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Antonio Candido sobre Euclides

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  • Digitalizado de CANDIDO, Antonio. Euclides da Cunha socilogo. In: "Remate de males". Departamento de Teoria Literria do IEL/UNICAMP, Nmero Especial Antonio Candido. Campinas, 1999. Anual. ISSN 103-183X. pp. 29-32. Publicado originalmente em CANDIDO, Antonio. Euclides da Cunha socilogo. "O Estado de S. Paulo", So Paulo, 13 dez. 1952, p. 5. Texto-base digitalizado por Juan Carlos So Paulo Brasil NOTA: As palavras em itlico foram aspeadas. O nmero das pginas da revista figura ao longo do texto entre colchetes. Reproduo permitida somente para fins educacionais e desde que citada a fonte.

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    REMATE DE MALES Antonio Candido Nmero especial

    Revista do Departamento de Teoria Literria UNICAMP Campinas

    1999

    EUCLIDES DA CUNHA SOCILOGO

    [p.29] Indaguemos, de incio, os fundamentos de uma possvel sociologia euclidiana para, em seguida, analisar os seus princpios. Lembremos antes do mais que a fundamentao cientfica d' "Os Sertes" visa inicialmente a explicar o comportamento dos fanticos de Canudos e o perfil de seu chefe, Antnio Conselheiro. Para compreender um acontecimento histrico, Euclides pesquisa a psicologia dos protagonistas; para compreend-la, vai at as influncias da raa e do meio geogrfico. Esquema que hoje nos parecia demasiado mecnico, porque hoje, em sociologia, damos relevo a fatores de ordem especificamente social, mas que no seu tempo era de preceito, porque correspondia s concepes, ento dominantes, do naturalismo cientfico. Vejamos a sua posio dentro desta corrente, em que se enquadrou com entusiasmado fervor.

    O papel decisivo atribudo por ele, como notrio, ao meio fsico e constituio racial. Uma leitura cuidadosa d' "Os Sertes", completada pela dos captulos sobre a

  • Amaznia, em " margem da histria", mostrar, porm, que distinguia matizes na sua influncia sobre a sociedade. Assim, veremos que para ele a paisagem geogrfica e o clima tm importncia preponderante quando se trata da distribuio, gnese e configurao dos grupos humanos, avantajando-se a influncia da raa no que diz respeito estrutura psicolgica e ao comportamento dos indivduos. Por outras palavras, o meio fsico age com predominncia sobre a evoluo do grupo; a raa, sobre o comportamento coletivo. No se julgue, porm, que isole um do outro os dois grandes fatores.

    conhecida a sua classificao dos trs tipos em que se diferenciou a sociedade sertaneja e que uma contribuio positiva para a nossa histria social: a sociedade bandeirante das cabeceiras do So Francisco, a sociedade missioneira do seu curso final e a sociedade pastoril das suas regies mdias. Todas com a mesma base tnica _ o cruzamento do europeu com o indgena _ mas instaladas em meios diversos. Eis as suas palavras:

    "Quem considera as povoaes do So Francisco, das nascentes foz, assiste

    sucesso dos trs casos apontados. Deixas as regies alpestres, cidades alcandoradas sobre serras, refletindo o arrojo incomparvel das bandeiras; atravessa depois os grandes gerais, desmedidas arenas feitas sociedade rude, librrima e forte dos vaqueiros; e atinge por fim as paragens pouco apetecidas, amaninhadas pelas secas, eleitos aos roteiros lentos e penosos das misses [...]."

    O meio fsico, a, propiciou trs tipos sociais diversos, numa populao inicialmente

    uniforme; mais ainda: incidiu poderosamente, no apenas na organizao social e na atividade econmica, mas na diferenciao tnica. No mestio inicial, cruza mais ou menos uniforme de branco e ndio, selecionou o subtipo propriamente nordestino. Enquanto o mameluco da foz e da nascente prosseguiram na mistura ver- [p. 30] tiginosa de sangues (com as diversas etnias negras, com novos contingentes brancos) o do serto mediano depurou a mestiagem inicial num tipo estvel, em que se estabilizaram, igualmente, os caracteres psquicos. A instabilidade do mestio, que, para Euclides, tendia a se estabilizar em marcha a r, ou seja, retornando s peculiaridades dos elementos "inferiores" da mistura, foi compensada graas ao isolamento imposto pelo meio fsico. E o tipo do sertanejo se diferencio, em nosso caso tnico, como uma resultante de componentes biogeogrficas.

    No o momento de insistir nas lacunas do determinismo euclidiano, no apego por vezes exagerado aos fatores mesolgicos; ou da antropologia fsica, no raro imaginosa e, algumas vezes, contraditria. Passemos, desde j, ao aspecto propriamente sociolgico do seu pensamento, onde h anlises justas e penetrantes.

    Pouco atrs escrevi a palavra "isolamento", em que desejo insistir, porque uma das chaves da sociologia de Euclides. Como acabamos de ver, para ele a diferenciao tnico-social do sertanejo se deu em virtude da influncia do meio; ora, este agiu como fator de segregao, isolando-o das misturas raciais e do convvio com as populaes do litoral. Todos se lembram das pginas em que descrita n' "Os Sertes" a fora repulsiva do semideserto baiano, repelindo para Oeste e para o Norte as bandeiras e povoadores vindos do Sul, barrando os que vinham de Leste. Fechado nele, desenvolveu-se o sertanejo tpico, filho da segregao, isolado do resto do Pas. No entanto, erra quem julgar, apressadamente, que estamos, segundo Euclides, ante um fenmeno de natureza

  • puramente geogrfica. Qualquer anlise mais apurada desde logo revela que, sob sua pena, o conceito de isolamento tambm sociolgico. preciso, com efeito, distinguir o isolamento-causa, forado pelo meio, do isolamento-efeito, tipo especfico de vida social, definidor de uma cultura segregada e por sua vez fator decisivo da organizao social. Alm disso, discriminando os fatores do isolamento, e temperando as influncias do meio fsico, Euclides estuda dois fatores eminentemente sociais: o econmico e o poltico. Eis as suas palavras:

    "Causas muito enrgicas determinaram o insulamento e a conservao do

    autctone: [...] Foram, primeiro, as grandes concesses das sesmarias, definidoras da feio mais durvel do nosso feudalismo tacanho [...] A carta rgia de 7 de fevereiro de 1701 foi, depois, uma medida supletiva desse isolamento. Proibira, cominando severas penas aos infratores, quaisquer comunicaes daquela parte dos sertes com o Sul, com as minas de So Paulo [...] Ora, alm destes motivos sobreleva-se, considerando a gnese do sertanejo no extremo Norte, um outro: o meio fsico dos sertes em todo o vasto territrio que se alonga do leito do Vasa-Barris ao do Parnaba, no Ocidente".

    V-se tambm, pelo trecho, que o fator racial foi contrabalanado , no processo de

    diferenciao do sertanejo, pelo fator isolamento, em que se enfeixam componentes raciais e geogrficos. Tanto, ou mais importantes que as conseqncias antropolgicas, so as conseqncias sociais do fenmeno.

    Como sabemos, um dos maiores fatores da evoluo social a difuso de cultura, a comunicao dos traos culturais de um grupo a outro. Euclides ilustra este [p. 31] fenmeno com eloqncia, ao descrever a autonomia cultural do caboclo nordestino. Premido por um meio adusto, isolado da civilizao pelo deserto, pelo regime de propriedade, pela poltica metropolitana; isolado do seu semelhante pela fraca densidade demogrfica _ voltou-se sobre si mesmo e elaborou, com os parcos elementos de que dispunha, o equipamento mnimo para sobreviver. "Os Sertes" descrevem a sua roupa de couro, espcie de couraa; descrevem os poucos objetos que fabrica _ a rede de caro, a bolsa de caa, a sela tosca, o cacete cheio de chumbo; descrevem os que recebeu do litoral _ foice, faca de ponta, espingarda, bacamarte, esporas; falam de sua dieta brbara, de passoca amerndia; da arca e dos dois ou trs tamboretes que lhe mobiliam a casa frgil. A est o acervo da cultura material. Da cultura espiritual, um catolicismo adaptado ao meio, misturado de fetichismo, consistindo em ritos propiciatrios _ os mais necessrios para quem luta contra a seca _ e chegando a criar um santo prprio, um santo profissional: So Campeiro.

    Esta cultura rude, fruto da segregao social, no pode, por isso mesmo, evoluir. Tendo criado o mnimo para ajustar-se ao meio, o sertanejo se aferra a este mnimo, enquanto as populaes litorneas, uma centena de quilmetros alm, esto centenas de anos sua frente. o caso tpico daquilo que, depois de Ogburn, se chama em sociologia "demora cultural".

    Euclides analisa largamente o fenmeno, a fim de mostrar sua conseqncia lgica: o conflito. De fato, quando uma cultura em estado de demora entra bruscamente em contacto com padres evoludos, surge uma situao de antagonismo, que se resolve na luta pela preservao dos valores antigos, de um lado, superimposio de valores novos, do outro. O desfecho quase sempre aceleramento de mudana na cultura dominada, com a difuso maior ou menor dos traos da cultura dominante. o que

  • vemos todos os dias nos fastos na colonizao europia; foi o que Euclides viu, estudou e compreendeu na tragdia de Canudos.

    Se no estudo da configurao geral da sociedade sertaneja ele erige em fio condutor o fenmeno do isolamento cultural, no estudo mais restrito da atividade social dos seus membros, podemos dizer que adota o critrio da intermitncia segundo Von Wiese, os fatos sociais se processam numa certa "direo" e conforme um certo "ritmo"; a direo seguida pelos fenmenos da sociedade sertaneja foi a do isolamento, que condiciona a sua evoluo; o ritmo, seria o da intermitncia. Todos lembramos o contraste, assinalado por Euclides em pgina famosa, entre a postura habitual do caboclo _ mole, sem aprumo _ e a que assume nos momentos de exceo: o socilogo nos diz que o caboclo precisa poupar energia para as ocasies decisivas. Esta alternncia de atitudes aparece a cada passo na parte sobre "O Homem". No meio fsico, a seca e a bonana; no homem, a presteza e a preguia; no grupo, a humildade mstica e o assomo sanguinrio; nas ocupaes, a monotonia do pastoreio e o turbilho das vaquejadas. Sob a pena de Euclides, "intercadncia", "intermitncia", "intercorrncia", so vocbulos diletos, tanto quanto "insulado", "insulamento" _ estes definindo a direo, aqueles o ritmo da vida social.

    Com estas consideraes quis mostrar: 1. que se podem desentranhar da obra de Euclides da Cunha critrios especificamente sociolgicos de interpretao; 2. que [p.32] tais critrios aparecem concretizados em alguns princpios diretores. Falemos, agora, do aspecto por ventura mximo do seu livro: a interpretao psico-sociolgica do sertanejo.

    Do ponto de vista sociolgico, este aspecto d' "Os Sertes" constitui um estudo de comportamento coletivo, preso influncia direta do meio e dos caracteres psicolgicos da raa. Mas comportamento coletivo anormal, no apenas porque se trata de uma conjuntura de crise, como porque o autor enxerga, na condio psico-social do sertanejo, uma constante por assim dizer de desvario, devida ao ritmo intermitente, que assinala a sua existncia. Mentalidade primitiva, homogeneidade cultural, sincretismo religioso, brutalidade dos elementos _ combinam-se para proporcionar tal desvario, cuja vlvula normal o cangao, mas que explode periodicamente em crise de misticismo.

    Para Euclides, a populao sertaneja um bloco tnico e cultural; uma sociedade insulada em cujo corpo no se processou a diviso interna do trabalho social, diferenciador e enriquecedor. Ora, sabemos que quanto mais homognea a sociedade, tanto mais facilmente, se estereotipa o comportamento, impondo-se os seus padres, poucos e fortes, como norma coletiva. Na multido, forma embrionria de sociedade, a homogeneidade mxima, tornando-se mximas a coeso e a sugestibilidade. Para Sighle, e Tarde na primeira fase das suas idias, a multido era dotada de impulsos acentuadamente maus. Euclides parece convir com esta generalizao falha, que j antes de aparecer o seu livro era contrariada pelo prprio Tarde e, no Brasil, por Nina Rodrigues. Vemos, com efeito, que ele trata a sociedade sertaneja como se fosse imensa multido. Dota-a das mesmas tendncias, simplifica as suas disparidades, unifica-a como um bloco slido na participao da mesma conscincia coletiva. Em tal sociedade, as ondas de misticismo rompem com toda a fora, porque, como nas multides, as foras conscientes so afogadas pela massa da emotividade desencadeada. Libertam-se os automatismos, derribando o controle vacilante da razo, e as tendncias primitivas das etnias "inferiores", contidas pelo equilbrio instvel da mestiagem, irrompem furiosas.

    Para explicar a figura do Conselheiro, analisa esses mecanismos de psicologia coletiva. A sua tese que ele em si nada tinha de preeminente, pois apenas encarnava,

  • dando-lhe corpo, todo o psiquismo incoordenado das populaes sertanejas. Mas, exprimindo-as, reforava o seu mpeto, dava-lhes razo de ser, mostrando-lhe como que o prprio retrato, sintetizado numa s pessoa. O quadro de Euclides impressionante e grandioso, embora j no satisfaa s exigncias de objetividade da cincia social. Para tra-lo, foi buscar elementos no arsenal rapidamente envelhecido da escola antropolgica italiana, da psicologia das multides e dos povos. Assim foi que superestimou as constantes mrbidas da personalidade, alm de simplificar o problema da conscincia coletiva e da liderana. Lendo-o, tem-se a impresso de que a sociedade sertaneja funciona como em um bloco automtico, maneira de um monstruoso indivduo. No calor da sua viso, tritura os possveis coeficientes de variabilidade, afasta as discrepncias, talha, simplifica, e nos d um panorama quase onrico de psicopatologia social. Alm disso, estende os seus conceitos para alm do [p.33] serto. Ao analisar as reaes da opinio pblica no resto do Pas, procede com o mesmo arbtrio imperioso; no v grupos, no discerne o contraponto da organizao social: tudo, para ele, se apresenta sob as espcies de enorme multido, simplificada, percorrida pelos arrepios da anormalidade coletiva. Mais ainda. Faltou-lhe viso sociolgica em mais de um ponto: assim, no percebeu que Canudos, em vez de representar apenas um fenmeno patolgico, isto , de desorganizao social, significava tambm, seno principalmente, desesperada tentativa no sentido de uma nova organizao social, uma soluo que reforasse a coeso grupal ameaada pela interferncia da cultura urbana.

    Com tudo isso, porm, e talvez por causa disso tudo, a sua interpretao no menos genial. Muito mais que socilogo, Euclides da Cunha quase um iluminado. As simplificaes que operou, na sntese das grandes vises de conjunto, permitem-lhe captar a realidade mais profunda do homem brasileiro do serto. Por isso h nele uma viso por assim dizer trgica dos movimentos sociais e da relao da personalidade com o meio _ fsico e social. Trgica, no sentido clssico, de viso agnica em que o destino humano aparece dirigido de cima. O homem euclidiano o homem guiado pelas foras telricas, engolfado na vertigem das correntes coletivas, garroteado pelas determinaes biopsquicas: _ e no entanto, elevando-se para pelejar e compor a vida na confluncia destas fatalidades. Semelhante viso no se confunde com o mecanismo de muitos deterministas do seu tempo, ou anteriores a ele. Em Ratzel, ou em Bukle, no h tragdia: h jogo mtuo quase mecnico entre o homem e o meio. Em Euclides, porm, seu discpulo, podemos falar de sentimento trgico, porque nele as determinantes do comportamento humano, os clebres "fatores" postos em foco pela cincia, no sculo XIX, so tomados como as grandes foras sobrenaturais, que movimentam as relaes dos homens na tragdia grega. S o compreenderemos, pois, se o colocarmos alm da sociologia _ porque de algum modo subverte as relaes sociais normalmente discriminadas pela cincia, dando-lhes um vulto e uma qualidade que, sem afogar o realismo da observao, pertencem antes categoria da viso.

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