voltar na segunda ou na terça com os dois livros que ela levou. Esse era o trabalho com a literatura no Barão de Macaúbas.

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Tínhamos uma professora de religião, daquela típica professora de religião, que falava de céu, inferno, anjo da guarda, primeira comunhão, castigo e tudo mais. Por isso, já fui muito religiosa, recitava as jaculatórias, isto é, as peque-nas orações que eu decorava, em torno de 625, por semana, para compor o ramalhete espiritual. Minhas irmãs e eu di-vidíamos as tarefas de casa, uma lavava a louça enquanto a outra secava, outra varria.

Enquanto fazíamos as obrigações do lar, eu aproveitava para recitar as jaculatórias e ficava dizendo: “Jesus, Maria, José, minha alma vossa é! Jesus, Maria, José, minha alma vossa é!” Ia fazendo isso. Acho que pode até ter tido valor para formação cristã em algum momento da vida, mas não me fez uma católica convicta. A religião era muito conserva-dora, era cheia de imposições e ameaças. Porém, na questão de conteúdo, por exemplo, no trabalho com a leitura, era revolucionária, sem nem saber disso. Às vezes, encontro-me com ex-colegas, e é mais ou menos a mesma história: nos tornamos excelentes leitores para a vida inteira e a maioria não tem religião. A forma como são apresentados os valores acaba repercutindo em sua vida. O valor da leitura para mim é extraordinário. Não só da leitura, como das artes, da músi-ca, pois trabalho com arte e educação. E o valor da religião esta aí, sub judice, está sob suspeita de algum jeito.

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Depois de todo contato com a leitura, fiz o concurso de Admissão, passei para o Instituto de Educação, mas lá não tinha nenhuma Maria do Carmo. Como sempre gostei de literatura e dos aspectos da língua, não tive dificuldade. Estudávamos Camões na quinta série, e isso era um horror para muitos dos meus colegas que detestavam. Enquanto eu conversava com José Mesquita de Carvalho sobre Camões ele falava: “Está cedo para você, Antonieta!”.

Terminei o ginásio, fui fazer o curso Normal, que, an-tigamente, capacitava para dar aulas, formava professores. Por causa da Dona Maria do Carmo, eu queria ser professo-ra. Após três anos que havia deixado o Instituto para fazer o curso de Letras, voltei, não mais como aluna, mas como professora.

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Quando entrei para a faculdade de Letras, fiz uma es-colha difícil, pois os professores achavam que eu devia fazer outros cursos e até ligavam para minha casa sugerindo, entre eles, Direito e Belas Artes. Depois que já estava no terceiro ano do curso, por causa de um professor que estava de licen-ça, fui convidada a dar aulas no Instituto de Educação. Foi maravilhoso, porque fui paraninfa das turmas e foi a primei-ra vez que trabalhei com a literatura infantil. Eu não tinha textos sobre o assunto, a não ser minhas próprias leituras. O acervo da biblioteca infantil era mínimo. Quando olhei o programa do curso, a literatura infantil era um subitem, sem destaque. Então, criei um curso de literatura infantil, lem-brei-me ainda de Dona Maria do Carmo.

Naquela época, Monteiro Lobato não era muito conhe-cido, resolvi, então, trabalhar com suas obras. As alunas es-colhiam livros, discutiam sobre as obras de Lobato, criavam peças maravilhosas, que lotavam o auditório do Instituto de Educação. As Reinações, A viagem ao céu, O Saci, foram inter-pretados pelas alunas. E, quando me encontro com algumas delas, às vezes, para agradar os meus cabelos brancos, di-zem que tudo aquilo foi importante. Assim começou a minha história com a literatura infantil. Fui ser professora, lá no Instituto de Educação, comecei a trabalhar com literatura. Escrevi um livro sobre literatura infantil, que descreve as

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experiências que fiz lá e deram certo. Escrevi também Ler e redigir, que discorre sobre métodos para escrever textos.

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Depois que me casei, fui para Bocaiúva, uma cidade pe-quena, onde ainda não se trabalhava a leitura. Quando falei para a turma ir à biblioteca, ela foi para a banca de revistas, que por sinal era muito simples. A biblioteca passou a ser a da minha casa, a minha biblioteca. Os alunos faziam fila, igual à fila da dona Fininha, para pegarem livros. Quem con-ta isso é Patrus Ananias1, ele foi meu aluno, e também Fer-nando Emediato2, o editor da Geração.

Mas logo eu voltei para a faculdade de Letras, para dar aulas. Fiz um curso de Literatura Infantil, era uma disciplina eletiva, no primeiro curso foram doze alunos, no segundo, fo-ram sessenta. Às vezes, alguém torcia o nariz e dizia: “ah, es-tudar literatura infantil? Você devia estudar Kafka”. Mas per-maneci com o trabalho com literatura infantil. E, assim como diz Guimarães: “tudo é encadeado”. Dando aula na faculdade de Letras, não havia livros de literatura infantil na biblioteca. Foi então que falei: “Vou fazer uma livraria infantil!”. Assim nasceu a Miguilim. A casa de leitura e livraria surgiu da ne-cessidade de ter livros disponíveis para meus alunos, para crianças de Belo Horizonte. Era em Lourdes, em um sobrado, e o principal foco era a leitura mesmo. A gente tinha uma

1 Ex-prefeito de Belo Horizonte e atual ministro do Desenvolvimento Agrário.2 Escritor, jornalista e editor da Geração Editorial.

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sala enorme onde as crianças iam ler, e a parte de venda, que era uma parte menor. Hoje, encontro-me com pessoas que dizem: “Ah, eu te conheci na casa de leitura, lá na Miguilim. Os meus filhos iam lá ler.” Lá tinha gente importantíssima, e a gente fazia praticamente de 15 em 15 dias uma conversa com um autor de fora, e aí vieram Orígenes Lessa, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Edi Lima, Eliana Ganem, Marina Co-lasanti, um monte de gente assim de primeiríssima. E, claro, Bartolomeu Campos de Queirós estava sempre lá, por todos os motivos.

A Miguilim foi, antes de editora, uma casa de leitura e livraria, e muitos autores que passaram por lá, diziam: “An-tonieta, com a sua experiência, com seu gosto, por que vocês não fazem uma editora?” Então, em 1979, foi inaugurada a Casa de Leitura, e, em 1980, a gente começou a formar uma equipe para fazer a editora Miguilim. E a Miguilim teve uma importância grande, por exemplo, foi ela que lançou a Ana Raquel, ilustradora, a Marilda Castanha e o Paulo Bernar-do. Ele que fez os primeiros trabalhos com a gente. Trouxe Joel Rufino, Orígenes Lessa, gente muito talentosa para Mi-nas. E houve um momento em que a Miguilim foi tão impor-tante que, na época, o prêmio Jabuti tinha três prêmios e ela conquistou o prêmio de literatura infantil. Outrora, não era como hoje, com vinte e tantas categorias. Era literatura infantil e literatura de adulto. E de três prêmios Miguilim ganhou dois. Em 1986 ganhou outros prêmios, para Elvira

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Vigna, que é maravilhosa, para a Ângela Lago com um livro primoroso, Outra vez, e, para juvenil, Cavalheiro da luz, que o Paulo Bernardo nos trouxe.

A Miguilim continuou sendo livraria, casa de leitura e editora, mas em 1990 houve alguns problemas de direciona-mento da empresa. E aí fica um pouco complicada a minha parte de editoração propriamente dita, da escolha das obras e da escolha dos autores. Porque acho que uma empresa não precisa ter enormes lucros, acho que ela precisa ter lucros para manter o sonho. É isso, para mim, é isso. Claro, nin-guém tem que passar fome, ninguém tem que ter nenhum problema financeiro, no entanto, você não precisa abarro-tar a sua casa de placas de ouro. Para mim, a coisa é muito assim.

Então em 1993, eu até podia ficar rica com a editora, pois era meu trabalho e eu deveria receber, mas eu não que-ria virar uma das 10 pessoas mais ricas do Brasil. E, nesse momento, tinha sido eleito Patrus, meu aluno lá em Bocaiú-va. Por isso tenho que falar de Bocaiúva. E contar essa histó-ria grande. E aí ele me chamou, em 1992, para ser Secretária de Cultura. Lá também eu tinha uma equipe muito boa que foi escolhida por mim, claro que conversando com o Patrus. Ele é de uma mesura extraordinária e um sujeito que achava que eu deveria escolher minha equipe, mas é claro que eu o informava sobre as escolhas: “Olha, é fulano de tal, com essas características”. Então a gente fez umas coisas muito impor-

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tantes ligadas à literatura ou não, por exemplo, na época do Patrus, foram criados o FIT3 e o FAN4 .

3 Festival Internacional de Teatro.4 Festival de Arte Negra.

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Na Miguilim, certa vez tive um período de férias ou coisa do tipo. Quando retornei, vi a lista de originais que haviam chegado. Encontrei um completamente descartado, de um au-tor muito importante. Logo percebi que era um absoluto pri-mor, uma obra-prima. Chamei o pessoal e perguntei por que o texto foi descartado, insistiram: “Mas Antonieta, olha o título do livro: A pontinha menorzinha do fim do cabo de uma colher-zinha de café. Isso é horrível!”. Perguntei-lhes: “Vocês leram o texto ou ficaram no título? Porque este texto é brilhantíssimo e o título é brilhantíssimo”. Alegaram que o texto devia ser terrí-vel e que os diminutivos demonstravam o preconceito de que a criança não fosse inteligente o suficiente para compreendê-lo.

Mas quando você pega o texto de Guimarães Rosa, o personagem Miguilim é todinho cheio de diminutivos absolu-tamente pertinentes. Então, essa coisa de colocar um dogma “Ah, isso não pode, isso pode” não existe! Manual de redação existe aí para fazer isso. “Não use que...”. Machado de Assis tem um capítulo de “quês”, em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Então, a grande questão da arte é que não existe nem nunca, nem sempre. Não há nada que sempre funcione e nem coisas que nunca funcionem. Temos que ver como aquilo está dentro do contexto narrativo. Claro que publicamos esse li-vro com ilustração de Ana Raquel, e ficou uma maravilha.

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Eu tinha criado o projeto da Biblioteca Infantil, onde começamos a fazer ramificações. Fizemos uma biblioteca no Morro do Papagaio e começamos a pensar em fazer uma coisa que começou com o Patrus e se consolidou com o Fernando Pi-mentel5. Consideramos as características da cultura brasileira de uma família que não lê, de adulto que não lê, de professor que não lê, de bibliotecário que não lê. A minha ideia foi que a Biblioteca deveria ser um centro cultural. Isto é, não podia ser aquela ideia restrita de biblioteca. Então, começamos a fazer centros culturais pela cidade que tinham como âncora uma biblioteca de cinco mil livros, dependendo do lugar, nunca me-nos de três mil livros. Então, mesmo na secretaria, e tendo a oportunidade, graças a Deus, de fazer coisas importantes nas outras áreas, de teatro e música, criamos um prêmio de piano maravilhoso. Um festival de arte negra com funk, que foi uma coisa extraordinária. E a leitura estava lá.

A Biblioteca Infantil foi muito inspirada numa experiên-cia francesa de uma biblioteca do subúrbio de Paris chamado Clamart. Lá é um subúrbio que eles chamam de Grande Paris. Clamart era um reduto, sobretudo, de imigrantes. E há uma organização, em torno de literatura infantil, na França, que se chama “Alegria pelos livros”, cuja mentora é uma bibliotecária,

5 Ex-prefeito de Belo Horizonte e atual governador de Minas Gerais.

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um dos nomes mais importantes da literatura infantil de todos os tempos. Eles têm uma revista maravilhosa sobre literatura infantil e fizeram essa biblioteca, absolutamente extraordiná-ria. É num centro pobre, todos os prédios são prédios baixi-nhos, como são na França. No máximo seis andares, às vezes, nem tanto.

Num espaço entre esses prédios que deve ter sido uma praça, fizeram uma biblioteca para criança que é divina. Para começar, ela é redonda, em oposição a tudo que vinha em volta. E as crianças fazem impressão de jornal e de livro. E as atividades de livro lá são em torno de literatura. Eles têm uma característica interessante. Na época de sol, as crianças vão para as praças, leem os livros e os levam para casa. E quando não dá para as crianças irem, os bibliotecários vão às casas delas.

A Biblioteca foi inspirada lá. Mas não é igual, porque é outro lugar, é outra gente, é outra língua, é outra história com a leitura e com a literatura. E, por isso, quando foi feita, a gente tinha, por exemplo, uma sessão de livros e vídeos ma-ravilhosos para crianças e jovens. Tinha uma Ludoteca, para criança pequenininha, maravilhosa, muitos brinquedos, mui-tas bonecas. A gente fez duas revistas: uma para criança, cha-mada Lerolero; e outra para adulto, a Releitura, que existe até hoje. Mas depois a Lerolero desapareceu, porque é muito difícil fazer revista para criança, mas foi uma experiência muito importante.

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Trouxemos muitos autores, fizemos muitos lançamentos e muitos concursos de contação de história. O Roberto Car-los Ramos, contador de histórias, foi cria de lá. Enfim, tem muita coisa boa para contar. Tínhamos um grupo muito ativo também, disposto a fazer as coisas, já tínhamos uma sucursal de Santa Rita, no Morro do Papagaio. Fazíamos atividades em praças e outros lugares, foi uma época em que a Biblioteca atuou demais na cidade.

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Fiz uma pesquisa e a publiquei Poesia na escola. Pude perceber que não havia nada de poesias para crianças no mer-cado. Os livros que publiquei foram muito bem recebidos, até porque não havia muita coisa sobre o tema. Lembro-me de que, em 1980 ou 1985, encontrei a Marisa Lajolo exatamente num seminário que eu coordenava dentro da Bienal do Livro, que era um seminário latino-americano de literatura infantil. Ela tinha acabado de fazer um livro, defendendo sua tese, so-bre poesia na escola, sobre a leitura de Coelho Neto e outros autores. Ela me dizia: “Menina, eu não conhecia o seu livro. Tudo sobre a minha pesquisa está lá. Que coisa! Se soubesse nem teria feito esta tese”. Disse a ela: “Mas que bom! Porque é mais uma tese, um pouco na mesma linha, chegando às mes-mas conclusões. Isso é muito importante. Imagina se tivesse chegado à conclusão oposta? O que é possível!”. Nesse senti-do, acho que meus livros foram, de certa maneira, pioneiros, e foram muito bem recebidos.

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O mercado editorial hoje é muito, muito diferente. Acho que ele é diferente para o bem, quer dizer, ele tem muitas vantagens, mas ele está se pautando pelo grande comprador de livros no Brasil, que é o poder público, ele é o grande. Entretanto, o poder público, que nem sempre conhece de li-teratura, vai dando as cartas, muitas vezes de uma maneira que considero equivocada. E escrevo isso para os ministros com muita clareza. Houve uma época, na década de 1990, princípio de 2000, que havia uma clara posição que era a seguinte: o governo vai comprar o livro, você faz o livro. Para o comércio, você faria um livro melhor. Não sou adepta dis-so, algumas coisas são muito claras para mim e uma delas é essa. Não tenho que fazer um livro diferente para o comércio e outro para o governo. Se precisar fazer isso, alguma coisa está claramente errada. Hoje, o que acontece é o inverso: você faz um livro muito chique para o governo, e não para o mercado comum.

Há uma posição, que me parece equivocada, de uma va-lorização absurda da parte física do livro. Tenho vários textos, em vários lugares falando sobre isso. Acho que cada vez a gen-te tende a valorizar o externo, a literatura vai ficando de lado. Agora mesmo minha filha estava fazendo uma tradução para um livro, e a história era quase igual a zero. Perguntei a ela: “Minha filha, que história é essa?”. “Ah mãe, mas a autora me

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falou que quando o livro abre, sai um trem daqui, sai outro de lá”. Então, não acho que o livro brinquedo não tenha lugar. Acho que há um exagero nessas questões físicas do livro, em detrimento do texto, da literatura, isso é claríssimo. Acho que os avaliadores são treinados para verificar se o livro tem capa dura, se é papel couchê, se esse tem grampo. Se tiver grampo então o projeto gráfico não é bom, mas o avaliador acabou de dizer que as imagens são lindas, que a diagramação é perfeita, mas o projeto, pelo exterior, é ruim. O que então o avaliador entende por projeto gráfico? É ter ou não grampo, é ter ou não orelha? Isso empobrece o livro?

Na análise do texto, a conversa é outra, porque frequen-temente nós temos uma avaliação completamente equivocada do texto, ou até mesmo nem é feita a avaliação. É assim, e todas as editoras seguem essa mesma linha. Não digo que não é possível fazer um ótimo texto com capa dura e tal, mas não é a maioria. Temos o externo muito agradável, então isso bas-ta! Acho isso um problema editorial grave, porque o governo define os modelos e as editoras seguem esse padrão, ainda que o texto não seja grande coisa, ou que tenha um penduricalho que agrade. O texto em si não tem importância. Essa não é mi-nha posição. Temos que ter muita clareza ao escolher um livro, um projeto editorial, pelo menos para mim sempre foi assim, tanto na Miguilim, como na Dimensão. Esse inclusive foi um ponto fundamental da minha saída da Miguilim, quando fui para a Secretaria de Cultura.

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Ainda ligam para mim e perguntam: “Vou mandar um livro para vocês, quanto vão me cobrar para fazer o livro?” Es-clarecemos: “Você não vai pagar! Somos nós que vamos pagar, se o livro for bom, se estiver dentro dos critérios e necessida-des da editora, seu livro será contratado e nós vamos pagar a você.” Sabemos que nem sempre é assim pela vida afora, em outras editoras, depende do que as pessoas pensam. A função do editor é descobrir talentos, descobrir bons livros, pagar por eles e receber também. O que está acontecendo no mercado é que você vê gente que nunca entendeu de literatura, que nunca viu um livro de literatura e que começa a publicar para o governo. Mas não é uma empresa com catálogo, com uma política, com a clareza do que deve ser o livro, e do que o livro deve ser na vida das pessoas. E não é exatamente o que penso, por isso, tenho esses cabelos brancos.

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Existe o dono de editora e o editor. Às vezes eles são a mesma coisa, com relação ao interesse. Já fiz isso na Migui-lim, hoje não, sou só editora e não dona de empresa. Reafirmo que a gente tem uma obrigação cultural, social, educacional, de escolher títulos, de escolher a melhor forma de um autor entrar no mercado, de uma forma mais digna, com a melhor ilustração, o melhor projeto gráfico, e acho que o ponto fun-damental e iluminador da obra tem que ser o texto. Se o texto vale, vamos ver o que fazer com ele. O texto não aparece lim-pinho, certinho, essa é uma função importantíssima do editor, direcionar o texto. Há um ano mais ou menos, recebi um ori-ginal cheio de problemas, inclusive de português, mas para mim estava claro que ali poderia surgir um livro maravilhoso. E a autora me escreve com um pseudônimo e não me manda nenhuma identificação. Foi uma luta para encontrá-la. O livro é um primor, a menina é um primor. Ela já está inclusive come-çando a editar por outras editoras, o que acho uma maravilha, não ter exclusividade nenhuma.

Discutir o texto é uma obrigação do editor, assim como discutir ilustração. Às vezes, o ilustrador não pega do livro o melhor da história, ele não tem essa obrigação. Às vezes, nem o autor sabe o que de melhor tem a história dele. O analista é que tem essa função. Sempre quando trago um autor ou ilus-trador para a editora, converso com eles no sentido de mostrar

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a maneira de trabalhar da empresa, empre para ter o melhor resultado para o livro, para o leitor. Isso envolve conversa, su-gestão, assim a última palavra é a do autor, é do ilustrador, mas nós vamos discutir sempre, e sempre em favor do leitor. Porque o livro ficando do melhor jeito que pode ser, o autor, a editora, o ilustrador, todo mundo ganha, o leitor é benefi-ciado, e é isso que interessa. E eles normalmente aceitam as sugestões. Lembro-me de que o Orígenes Lessa, que foi um segundo pai para mim, mandava os originais pedindo opinião. Ele falava: “Antonieta, lê aqui, estou achando isso esquisito.” E eu falava: “É, Orígenes, está esquisito mesmo!” Ou não. “Orí-genes, está lindo!” Não é chegar um livro maravilhoso, aí você pega um ilustrador maravilhoso e tudo está resolvido. Isso é muito raro, acontece, mas é raro. Primeiro é rever o português, o leitor tem que ter o melhor, o texto mais bem escrito. Bem escrito não quer dizer que a linguagem é culta, pode ser lin-guagem popular com as características da linguagem popular, em função da personagem, do contexto e tudo, o importante é o texto ficar bem acabadinho, bem redondinho.

Acho que é essa a posição do editor, fazer o melhor livro. O leitor merece o melhor livro, a melhor história, o melhor po-ema. Não obrigatoriamente a melhor orelha, mas, enfim, isso não vem pronto, não vem pronto mesmo. Os autores normal-mente aceitam as sugestões e ficam absolutamente encantados com tudo isso, e é uma maravilha, final feliz!

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Certa feita, a Miguilim ia publicar o texto vencedor de um concurso do Instituto Nacional do Livro. O INL na época tinha um concurso que era assim: ele escolhia o texto e depois abria um concurso de ilustração. Ganhou o texto da Mirna Pinsky, que é uma das maiores autoras de literatura infantojuvenil do Brasil, talvez do mundo, ela é absolutamente extraordinária.

No texto dela, que eram três contos maravilhosos, ela es-crevia, por exemplo, “Ilustrador: menina sentada na cadeira”. E como o próprio INL permitiu que esses três contos fossem desmembrados, fizemos dois deles. Especialmente o primeiro, chamado “Pequenininha”, foi feito um concurso e ganhou uma menina chamada Denise Fraifeld, uma carioca. Mas a Mirna não aceitava a ilustração da menina.

Quando recebi as ilustrações da menina, percebi que ela pegou exatamente o que a bendita Mirna pôs lá entre parên-teses como sugestão e fez a ilustração. Era de fato horrorosa, era um pavor, mas, quando peguei aquelas ilustrações, a pri-meira coisa que fiz foi ligar para Mirna e falar: “Mirna! Você, autora do texto, não tem nada que querer fazer a leitura do ilustrador”. Disse a ela que aquilo era um absurdo, “O seu tex-to é absolutamente democrático, o tempo todo fala em outras possibilidades de evasão, e você me faz uma coisa dessas?” Ela falou: “Eu faço isso sempre”. Aí eu falei: “Comigo não, você não vai fazer isso não.”

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Na ilustração, vi que a menina tinha um traço maravi-lhoso, ela não tinha era combinado o traço com a história, mas falei: “Escute, quero te propor uma coisa, vou chamar essa ilustradora, que é do Rio de Janeiro, a Belo Horizonte, vou estudar a história com a Denise, vou propor que ela esqueça isso que ela fez, e que faça outra ilustração, vamos ver se dará certo. E aí você vai resolver se dá ou não dá para publicar, porque a menina ganhou o concurso e é orientada por você.”

A menina veio e nós ficamos aqui dois dias conversando sobre o livro, que é uma história maravilhosa. Depois disso, a Denise fez uma leitura da história no desenho e criou uma ilustração absolutamente maravilhosa, o livro ganhou prêmios inclusive. Não tinha a ver com o que ela tinha apresentado lá, tanto que eu tive que ir ao INL explicar: “Olha, é a mesma autora, a mesma ilustradora, mas não é o mesmo desenho”.

Bom, quando a Mirna viu as ilustrações, ela fez uma car-ta para mim e para a Denise, para chorar de maravilha. Ela falou: “Meu Deus, mas é isso, que maravilha, que coisa fantás-tica!” Então a menina ia ter um trauma para o resto da vida, ia parar de ilustrar, a Mirna ia ficar lá, dona da cocada preta e eu ia perder o trabalho, ou seja, isso não pode ser assim.

Eu tenho outros casos assim incríveis, como o caso de uma moça que foi ilustrar um livro cuja personagem era um meni-no adolescente, quase as vésperas de se casar, e ela fez o livro todo da perspectiva feminina, todo cor de rosinha. Você lia o livro, e ele tinha uma masculinidade no texto e a ilustração

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era absolutamente capenga. A menina teve a humildade de refazer da primeira à última página de ilustração e o livro fi-cou absolutamente encantador. Como é muito novo, pode es-tar sujeito a prêmios, a chuvas e trovoadas. Não importa, o que importa é que o autor adorou, ela adorou ter feito as coisas, a editora ficou muito feliz. O autor esteve aqui esses dias, visitou escolas com muito sucesso, e pronto.

Então não é assim, “o texto é intocável, a ilustração é intocável”, o que você não pode fazer é o que os editores fa-zem, mudam por conta própria, isso não pode. Nós fazemos qualquer coisa, sempre em diálogo absoluto. Fazemos esse tra-balho e é sempre isso, para o bem do livro, pelo menos de uma perspectiva; é claro que em outra editora, para o bem do livro, ele vai ser outro. Mas o que acho que você tem que ter em primeiro lugar: saber minimamente do que você está falando, ter uma experiência que ajude a argumentar e fazer com, ab-solutamente, boa-fé e clareza.

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Implantar política no Brasil é muito difícil, numa empre-sa é mais fácil, porque empresa também tem política, claro, podem ser as melhores ou não. Toda política pública é difícil em qualquer lugar do mundo, o Barack Obama não conseguiu resolver os problemas dos imigrantes que ele está louco para resolver e não consegue, e o plano de saúde dele foi aquele “trem” para conseguir. O pobre está sofrendo lá demais, então é muito difícil mesmo. Agora o importante é que as pessoas que estejam nesses postos-chaves tenham condição de dialo-gar e tenham absoluta convicção do que estão fazendo, e essa convicção é fundamental. Como às vezes os critérios não são do conhecimento da área, o envolvimento real com aquela ati-vidade às vezes sai muito atrapalhado e a gente tem essa coisa de preencher cargos por critérios.

No PNLL, eu falava sempre isso: “Olha, luto pelo bem comum que se chama leitura, não serve compadre, não ser-ve correligionário, não serve parente, nada disso, os critérios têm que ser outros, pelo bem comum”. Se não forem esses critérios, mas os do correligionário que balançou bandeirinha e tem que vir para o meu escritório, do parente, os critérios de amizade, se for isso, desiste, desiste mesmo. Então, você tem que por gente que conhece, pode até não ter as mesmas ideias suas, isso é outro caso, aliás, frequentemente tenho ao meu lado gente que não pensa igualzinho a mim, e isso é ótimo. A

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menina que trabalha comigo torce pelo Flamengo, tem ideias políticas em alguns casos diferentes das minhas, e nem sempre a gente tem as mesmas opiniões sobre textos, isso é muito im-portante porque você testa as suas coisas.

Uma das coisas mais difíceis que tem é o título do li-vro, vocês não imaginam a dificuldade que é, e muitas vezes o autor não sabe o título. Existem autores maravilhosos expe-rientes em por títulos, e eu falo isso com muita tranquilidade, porque eu tenho um filho que é maravilhoso em colocar título. Os livros dele têm títulos incríveis e isso não é comum. Por exemplo, no livro do Luiz Pimentel, o título era: Clarinha está grávida. O mais engraçado é que o título não conta o livro, mas conta. Então vem aquele autor e faz uma lista de títulos. E um dos capítulos se chamava “Primeiro de abril”, até que a Silvana falou: “Por que não põe Primeiro de abril?” Ficou um livro lin-do, o Primeiro de abril. Está fazendo sucesso. Então você tem que ter perto de você gente que goste de literatura, que tenha princípio, que consiga avaliar um texto, não igual a você, mas que saiba avaliar, que tenha coisas a dizer, como é o caso dessa flamenguista. Enfim, que tenha essa participação, ela não é uma assistente de fazer e-mail, e-mail eu faço.

No caso do MinC6, a coisa era mais complicada, porque acima de mim estava o presidente. Então eu não tinha autono-mia para fazer tudo. Ele é uma pessoa inteiramente ligada ao

6 Ministério da Cultura do Brasil.

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livro, está até fazendo o projeto “Árvore de livros”, mas as for-mas de administrar questões são muito diferentes. E, quando ele foi demitido sumariamente pela Marta Suplicy, nós estáva-mos na véspera de um grande evento. Eu estava em Bolonha representando a Biblioteca Nacional. De repente, comecei a receber mensagens sobre isso, pedindo que eu falasse coisas ao Galeno Amorim7. E a gente tinha um evento caríssimo, impor-tantíssimo, todo mundo com passagem, hospedagem, hotel, com o prêmio garantido, tudo pronto! E uma semana antes a ministra o demitiu e bloqueou esse evento, em que mais de 50 pessoas de todo o Brasil se deslocariam para Brasília. Demis-são sumária. E eu em Bolonha.

Não consegui falar com o Galeno, apenas com o chefe de gabinete dele e por isso lhe enviei um e-mail: “Galeno, me espere segunda-feira (coincidentemente primeiro de abril) no Rio de Janeiro, que levarei a minha carta de demissão. As coi-sas não podem ser assim. Você não bloqueia um evento de mais de um milhão e meio de reais porque alguém foi demitido. O evento não é de uma pessoa, é de uma instituição, ou melhor, de várias instituições. Eu não aceito uma demissão assim. Eu entrei com você, eu saio com você em sinal de protesto.”

No governo federal, as coisas são mais complicadas, porque envolvem personalidades de pessoas que são muito

7 Ex-presidente da Biblioteca Nacional, atual diretor do Observatório do Livro e da Leitura.

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diferentes. Então eu não me senti à vontade, porque sou as-sim, falo sempre tudo o que penso, com toda honestidade. É a melhor maneira de levar a sua vida. Porém, é muito mais difí-cil. Fui secretária duas vezes, criei a biblioteca com a Berenice, organizei o programa Cantinhos de Leitura e a estruturação de bibliotecas. Eu tinha autonomia, sempre dando satisfação aos superiores, para defender as posições e defender uma lógica de atuação, que no governo federal é muito mais difícil, infe-lizmente. Por isso recorria muito às cartas.

Um ministro que eu adorava era Cristóvão Buarque, que pôde fazer pouca coisa. Na semana em que ele foi demitido, havia me pedido para fazer um trabalho sobre os programas de leitura do MEC, e eu saí com ele, como é do meu costume. Não é que você não possa fazer nada, mas você acaba deixan-do pessoas que têm uma forma de atuar parecida com a sua. Aqui na Prefeitura, e nos outros projetos que fiz no Estado, as dificuldades foram mínimas. Para ser sincera, não me lembro de dificuldade maior.

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Entrei na Dimensão há 10 anos e tenho tentado criar uma boa orientação. Todos sempre sabem o que eu penso, não tenho nada escondido. Então me chamaram, e fizemos e temos feito coisas muito boas. Em primeiro lugar, com o texto. Pode ser que haja dificuldades aqui e ali, mas isso aí não é o caso. Há uma lógica que temos conseguido manter. A vida editorial é muito difícil, o momento editorial brasileiro, com tantos mi-lhões de livros publicados, é um momento difícil, as pequenas editoras sempre pagam o pato e têm as suas dificuldades. Mas, na Dimensão, e isso é louvável, há esta sustentação de uma política, que a gente não sabe até quando vai, afinal amanhã é outro dia. Mas acredito que, para vingar, tem que ser assim. Se você acredita em autoajuda, por exemplo, é isso! É uma questão de escolha! E existe leitor para tudo. Outra coisa em que eu acredito é que a grande obra acaba encontrando seu caminho. Então não me preocupam coisas do tipo: “Ah, mas hoje ele não foi escolhido pelo PNBE”. Ele vai encontrar o seu caminho! A pérola não fica ali toda a vida escondida. As pessoas a descobrem.

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Eu não sou literata e reconheço isso. Para mim não é nenhuma frustração. Acho que eu, em textos teóricos de ou-tro tipo, em que tenho que convencer, sou até razoável. Texto literário não é comigo. A minha função é reconhecer o texto li-terário, não é fazer o texto literário. Cada um tem uma função na vida, e eu tenho muita tranquilidade nisso.

Já o Leo começou a ler muito cedo. Com quatro anos e meio ele nos acordava, porque era ele quem recebia o jornal da casa, lia e ficava nos cutucando, porque tinha lido as man-chetes. Um horror! Acho que por isso durmo tão pouco até hoje. Pensando bem, não é por isso. Ele começou a ler muito cedo e sempre teve acesso a minha biblioteca particular de mais de 30 mil livros, o que é bastante razoável. E ele esca-rafunchava como queria. E, em nossa casa, ele recebeu, con-versou, tomou café, almoçou, conversou depois do jantar com Joel Rufino, Ana Maria, Ruth Rocha, enfim, com os grandes nomes da literatura infantil. Sylvia Orthof é a madrinha dele. Ele contaria melhor que eu, mas já pregou peças encantadoras na Sylvia. Eles conversavam como se fossem da mesma idade. O Leo com 20, talvez nem isso, e ela com 60. Muito engraçado isso. Então o Leo via a família tropeçar em livros. Não tem canto da minha casa que não tenha livro. Conheceu a nata da literatura brasileira. Tudo isso, somado ao talento que eu acho que ele tem, tornou tudo muito favorável. Com 23 anos ele já

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era premiado como autor revelação e no ano seguinte ganhou João-de-Barro8. Importante dizer que ele nunca se candidatou a algo onde eu esteja trabalhando. Quando falo: “Meu filho, olha, eu vou aceitar o convite do Pimentel”, ele diz “Ah, já sei o tempo que eu não posso concorrer”. Retruco: “É, não pode”. Ele sabe, mas ele já está acostumado com isso. Então acho que ele teve, digamos, um terreno muito favorável. E não posso, como analista de textos, dizer que ele não tenha grandes qua-lidades como autor. Seja na poesia, seja na crônica, seja na narrativa. Ele realmente tem talento.

8 Concurso Nacional de Literatura Prêmio João-de-Barro, da Prefeitura de Belo Horizonte.

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Leo Cunha e Antonieta.

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Participei, nos últimos anos, de várias palestras e várias mesas-redondas sobre o livro digital, e o que eu vi o tempo todo é, sobretudo, o livro passar daqui para lá. Não há um livro criado para o meio digital. Isso mostra que, principalmente na literatura infantil, que tem muitas imagens, isso é muito mais difícil, e vai demorar muito mais. Levar o livro para o computador é fácil. Eu mesma tenho vários originais no meu computador.

Quando me mandam os originais on-line, peço à Silvana para imprimi-los, porque não me interessa ler nesta platafor-ma. Por isso, acho que existe muito campo para o livro impres-so ainda. Muito mesmo. Ainda mais no livro infantil ou livros de arte. Particularmente, não digo que seja analfabeta digital, porque, por dever do ofício, trabalho com computador, recebo, sobretudo, e-mails. Apesar da “Árvore de livros” do Galeno, por exemplo, acho que demora muito, pois livros ainda não são objetos ultrapassados. É uma relação diferente: Googlar não é a mesma coisa de ir a uma grande e boa biblioteca ou livraria. Para mim, livraria não é para se ir e comprar o que se quer, mas é para andar e descobrir coisas, basicamente.

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Este livro foi composto em tipologias Charter BT e Mind Blue e impresso em papel Pólen 90g/m2 (miolo) e papel Cartão 250g/m2 (capa), no inverno de dois mil e quinze.

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