Antonio Milan Puelles - Os_trava-línguas_dos_relativistas

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Os trava-línguas do relativismo Por Antonio Millán-Puelles Quatro pequenos diálogos simples, ingênuos, quase telegráficos. Mas neles o filósofo António Millán-Puelles consegue plasmar, de forma sugestiva as contradições do relativismo que impregna a mentalidade contemporânea DIÁLOGO 1 X: “Você não acha, amigo Y, que os relativistas deixam de ser completamente relativistas justamente quando dizem que tudo é relativo?” Y: “Perdoe-me, amigo X, mas não entendi o que você quis dizer”. X: “Vejamos: o que quero dizer – e digo – é que se os relativistas pensam a sério que tudo é relativo, pela boa lógica teriam de pensar que até mesmo isso de ser tudo relativo é também relativo”. Y: “Ah, bom... agora entendi! Mas não vejo nenhum inconveniente em admitir que isso de tudo ser relativo é relativo também. Vê, não deixei de ser relativista”. X: “Você está completamente equivocado. Continua aquém, apesar do que acaba de afirmar”. Y: “O que você está dizendo?” X: “Isso mesmo que você ouviu. Porque se você pensa a sério que isso de tudo ser relativo é relativo também, terá de pensar (se quiser continuar sendo relativista) que por sua vez é relativo que seja relativo isso de tudo ser relativo, e assim por diante...” Y: “Ou seja: por muito que um relativista relativize o relativismo (coisa que terá de fazer, para ser um bom relativista), sempre precisará voltar a relativizar as próprias afirmações: conseqüentemente, jamais conseguirá ser um completo relativista”. X: “É isso aí, sem mais nem menos. Agora sim que você me entendeu.” DIÁLOGO 2 Ramón de Campoamor (poeta espanhol do século XIX): En este mundo traidor nada es verdad ni es mentira; todo es según el color del cristal con que se mira

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  • Os trava-lnguas do relativismo

    Por Antonio Milln-Puelles Quatro pequenos dilogos simples, ingnuos, quase telegrficos. Mas neles o filsofo Antnio Milln-Puelles consegue plasmar, de forma sugestiva as contradies do relativismo que impregna a mentalidade contempornea DILOGO 1

    X: Voc no acha, amigo Y, que os relativistas deixam de ser completamente relativistas justamente quando dizem que tudo relativo?

    Y: Perdoe-me, amigo X, mas no entendi o que voc quis dizer.

    X: Vejamos: o que quero dizer e digo que se os relativistas pensam a srio que tudo relativo, pela boa lgica teriam de pensar que at mesmo isso de ser tudo relativo tambm relativo.

    Y: Ah, bom... agora entendi! Mas no vejo nenhum inconveniente em admitir que isso de tudo ser relativo relativo tambm. V, no deixei de ser relativista.

    X: Voc est completamente equivocado. Continua aqum, apesar do que acaba de afirmar.

    Y: O que voc est dizendo?

    X: Isso mesmo que voc ouviu. Porque se voc pensa a srio que isso de tudo ser relativo relativo tambm, ter de pensar (se quiser continuar sendo relativista) que por sua vez relativo que seja relativo isso de tudo ser relativo, e assim por diante...

    Y: Ou seja: por muito que um relativista relativize o relativismo (coisa que ter de fazer, para ser um bom relativista), sempre precisar voltar a relativizar as prprias afirmaes: conseqentemente, jamais conseguir ser um completo relativista.

    X: isso a, sem mais nem menos. Agora sim que voc me entendeu.

    DILOGO 2

    Ramn de Campoamor (poeta espanhol do sculo XIX):

    En este mundo traidornada es verdad ni es mentira;todo es segn el colordel cristal con que se mira

  • (Neste mundo traidornada verdade nem mentira;tudo conforme a cordo cristal com que se mira).

    Eu:

    Se neste mundo traidor nada verdade nem mentira, tampouco ser verdade nem mentira que nada verdade, nem mentira, neste mundo traidor. Nem sequer ser verdade nem mentira que Campoamor foi o autor desses versos. Alm do mais, de que cor dever ser o cristal para que atravs dele se possa ver que nada verdade, nem mentira, neste mundo traidor? (Pois alguma cor esse tal cristal deve ter.) E mesmo essa cor, no depender tambm da cor do cristal com que se a mire, e assim por diante, in infinitum?

    DILOGO 3

    P: Para ser tolerante preciso ser relativista.

    Q: E por que para ser tolerante preciso ser relativista?

    P: Ora, porque os que no so relativistas so uns fanticos, e todos os fanticos odeiam a tolerncia.

    Q: Mas os relativistas no so uns anjinhos. Eles tambm odeiam algo. Odeiam a intolerncia, e o seu fanatismo contra ela to grande como o dos no-relativistas contra a tolerncia. Sendo assim, se os relativistas raciocinassem de acordo com o relativismo, teriam de reconhecer que o direito dos tolerantes no superior ao direito dos intolerantes tanto um como o outro so igualmente relativos e subjetivos , e que esses direitos na verdade nem mesmo existem: s existe o fato de uns preferirem a tolerncia e outros a intolerncia.

    P: Voc pensa ento que o relativismo no logicamente compatvel com nenhum tipo de direitos, nem sequer com os direitos fundamentais da pessoa humana?

    Q: isso mesmo o que eu penso, embora o que eu desqualifico seja o relativismo, e no os relativistas.

    P: Talvez voc tenha razo... Pensarei sobre isso.

    DILOGO 4

    A: Estou com frio.

    B: Eu, pelo contrrio, estou com calor.

  • C: Esto vendo? Isso uma prova ou um exemplo de que tudo relativo, at a temperatura.

    D: Eu no acho. O relativo no a temperatura, mas a maneira como ela sentida por A ou por B.

    C: Para mim tanto faz, porque o que eu quero dizer que o conhecimento que temos da temperatura que relativo, em cada caso, ao sujeito correspondente.

    D: No verdade. Embora A esteja sentindo frio e B esteja com calor, ambos podem conhecer a temperatura de maneira objetiva.

    C: Como?

    D: Muito simples: basta consultar um termmetro. Eis um outro exemplo: dois passageiros vo no mesmo carro; um deles pensa que o carro est andando devagar demais, e o outro afirma que o carro est indo rpido demais, talvez at com excesso de velocidade. H um modo fcil de conhecer a velocidade real do carro: ver o que marca o velocmetro.

    Antonio Milln-Puelles(11/2/1921 - 22/3/2005). Catedrtico de Fundamentos de Filosofia da Universidade de Madrid desde 1951 e, desde 1976, catedrtico de Metafsica da Universidade Complutense. Membro da Real Academia Espanhola de Cincias Morais e Polticas, foi professor extraordinrio da Universidade de Navarra e professor visitante em vrias outras universidades europias e americanas. Recebeu em 1996 o prmio Aletheia, uma das mais importantes distines mundiais em Filosofia. Da sua produo bibliogrfica, traduzida a vrios idiomas, cabe destacar alm do seu muito difundido manual Fundamentos de Filosofia obras como O problema do ente ideal, A formao da personalidade humana, O Homem e a Sociedade, Lgica dos conceitos metafsicos, Ontologia da existncia histrica, A estrutura da subjetividade, Economia e liberdade, O interesse pela verdade, Teoria do objeto puro, etc. Alm dos livros, publicou centenas de artigos, tanto especializados como dirigidos ao grande pblico. Muitos filsofos importantes, dentro e fora da Espanha, reconhecem-no como mestre e inspirador.