António Arnaut - Ossos do Ofício

download António Arnaut - Ossos do Ofício

If you can't read please download the document

Transcript of António Arnaut - Ossos do Ofício

Ossos do Ofcio antnio arnaut DO AUTOR: POESIA Versos da Mocidade, 1954 Ptria, Memria Antiga, 1986 Miniaturais / Outros Sinais, 1987 FICO Rude Tempo, Rude Gente, contos, 1985 A Viagem, Contos do Absurdo, 1988 Ossos do Oficio, 1990 ENSAIOS / DIVERSOS Servio Nacional de Sade - Uma Aposta no Futuro, 1978 A Condio Portuguesa no Dirio de Miguel Torga, 1984 Onze Anos depois de Abril - Reflexo Poltica, 1985 Para uma Viso Diacrtica do Romance de Miguel Torga, 1985 O Dia do Encontro - No 4 aniversrio da Declarao Universal dos Direitos do Homem, 198 9 Prototipos Torguianos, 1990 A PUBLICAR Por este caminho, poesia As noites afluentes, poesia e prosa Como um rio de sombras, romance ANTNIO ARNAUT / ossos DO OFICIO FORA DO TEXTO Coimbra . OSSOS DO OFICIO Autor: Antnio Arnaut Capa: Estdios Fora do Texto com base num leo original do pintor Jos Daniel Abrunhei ro Fora do Texto - Cooperativa Editorial de Coimbra, C.R.L. Rua D. Afonso Castelo B ranco, 8 cave esq., 3000 Coimbra Telefone (039) 26793 - Apartado 241, 3003 Coimb ra Codex @ Fora do Texto 1990 "... para proclamar o direito no pas, para destruir o malvado e o perverso, para impedir que o forte oprima o fraco ... para assegurar o bem-estar do povo e faz er justia ao oprimido..." Cdigo de Hammurabi (Sc. XVIII a.C.) "... Havia de escrever um livro sobre as suas vivncias profissionais. Um livro qu e descarnasse os duros ossos do ofcio e fosse, por isso mesmo, no o anedotrio da vi da forense, ou a sua crnica, mas uma alegoria, como um fundo suspiro o da confisso apenas ciciada. S o advogado conhece, verdadeiramente, o longo e tormentoso Rio Meandro da Justia, porque s ele tem acesso aos escaninhos ocultos onde fervem os dramas, paixes ente da lide a nte. A verdade e nenhum deles a translcida,e sentimentos dos seus figurantes. Por vezes, mesmo o nico interveni tocar a verdade e a saber que ela lhe pode fugir qual pssaro migra uma virgem ausente, vestida com sete mantos de cores diferentes, a desnuda, porque sob a ltima veste, a mais ntima, h ainda uma poalh uma tortura de nvoa, que como um vento esquecido e cmplice... "Palcio da Justia O Palcio da Justia no era apenas o mastodonte de ranceria, os telhados humildes da urbe. Era tambm, em parte integrante, a figura imponente do porteiro a azul, sempre de planto no trio, e o maltrapilho pos sob a colunata. pedra, a olhar, do alto da sua sob e sobretudo, como se dele foss Gustavo, na sua vistosa fard do ano Canada a arrastar os farraQuando me deslocava comarca, eram aqueles dois que primeiro me davam as alvssaras do acolhimento. O latago do porteiro cumprimentava-me com uma vnia, enquanto o ho mnculo vinha sacolejando a enorme calva at distncia de me esportular a moeda da pra xe e de me farejar os tornozelos. Vtima da exploso duma fabriqueta pirotcnica, que lhe agravou a pequenez, levando-lhe os ps, parecia um rptil gigante, com os cotos envolvidos em trapos, a rastejar a viscosidade balofa sobre os ladrilhos. Exibia a carcaa caridade pblica, a recender a vinho, o rosto encarquilhado, uma sacola s uspensa do pescoo, a exalar um cheiro repugnante a sarro e misria. Naufragado nos 9 escolhos da vida, sem famlia nem amigos, aportara ao Palcio da Justia depois de o terem enxotado da Cmara, e ali esmolava a subsistncia, apesar do dio fumegante do porteiro, que o tratava como a co tinhoso. - doutor, d-me cinco escudos para uma canada - rogava ele, na sua inconfundvel voz de cana rachada. S pedia para a bebida. Parecia que o seu corpo barbaramente mutilado, o ventre en tumescido como um odre, o peito arcabuzado pelo esforo permanente da locomoo, se ba stava com uns litros dirios de vinho. Aquela frmula impetrante que o crismara, era simplesmente o Canada, ningum sabia j a sua graa, mas todos os frequentadores do P alcio o associavam recordao das suas andanas forenses. Muitos descarregavam nele os insucessos, respondendo com improprios ao seu assdio, mas outros utilizavam-no par a recados a testemunhas retardatrias, gratificando-o generosamente com uma nota d e vinte, que enfiavam na garganta sequiosa do saquitu. O Canada compunha as borra chas que lhe guarneciam as mos, para se proteger do saibro, e deslizava ento para a adega do Gato Preto, logo ali a um passo de cobra, que, ao menos nisso, a prov idncia caprichara, e l afogava a sorte madrasta com tantas canadas quantas os rdito s permitiam. Alguns maldizentes asseguravam que o adegueiro tinha trato sucessivo com o pigmeu, garantindo-lhe albergaria, caldo e vinho a troco das esprtulas, e que assim o explorava desalmadamente, mas eu creio que o negcio no era rendoso por causa do defeso 10 judicial, em que o saco ficava esquecido no cubculo esconso ao lado das latrinas, onde o Canada espreitava a noite sonolenta pelos interstcios sempre acordados da telha v. Diferente, direi mesmo, completamente oposto, na sua pose marcial, era o Gustavo . Antigo fuzileiro, fizera o priplo de frica a bordo da Sagres e pisava a terra co m a desenvoltura com que pisara o convs de todos os oceanos. Amadurecido nos sola vancos de ventos e mars, lograra aquele cobiado lugar por influncia, diziam, do pre sidente da Cmara, cacique local, a quem servia depois de cumprido o horrio do seu mister. Essa dependncia criara-lhe a suspeita de ser tambm informador da PIDE, sob retudo a partir do dia em que um advogado da comarca, o doutor Navarro, foi pres o por dois agentes da secreta. O incidente causou justificada indignao no meio, po rque aquele causdico era geralmente considerado um homem bom, verdadeiro advogado dos pobres, pois patrocinava gratuitamente todas as pessoas que no tinham para mandar cantar um cego, quanto mais um profissional togado. A indignao subiu as esca das do Palcio da Justia e chegou secretaria, tendo o escriv o tomado a iniciativa d e um abaixo-assinado, aberto subscrio de funcionrios e advogados. Foi ento que as su speitas se confirmaram. Tirante o notrio, que era vice-presidente da Cmara, o port eiro foi o nico funcionrio do edifcio a recusar inscrever o seu nome na folha de pa pel selado, com a desculpa, ento cannica, de que no se metia em polticas... Ora, como ia contando, o Gustavo assumia a 11 importncia do cargo como se fosse, e, de certo modo, era, o dono e senhor do Palci o. Postado invariavelmente no vasto trio, ao lado do mural que assinalava a conce sso do foral ao municpio, com as chaves de todas as portas a emprenhar-lhe de impo rtncia o bolso das calas, lanava um olhar displicente aos vulgares utentes da casa, formigueiro annimo que ali vinha ultimar velhas contas, fazer e desfazer partilh as, saciar dios, reclamar justia ou, simplesmente, tirar uma certido. Cumprimentava , porm, cerimoniosamente, os magistrados, e com uma vnia mais esbatida, por causa do abuso do papel qumico de tanta momice, os funcionrios e advogados. Dizia-se que o contacto permanente com a mquina da justia e os profissionais do foro lhe criar a uma espcie de obsesso jurdica, neurose recalcitrante que, por vezes, o mergulhava num estado de grande frustrao e, outras vezes, lhe emprestava um mimetismo dessor ado, os tiques e as expresses da barra a borbotarem das mos nervosas, o beio carnud o a delamber-se com a inocncia dos campnios, e era nessas ocasies, a dar conselhos ou a vaticinar sentenas, que o porteiro assumia aquela altivez emprestada que era a verdadeira marca do seu carcter. Foi por lhe conhecer o fraco que um juiz hertico o nomeou, certo dia, defensor of icioso de um cigano, detido em flagrante conto do vigrio, segundo rezava a partic ipao da GNR. Sentado na bancada dos advogados, com um inciso rubor a cortar-lhe o rosto redondo, as mos desasadas a acentuarem a revelia da fala, o homem contorcia -se num misto de pedantismo e acanhamento. Espectculo memorvel, ainda hoje faz par te 12 dos anais jocosos da comarca. No assisti cena, mas imagino o Gustavo a estender o brao apelativo na direco do meretssimo, e a declamar a frase que o doutor Simes, sem pre disponvel para todas as faccias, lhe havia esconjurado: - Senhor doutor juiz, concluo e determino que o ru est insano de culpa e deve ser absolvido! Justia, senhor doutor juiz! O magistrado reteve a gargalhada que lhe insuflava a boca, alisou a cabeleira e suspendeu a audincia para retomar o flego. Voltou prestes sala para ler a sentena, j liberto do colete de foras com que se precatara, a fim de manter a compostura, e ornado dum sorriso matreiro. Ningum imaginava aquele desfecho. O cigano foi abso lvido por falta de provas, com incontido gudio da tribo e uma despeitada surpresa dos funcionrios e do advogado que lhe arengara o sermo. Este sucesso envaideceu o Gustavo e fez subir a sua cotao. Se at ali j era abordado para aqueles biscates que so, nas comarcas de provncia, o manancial dos procurador es improvisados, os tais advogados de lareira, como diz o povo, passou agora a s er solicitado para mais altos voos. A breve ensejo j elaborava queixas criminais e relaes de bens, tudo numa caligrafia redonda e correntia, que no precisava de lev ar carimbo para ser logo identificada. Quando, porm, as coisas estavam a atingir o patamar do escndalo, chamou-o o juiz sua respeitvel presena, parece que soprado p elo doutor Meirinho, e advertiu-o de que podia cair nas malhas da lei se continu asse a fazer procuradoria ile13 gal. Desculpou-se o Gustavo com grande desassombro e dignidade, confessando os f actos mas alegando em sua defesa que apenas desejava ser prestvel pobre gente, vi sto no cobrar um cntimo pelos seus servios. E era verdade. Creio que ele praticava aqueles actos, mais por vaidade do que por interesse. No recebia dinheiro, emborano recusasse o azeite, os salpices, os queijos e outros mimos da lavra domstica do s seus assistidos. Dissesse, pois, ele, senhor doutor juiz, se devia recusar os seus prstimos gente humilde que o procurava, tratando-se, para mais, de miudezas forenses que os prprios advogados no costumavam praticar, e sendo certo que, na co marca, no havia solicitador provisionrio ou ajuramentado. O juiz sopesou a questo com o seu arguto olho jurdico, que era, nele, o direito, p orque quando tinha de tomar decises importantes fechava sempre o esquerdo, assim vendo, simultaneamente, para dentro e para fora, o esquerdo a ler a conscincia, e o direito a avaliar o corpo de delito. Amparou o queixo na mo em espalda, alongo u o indicador para tactear o nariz, que, nisto de sentenas, o faro tambm decide, e proferiu o seguinte despacho verbal: - Em face do exposto, no vejo razo para o proibir de fazer esses favores. Mas tenh a cuidado, no abuse. Se me chega alguma queixa formal, tenho de actuar. A lei a l ei... O Gustavo saiu do gabinete com a conscincia limpa por deciso transitada em julgado . Ia ser mais comedido no futuro e, por cautela, pediria s pessoas que no lhe trou xessem as ofertas para o tribunal. 14 Estava mesmo convencido de que a inveja nascera, porque viam aqueles primores a romper das sacolas depositadas no trio. At o desgraado do Canada olhava as oferenda s com a voracidade babosa da sua fome atvica. Algumas vezes o surpreendera a roub ar chourios ou a chupar os garrafes de vinho. E era sempre a mesma cena picaresca a pintar de inslito a austera Casa da Justia: o ano a arrastar-se para debaixo da s ecretria e o grandalho a despir a farda da compostura e a dar pontaps cegos naquele corpo rendido. - Seu co, seu grande co tinhoso, ainda hei-de esfolar-te vivo!... O Juiz no voltou a incomodar o porteiro e at o desculpava perante os despeitados o u invejosos. Era um homem bondoso, compassivo, mas ignorava a urdidura que o fun cionrio fora tecendo. E como o que no est nos autos no est no mundo, l o ia cobrindo c om a sua bondade. que as aventuras amorosas do Gustavo eram, ento, um segredo to b em guardado como a frmula do cofre gigante do Conservador, que s o prprio conhecia. Quando tinha de abrir aquele ssamo, virava ostensivamente as costas, alargava a barreira do arcaboio e manipulava agilmente os quatro botes da velha pea, at que os encaixes das letras soletrassem o mistrio da fechadura. Comprazia-se na operao, poi s julgava-se o nico decifrador da sigla, no imaginando que os subordinados tinham, ao longo dos anos, adestrado a audio aos estalidos indiscretos das letras, e desv endado o cdigo secreto. So assim os segredos: papis ntimos guardados em escaninhos d e que outros tm a chave... 15 O segredo do Gustavo eram as suas conquistas, especialmente das jovens vivas que, por causa do inventrio obrigatrio, vinham pedir-lhe conselho e recorrer aos seus desinteressados prstimos. Cedo compreendeu o porteiro que, ao f im de meio ano de ausncias, o luto atenuado pelo renovar da vida e pela fraqueza da carne, aquelas inconsolveis mulheres precisavam de ser consoladas. Se uma ou o utra ainda oferecia um esboo de resistncia, produto de uma cultura ancestral mais pressentida do que assumida, a maior parte rendia-se aos seus modos citadinos, s ua voz envolvente e, sobretudo, quentura suave do seu olhar, onde lhes apetecia abandonar-se como numa desfolhada de Setembro. O lugar da conquista era o arquivo, espcie de coutada de que s o porteiro e o chef e de secretaria tinham a chave. Quando a eleita despontava na esquina do Gato Pr eto, os passos indecisos e o olhar tmido de quem vem pela primeira vez ao tribuna l, e sabe da justia apenas o que a tradio oral foi acumulando ao longo de geraes fust igadas pela lei, logo o Gustavo engatilhava o seu sorriso cativante e preparava as palavras da abordagem. O pouso estratgico de que dispunha permitia-lhe insinuar-se sem ser atrevido, e cair nas boas graas sem ser notado. Primeiro cumprimenta va a eleita, e depois deixava cair uma expresso de condolncias pela morte prematur a do de cujus, por vezes, at, um lamento judicativo sobre o destino que lhe arrancara o companheiro. Seguia-se um silncio conivente, um espao neutro mas solicitante, e era ento, se o terreno se mos trava propcio, que ele 16 lanava a semente: - Se a puder ajudar, j sabe, estou inteiramente ao seu dispor. - Compunha o sorri so e ajuntava - Isto, claro, sem qualquer interesse... A mulher dava mentalmente graas a Deus por aquela solicitude que lhe acendia uma luz no labirinto da justia. Entrar num tribunal com uma intimao no bolso, ainda , pa ra muita gente, uma aventura ou um salto no escuro. Havia, porm, um obstculo que o porteiro tinha de tornear para conduzir a gua ao seu moinho: era o Canada. Sempre no trio, a farejar esmolas e novidades, tambm a ele lhe luziam os olhos e a careca quando um rabo de saia tremulava no vazio do seu quotidiano. Ficava de orelhas atiladas a sorver as palavras, narinas distendidas a saborear todos os odores, e era ento necessrio inventar uma desculpa para o afa star dali. Mas o Gustavo tinha artes e manhas adestradas, como todo o conquistad or. E arranjava sempre maneira de ficar sozinho com a presa e de a levar ao arqu ivo com o pretexto de que l estavam mais vontade para conversar, ou fazer a relao d e bens. O arquivo era na cave. Entrava-se por uma porta discreta, desciam uns degraus e podia-se ento disfrutar um sossego ardoroso e cmplice entre as prateleiras atafulh adas de processos antigos, que cheiravam a demandas mortas, como o lodo de pntano s exaustos. Na cave ficava tambm uma cela que servia para as emergncias da priso pr eventiva, enquanto os detidos no eram transferidos para a cadeia regional. Circun stncia fortuita, mas feliz, porquanto estava dotada 17 de uma cama que, nas urgncias do porteiro, cumpria outro destino, porventura mais adequado evaso dos corpos e das almas. Ora, uma certa tarde, montona e longa como so, em regra, as tardes judiciais, entr ou no Palcio uma dessas jovens vivas a quem o Gustavo j lanara as redes da seduo e apr azara para fazer a relao de bens. Trazia ainda o luto estampado no rosto, mais do que nas vestes normativas, mas os seus olhos negros eram duas fogueiras a crepit ar de vida. O porteiro acolheu-a familiarmente e, vendo o campo livre, pois o Canada tinha desaparecido, encaminhou-a para o local propcio. A mulher deixou-se conduzir sem qualquer rubor de desconfiana a tolher-lhe os passos na penumbra. A mo dele guiava-lhe o caminho e esboava uma carcia nas suas costas. Acercaram-se de uma mesa, ele sentou-se como quem se prepara para escrever, a luz do candeeiro t ornava agora ntida aquela mo afogueada e, de sbito, ela sentiu outra mo entre as sua s coxas, vida e quente, apertou instintivamente as pernas, mas esse gesto defensi vo fez libertar no companheiro a fome acumulada. A mo intrusa torneia-lhe agora a s ancas, so duas mos a excitar-lhe a lembrana, sente-se confundida, um movimento br usco arranca-lhe as cuecas e uma boca carnuda e possessiva esmaga-lhe as palavra s de protesto. E ainda a penumbra do imprevisto lhe ofuscava os olhos, quando se v transportada para a cela, est deitada na cama de ferro, a saia levantada, os ca belos descompostos, nem entende as palavras ciciadas pelo outro no intervalo dos beijos furtados, sabe apenas que est a ser penetrada por um rio de fogo, 18 tenta reagir mas o seu corpo subjugado por dois braos de ferro, e o grito abafado por aquela boca carnuda, s a alma pode levantar-se, e ouve ento o eco interior do seu prprio brado, selvagem, instintivo, no preciso momento em que a ejaculao deslaa a armadura que a envolve... No cuide o leitor que esta descrio sumria da ltima aventura amorosa do Gustavo mera fico ou devaneio. Na verdade, o narrador limitou-se a emprestar uma certa roupagem literria prosaica e enxabida acusao do Digno Agente do Ministrio Pblico contra aquele modesto servidor da justia, porque, como sabido, os senhores delegados so, normal mente, mais sensveis tipologia criminal, seca e peca, do que sintaxe dos comporta mentos humanos. Mas, cingindo-me agora e apenas aos autos, a mulher saiu da cave completamente a turdida pelo imprevisto da situao, "cuja no previu nem podia prever", (sic), ficou um momento no trio a recobrar foras, e tendo-lhe voltado o discernimento, soltou u m grito to prolongado e lancinante que logo acorreram ao local o Conservador, o N otrio, todos os funcionrios da casa e os prprios Magistrados, ainda a tempo de a verem compor a blusa e os cabel os, e testemunharem o exrdio daquela vil arremetida do Gustavo. Feita a denncia, logo o delegado mandou proceder a exame mdico, que detectou, bem visvel e incriminadora, grande quantidade de esperma do arguido. Este, honra lhe seja, apresentou-se voluntariamente ao digno acusador, mas negou categoricamente o ilcito, pois tinha mantido relaes sexuais com a ofendida por 19 vontade de ambos, alis, previamente acordadas para aquele dia. O processo seguiu os trmites habituais e o Gustavo est agora perante o Tribunal Co lectivo para responder pelo crime de violao, com as agravantes que no caso conflue m. uma questo delicada, convenhamos, porque embora os indcios sejam avassaladores, h apenas a palavra da ofendida contra a palavra do ru e, na dvida, deve ser decret ada a absolvio. Como vem sendo regra sagrada desde o tempo em que os romanos inici aram a construo da cincia jurdica ocidental, e exceptuando o negro perodo da Santa In quisio, o ru presume-se inocente enquanto no se provar o contrrio. Isto, mais palavra , menos palavra, dizia o ilustre advogado de defesa, renomeado ornamento do foro de Coimbra, a rematar a sua orao, durante a qual ps a descoberto todas as contradies da prova, e salientou as qualidades morais do seu constituinte, ali abonadas po r testemunhas idneas e prestigiadas, incluindo o senhor presidente da Cmara. A sala est apinhada de impacincias e de palpites. O julgamento arrastou-se durante todo o dia, j as luzes se acenderam, mas ningum cede ao cansao. E quando as repart ies fecharam, foram muitos os funcionrios que vieram engrossar a hoste expectante. As opinies dividiam-se e o prprio tribunal, via-se bem pela cara atormentada dos j ulgadores, vacilava sobre o risco sinuoso que separa a verdade da mentira, a culpa da inocncia, pois o Correg edor, findas as alegaes, ainda fez mais uma tentativa para dissipar o manto espess o da dvida: 20 - Diga-me l, senhor Gustavo, mas seja franco, se a queixosa consentiu em manter relaes sexuais, por que lhe rasgou as cuecas? O porteiro apresentava-se fardado. Apesar de suspenso, caprichara em exibir os sm bolos da sua importncia, ou por confiar na absolvio, ou por querer despedir-se das suas funes. Assumira desde o incio da audincia uma postura ao mesmo tempo solene e h umilde, de quem respeita a justia mas no a teme, porque nada lhe deve. E to convinc ente fora nas suas declaraes que, certamente, qualquer jri o teria absolvido. Levan tou-se cerimoniosamente, e disse com absoluta segurana: - No posso explicar, senhor doutor juiz. Como j esclareci, foi ela quem tirou as c uecas... - E voltou a vesti-las depois do acto! - lanou o advogado, a vincar um ponto impo rtante da defesa: se os factos se tivessem passado como sustentava a acusao, no se compreendia que a ofendida tivesse a calma e o tempo suficientes para vestir as cuecas antes de arremeter no trio em alta gritaria, como ficou provado pela inspe co visual do Ministrio Pblico...A tese da defesa era essa: a ofendida consentira nas relaes sexuais na esperana de o Gustavo a desposar. Mas porque ele repudiara a ideia, a mulher, ardilosa como a serpente, simulara a violao na tentativa de o forar ao casamento para se livrar d o processo criminal. E a prova que lhe enviou vrios emissrios, sugerindo que desis tiria da queixa se casasse com ela. O porteiro, porm, preferira, dignamente, sujeitar-se ao julgamento a ceder chanta gem... 21 O Colectivo sentia-se inseguro, porque, terminada a discusso, tardava em retirarse para responder aos quesitos e lavrar a sentena, como se esperasse ainda que um a nesga de claridade varresse a noite densa da sua perplexidade. Este o momento mais doloroso de quem tem o pesado fardo de julgar. Decidir sobre a liberdade e a vida quando a prova escassa, quando as palavras se equivalem nos dois pratos d a balana, e o fiel da conscincia hesita em discernir a soluo, pior do que encontrar o fio de Ariane e sair do labirinto... Um silncio incmodo, apenas riscado pelo tossicar de tantas impacincias e interrogaes, abateu-se sobre a sala prenhe de dvidas. So minutos de grande tenso emotiva, espec ialmente para os advogados, como quando se espera o resultado de um exame decisi vo ou de uma anlise clnica, de que depende a nossa vida. E foi neste comenos que o presidente, homem ponderado e justo e, por isso mesmo, exigente em matria de pro va, deixou transbordar a dvida que lhe mortificava a alma: - Pois ! H duas verses e no h testemunhas. Agora o tribunal que deslinde o caso... Aconteceu ento o imprevisto. Levantou-se do silncio da sala, como se irrompesse do soalho, uma voz de cana rachada a abrir caminho naquela expectativa levada ao r ubro: - Eu vi tudo, senhor doutor juiz! Eu sou testemunha! - era o Canada. O presidente varreu a turba com os olhos ansiosos, a procurar arrimo. J no era a p rimeira vez que o milagre lhe acontecia no derradeiro instante: 22 - A pessoa que falou, faa favor de chegar aqui! O ano rastejou por entre a surpresa de tantos olhos curvados sobre a sua insignif icncia agora redimida, e alcanou a teia. O oficial abriu-lhe a cancela e ajudou-o a aproximar-se da bancada. Lanou um olhar desapiedado ao ru e, a um gesto do merets simo, descreveu minuciosamente a cena, com palavras babadas de prazer, confirman do por inteiro a acusao. Mais esclareceu, a instncias do advogado, que assistiu a t odas as aventuras amorosas do Gustavo, pois vigiava-o discretamente, e quando pr essentia o assdio final, dirigia-se para a cave, aproveitando a porta j aberta, e escondia-se debaixo da cama para participar, sua maneira, nas orgias sexuais do outro... - Ali, sim! - rugiu o advogado, a espumar de raiva - E que fazia voc? Um brilho lascivo aflorou nos olhos fundos do Canada: - Eu, senhor doutor... arreava as calas e tocava punheta! 23A Senhora Gracinda Sempre que ali passo e lano um soslaio ao bloco de apartamentos de enfileiradas v arandas sobre o mar, proa erecta na enseada do mistrio a espreitar a morte de tod os os ocasos, a imagem da senhora Gracinda, minha antiga cliente, levanta-se da poeira dos 'arquivos e vem, emblematicamente, reacender a fogueira dos meus caso s memorveis. O arquivo dum advogado um acervo de figuras ricas e multmodas a desfilar na penumbra do tempo, como um pain el iluminado pelo sol rememorativo da lembrana.No conhecia a senhora Gracinda e poucas vezes visitara aquela aldeia piscatria, ag ora transformada em estncia de turismo e veraneio, as velhas casas tpicas de duas g uas, da cor do mar, substitudas por caixotes residenciais, numa febre de lucro al ucinado, fazendo dos barcos da faina artesanal, que ainda remavam contra o tempo , um adorno naf numa paisagem de cimento armado. O caso da senhora Gracinda era simples, mas raro. O marido partira num fim de tarde para a pesca e no 25 voltara mais. Na manh seguinte a frgil embarcao apareceu destroada entre os rochedos, mas no havia rasto do seu nico tripulante. Esperou a pobre mulher, em vo, durante longos e chorados dias que o mar lhe devolvesse o corpo do companheiro de tantos anos, porque tudo o que da terra a ela dever reverter. As buscas efectuadas dura nte uma semana foram infrutferas, e a esperana de que o pescador solitrio dormisse o precrio sono eterno sob os ciprestes da encosta desvaneceram-se na sentena de Me stre Cardim: "desapareceu, foi levado pela corrente". De modo que, ao fim de trs meses, a viva apresentou-se no Registo Civil para participar a morte. Mas como a burocracia esse labirinto de reveses e percalos que todos conhecemos, e faltava a certido de bito, tornava-se necessrio accionar os mecanismos legais, morosos e trpe gos, para lavrar o assento certificativo. Foi ento que a peixeira me apareceu no escritrio. O caso era simples, como se v. Desencadeado o processo, o Conservador r iscou o nome do senhor Isidoro do nmero dos vivos, e o luto oficioso da esposa tr ansformou-se em luto oficial, confirmado por sentena, certido e selo branco. Uma s entena sempre uma super-realidade, a realidade indiscutvel do Estado, de que no h ap elo nem agravo. No sei se a senhora Gracinda sofreu uma dor profunda com a morte do marido, julgo mesmo que a aceitou com certo alvio, porque a sua vida conjugal era um verdadeir o tormento, como vim a saber. O Isidoro andava sempre bbado e batia-lhe desalmada mente, 4@era uma escndula", dizia ela, os vizinhos a intervir e a tomar partido, uns por que ela no o zelava como devia, 26 outros porque ele gastava tudo nas tabernas, e casa onde no h po... A verdade que a quela inferneira s se instalou no casal depois da morte do nico filho, tambm pescad or e tambm naufragado naquele mar, que era o sustento e a sepultura do povoado, e sabe Deus, por culpa do Isidoro, a teimar que o rapaz havia de sair ao largo na quele dia encrespado. O mar no perdoou o ousio, e o seu corpo foi arrojado praia, ficou deposto nos rochedos, como um protesto, no exacto local onde, anos depois , mesmo em frente da casa modesta, o mesmo barco, agora timonado pelo Isidoro, h avia de espumar a sua raiva intil por mais aquela vida perdida. Confesso que fiquei com grande simpatia pela senhora Gracinda. A coragem com que enfrentou a desgraa, o af com que diligenciou oficializar o bito, a ternura com qu e guardava os destroos da embarcao, onde depunha regularmente as flores vivas da su a saudade, e o luto que carregou at ao fim dos seus dias, tornaram-na uma figura singular, imagem encanecida da mulher rural portuguesa, fiel, sentimental e cora josa. O advogado nunca um observador distante e desapaixonado, pois participa do s segredos, das dores e alegrias dos seus representados. E alm da sua cincia, deve dar-lhes a sua compreen so, por vezes, mesmo, o seu afecto, sobretudo quando, como neste caso, era precis o atenuar o fatalismo com o calor fraterno da solidariedade. Mas o verdadeiro retrato da senhora Gracinda foi-me revelado quando me procurou, anos depois, por causa da expropriao, dizia ela, do quintal e da casa27 onde nascera, casara e sempre vivera. Era uma casa humilde mas airosa, com logradouro anexo, na extensa orla da praia onde o mar fo rmava uma enseada para ficar mais perto dos pescadores. Uma empresa de construo j t inha chegado a acordo com os proprietrios vizinhos e faltava apenas demover a sen hora Gracinda para ali ser edificado um grande complexo turstico e residencial. A proposta era sedutora, a prpria Cmara patrocinava o projecto, mas a minha cliente , resistira a todas as presses para vender o prdio. No estava disposta transaco, qual quer que fosse o preo. Ameaada pela Firma com um processo de expropriao, lembrara-se de recorrer aos meus servios. Fizesse eu tudo o que estava ao meu alcance para s alvar a casa, que ela me saberia recompensar... Olhei a senhora Gracinda com ternura e solidariedade. E tranquilizei-a. No havia, naturalmente, possibilidade legal de expropriao. Se ela no quisesse vender, ningum a poderia obrigar. Contudo, como a proposta era aliciante e a Construtora deveri a estar disposta a subir o preo, pensasse ela a melhor soluo. Com o dinheiro recebi do poderia comprar uma casa nova e ficar ainda com as economias suficientes ao s eu sustento para o resto da vida... Fixou-me com os olhos cansados por muitas luas de insnia e sofrimento, e apertou o leno ao queixo. O seu rosto lembrava-me um retbulo antigo da Senhora das Dores, semeado pelo rasto de viagens tormentosas e naufrgios. A mo trmula comeou, lentament e, a dobrar as abas do avental e a senhora Gracinda era agora uma mancha negra e expectante sentada minha 28 frente, indefesa e solitria. Mas a sua voz tinha a firme teimosia de uma quilha r asgando o mar: - No, senhor doutor! No vendo a minha casa por todo o dinheiro que h no mundo. Quer o morrer onde nasci! Pensei que um excessivo sentimento de posse pelo redil nativo no lhe permitia ver as enormes vantagens do negcio, tanto mais que a Construtora estaria disposta a dobrar o preo para realizar o projecto. Pobre, como era, no devia deixar fugir ess a oportunidade, e era meu dever aconselh-la a ponderar a proposta. Contudo, a pro fisso ensinou-me que a lgica dos sentimentos , muitas vezes, avessa jurisprudncia do s interesses, por mais legtimos que sejam. No h dinheiro que pague a paz da conscinc ia. Uma casa modesta, onde o sol penetra pelas fissuras do telhado e ilumina ale gremente todos os cubculos da existncia, pode ser mais reconfortante do que um palc io. E, por outro lado, h um espao sagrado, invulnervel, na vontade dos clientes - l onde os sentimentos se entrelaam para formar o veio subtil da personalidade - que nem o advogado pode invadir com o seu conselho, por mais til que lhe parea. Por i sso, no insisti e voltei a tranquiliz-la: - Fique descansada. A lei no a obriga a vender contra a sua vontade. - Confio em si, senhor doutor. Mas h outra coisa... - disse com ar de assumida co nivncia. - No h nada que a obrigue a vender - confirmei. - Tenho um sobrinho, sabe, senhor doutor, e ele 29quer, viva fora, vender a casa. Diz que a Construtora me d uma casa nova no pinhal e ainda me paga uma boa indemnizao... - A senhora Gracinda que decide. - No, por nunca ser! Eu quero que vossa senhoria o convena, se ele, por acaso, c aparecer... - A senhora Gracinda a dona e, portanto... - Ele diz que estou maluca por no aceitar o negcio. Ora, senhor doutor, no estou ma luca e sei muito bem o que quero! Disse pobre mulher que fosse tranquila. Se era essa a sua vontade, eu me encarregaria de convencer o sobrinho. A senhora Gracin da abraou-me comovidamente, e eu senti que o advogado deve ser mais do que um sim ples consultor jurdico, um perito de leis, mas tambm um intrprete e garante dos sen timentos dos seus constituintes. Dias depois o sobrinho procurou-me. E, como eu previa, demonstrou-me facilmente que a velha ia perder a nica oportunidade que a vida lhe ofereceu para sair da su a crnica pobreza. A Construtora dava-lhe uma casa no pinhal ou um apartamento no complexo, e ainda lhe pagava uma indemni zao. - Se no aceitar, est mesmo maluca! - repetia o sobrinho, homem atinado, que se lib ertara do mar e ganhava a vida em terra com uma quitanda de comes e bebes. - E o senhor doutor tem de convenc-la... - Temos de respeitar a vontade da sua tia! - Pois . Mas desperdiar esta oportunidade como rasgar um bilhete premiado da lotar ia... Pensei que era a apetncia pela choruda indemni30 4 zao que o motivava, mas ele logo desvaneceu essa suspeita: - Eu s quero o bem da minha tia. Vive l num pardieiro sem quaisquer comodidades e farta-se de trabalhar para subsistir. At gostava que o senhor doutor l fosse para me dar a sua opinio, em conscincia... E foi assim que visitei a casa da senhora Gracinda. Era uma casa trrea, modesta, de facto, casa tpica de pescadores pobres, com cercadura azul e sardinheiras flor idas em rodap. No quintal, cuidado como um jardim, havia figueiras, uma belga de couve galega e, junto aos muros divisrios, numa profuso de florista, hortnsias, jar ros, cravos e rosas trepadeiras. Nas traseiras, entre duas figueiras dobradas de cansao, aziaga recordao, repousava o barco fatdico, desconjuntado, que roubara a vi da ao filho e ao marido, testemunhando ainda as duras fainas do mar, at que a seg unda frustrao o sepultara em terra. No seu ventre esguio, os dois remos estendidos , como dois corpos jazendo, e sobre eles, a reforar a similitude de uma campa, as flores votivas da senhora Gracinda. Comoveu-me aquela ternura pelo companheiro desaparecido, que o mar guardava cios amente como um tesouro de antigo naufrgio. No podendo reaver o corpo, a mulher sim ulava assim a sua presena fsica para se sentir menos viva. A histria mostra-nos queo culto dos mortos o mais firme, persistente e sincero de todos os cultos, ainda que dos deuses. Porque os mortos so parte de ns, entraram nas nossas vidas, enqua nto os deuses so apenas a vaga recordao dum futuro inventado. 31 - Agora que o senhor doutor j conhece isto, diga-me francamente se no um asneira r ecusar a proposta da Construtora - observou o sobrinho a chamar-me realidade. Olhei volta. As casas vizinhas j tinham sido demolidas em toda a extenso da ensead a, a terraplanagem estava feita e os compressores atroavam fragorosamente os are s, penetrando a rocha com a sofreguido de faunos selvagens. Em contraste, uma jun ta de bois arrastando um barco recm-chegado da faina, esmagava com seus cascos pa chorrentos a sombra delida do tempo. - Eia! Eia! - proclamava o pescador-boieiro, esgrimindo a aguilhada, tambm ele si ntonizado com aquela lentido. As horas s correm velozes para quem no sabe acertar o passo pela natureza. A velha puxou-me pelo casaco e fitou-me com os olhos splices. Mas eu no me tinha e squecido do seu apelo: - Acho que devemos respeitar a vontade da senhora Gracinda. No s o dinheiro que tr az a felicidade. Esta paz no tem preo... Um sorriso aqueceu o seu rosto encardido pelo sal do mar e dos olhos. Pegou-me n o brao e conduziu-me para a sebe que bordejava a rua. Levantou a mo como se procur asse qualquer coisa no oceano tranquilo, dum azul comovente, mas era dentro de s i que um desejo espinoteava: - Eu at queria pedir ao senhor doutor, e diga-me se preciso passar uma procurao, qu e no deixasse vender a casa mesmo depois de eu morrer... 32 O sobrinho aproximou-se, resignado, a cortar a confidncia, e aquele desejo desfez -se na espuma branca das ondas, como uma breve pegada na areia, pois eu ignorei a inusitada pretenso da senhora Gracinda. - A tia que manda. Mas olhe que vai ficar aqui entalada para o resto da vida. E ficou. Os prdios comearam a crescer em volta do reduto da velha, floresta de vid ros e cimento a encurtar o voo das gaivotas, com os cotovelos das varandas a esp etarem a nova avenida, e o cocuruto dos elevadores a desafiar o cu. O enclave da senhora Gracinda transformou-se numa espcie de saguo do bloco de apartamentos onde o sol dava apenas uma rpida olhadela quando passava pelo znite. A terra tornou-se avara, as flores murcharam nos canteiros e as figueiras ficaram mais derreadas, como se os dedos famintos dos seus ramos esgaravatassem o cho maninho, em sinal de protesto. Mas quem atentasse na urbanizao, verificava que o projecto inicial se mantinha e q ue aquele espao entre os edifcios, agora interdito pela teimosia da velha, seria a bsorvido logo que ela fechasse os olhos. O sobrinho devia ter garantido firma qu e lhe vendia o terreno quando a lei da vida o tornasse seu legtimo detentor. E po r isso, as estruturas e vigamentos, interrompidos sua volta, nervos de ferro a e mergirem do cimento, como se tivessem sido decepados por uma espada gigante, est avam prontos a avanar e a submergir o estranho capricho da actual proprietria, ou o seu sonho de perpetuar a homenagem ao companheiro desaparecido. O que eu no sup unha que fosse to 33cedo. Ainda no tinham passado dois anos sobre a minha visita, e ainda as mquinas g runhiam na outra ponta da enseada, quando o sobrinho me aparece no escritrio a anunciar a morte da senhora Gracinda. Trazia um sorriso desdenhoso a franzir-lhe a cara, em vez da compostura do luto. Despejou a notcia antes de desf azer o aperto de mo: - Venho dizer-lhe que a minha tia morreu. Pensei que o senhor doutor gostasse de saber, pois era muito seu amigo... - Assim de repente? - admirei-me. - Foi de repente. O encarregado das obras encontrou-a morta de manh, ao lado do b arco. Deve ter morrido de noite. Estava fria e coberta de orvalho. a E quando foi? H oito dias. Desculpe s agora c vir... Era uma mulher de armas, a sua tia. De coragem. Gostava muito dela - disse par o confortar.O sorriso descaiu-lhe de sbito, como um pssaro ferido em pleno voo. Percebi que ti nha outra coisa mais importante a comunicar-me e resolvi ajud-lo: - Agora o prdio seu. J o pode vender, finalmente... - J o vendi. Para lhe ser franco, h muito que fiz o contrato-promessa e recebi o s inal. Sou o nico herdeiro e sabia que mais tarde ou mais cedo... - Quer dizer que j demoliram a casa? - Comearam ontem, e foi por isso que eu vim falar com o senhor doutor. Nunca pens ei que... - Algum problema? 34 No, no nenhum problema. Apenas queria que ficasse a saber que quando retiraram o b arco e escavaram o cho, encontraram o esqueleto do meu tio... 35A consulta Era um sujeito desataviado mas de cuidada barba branca, gestos flor dos olhos e fala copiosa como um temporal desfeito. Compreendi logo que vinha mais para comu nicar do que para ouvir, porque a chuva insistente das suas palavras mal me dava tempo para me ir abrigando numa ou outra interrupo fugaz. H pessoas assim. Precisa m de despejar o saco para desanuviar o esprito e partilhar o remorso na esperana d o interlocutor lhes mostrar que o sol ainda brilha para l do negro horizonte em q ue bracejam. So como os apaixonados a quem a ausncia di mais do que o desamor, e qu e tambm se comprazem no lquido devaneio da sua angstia. Procuram o advogado em vez do confessor, porque sabem que ele no lhes impe a penitncia cannica, e antes os acolhe com uma palavra de solidria compreenso, ajudand o-os a carregar a pedra pela encosta empinada da sua emergncia. Uma dor partilhad a sempre uma dor mitigada, sobretudo quando se tem a garantia inviolvel do segred o profissional. 37 Deixei-o, pois, falar, logo que as suas mos fogosas alisaram a barba e traaram na minha expectativa ogesto eloquente de confidencialidade. Acendeu nervosamente um cigarro e percebi que se arrimava a esse bordo como o viandante que se prepara para uma rdua caminha da: - A minha mulher engana-me com o meu melhor amigo. As coisas sucederam por acaso , se que o acaso no o disfarce do natural, ou seja, o resultado inevitvel da conju gao de vrios factores de ordem fsica e psicolgica. Tnhamos casado h trs anos e eu ausentava-me pela ma semana, para participar num congresso em Madrid. Minha mulher igo, mas insistiu em acompanhar-me estao. E como a distncia vidava, fizemos o percurso a p como dois namorados. Por acaso ez a empregar a primeira vez, durante u no pde viajar com era curta e o tempo con l estou eu outra vpalavra enganadora - o Sousa desembarcou no mesmo comboio que me devia levar. Ai nda o cumprimentei fugidamente e at lhe renovei algumas recomendaes. O Sousa meu assistente e, na minha ausncia, tinha de tomar certas providncias... - O senhor professor? - perguntei apenas para dar um sinal de interesse pessoal, enquanto o ia analisando. Pelo camisolo de bombazina e camisa escura, mais parec ia um ferrovirio aposentado. - Sim. Sou professor de filosofia, mas isso mero acidente da minha vida. Esmagou o cigarro e tirou da bolsa que trazia a tiracolo um cachimbo j carregado. Acendeu-o com ademanes de mestre, e uma espessa cortina de fumo 38 interrompeu, momentaneamente, o crculo da confidncia. Talvez precisasse desse biom bo para continuar a sua catarse. E continuou: - O Sousa acompanhou Lcia a casa, facto natural, dadas as nossas relaes. Mas, impre vistamente, desabou sobre eles uma chuva copiosa, verdadeiro temporal desfeito, que lhes encharcou os ossos at medula. Minha mulher convidou-o a entrar e, natura lmente, emprestou-lhe um fato meu, por acaso temos o mesmo corpo, embora, claro, ele seja mais novo. Ela foi ao quarto vestir o robe de chambre, e ele casa de b anho trocar de roupa. Quando Lcia regressou sala j ele estava sentado no sof onde e u costumo instalar-me, e ligara o gira-discos, como eu tambm costumo fazer. A qui nta sinfonia de Beethoven, interrompida com a minha partida, abria todas as port as do imaginrio. Ocorreu ento um facto estranho, ou talvez no, uma miragem, um delri o potico, ou, simplesmente, uma aguda memria visual despoletada por aquela semelha na do cenrio habitual, ou pelo desejo de me ter consigo, pois, como sabe, o amador tende sempre a ver a pessoa amada em qualquer contorno fsico. E foi isso que aco nteceu, a avaliar pelo relato que, inocentemente, a prpria Lcia me fez: ao entrar na sala convenceu-se que eu tinha regressado e beijou-me com ternura, ou melhor, beijou o Sousa, o qual, aceitando o imprevisto, deixou que o acaso cumprisse to das as fases do acto amoroso... - Mas sua esposa... - ia eu a intervir de novo, aproveitando um ligeiro embargo na sua voz e pensando naquela curiosa explicao filosfica. De facto, um desejo 39 fervente sempre um comeo da realidade desejada. O professor, porm, travou-me o pas so com um gesto brusco e continuou a sua peregrina narrativa:- Durante a minha ausncia voltaram a encontrar-se todos os dias mesma hora, por a caso, a hora em que eu costumo chegar a casa. O Sousa continuava com o meu fato, talvez por se ter convencido de que eram as vestes que lhe conferiam a minha identidade. A nossa identidade tambm precria e, muitas vezes, emprestada. .. Na vspera do meu regresso at l jantou, e foi nessa altura que Lcia teve um lampej o, ou um rebate de conscincia, e lhe observou que estavam ambos a viver uma situao fictcia e era preciso pr termo quela aventura... - O senhor professor tem razes de sobra para requerer o divrcio - consegui dizer, aproveitando uma pausa do cliente, momentaneamente distrado a rebuscar qualquer c oisa na sua bolsa. Mas ele no se deu por interpelado e voltou ao ataque: - Quando regressei, minha mulher contou-me tudo e eu aceitei as suas explicaes. To dos ns tivemos j as nossas aventuras extraconjugais e sabemos que elas so como o fo yer dos grandes teatros: servem apenas para passar o tempo, ou matar a sede, no intervalo da verdadeira representao. O amor tambm uma representao, por acaso, a mais sublime, e no pelo facto de um dos parceiros desempenhar, fugazmente, um papel me nor que se esquece do tema principal... Comeava a sentir-me hmido com to copiosa e abstrusa verborreia, e interrompi-o decididamente com 40 o gesto inapelvel do sinaleiro diante duma manobra perigosa: - Espere a, senhor professor, que eu ainda no compreendi bem o objectivo da consul ta. Se pretende divorciar-se... - Oua, por favor! - disse ele, aparentemente mais calmo, exibindo um papel dobrad o altura acusadora dos meus olhos. - Aps o meu regresso, continuaram a encontrarse, mas agora no apartamento dele, onde a esperava sempre com o meu fato vestido . Minha mulher contava-me tudo, com a candura duma pecadora ingnua, e eu perdoava -lhe, porque aquilo no passava dum devaneio efmero, infantil, e tambm porque sabia que ela continuava a amar-me. Alis, nunca as nossas relaes foram to plenas como ness e perodo. Pensei que se ela precisava dum acicate para melhor nos disfrutarmos, no havia qualquer inconveniente em encontrar-se com o outro. O outro funciona, mui tas vezes, como o cigarro para o fumador de cachimbo: o suprfluo a espevitar o es sencial, a aguar o desejo. Ora, o suprfluo no faz parte da vida. O que interessa, no meu ponto de vista, no a chamada pureza do corpo, mas a since ridade dos sentimentos. O corpo , por natureza, impuro. S os sentimentos definem o homem. E, neste aspecto, Lcia continuava pura e apaixonada como sempre. Aquela s ua futilidade era como o patamar das longas escadas, que serve apenas para desca nsarmos antes de prosseguirmos a subida. E Lcia jurara ser minha para o resto da vida... Aliviei o colarinho no gesto maquinal de desapertar o n de perplexidade que aquel a confisso me estava 41 a provocar. O advogado ouve muitos desabafos desconcertantes, e deve saber escutlos com pacincia de monge, porque o inslito que marca a diferena entre a teoria aca dmica e a prtica forense. Mas no pude evitar um gesto de enfado, tanto mais que ain da no lobrigara a finalidade da consulta. Ele percebeu e comeou a desdobrar o pape l com um sorriso decepado e fugidio. Nem era bem um sorriso, era mais o seu revrbero, como o sol que, depois de desaparecer, deixa ainda no cu um rasto fatigado d e luz. E foi a minha vez de me socorrer dum cigarro, pretextando falta de lume p ara forar uma pausa naquela ngreme subida: - D-me lume, por favor... O professor vasculhou os bolsos at achar o isqueiro na mo que segurava o misterios o documento. Aproveitou a coincidncia para desvendar a mensagem em riste, esquece ndo-se completamente do meu pedido. - Tudo correu bem at ontem. Mas ontem, ao chegar a casa, encontrei esta carta, na qual minha mulher me comunica que optou pelo Sousa e decidiu abandonar-me. Apel a minha compreenso, jura que continua a amar-me e que espera manter comigo as rel aes amistosas que vem do tempo em que foi minha alunajuntamente com o Sousa. Mas a cusa-me de ser eu * culpado da sua dolorosa deciso, pois nunca reclamei * devoluo d o fato provocador que, por acaso, o mesmo fato que trazia vestido quando a convi dei a vir a minha casa pela primeira vez e a pedi em casamento, depois de ouvirm os Beethoven e de nos termos amado, numa tarde chuvosa e memorvel... Calou-se, como se revivesse o momento primordial 42 da sua paixo serdia e sentisse, outra vez, o sol nos braos. Mas era apenas uma reve rberao da memria que lhe luzia nos olhos, uma saudade, talvez, e eu imaginei um vel ho e conspcuo professor rendido beleza duma jovem aluna, a desafiar a natureza, s em se lembrar que o tempo havia de cavar entre eles, inevitavelmente, o abismo e m que agora parecia afundado. Dobrou a carta impiedosa, restituiu-a carteira e d isse com imprevista desenvoltura: - Ora, perante isto, h que tomar as medidas adequadas, e eu vim consult-lo, justam ente... - A soluo ser requerer o divrcio litigioso, e o senhor professor tem dois fundamento s s lidos, o adultrio e o abandono... - No! No isso! - e uma sombra assustada contraiu-lhe o rosto. - Claro. Em face das circunstncias, tudo aconselha que se resolva a situao com o di vrcio por mtuo consentimento. Se assim o entender, posso convocar a sua esposa, e estou certo que ela concordar... Suspirou fundo e encarou-me com os olhos trpegos de caminheiro fatigado. Havia ne les o brilho comovido de quem est prestes a chegar ao fim da jornada. - O que eu pretendia, e por isso o vim consultar, que o senhor doutor chamasse c o Sousa... - O Sousa?! - estranhei. Os olhos do professor faiscaram de impacincia. Chupou so fregamente o cachimbo apagado e ao ver a inutilidade do seu esforo tirou um cigar ro da sacola e acendeu-o com avidez. - Sim, o Sousa! Queria que o intimasse a devolver-me o fato. Urgentemente... 43 O preo da honra Era frgil e graciosa como uma flor silvestre. Tinha olhos azuis, vivos e saltitan tes que pareciam dois pssaros em busca do sol. Mas havia um ramo de tristeza a nu blar-lhe o rosto. E logo que ela se sentou, ainda a compor o casaco comprido sobre os joelhos rosados, deixou que duas lgrimas furtivas polvilhassem a doce amarg ura da voz: - O senhor tem de me valer! Fui insultada, ofendida na minha honra, e sou uma mu lher honesta... Procurei apaziguar aquela veemncia com as palavras e os gestos que a vida me foi ensinando. O advogado sabe que, normalmente, vale mais nestes casos a proviso da palavra concreta do que a previso da norma abstracta. Levantei, pois, o brao a serenar a tempestade, sorri e disse-lhe com sincera convico: - Esteja tranquila, que tudo se h-de resolver. A honra das pessoas srias pode ser ofendida, mas a verdade da sua vida acabar por se impor. Olhou-me docemente como se repousasse, inteira, na minha solidria compreenso. E co ntou que o marido 45 desertara da tropa para escapar da guerra colonial, e estava, h cerca de um ano r efugiado no estrangeiro, nem ela sabia onde... Ora, valendo-se da situao, um vizin ho perverso, parece que informador da PIDE, que j em solteira lhe fizera a corte, aproveitara a ausncia do marido para tentar seduzi-la. Fazia-se encontrado nos e rmos caminhos da aldeia quando ela regressava da fbrica, e ia-se insinuando com p alavras lamentosas da sorte do companheiro, que fora obrigado a deixar uma mulhe r to jovem e bonita. Da ltima vez, porm, revelara as suas verdadeiras intenes, aprove itando o recato da vereda para lhe acariciar os seios. Como resistiu e o desenga nou firmemente, o sevandija propalara l na terra, por vingana mesquinha ou dio reca lcado, que ela era uma desavergonhada, que tinha amantes e o marido era um traid or e um corno... Tratava-se, afinal, como eu previra, de um vulgar mas grave crime de injrias. E c omo a cliente me garantiu que tinha testemunhas idneas, aconselhei-a, naturalment e, a levar o caso a tribunal. O ramo de sombra voltou a toldar-lhe o rosto: - Mas a questo que eu estou grvida! - disse ela com um rubor inocente a sublinhar a impacincia dos olhos. - E foi talvez por me ver com a barriga grande que ele te ve esse descaramento... Os dados do problema foram radicalmente alterados. Mas, no obstante a desbocao do v izinho constituir crime, pensei que a honra da cliente seria melhor acautelada s e calasse a ofensa. - Sendo assim, melhor no participar. O processo poder trazer-lhe alguns riscos e v irar-se o feitio contra o feiticeiro... 46 - Mas, senhor doutor, eu estou inocente e sou uma mulher sria. Nunca conheci outr o homem seno o meu marido! Olhei-a longamente nos olhos, a pesar a funda inquietao que os afogava, e apenas v i neles uma paz amedrontada espera da proteco da lei. O sentimento da honra e a ur gncia do seu desagravo pareceram-me to fortes, que logo intu que no cometera adultrio . - Quer dizer, ento, que visitou o seu marido? - No. No o visitei, pois nem sei onde pra...- Mas isso significa - ia a tirar a concluso inapelvel quando ela se levantou dete rminada, aproximou-se da secretria, inclinou-se para mim como se fosse revelar um segredo, e disse com sorridente cumplicidade: - O meu homem veio c clandestinamente e esteve oito dias escondido l em casa. Mas olhe que isto muito confidencial, pois a organizao no quer que se saiba... Tambm eu sorri de alvio. Agora tinha a certeza de que ela falava verdade e que o b rilho dos seus olhos era o fogo sagrado da inocncia. - Pode confiar! - Eu sei que posso confiar e, por isso, o procurei. Foi a organizao que mo indicou ... Apresentei a queixa criminal e os autos seguiram a sua lenta tramitao dando tempo a que a criana nascesse antes da marcao do julgamento. Quando a cliente voltou ao e scritrio para saber o estado do processo e mostrar-me o fruto dos seus amores legt i47 mos, senti que o filho, afinal, vinha abalar a consistncia moral da acusao e facili tar a defesa do arguido, pois a cliente insistia que, em caso algum, podia revel ar o segredo. Estava nessa altura na comarca umjuiz conservador e situacionista confesso para quem a desero das fileiras e o adultrio - era essa a realidade processual - mereciam as chamas eternas do inferno, visto j terem acabado as santas fogueira s da Inquisio, e eu sabia que no podia contar com a despreconceituosa aplicao da lei. Comecei, por isso, a duvidar da oportunidade e da eficcia da queixa. E quando o julgamento foi, finalmente, marcado e soube que o Meirinho era o advogado de def esa, logo previ o ricochete da demanda. Aconselhei a cliente a aceitar explicaes, caso o ru estivesse disposto a d-las, a fim de obter uma sada airosa e poupar a pob re mulher s inevitveis suspeitas e humilhaes. - No, senhor doutor, por nada deste mundo lhe perdoo! Ele tem de ser julgado para saber que no se pode ofender a honra de uma mulher sria! - Mas um grande risco! Ainda que ele seja condenado, toda a gente vai supor que voc enganou o seu marido. um preo muito caro... Por momentos, os seus olhos fixaram-se nos meus, duas lanas de fogo a romper cami nho e a proteger-me os flancos da dvida. - A honra no tem preo! Poucas vezes encontrei uma pessoa com tanta determinao e conf iana na Justia. Mas eu continuava a debater-me no sombrio labirinto da descrena. Co m48 petia-me desagravar a dignidade ofendida da minha constituinte e no lograva conve ncer-me da utilidade do processo. Era como se tivesse na mo uma arma carregada se m a saber manobrar. E aquela confiana mais me atormentava. Sentia que a tinha arr astado para um barranco. - S vejo uma soluo para sairmos desta encruzilhada. revelarmos o segredo da vinda d o seu marido... Encarou-me meditativa, os olhos ausentes, e aconchegou o filho ao peito: - Isso que no pode ser! A organizao proibiu-mo terminantemente. Ele veio c numa misso especial e ningum pode saber!Compreendi. Alguns mancebos da regio tinham desertado, e a PIDE andava de narinas afiadas para encontrar o fio da meada subversiva. E, por estranha coincidncia, a central elctrica tinha sido sabotada tempos antes... De modo que, no dia do julgamento apresentei-me no tribunal, mais na veste de ad vogado de defesa do que de acusao. A minha cliente, porm, ostentava aquela serena c onfiana dos injustamente ofendidos que acreditam na Justia. Conseguira fazer senta r o ru no banco da ignomnia diante da vizinhana curiosa, e parecia segura da punio do despeitado galanteador. Trazia um vestido vermelho e os longos cabelos caam-lhe em volutas de ouro sobre os ombros semi-desnudados. No seu rosto sorridente, ago ra mais belo, os pssaros dos olhos cantavam a alegria do triunfo. E a forma como apertava ao peito o seu menino, envolto num manto 49 branco, e o exibia assistncia como fruto legtimo do amor conjugal, dava-lhe um ar casto de Imaculada Conceio. Ainda hoje, vinte anos volvidos, recordo a sua imagem impressiva, mas confesso que, nesse dia, senti um arrepio ao ver aquela pura irr everncia no austero templo da Justia. Parecia uma provocao. E logo o juiz, de cenho ameaador, confirmou os meus receios: - V l fora entregar o menino, que no tem culpa nenhuma, e cubra-me esses ombros! A audincia decorreu, infelizmente, como eu previa: o ru a escudar-se na amizade qu e dizia manter com a queixosa e no correspondente dever de a admoestar pelo seu comportamento, isto, claro, sem a menor inteno de a ofender: - O que eu disse e repito, senhor doutor juiz, foi que esta mulher devia dar-se ao respeito, pois andando o marido fugido, no podia ser dele o filho que trazia n a barriga, e que a est para mostrar a minha razo... As testemunhas fizeram prova bastante, embora titubeassem perante o enigma de um a mulher parida em tal situao: - L que o ru disse que a queixosa tinha amantes e que o homem era um corno e um tr aidor Ptria, verdade. Mas tambm verdade que a queixosa andava pejada e tinha o mar ido ausente... O Ministrio Pblico remeteu-se a um prudente silncio com um sorriso eloquente que be m expressava o que no queria dizer. Eu compus o ramalhete como pude, mas nunca me senti to embaraado. Pisava um pntano armadilhado e era prisioneiro dum segredo. 50 Nem o bordo da lei deu grande convico s minhas alegaes. O Meirinho estava no seu terreno preferido e fez a sistncia por jri e parecendo declamar o papel de . Explorou a fragilidade tica da queixa e a falta a voz avisada da conscincia popular numa poca de ido, no era o seu constituinte, rbula do costume, tomando a as marido enganado num auto medieval de inteno dolosa. O ru havia sido devassido, e se algum devia ser punmas a queixosa, por ferir to profundamente a moral pblica e o dever de fidelidade, que um dos esteios da civilizao crist e ocidental... A plateia ouvia a prdica com sagrada uno. No piedoso silncio da sala, o Meirinho era mais sacerdote-acusador do que advogado-defensor, apostrofando as almas expecta ntes, rendidas quela oratria inflamada: - Diga-me, senhor doutor juiz, e digam-me todas as pessoas respeitadoras do direito e da moral: que nome se h-de dar esposa que concebe fora do tlamo conjugal, e ao marido que desertou da Ptria para se furtar ao dever sagrado de a defender?! O nosso povo tem as palavras exactas para estes casos! Tenho pena desta mulher e deste homem, mas talvez a Providncia os tenha querido punir para que o labu da des ero e do adultrio fique gravado a fogo na sua conscincia e acompanhe para sempre est e filho ilegtimo... Foi ento que a sala tremeu e o tempo parou como se fosse abalado por um trovo ou u m grito de supliciado. Um homem de barbas e culos escuros irrompe l do fundo, afas ta a chusma, galga a teia e aponta o dedo acusador ao advogado de defesa: 51 - Cale-se que esta mulher sria e esta criana tem pai! - Prendam este homem! - ordenou o juiz desvairado - Quem voc? Um guarda republicano investiu. contra o intruso, enlaou-o pelo peito com os braos em garra, a boca a espumar de raiva ou de cio, deixando a assistncia arrepelada de pasmo. Mas o homem sorriu para a minha cliente e lanou-me um soslaio tranquili zador: - Eu sou o marido da queixosa - disse calmamente, como se aceitasse a priso reden tora. - E fiquem todos sabendo que no sou como e que o meu filho h-de honrar-se do pai que teve!... 52 O alibi O doutor Navarro pousou o telefone, descansou os grossos culos de mope, alisou a c abeleira branca como se domestica-se um mau pensamento, mas as palavras viscosas do Meirinho continuavam a desassossegar-lhe o esprito. - Preciso urgentemente de falar com o senhor doutor por causa do processo do seu cliente Anselmo Crespo - acabara de dizer o outro. Qual processo? Qual havia de ser! Mas o colega no Pois sou. O senhor E ento, que tenho O homicdio. o advogado do Crespo? doutor recusou o patrocnio... eu agora a ver com o processo?- O doutor Navarro tem conhecimento de factos importantes. Talvez possa ser test emunha... - insistiu o Meirinho. - Testemunha?! Voc est doido! Onde que se viu o advogado ser testemunha do cliente ! - O Crespo no seu constituinte neste caso! 53 - Mas meu cliente habitual. No o defendo por razes particulares, e at estranho como ele o consultou sem me dizer nada... E se no o defendo como advogado, tambm no o d efendo como testemunha! - O senhor doutor l tem as suas razes para recusar o patrocnio. Mas no pode recusar o seu depoimento para esclarecimento da verdade... - Desculpe. Eu no sirvo para isso! E, de resto, no sei nada que possa interessar sua defesa - rematou, agastado. A invocao da verdade, por parte do Meirinho, soavalhe a falso, como o nome de Deus na boca dum incrdulo. - Mas se me permite, eu vouj ao seu escritrio. Tenho a certeza que depois de me ou vir poderei contar com o senhor doutor...Eram ambos advogados na comarca, quase vizinhos, mas o outro tratava-o com certa cerimnia, no apenas pela diferena de geraes, mas sobretudo pela diferena de concepes bre a advocacia. O Navarro firmara a sua reputao ao longo de quase quarenta anos c omo profissional honesto, competente e conciliador. Nunca recebia testemunhas, n em dava falsas esperanas ao cliente. Recusava as causas que lhe pareciam injustas e patrocinava gratuitamente os que no podiam pagar. Tinha um entendimento tico do direito que o tolhia de falsear os factos ou de invocar em vo as normas jurdicas. Os que deturpam a verdade, moldando-a aos seus interesses m esquinhos, ou tripudiam o ordenamento com interpretaes tendenciosas, so verdadeiros contrabandistas do foro, mais perigosos do que os vulgares falsificadores, porq ue 54 estes traficam mercadorias e assumem o risco da descoberta, enquanto os outros o fendem os valores sagrados da Justia e movem-se com total impunidade. Por tais qu alidades, e tambm pela sua modstia e esmerada educao, era respeitado por colegas e m agistrados. O doutor Meirinho, pelo contrrio, aceitava todas as causas e, por ligeireza ou am bio, talvez o fizesse sinceramente. Batia-se como um gladiador na defesa dos seus constituintes, ainda que fosse bvia a sua falta de razo. Bisneto de um antigo meir inho, devia ter herdado dele, juntamente com o patronmico, o vrus da litigncia a to da a brida. Montava cenrios, criava factos, ensaiava testemunhas e considerava a lide como um combate que preciso vencer a todo o custo. E, por ter os olhos vesg os para o direito, esgaravatava todas as hipteses, parecia um furo cata da norma n o tnel comprido da sua ignorncia. Mas, apesar disso, ou talvez por isso, s vezes ga nhava a causa. E como rematava sempre com alegaes vibrantes para a plateia, improv isado tribuno da plebe, o rosto congestionado, as mos apelativas a emergirem da n egrura da toga, criara a sua reputao junto daqueles que vem o tribunal como um palc o, e o advogado como actor, a representar o papel que eles prprios lhes reservara m... O doutor Navarro acendeu um cigarro cogitativo, sem discernir o verdadeiro motiv o da visita. Conhecia a personalidade do Meirinho, as suas manhas e limitaes, rato de tribunal a untar as mos aos funcionrios e a escapulir-se por entre as malhas d a lei, mas a deixar, por vezes, o rabo de fora, porque nunca 55 essas malhas so to largas que nelas caibam, sempre, todas as manobras. Qual seria agora a sua esperteza? Ser testemunha de um cliente, ainda que meramente abonatri a, no um acto normal, e poderia mesmo prestar-se a interpretaes dbias, sobretudo sab endo-se que recusara defender o Crespo, certamente por julgar que ele no merecia, neste caso, o seu patrocnio. A menos que, como o outro dissera, tivesse conhecim ento de factos importantes para o esclarecimento da verdade... O industrial Anselmo Crespo era dos seus mais antigos e fiis clientes. Homem srio e empreendedor, muito considerado na praa, prosperara na vida graas apenas ao seu trabalho e persistncia. Comeara como alfaiate e tinha agora uma fbrica de confeces e uma loja de pronto-a-vestir. A fortuna no lhe subira cabea, porque continuava a le var uma vida modesta e a dar ainda uma demo no corte. Todos os seus problemas, co merciais e particulares, eram do conhecimento do Navarro, que os acompanhava e resolvia com a sua conhecida lisura e proficincia. Por isso, era mais do que seu a dvogado. Era um amigo e confidente. Da a estranheza com que todos encaravam a sua recusa em defend-lo no caso mais grave da sua vida, que dera brado na regio, just amente, o crime de homicdio voluntrio premeditado na pessoa do seu antigo scio, Rai mundo Lopes, tanto mais que o ru protestava a sua inocncia e tinha a seu favor a g eneralidade da opinio pblica. A questo era melindrosa. O Crespo consultara-o h tempos por causa de um arrendamen to e, finda a 56 consulta, assumiu um ar solene, quase severo, a voz estaladia como um vime seco: - E agora, senhor doutor, tenho um assunto muito particular, que s posso confiar a um amigo... - Esteja vontade. - O doutor Navarro um advogado muito experiente, estudou muito, tem tido tantas causas, conhece todas as malhas da lei como eu conheo todos os recantos da minha fbrica... - amigo Crespo, no o estou a conhecer, deixe-se de rodeios e diga o que pretende. Sabe que pode confiar em mim. - Bem, senhor doutor, queria saber se h alguma maneira, uma forma de a gente prat icar um crime e no ser descoberto... O advogado fechou o dossier e franziu os olhos como se procurasse ver com nitide z todos os vagos contornos daquela inslita consulta. No estou a compreender! muito simples - disse o Crespo com o suor a empapar-lhe o s gestos. - H ou no uma maneira de matar um homem sem se descobrir quem o matou? Navarro acendeu o cigarro esquecido no cinzeiro. O morro, esfriado e grosso, exigiu-lhe a teimosia de dois fsforos, e esse compasso de espera do vcio acendeu-lhe tambm a compreenso pelo cliente. Sabia das suas dive rgncias com o antigo scio, interviera nas longas e difceis negociaes para a cedncia da quota, vira at que ponto se cavara entre eles um abismo de ressentimentos, e par eceu-lhe que a ave agoirenta daquela estranha pergunta era ali que se acoitava. Levantou-se, 57 ps a mo benevolente no ombro do Crespo, o homem continuava de cabea baixa, era um d esconhecido que ali estava, e ento disse-lhe: - No h crime perfeito. Todos os crimes, como todas as aces humanas, deixam rasto, in dcios, pegadas, e o criminoso acaba, normalmente, por ser descoberto. E quando no o tribunal a puni-lo, a prpria vida. H um sentido imanente de Justia, uma ordem natural, a que alguns chama m providncia, que se encarrega de repor a verdade, s vezes por forma e caminhos inimaginveis. Sei de casos de pessoas que escaparam durante anos e acaba ram por ser denunciadas ou tradas por um gesto ou uma confisso num momento de fraq ueza. A vida d muita volta. Por isso, amigo Crespo, se teve um mau pensamento, es quea, afaste-o! No queira sujar o seu nome com um feio acto de vingana! - O senhor doutor fala assim porque no sabe o que se passa!- Nunca h razo para matar! - Mas se eu lhe contar, talvez me d razo... Desatou o colarinho, aligeirou a grava ta, passou a mo pela cara, da testa ao queixo, gesto que tanto podia ser de fuga como de alvio, e contou que o Raimundo desde que lhe vendera a quota, vinha todos os meses fbrica, em dia e hora previamente marcados pelo telefone, exigir-lhe ci nquenta contos, exactamente a quantia que antes recebia como gerente, sob a ameaa de revelar mulher e ao pblico a aventura amorosa que ele tivera com uma empregada, e o aborto que ela fora obr igada a fazer, deixando-a entre a vida e a morte... 58 - O senhor doutor est a ver, no posso aguentar esta chantagem. Qualquer dia dou-lh e dois tiros no corao... - soluo. Se voc resistir chantagem, ele acabar por:deix-lo em paz. E se o canalha d com a lngua nos dentes? J viu a minha reputao? E o que far o marido d ela? O marido no desconfia de nada? - emigrante. - Mas pior do que tudo isso, o senhor perder a cabea e cometer um crime e ir para a cadeia, e calar aquela boca suja! Olhe que at o meu filho me d razo... So, pelo menos, dez anos, contando com as atenuantes. E nenhum desforo, nenhuma vingana, por mais justa que parea, vale a nos sa liberdade... - Mas h-de existir uma maneira de fazer as coisas pelo seguro. Eu no sei, mas o se nhor doutor, se quiser, pode ajudar-me. - No seria seu amigo se lhe desse qualquer esperana. E no seria um verdadeiro advog ado se o aconselhasse a meter-se por esses caminhos. Alis, devo adverti-lo que de pois desta conversa no me sentia em condies de o defender em tribunal... - Mas o Ramiro do Caf matou o cunhado, toda a gente sabe, e o senhor absolveu-o! - lanou o Crespo com os olhos em tio, a voz cont orcida de desespero. - No fui eu que o absolvi. Quem o absolveu foi o tribunal, porque o crime no se provou - objectou o Navarro, voltando a sentar-se e acendendo outro cigarro. 59 - Mas foi o senhor doutor que o defendeu! - Defendi-o porque me convenci que estava inocente, e estava, como se provou! - E como sabia que ele estava inocente? - Porque tinha um alibi! - Um qu? - volveu o Crespo, os olhos acesos como se descobrisse um esconderijo no fundo do pensamento. - Um alibi. Quer dizer, havia duas testemunhas idneas, insuspeitas, que o viram l onge do local do crime, exactamente mesma hora e, portanto, comprovaram a sua in ocncia. Isto que um alibi. Um alibi perfeito.O Crespo repetiu o gesto de h pouco, agora vagarosamente, esfregando primeiro a t esta como se agarrasse uma ideia, e deixando depois a mo ardente escorregar at ao queixo como se limpasse a cara de um mau olhado. Apertou o colarinho, comps a gra vata, respirou longamente e levantou-se de supeto. - Vou pensar a minha vida... - Pense bem, meu amigo, e acabar por me dar razo. **Saffi, aparentemente descontrado, um sorriso incipiente a lavrar-lhe o rosto ma gro, a tempestade a desvanecer-se no caloroso aperto de mo da despedida. - Muito obrigado! Vou mais descansado... Dias depois a sua voz retomara a calma, a saud-lo cordialmente, na outra boca do telefone. - Doutor Navarro, preciso de falar consigo, amanh! Cliente assduo, costumava aparecer sem mar60 cao. O advogado ficou, pois, curioso: - Algum imprevisto? - Nada de especial. Tenho aqui uns clientes atrasados que precisam de ser chamad os pedra. - E quanto ao resto? - Tudo bem. O senhor doutor no s um bom advogado. tambm um bom amigo... - Venha ento s onze horas. - Convinha-me s trs. Trs em ponto, est bem? Navarro consultou a agenda. Tinha uma ma rcao para as duas e meia, um caso de divrcio, no devia ser demorado, e aquiesceu. - Est bem. C o espero. - Mas marque na agenda, senhor doutor, no v esquecer-se... O advogado escreveu "Anselmo Crespo" na linha das quinze horas. assim a vida, o tempo repartido em consultas, conferncias,julgamentos, diligncias outras, como o pobre que reparte o po pelos filhos e no lhe sobra nada, apenas as migalhas , e h ainda os prazos, sempre a correr, implacavelmente, como os rios, que nunca chegam foz, porque o fluxo se renova, e s a morte, a secura da fonte, os transfor ma numa recordao tranquila quando a erva irrompe do seu leito exausto e submergem de verde esttico, silencioso, o fresco e azulado cntico de outrora. No dia seguinte, hora marcada, o Crespo compareceu no escritrio, cumprimentou fam iliarmente a empregada, consultou o relgio em voz alta, trs horas em ponto, menina Rosa, diga a o senhor doutor que j cheguei, espere um bocadinho, senhor Crespo, faa 61 favor de se sentar, o tempo escorre lentamente na ampulheta da sua ansiedade e, entretanto, a porta abre-se, ora viva, amigo Crespo, desculpe a demora, estou s s uas ordens... O Crespo sentou-se, divagou sobre aquele calor abafado e tirou um molho de factu ras da pasta.- para escrever uma cartinha a estes clientes, e se no pagarem, tribunal com eles . - E veio c o senhor por causa disso! Podia mandar o guarda-livros. - Ora, senhor doutor, quem quer, vai, e quem no quer, manda... O advogado desfolhou as facturas, espreitando o outro, discretamente, por cima d os culos, a sondar-lhe a alma. Tinha um ar tranquilo e o mesmo sorriso comeado a r asgar-lhe o rosto cansado. Mas os olhos tremeluziam de impacincia como se quisess em fazer qualquer revelao ou ocultassem qualquer segredo. E foi ento que o silvo in stante de uma ambulncia, a reclamar prioridade, feriu aquela modorra, apagando o sorriso do Crespo. - Mais um desastre, senhor doutor, ou um incndio... A ambulncia gania na rua, como se estivesse bloqueada e tentasse romper o cerco c om os apelos desesperados da sua urgncia. Os silvos foram esmorecendo medida que se afastavam a caminho do hospital, deixando no escritrio o rasto acidulado da su a recordao fugaz. A frequncia daqueles apelos, sobretudo na poca estival, com o trnsi to enfurecido e os incndios nas matas a pintarem de negro o quotidiano, 62 tornara-os banais. A banalidade a repetio do inslito. O Crespo despediu-se, j tarde, senhor doutor, tenho de voltar fbrica, mas ainda de via ir a caminho quando a empregada trouxe ao advogado a notcia fumegante, no pre ciso momento em que o relgio da matriz dava as quatro horas: - Mataram o Raimundo! Encontraram-no na azinhaga da fbrica de confeces, a sangrar, com dois tiros de caadeira no peito... - Dois tiros?! - e o doutor Navarro sentiu o fragor dos dois disparos a percutir -lhe a lembrana, dvida interrogativa a dilacerar-lhe o esprito, como se o impossvel tivesse acontecido. Anselmo Crespo, casado, industrial, de cinquenta e sete anos de idade, foi preso no dia seguinte. Operrios da fbrica, que ouviram os tiros e descobriram o cadver, declararam ao delegado que, na vspera, o patro discutira acaloradamente com a vtima , e dissera, ao desligar o telefone, um arremedo de palavras ameaadoras que o mag istrado, unindo-as pelo fio lgico da suspeita, o faro acusador a guiar-lhe a inve stigao, traduziu por "acabou-se a mama" e "venha, venha, estarei prevenido". Estes indcios, conjugados com as conhecidas desavenas entre ambos e com a circunstncia d e o arguido ter sido visto na azinhaga, cerca das dezasseis horas, em atitude co mprometida, qual fera que busca o rasto perdido da sua presa, justificavam plena mente os mandados de captura e a subsequente acusao. Fortes indcios - concluiu o doutor Navarro, rememorativo, no momento em que o tra ngalhadanas do Meirinho entrava no seu gabinete, sobraando a negra 63 pasta e estendendo a mo cumprimentadora. - Desculpe, mas este assunto no podia ser tratado pelo telefone. Por isso, vim pe ssoalmente expor-lhe as razes por que tenho de o indicar como testemunha. At pela muita considerao que me merece... Sentou-se sem se fazer rogado, alisou as compridas melenas e abriu a pasta, ritu almente, como se ela contivesse um mistrio que no podia ser revelado. Retirou o pr ocesso, os prprios autos ainda em segredo de justia, e entregou-lhos com um sorriso alvar. Navarro examinou o corpo de delito, lendo simultaneamente as laudas tabelinicas d a instruo preparatria e as linhas entumescidas que lhe falavam na memria. Meirinho v igiava-o ostensivamente, a sorver-lhe a respirao da leitura, as pausas de reflexo e as contraces do rosto. - J calculava. O Crespo est em maus lenis - disse o Navarro. - No acho. uma absolvio de caras! - contraps o outro, na sua forma ligeira de analis ar as questes mais complexas. - Como viu, no h testemunhas presenciais e a arma do crime no apareceu. Alm disso, o Crespo nunca teve caadeira... - E depois? - Depois, h um argumento decisivo. - Rasgou o sorriso at ecloso de uma gargalhada, fria e sarcstica quanto uma rajada de vento. O Crespo tem um alibi! - Um alibi? - Sim. Um alibi perfeito! hora exacta em que est acusado de cometer o crime, esta va aqui no escri64 trio do senhor doutor! - No compreendo onde quer chegar - gemeu o doutor Navarro com um arrepio. Meirinho arrebatou o processo com a mo papuda, possessiva, cinco garras cravadas na presa fcil, ficou assim o tempo de duas respiraes ofegantes, lambeu os dedos vor azes e folheou os autos, freneticamente, at chegar linha decisiva da querela onde a unha comprida e suja do seu indicador, como um ponteiro fulminante, apontou a s quinze horas do dia cinco de Junho como sendo o momento inquestionvel em que o Crespo teria desfechado no inditoso Raimundo Lopes os dois tiros que lhe ceifara m a vida. - Ora faa o favor de abrir a sua agenda no dia cinco de Junho e veja quem c esteve s trs horas da tarde! - disse o Meirinho. Navarro abriu a agenda e viu, com os olhos aterrados de lucidez, na sua inconfun dvel letra nervosa, como se conferisse uma certido do seu prprio punho, o nome de A nselmo Crespo a marcar a hora em que os dois referidos tiros haviam feito parar o corao do Raimundo e tolhido os ponteiros do tempo. - No diga mais... - articulou, por fim, a tentar desatar aquele n na garganta. - E um perfeito alibi, no acha? Com o seu depoimento e da sua empregada, vamos sa far o homem! E o senhor doutor no pode recusar o seu testemunho em abono da verda de, no acha? A gargalhada do Meirinho estrugia ainda nas paredes repesas do escritrio. 65Testemunhas de pedra */* O juiz era novo, de provenincia urbana, e nunca tinha ouvido falar em testemunhas de pedra. Franziu o sobrolho com aquela carregada desconfiana que os magistrados sempre revelam quando lhes surge, tirada da manga do imprevisto, uma prova supe rveniente. - Testemunhas de pedra?! - Sim, senhor doutor juiz! - confirmou o advogado. - Mande escavar mais fundo qu e elas aparecem.Era um vulgar caso de demarcao e o julgamento realizava-se no local- No havia marco s entre os dois prdios e discutia-se a posse de metro e meio de terreno. As teste munhas j tinham sido inquiridas, trs de cada lado, umas a darem razo aos autores e outras a porfiarem que a faixa litigada era dos rus. Como frequente nestas aces, a prova revelara-se inconcludente, e a verdade continuava recatadamente oculta num novelo de dvidas e contradies. O juiz dera a entender que ia repartir o mal pelas aldeias, aplicando o preceito legal que manda, em caso de dvida, dividir por ambos os litigantes o terreno em 67 questo. Este desfecho no convinha aos rus, porque os obrigava a tapar as janelas da sua nova moradia, abertas para a courela confinante, e que eram, verdadeirament e, o cerne da demanda. Foi por isso que o advogado, persuadido pelo cliente, requereu que se fizessem escavaes na linha divisria para tentar descobrir o marco antigo, que o ru g arantia ali se encontrar. Os autores no se opuseram ao requerido, cientes como es tavam de que nunca ali existira qualquer marco. O meretssimo, embora contrafeito pela inesperada diligncia probatria, que iria prolongar o julgamento, deferiu a pr etenso dos demandados e ordenou as escavaes. Foi o prprio ru que se encarregou da tar efa. - Se ele diz que est l um marco, que cave ele! - sentenciou ironicamente o autor. O ru no se fez rogado. Cavou afanosamente no local do marco imaginrio, como se proc urasse um tesouro escondido. Tinha j aberto um extenso rasgo de dois palmos de pro fundidade, parecia o comeo duma sepultura, mas a pedra almejada no dava sinal de v ida nem de morte prematura. Os autores e os seus apaniguados riam daquele esforo inglrio, enquanto ele limpava as bagas de suor que lhe escorriam do rosto amargur ado. - H-de aparecer! O meu falecido pai sempre me garantiu que havia aqui um marco! Descansou uns minutos, tirou o casaco, cuspiu nas mos calosas para amaciar o cabo da enxada, inclinou a cabea procura da suposta estrema e disse, como se justific asse a sua teimosia: 68 - O marco h-de estar no alinhamento daquele carvalho... - homem, desista! - alvitrou o juiz ao verificar que perdia o seu precioso tempo . - Deixe-o cavar! - pediu o patrono dos autores, * rebolar-se de gozo. - Nada se * verdade O certo uando viu perde em tentar. O que nos interessa - adjuvou o mandatrio dos rus, a dar uma demo moral ao seu constituinte. que tambm ele no estava muito esperanado, pois o ru s agora falara no marco q a causa perdida.- Hei-de encontr-lo! - volveu o homem. - Quem vivo sempre aparece! - e retomou as buscas ao lado da cova intil. Cavou, escavou, obsecadamente, direita e esquerda da fronteira da sua teimosia,os olhos vidrados de ansiedade, os dedos frenticos a esgaravatarem a terra hmida, at que a enxada deu um golpe certeiro e tilintou nos ouvidos dos espectadores. - O marco j falou! - disse o ru com um sorriso de posse antecipada. - Qual marco, nem meio marco! - contraps o autor. - Aposto a minha vida que no h ne nhum marco! O ru pousou o enxado e com as mos vidas tacteou o rebordo da cova, pondo a descobert o o cocuruto alvinitente de uma pedra, com a ternura do parteiro que sente o lat ejar da cria no bero improvisado dos seus braos. - C est ele! - gritou, triunfante. - Isso no um marco! uma pedra nascedia 69 gracejou o adversrio, cada vez mais divertido. - E um marco, sim senhor. O meu pai sempre disse que havia aqui um marco. - Ora veja, senhor doutor juiz... Aproximaram-se todos. A fenda cavada na terra parecia uma vagina gigante, com o clitris saliente da pedra a provocar o orgasmo do cavador. - Eu tinha razo! Eu tinha razo! O autor, vendo fugir-lhe o terreno debaixo dos ps, lanou-lhe o ltimo desafio: - S marco se tiver as duas testemunhas de pedra! Foi ento que o juiz perguntou, entre surpreso e confuso, pois era a primeira vez que julgava uma aco de demarcao, de que testemunhas se tratava. Explicaram-lhe que o povo chama assim s duas pedras mais pequenas, u ma de cada lado, que atestam a autenticidade do marco e indicam a sua orientao. Co nstituam a prova de que uma qualquer pedra, do feitio de um marco, no era um seixo avulso, enterrado por acaso durante as cavas, mas o sinal evidente da estrema c onsensual entre duas propriedades. O ru deu mais duas cavadelas volta do marco, calmas e precisas, como se conhecess e as cartas do baralho, e descobriu as duas preciosas pedras. - Aqui esto as testemunhas! - proclamou categrico. - No h dvida! - corroborou o advogado. - De facto, parece um marco - admitiu o patrono dos autores, com a mo resignada a sopesar aquela prova definitiva. 70 A questo foi, pois, resolvida a contento dos rus, graas ao contributo convincente e decisivo das testemunhas de pedra, cuja idoneidade foi devidamente realada na do uta sentena: "O homem pode enganar-se, esquecer-se ou equivocar-se, pois frgil o b arro da conscincia, e so mudveis os ventos ao sabor do interesse ou da convenincia d as testemunhas, mas o depoimento objectivo duma pedra , no caso dos autos, a voz antiga da verdade a apontar o recto caminho ao julgador...". - Voc teve sorte! - disse o causdico, quando o ru, mais tarde, o procurou no escritr io para pagar os honorrios. - Se o marco no aparecesse, tinha perdido a causa... - Eu sabia que ele estava l, senhor doutor! Era trigo limpo...- Como?! - admirou-se jurista. - Quando voc me pediu para contestar a aco no me refe riu que houvesse qualquer marco! - E no havia... - Essa agora! Pois o seu pai no lhe disse que o marco estava l? O homem teve um sorriso largo de sabedoria campnia: - Eu vou contar-lhe tudo, senhor doutor. O senhor doutor lembra-se de me ter dit o que a aco estava perdida se as testemunhas no fossem firmes, e que se o outro tam bm no fizesse prova, o terreno seria dividido ao meio? - Sim, lembro. que eu no gosto de enganar os clientes... 71 - E de me dizer que s um marco nos poderia salvar? - Claro! J c ando h muitos anos e sei que, normalmente, nestes casos, s os marcos de cidem a questo. O homem puxou do leno tabaqueiro e esfregou as mos suadas, a ganhar flego para a in esperada confidncia: - Pois no havia marco, mas passou a haver! - No compreendo... Contou-lhe ento, "mas isto fica s entre ns, senhor doutor, pois n em a minha mulher o sabe", que ao ver a causa perdida e tendo a certeza de que o terreno era seu, "a certeza, cert ezinha", decidiu colocar o marco. Aproveitou uma noite escura e chuvosa, escavou sorrateiramente no local pretendido, "olhe que nem um centmetro lhe tirei, senho r doutor", e enterrou a pedra, acompanhada das duas testemunhas. Alisou cuidados amente o terreno revolvido, colocou por cima um lenol de folhas secas, "para fica r tudo como estava", e deixou que a chuva e o tempo disfarassem a escavao... - Mas a pedra era mesmo um marco! E via-se que estava l h muito tempo! - estranhou o advogado, a tentar esclarecer a artimanha. - Pois era! que eu j tenho o rabo pelado e fui arrancar um marco de outra proprie dade para l pr... E tanto que era um marco a srio, que o senhor doutor juiz acredit ou! - E porque no me disse? - Ningum podia saber, nem eu prprio! O senhor doutor no reparou que me fartei de ca var antes de encontrar o raio do marco? 72 - Ento quer dizer que as testemunhas de pedra tambm mentem! - ponderou o advogado, a acentuar a falibilidade de todos os meios de prova e a precaridade da Justia. O cliente alargou o sorriso at s orelhas argutas: - O terreno era mesmo meu, senhor doutor. E s vezes preciso uma mentira para repo r a verdade ... 73A vingana O sargento da Guarda tinha um co chamado Tigre. Um co insolente e volumoso, de rab o interrogativo, plo de burro, orelhas oblquas e uma baba escorrente que parecia sincelo a derreter-se ao vento. Ele dizia que era arraado de pastor-alemo, mas no pa ssava dum plebeu lusitano, mistura abastardada dum Serra da Estrela e duma fmea c ana vira-latas. Gosto dos animais domsticos, e em particular dos candeos, por serem, em suas maneiras aprendidas e nos seus latidos de almas primitivas, o espelho f osco duma frustrada antropomorfia. E compreendo que muitas pessoas amem os ces a ponto de os fazerem seus companheiros privilegiados. A solido, o medo, a carncia d e ternura e at a necessidade de partilhar o silncio, so os motivos ocultos dessa pa ixo, especialmente das vivas tristes e das solteironas, que choram lgrimas de sangu e quando a morte arranca os companheiros dos seus braos cados. Excluo os caadores, porque esses conservam os animais com amor a prazo e com a mesma desmesurada ind iferena com que lim75 pam o cano das espingardas. Mas nunca compreendi por que precisava o sargento da Guarda de um rafeiro a lamber-lhe as botas. No era por medo ou solido, pois usufrua da convivncia de dois cabos e doze praas. No seria tambm por carncias af ectivas, porque, apesar de ser solteiro, as suas mos sapudas s sabiam acariciar o Cdigo das Posturas e o talonrio das multas. De resto, o nome que lhe dera, a evoca r as soturnas ferocidades do seu subconsciente, afastava qualquer resqucio de amo rosidade. Por isso, muito antes do Tigre me entrar metaforicamente no escritrio, embrulhado na acusao criminal contra o meu constituinte Francisco da Silva, o Xico Maneta, j eu me interrogava sobre as causas profundas da posse do carnvoro e, sob retudo, da petulncia do sargento em exibi-lo publicamente como um adereo ou comple mento da sua personalidade. E, excluindo as razes precedentes, que nele, manifest amente, no cabiam, conclura que era a necessidade de ser e sentir-se obedecido por algum que no discutia ordens, por mais disparatadas que fossem. Um co domesticado tem essa vantagem impagvel: empresta-nos a iluso da omnipotncia e ainda por cima no s lambe as mos. O nosso sargento trouxera o Tigre na bagagem da transferncia. E a primeira coisa que fez quando chegou, ainda a criada arrumava as malas, foi passear o cozarro pela Praa, preso a uma trela, certamente para o adaptar nova topografia. E todos os dias ao despir da tarde, durante o ano do seu j longo e antiptico consula do, trazia o companheiro a farejar o 76 centro cvico da terra e a dar mijadinhas imprevistas em tudo o que lhe permitia encostar as patas traseiras. Mijava esquerda e direita, alando os membros peludos com a presteza e compuno dum carteirista. Quem se sentia roubado no seu sossego e higiene eram os passantes e quitandeiros por no poderem dar um pontap no descarado. Se o gesto natural lhes aflorava os olhos, logo lhes morria nas pernas ao verem a carranca do dono, onde sempre parecia borbotar um r iso trocista. Inimigo declarado do co, confessando o pecado nas barbas do sargent o, era porm, o Xico Maneta, que tinha uma frutaria na Praa. O animal corria para o s caixotes arrumados porta e farejava os mimos ali expostos, deixando-lhes impre gnado o selo da vistoria atravs dos fios imperceptveis da sua baba. - Tenha cuidado, nosso cabo, no v que o rafeiro me estraga a fruta!? O sargento sentiu-se duplamente ferido na sua dignidade, pois tanto ele como o T igre haviam sido despromovidos, mal acabavam de chegar. Subiu-lhe das botifarras a raiva antiga das marchas foradas, escorreu-lhe do peito o suor dos exerccios no cturnos e ecoou-lhe nos ouvidos o fragor corrosivo dos clarins:- Veja como fala, porque eu sou sargento e este um pastor-alemo! - e o riso troci sta transmudou-se num esgar de trovo. - Ora mostre-me c a sua licena para ocupar a via pblica! O pobre do Maneta viu logo que o perigo no estava no co, mas no lobo fardado que l he segurava a corrente e agora se lambuzava mais do que o outro. Desfez-se em de sculpas e salamaleques, palavras arrancadas a ferro 77 pela necessidade de sobrevivncia: ignorava que sua senhoria era sargento, o Posto sempre fora comandado por um cabo e 'alm disso, no andara na tropa para conhecer as divisas. Tambm nada sabia de raa de ces e era a p rimeira vez que via um animal assim to bem parecido e estimado. Desculpasse, pois , meu sargento, no tinha licena, confessava a falta, mas era hbito seu expor os pro dutos no passeio, e nunca a senhora Guarda nem o senhor Presidente da Cmara o adv ertiram, e todos faziam o favor de ser seus clientes... O sargento armou em compreensivo. Por esta vez zer no seu antecessor, mas cuidasse de obter a tambm do toldo, que quem no queria problemas e os regulamentos. E ele estava ali para fazer .. A autoridade, ou uma certa autoridade, tambm se exerce perdoando, porque o perdo sempre levado a crdito da sua espada faminta. Ainda no tinha passado uma semana e j o sargento descarregava o montante sobre o quitandeiro: - Ento j est legalizado? Ora mostre-me c essa licena, essa licenazinha... - senhor cabo, perdo, meu sargento, que eu estive doente e ainda no pude ir Cmara, mas se vossa senhoria me permite, amanh trato de tudo... Pagou a multa, claro, e os legais acrscimos, porque as coimas so como as crias, qu e trazem sempre um rabo de tripas no encalo do nascimento. Mas o verdadeiro acrsci mo havia de vir mais tarde, como se 78 ver. O sargento continuava, impante, a passear a rs, e esta, sempre que adregava a lcanar os caixotes, mergulhava o focinho frio na quentura daquelas delcias. O dono fazia-se distrado, e a mesma marca babosa polvilhava a pele adocicada dos frutos. O Maneta engolia a fria, apertava o punho remanescente atrs das costas e d eixava escapar dos beios arrepanhados uma outra e consistente baba: - Mato o filho da puta do co, ai isso mato! - cus