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1 Thomas Merton: Mastigando as Novas Sementes de Contemplação I. Introdução; O Falso Eu 1. Ainda não estou seguro da ortodoxia teológica da afirmação frequentemente repetida que “Deus é brasileiro”. Tomara que seja. O que posso afirmar com certeza é que Thomas Merton, cujo primeiro centenário de nascimento comemoramos e celebramos neste retiro, é brasileiro. Como ele conseguiu sua cidadania? Por ser um adepto extraordinário do fenômeno cultural brasileiro da “antropofagia”. Este termo, tal como utilizado pela Semana de Arte Moderna (cujo centenário também se aproxima rapidamente) refere-se a uma capacidade artística criativa e transformativa: a capacidade de se assumir a herança artística de outra cultura, assimilá-la e então, com as riquezas inerentes de sua própria cultura, gerar algo genuinamente novo. Evidentemente, não estamos falando de plágio ou sequer de popularização. Popularização é o dom de ser capaz de apresentar em termos amplamente acessíveis e com certa redução da qualidade intelectual e estética, o pensamento de um artista ou pensador mais original e mais difícil. 2. Merton não era um popularizador, mas um antropófago. Para um leitor formado na tradição mística ocidental, é impossível não perceber a influência marcante de S. Agostinho, dos Padres Cistercienses (especialmente de S. Bernardo) e de S. João da Cruz. Alguns capítulos de nosso texto básico, Novas Sementes de Contemplação, são reflexos literais de passagens centrais destes escritores, e com certa frequência, aparecem citações palavra por palavra (sem atribuições, como era o caso com o próprio Bernardo). Mas Merton, pelo poder do seu intelecto, sua vida interior intensa e ardorosa e seus grandes dons literários (que abrangem toda a gama de possibilidades literárias desde o sarcasmo mordaz até a metalinguagem extática), realmente interiorizou esta tradição, ruminou-a, mastigou-a (a própria essência da lectio divina) e saiu com algo maravilhosamente novo: uma expressão genuinamente do séc. XX da mística cristã, que se enriquecia cada vez mais na medida em que incluía (reincluía) aspectos às vezes ausentes dos escritos místicos mas não da grande tradição patrística: a crítica social, os direitos dos diversos tipos de marginalizados, a moralidade dos conflitos armados, o diálogo ecumênico e inter-religioso. (A propósito, a junção de espiritualidade cisterciense, João da Cruz e modernidade também é típica de nosso ex-abade geral, Bernardo Olivera).

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Thomas Merton: Mastigando as Novas Sementes de Contemplação

I. Introdução; O Falso Eu

1. Ainda não estou seguro da ortodoxia teológica da afirmação frequentemente

repetida que “Deus é brasileiro”. Tomara que seja. O que posso afirmar com

certeza é que Thomas Merton, cujo primeiro centenário de nascimento

comemoramos e celebramos neste retiro, é brasileiro. Como ele conseguiu sua

cidadania? Por ser um adepto extraordinário do fenômeno cultural brasileiro da

“antropofagia”. Este termo, tal como utilizado pela Semana de Arte Moderna

(cujo centenário também se aproxima rapidamente) refere-se a uma capacidade

artística criativa e transformativa: a capacidade de se assumir a herança artística

de outra cultura, assimilá-la e então, com as riquezas inerentes de sua própria

cultura, gerar algo genuinamente novo. Evidentemente, não estamos falando de

plágio ou sequer de popularização. Popularização é o dom de ser capaz de

apresentar em termos amplamente acessíveis e com certa redução da qualidade

intelectual e estética, o pensamento de um artista ou pensador mais original e

mais difícil.

2. Merton não era um popularizador, mas um antropófago. Para um leitor formado

na tradição mística ocidental, é impossível não perceber a influência marcante de

S. Agostinho, dos Padres Cistercienses (especialmente de S. Bernardo) e de S.

João da Cruz. Alguns capítulos de nosso texto básico, Novas Sementes de

Contemplação, são reflexos literais de passagens centrais destes escritores, e

com certa frequência, aparecem citações palavra por palavra (sem atribuições,

como era o caso com o próprio Bernardo). Mas Merton, pelo poder do seu

intelecto, sua vida interior intensa e ardorosa e seus grandes dons literários (que

abrangem toda a gama de possibilidades literárias desde o sarcasmo mordaz até

a metalinguagem extática), realmente interiorizou esta tradição, ruminou-a,

mastigou-a (a própria essência da lectio divina) e saiu com algo

maravilhosamente novo: uma expressão genuinamente do séc. XX da mística

cristã, que se enriquecia cada vez mais na medida em que incluía (reincluía)

aspectos às vezes ausentes dos escritos místicos mas não da grande tradição

patrística: a crítica social, os direitos dos diversos tipos de marginalizados, a

moralidade dos conflitos armados, o diálogo ecumênico e inter-religioso. (A

propósito, a junção de espiritualidade cisterciense, João da Cruz e modernidade

também é típica de nosso ex-abade geral, Bernardo Olivera).

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3. Um dos aspectos mais interessantes dos escritos de Merton – que crescia com o

passar do tempo – é a tensão entre pietas e rebelião, lealdade e autenticidade

pessoal. Era sua pietas, acho eu, que o levou a se mergulhar durante toda sua

vida adulta nos textos sagrados da cristandade. Foi sua tendência à crítica que

providenciou o ímpeto para novas formulações destes textos e novas

compreensões das implicações destes textos na vida do monge, da comunidade

monástica, da Igreja Católica e da sociedade contemporânea.

4. Com a sua permissão, nestas conferências gostaria de aplicar a antropofagia de

Merton ao próprio Merton, ainda que sem a sua genialidade, tomando como base

aquilo que me parecem ser os cinco focos centrais das “Novas Sementes”: a) o

falso eu; b) o verdadeiro eu; c) contemplação – a jornada para o verdadeiro eu;

d) communio humanorum, a comunhão de todos os seres humanos; e e) o papel

de Cristo e de Nossa Senhora. Em parte, o que me dá coragem para tentar isto é

um certo parentesco entre Merton e eu: formados na mesma universidade,

membros da mesma Ordem religiosa, profundamente interessados nos mesmos

autores espirituais, uma mistura de pietas e independência. E o que me dá mais

coragem é a presença e a participação de vocês. Como eu disse na sinopse

contida no anúncio/ convite para este retiro, muitos de vocês têm uma

experiência muito maior, mais ampla e mais profunda de Merton do que eu (que

tenho a tendência de não aventurar-me além do séc. XVII). Dependo das

contribuições de vocês, de suas intuições, de suas correções. Ao mesmo tempo,

o que mais me encoraja é a ideia com a qual Laert inicialmente propôs o retiro

para mim: “Merton: Vivendo o Legado”. Viver um legado não é obra de um

copista de manuscritos, mas de encontrar companhia, inspiração e orientação na

obra de um mestre espiritual. Tentemos fazer isto juntos neste fim de semana.

5. O “falso eu”, que à primeira vista poderia parecer fundamentalmente um

conceito psicológico, é para Merton, sobretudo, um conceito teológico-

antropológico, ou antes, uma ameaça perene que se tornou uma realidade

trágica, tanto no nível do indivíduo quanto da cultura. O falso eu, no nível mais

profundo, é o ser humano desconectado de sua relação com Deus. O problema é

que Deus não representa uma das muitas pessoas com as quais o homem pode

ou não estar em relação, sem consequências genuínas para o seu ser e o seu

destino. A relação do ser humano com Deus é a sua identidade. O homem só é si

mesmo dentro do contexto de sua relação dinâmica receptiva e responsiva a

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Deus. Você não consegue achar a linha tracejada onde se pode cortar e separar o

ser humano de Deus e ainda assim acabar com um ser humano. Obviamente, que

você acaba com “algo”. Mas este algo é o falso eu. O “corte” não é algo que

simplesmente “acontece”. Trata-se do próprio instinto do falso eu – de colocar-

se fora do alcance da vontade e do amor de Deus.

6. O falso eu, como Merton o chama, é o “ego”, o “indivíduo”. “Indivíduo”

significa “indivisível em si mesmo” mas para Merton o peso da palavra deve ser

entendido como colocado sobre a divisão do homem de outras pessoas. No

centro do falso eu se encontra um buraco escancarado. Este buraco,

compreendido positivamente, é a receptividade inata e criatural do ser humano

ao influxo da vida divina. Porém, quando uma pessoa se fecha (culpavelmente

ou não) a esta vida primordial, o buraco é simplesmente um buraco.

7. Mas não se trata de um buraco confortável ou tolerável. Trata-se da “nudez” do

homem – da verdadeira nudez de Adão, interiormente nu, despojado de Deus. O

homem não suporta estar nesta situação, não suporta experimentar-se nesta

situação. Ele, então, tenta o impossível: construir uma identidade por conta

própria ao redor de um vazio. E é isto, mais especificamente, o falso eu: o eu

autoconstruído onde a “roupagem” existe para esconder e negar (especialmente a

si mesmo) o vácuo no centro. É o extremo oposto, pelo menos superficialmente,

do conto de fadas, “A Roupa Nova do Imperador”. Na história, havia um

imperador de verdade, em tamanho real, mas ele não estava usando nada. Aqui,

há um monte de apetrechos mas eles estão todos apertadamente amarrados ao

redor de um oco. Merton fala frequente e compassionadamente acerca das

tentativas fracassadas do ser humano de criar um centro através do acréscimo de

camadas exteriores. As dicas que o indivíduo utiliza para construir este conceito

são tomadas da cultura ambiente. Não tendo tesouro dentro de si mesmo, o

pobre ser humano não tem escolha senão absorver os valores dominantes da sua

sociedade que, em sua vasta maioria, vive a mesma perdição espiritual do que o

próprio indivíduo.

8. O resultado disto, para Merton, é uma horrível distorção de um dos seus valores

mais prezados: a comunhão. O falso eu busca intimidade, proximidade, relação

com outros não para se dar (autodoação), nem para criar uma sociedade

verdadeiramente humana, mas para se confortar dentro do calor da massa

aglomerada. Merton emprega palavras muito fortes sobre o conformar-se ao

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consumismo do mundo assim como sobre o engodo do totalitarismo. Em ambos

os casos, o indivíduo sucumbiu meio que de forma desesperada à sua impotência

enquanto pessoa e foi magnetizado pela oferta de uma identidade considerada

um “sucesso” por adquirir uma larga porção daquilo que a sociedade julga

desejável, ou uma identidade que de fato consiste numa renúncia da integridade

pessoal e da submissão a uma ideologia totalitária e ao seu “líder”.

9. Tragicamente (mas potencialmente, salvificamente) o ser humano permanece

profundamente insatisfeito com esta situação existencial. Esta insatisfação se

manifesta sobretudo em medo e ódio. Merton está convencido de que, na sua

raiz, este ódio é ódio de si mesmo em sua inautenticidade. Ter consciência

explícita deste fenômeno, porém, é a forma mais desafiadora de ódio: ela exige

certo grau de autoconhecimento (baseado numa verdade espiritual real) assim

como certa coragem moral: a capacidade de suportar o peso da própria pobreza

sem buscar bodes expiatórios aos quais podemos inconscientemente transferir a

culpa e a dor. Muito mais frequente é o fenômeno do ódio de si mesmo

processado através do ódio a outra pessoa. Para a maioria das pessoas, é

simplesmente insuportável carregar o peso de seu ódio a si mesmas e assim o

ódio é automaticamente aplicado aos outros – isto é, razões merecedoras de ódio

nos outros contínua e espontaneamente se apresentam.

10. Este ódio mútuo está sempre fervilhando e prestes a explodir a qualquer

provocação, cuja maioria, para Merton, tem que ver com a divisão das pessoas

em “nós” e “eles”. O “eles”, os outros, são os receptores necessários da carga de

medo e ódio que o falso eu carrega dentro de si mesmo. A solidariedade do

“nós” deriva-se, em última análise, da antipatia a “eles”. Se fosse possível

exterminar totalmente o “eles”, o “nós” inevitavelmente se subdividiria de novo

de modo que pudesse haver um novo “eles” sobre o qual projetar nosso ódio de

nós mesmos. É importante ver que, para Merton, os piores e maiores males

sociais – sobretudo a guerra nuclear, sobre a qual Merton possuía uma aguda

consciência profética – surgem deste conluio do indivíduo com o falso eu.

11. Um aspecto superficialmente paradoxal deste ódio de si mesmo é a busca

incessante de excelência, de ser “melhor do que os outros” (Merton se baseia

neste capítulo inteiramente no tratado de Bernardo sobre os graus da humildade

e da soberba). Como Bernardo e Merton demonstram, esta busca de excelência é

extraordinariamente competitiva, combativa e hostil. É uma tentativa de adorar-

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se para poder sair do sofrimento do ódio de si mesmo. Ela se realiza à custa de

um autodistanciamento progressivo e desprezador dos outros: de nossos irmãos

e irmãs, daqueles em posições de autoridade, do próprio Deus. Mas é a dor que

motiva todo o processo, e quanto mais sucesso se tem nele, mais a pessoa se

sente só e miserável. O caso clássico e supremo desta autoexclusão é o demônio.

Merton escreve reveladoramente sobre a “Teologia Moral do Demônio” e deixa

claro que a teologia do demônio é uma obsessão com o mal, o mal dos outros

como um antídoto à consciência do seu próprio. O Papa Francisco tem composto

alguns textos pertinentes sobre a obsessão com o mal por parte de alguns

cristãos e em sua maneira direta usual chega ao ponto de dizer que estas pessoas

não são cristãs.

12. Ninguém pode se resgatar de ser um falso eu. Faz parte da ilusão do falso eu

achar que isto é possível. Espero que esta apresentação de algumas das facetas

do falso eu haja estimulado um desejo doloroso mas santo de receber e de

experimentar o seu verdadeiro eu. Não teria sentido algum em Merton, ou em

qualquer outra pessoa, dizer tanto sobre o falso eu se esta fosse a única

possibilidade existencial. Não é. E alcançar o verdadeiro eu é a salvação. E para

refletir sobre isto, vocês terão que aguardar até a próxima conferência.

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II. O Verdadeiro Eu

1. O verdadeiro eu é a pessoa que realmente somos, é um assumir e viver, livre e

ativamente, a nossa identidade genuína.

2. A Fonte desta identidade é o próprio Deus. Deus é a fonte de todo ser e a fonte não

somente como Criador que fabrica algo fora de si e que depois a deixa em sua existência

separada, mas como o mistério secreto de todo ser que permanece dentro dele,

perenemente vivificando-o.

3. S. João da Cruz diz que há três modos da presença divina nas criaturas: a) sua presença

por seu poder criador e providente em todo ser existente; b) sua presença pela graça em

todo cristão batizado; c) sua presença reconhecida e abraçada pelo ser humano através

do conhecimento e do amor. É nesta terceira modalidade de presença que existe a

possibilidade de uma plenitude de relação entre Deus e o ser humano; é esta presença

recebida e “reflexiva” que é o centro do verdadeiro eu mertoniano.

4. O ser humano em seu eu verdadeiro reconhece que Deus é a sua fonte. Sua dependência

de Deus para o seu ser pessoal não é experimentada como submissão opressiva ou como

incerteza radical mas como a base ontológica da sua comunhão com Deus e como uma

“dependência completamente confiável”: a Fonte suprema nunca deixará de fluir para as

suas criaturas.

5. O verdadeiro eu percebe que ele é um dentre um número infinito de palavras criadas

proferidas por Deus, todas elas proferidas no Filho (seminarium entium). O próprio

Deus se encontra presente em cada uma destas palavras, dizendo-Se, expressando-Se –

em cada uma delas. Aquilo que Deus diz dentro da criatura é o que ele sempre diz, “Eu

sou”. Esta presença divina autoexpressiva é a base da própria afirmação do ser humano,

“Eu sou”. Estes dois “Eu sou” não estão em competição nem tampouco são

completamente distintos. O pequeno “Eu sou” se encontra enraizado no grande “Eu

sou” porque, como diz S. Bernardo, “Deus é o ser de todos os seres” e como Merton vai

dizer, Deus é meu “outro eu”.

6. Como o eu secreto do meu ser, Deus não é um “objeto” – não é uma “coisa” a ser

analisada, dominada, possuída, compreendida. Merton diz que Deus nunca é um “o

quê”, mas sempre um “quem”, sempre um “tu”. Ele é o supremo mistério de nossa

própria pessoa – e ao mesmo tempo, ele é infinitamente mais do que isto. O contato

vivo com Ele, enquanto o mistério mais íntimo da nossa própria pessoa, contato este

que se realiza ao “ponto do meu ser contingente, que depende do seu amor”, no “ápice

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metafórico da existência onde sou mantido no ser pelo meu Criador” (p.37) se

transcende numa experiência de Deus no mistério de sua própria pessoalidade divina.

7. Da mesma forma, o verdadeiro eu não se coisifica a si mesmo. A pessoa autêntica não

lida consigo mesma como se fosse um objeto, objetivando-se e revestindo-se das

pseudoidentidades que advêm através das realizações, prazeres, posses. Ele se

experimenta contemplativamente, através de conhecimento e de amor, reverenciando-se

dentro de sua reverência por sua origem última.

8. Merton diz que a palavra criada que somos é ao mesmo tempo pergunta e resposta. Ao

escolher dar-nos um ser, Deus nos está propondo uma possibilidade, oferecendo-nos

uma plenitude de identidade. Mas esta oferta é, por sua própria natureza, uma pergunta,

que o próprio Deus não pode responder em nosso lugar. Pelo dom inestimável da

liberdade com a qual Deus nos dotou, ele nos deu a glória e a responsabilidade de

decidir como responderemos à questão que somos. Deus “é” a resposta, no sentido de

que comunhão ilimitada com ele é a realização beatificante de nosso destino. Mas Deus

não pode “dar” a resposta, no sentido de nos fazer aceitar a oferta. Sua autocomunicação

aguarda, sem fôlego, nossa resposta, assim como o anjo Gabriel aguardava a resposta da

Virgem Maria na Anunciação.

9. Este ponto é de tremenda importância para Merton. É crucial para sua compreensão do

verdadeiro eu. O autêntico ser humano colabora na criação de sua própria identidade e

de seu próprio destino. Esta é sua dignidade e responsabilidade especiais como pessoa

espiritual. Somente por sinergia o ser humano chega à sua meta – tornar-se si mesmo e,

ao fazê-lo, dar glória a Deus, alegria perfeita a si mesmo e constituir uma nova voz de

comunhão na sinfonia das criaturas. O homem pode esquivar-se desta mais fundamental

de suas responsabilidades durante todo o decorrer de sua existência, indo de lá para cá,

de uma máscara do falso eu para outra. O resultado, porém, é fatal, no sentido mais

profundo da palavra: um dia, “não restará nada de mim a não ser minha própria nudez e

vazio e oco, para dizer-me que eu sou meu próprio erro” (p.35).

10. Como o homem participa na criação do seu próprio eu? Na acolhida progressiva e

transformativa de Deus na sua própria vida. Esta acolhida acontece basicamente através

de amor e conhecimento. As nossas atividades primordiais, o amor, para Merton, se

manifesta na recepção, por meio de nossa liberdade, das inumeráveis sementes da graça

(a graça não é uma coisa mas a vida de Deus) que Deus continuamente planta em nós

por todas as manifestações de sua vontade. A vontade de Deus em todas as

circunstâncias de nossa existência é a revelação concreta da sua sabedoria amorosa.

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Assimilamos esta sabedoria amorosa quando consentimos a ela, não no sentido

derrotista de ceder a alguém mais poderoso do que nós, mas numa intuição confiante da

santidade de Deus e de sua presença abençoadora em cada uma de suas disposições.

Central à ideia do verdadeiro eu para Merton é o “diálogo das vontades profundas” entre

Deus e nós, um ressoar da vontade divina na aceitação ativa dela de nossa parte (isto,

aliás, se encontra no próprio coração da obediência monástica, e explica porquê a

obediência segundo São Bento não faz sentido quando realizada com medo, de má

vontade, com relutância, arrastando os pés). Deus não está ocupado em nos dar uma

série infinda de ordens (Merton fala abertamente do mal que tal compreensão de Deus

leva e por que faria mais sentido fugir de um tal Deus do que de buscar intimidade com

ele). Sua vontade, presente em absolutamente toda circunstância de nossa existência, é

sua vida santificante oferecida a nós. Ao aprender a ser suficientemente quieto para

identificar esta vontade em todas as suas manifestações e a confiar nela e a ser

suficientemente generoso em cooperar com ela, o amor de Deus, que é o que sua

vontade essencialmente é, gradualmente nos permeia e penetra até o centro de nossa

identidade. Não é acidental que a unio Spiritus, descrita como o ápice da experiência

mística pelos Padres Cistercienses, é descrita com frequência como unio voluntatum.

Através desta união de vontades, diz Merton, em conformidade com toda a tradição

mística, podemos vir a amar como Deus ama.

11. Como disse acima, esta acolhida de Deus vem através do amor e do conhecimento.

Como nosso amor é uma recepção do amor de Deus em nossas vidas através de nossa

liberdade, nosso conhecimento é uma recepção do conhecimento que Deus tem de nós

mesmos através da contemplação. O grande e central capítulo sobre a humildade na

Regra de S. Bento começa com a consciência existencial de que somos conhecidos por

Deus. Isto não é uma mera afirmação teológica, mas uma experiência concreta. A

pessoa vem a conhecer-se precisamente como alguém conhecido por Deus. Para a

pessoa que está tendendo para seu verdadeiro eu, este ser conhecido não é terrível.

Merton o chama de “a descoberta de nós por Deus”, Deus descendo do céu para nos

encontrar. A vida divina em nós, seja como amor ou conhecimento, nunca é quiescente;

nunca é comunicada a nós como algo que Deus faz e que lhe permitimos fazer. A vida

divina em nós sempre tem por meta viver sua atividade divina em nossa subjetividade,

isto é, capacitar-nos a viver esta mesmíssima vida divina, a viver divinamente. Se Deus

desce até nós para nos descobrir, a meta desta atividade é necessariamente a de nos

capacitar a conhecermo-nos com seu conhecimento de nós e – incrivelmente – a nos

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capacitar a conhecê-lo com seu conhecimento de si mesmo. Merton escreve, “O seu ver-

nos nos dá um novo ser e uma nova mente na qual nós também o descobrimos. Nós só o

conhecemos na medida em que somos conhecidos por ele, e nossa contemplação dele é

uma participação na sua contemplação de si mesmo” (p.39).

12. Dizer “amor” e “conhecimento” é, em última instância, dizer “Espírito Santo” e “o

Filho”. O amor e o conhecimento de Deus não são coisas, nem simplesmente atividades,

mas pessoas dentro de sua vida trinitária infinita. O amor divino que comunica a

vontade de Deus para nós e que nos capacita a assentir e responder plenamente é a

“missão” (o envio) do Espírito Santo em nossos corações; o conhecimento divino que

nos capacita a participar no conhecimento de Deus de si mesmo é a missão do Filho em

nossas mentes. Tornar-se o verdadeiro eu é, em última análise, receber o dom do Filho e

do Espírito em nosso eu mais profundo e tornar-se um com eles. A mística de Merton

não é ateológica, mas profundamente teológica, especialmente quando recordamos que

na Igreja primitiva, “teologia” significava muito especificamente o amor e o

conhecimento da Santíssima Trindade (cf. as observações cortantes de Merton àqueles

que simplesmente querem passar por cima da teologia para chegar à “experiência”).

13. O verdadeiro eu, insiste Merton, é um eu verdadeiro e irrepetível. A manifestação mais

primordial e inviolável do amor e da sabedoria de Deus em nossa existência é a nossa

própria existência em toda sua particularidade. Aquilo que Deus mais deseja ao me

desejar é “eu”; aquilo que ele mais se deleita em conhecer ao me conhecer é o eu

absolutamente específico que sou. O verdadeiro eu se regozija em sua singularidade, em

seu ser “único” em seu gênero (one of a kind), ao mesmo tempo em que participa no

universo de bilhões de seres igualmente únicos. Merton emprega o termo favorito de

poeta jesuíta Hopkins, “inscape” (Duns Scotus, haeccitas). O verdadeiro eu não

compete, não compara, não é ameaçado pela alteridade. Ele se gloria no ser que é dado

a ele por Deus e em Deus.

14. Tudo isto pode parecer muito edênico e, como sabemos, a teologia patrística e

monástica com frequência falavam da obra de Deus em nós como um retorno ao Éden.

O próprio Merton era muito consciente de que o Éden não simplesmente “acontece”;

não é questão de acordar um dia na alegria de descobrir que Deus trocou o seu falso eu

por um eu verdadeiro. Há tremendos obstáculos que precisam ser superados: “Enquanto

estiver na terra, minha mente e vontade permanecem mais ou menos impermeáveis às

missões do Verbo e do Espírito Santo de Deus. Eu não recebo facilmente a sua luz”

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(p.42). Por quê? “Porque eu nasci no egoísmo. Eu nasci autocentrado. E isto é o pecado

original” (p.43).

15. Não digo isto para jogar água fria em tudo aquilo que Merton vem dizendo no decorrer

desta conferência. Pelo contrário: pela graça de Deus e pela nossa liberdade há um

caminho que nos leva além destes obstáculos, um caminho que é o foco da segunda

metade das Novas Sementes, a jornada da contemplação. Merton quer que saibamos que

se trata de uma jornada árdua: “Que ninguém espere encontrar na contemplação uma

válvula de escape da angústia, do conflito ou da dúvida” (p.12). Mas isto não é dito para

nos desencorajar. Há um “além”, que João da Cruz chamava a experiência da “chama

viva de amor” e que Merton também provou. É a luz desta chama que ilumina as suas

obras. Se vocês estiverem interessados em ser arrebatados para esta chama, venham

para a próxima conferência.

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III. Contemplação e a Jornada para o Verdadeiro Eu

1. Na primeira conferência, fizemos uma reflexão inicial sobre o falso eu; na segunda,

delineamos a noção de Merton do verdadeiro eu e concluímos com a importância de

atingirmos o verdadeiro eu. Mas como estes dois “eus” estão relacionados e como

chegamos ao verdadeiro eu?

2. Talvez a coisa mais importante a se dizer acerca do falso eu logo de início é que para

Merton esta “falsidade” tem que ver com algo mais profundo do que uma falta moral. O

falso eu é “falso” precisamente por ser uma “ilusão”; ele realmente não existe. Ele é

uma negação de nossa única e genuína identidade, nossa identidade aos olhos de Deus

(que é a Verdade), a pessoa que realmente somos. Esta negação cria do nada um

pseudo-eu (lembram-se do centro oco?) e o mantém, se atém a ele, com uma incrível

tenacidade, a tenacidade do “apego”. O apego do falso eu é universal e “onívoro”.

Merton escreve, “Todo pecado começa ao se assumir que meu falso eu... é a realidade

fundamental da vida para a qual tudo no universo está ordenado” (p.34-35).

3. A distância entre aquilo que o falso eu (o “homem velho que se corrompe pela ilusão e

pelo desejo” de S. Paulo, Ef 4,22) é – nada – e sua pretensão – ser tudo, ter tudo e estar

no centro de tudo – é infinita. Seria risível, se não fosse trágico. Porque o falso eu torna

impossível a vida do verdadeiro eu: ele a substitui, a sufoca. Ela consome a vitalidade

do verdadeiro eu como os demônios na Vida de S. Antão se alimentam da energia da

nossa fé, na medida em que cremos em seu poder. Assim como os demônios foram

definitivamente banidos pelo poder da ressurreição de Cristo e não têm força a não ser

aquela que lhe damos ao acreditarmos na sua força (e que pode ser quase total), do

mesmo modo, o falso eu – o eu irreal – não possui existência genuína a não ser aquela

que lhe damos ao lhe permitir assumir uma forma e solidez através de nossa

colaboração com o seu modus vivendi: o apego.

4. Com isto fica claro que a única maneira de desmascarar e de desfazer o falso eu é de ser

introduzido no verdadeiro eu pelo desapego. O “abrir mão” do falso eu a níveis

progressivamente mais profundos e mais resistentes é trabalho espiritual indispensável,

o trabalho espiritual indispensável, para qualquer um que deseje receber de volta a sua –

única – identidade real. “O ponto no qual toda santidade depende é renúncia, desapego,

negar-se a si mesmo” (p.255).

5. Antes de começarmos a olhar para este processo de desapego, no qual Merton segue

muito de perto o ensinamento de S. João da Cruz e cuja descrição ocupa um terço das

Novas Sementes (capítulos 25-38), duas importantes afirmações devem ser feitas: a) esta

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desconstrução do falso eu, por mais que envolva combate e angústia de nossa parte, é

essencialmente um trabalho divino e não um trabalho humano. Para Merton, tudo

estaria perdido se a criação de um verdadeiro eu fosse considerada como uma realização

pessoal. Isto significaria nada menos do que a completa vitória do ego – do ego que, ao

transcender-se por si mesmo se diviniza – e a frustração do plano de amor de Deus. A

necessidade de que este processo seja compreendido como obra de Deus e não nossa –

compreendido não apenas intelectualmente mas no mais profundo do nosso ser –

explica a importância dos termos-chave que Merton empregará em sua descrição do

processo, tais como “pobreza”, “destituição interior”, “noite” – “a noite escura é um

puro dom de Deus”. b) Embora na análise de Merton do processo, especialmente no

início e por um bom e longo trecho, o “despojar-se” seja o que é mais enfatizado

(podemos pensar na ordem dos quatro grandes tratados de S. João da Cruz, nos quais a

negação aparentemente domina quase completamente os dois primeiros volumes), ele

está totalmente consciente (muito mais do que nós, os leitores) de que o processo todo é

essencialmente a restituição de Deus a nós de nossa verdadeira identidade e esta

autocomunição, este dom de si mesmo de Deus é ao mesmo tempo o dinamismo do

processo e o cumprimento do processo. Estilisticamente, Merton se mostra ao descrever

os momentos da irrupção divina na medida em que o processo chega ao seu cume e

sobretudo quando ele descreve sua realização definitiva (nesta vida) ocorrendo, no

último capítulo do processo, “Puro Amor”. Pode ser que a preocupação pastoral de

Merton pelo leitor como um mestre de contemplação o tenha levado a iniciar o livro

com o maravilhoso primeiro capítulo convidativo, “O que é contemplação?” e os que se

seguem imediatamente depois, protelando o início da descrição do trabalho de desapego

até a metade da obra.

6. Não ficamos surpresos ou indignados quando Merton toma como seu ponto de partida a

necessidade de se desapegar das “coisas grosseiras e sensuais”. Como ele vai dizer com

seu estilo de humor de Columbia, “Antes de se tornar um santo, você tem que se tornar

humano. Um animal não pode ser um contemplativo” (p.256). Para esta primeira

batalha rumo ao desapego, “combatendo vícios evidentes e deliberados”, Merton

recomenda uma abordagem direta, “na bucha”. Flexibilidade pode ser necessária

quando alguém descobre que seus próprios métodos são insuficientes para se superar o

vício, mas nesta etapa uma perseverança ferrenha é o principal requisito. E sempre

tendo consciência de que, “evitar o pecado e praticar a virtude é apenas o início daquilo

que Deus pede de você” (p.256).

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7. Um segundo passo crucial para o homem que deseja liberdade e a nova vida é o

desapego de “regalias” espirituais – aquelas coisas que João da Cruz descreve na

Ascensão como o “caminho do espírito imperfeito”. Quem quer que insista em paz

interior, conforto interior, preservação do próprio autorrespeito durante toda a jornada

espiritual (aquilo que chamaríamos hoje de “manutenção de uma autoimagem positiva”

e que Merton considerava o ápice do charlatanismo espiritual – isto já era corrente na

psicologia pop dos Estados Unidos nos anos 50 quando Merton estava escrevendo este

livro) não está fazendo outra coisa senão buscar a sobrevivência do falso eu, mesmo se

num nível levemente mais refinado e menos grosseiro (o noviço de Novo Mundo).

Como na ilustração de S. João para a Ascensão, o caminho de uma tal pessoa se eleva

breve e vacilantemente, para logo sumir do mapa.

8. O mesmo vale para o “recolhimento” e para as demais assim chamadas “consolações”.

A pessoa na jornada deveria estar procurando “só a Deus” (o lema inscrito no portão de

Gethsemani na época de Merton) e todas as satisfações espirituais são simplesmente

criaturas, não menos criaturas do que um copo de cerveja – a comparação empregada

por Merton (isto contra o maniqueísmo e ódio do corpo e do mundo físico que para

Merton era uma tendência profundamente suspeita em muitos escritos ascéticos).

9. Outro aspecto importante do desapego do falso eu é a aceitação da obediência, da

direção espiritual com autoridade. O simples fato de ter um diretor espiritual é (ou pelo

menos deveria ser) uma morte a um apego muito forte ao acerto e poder convincente de

nossas ideias e intuições pessoais, que S. Bernardo descreve como “iudicium

proprium”, o correlativo intelectual de “voluntas propria”. De fato, os muitos erros que

cada um comete na jornada rumo ao desapego e que frequentemente custam muito caro,

e o correspondente crescimento em autoconhecimento, deveriam levar qualquer pessoa

sã a desejar ser guiada. Merton diz isto muito fortemente: “O Espírito de Deus lhes dá

[àqueles que buscam liberdade interior] um desejo pelos meios mais simples e diretos

de se superar seu próprio egoísmo e cegueira de juízo. E isto é obediência ao juízo e

guia de um outro” (pp. 193-4). Merton chega ao ponto de falar de uma “paixão pela

obediência” (p.194).

10. Um verdadeiro não-apego às próprias ideias certamente é um passo significativo rumo

ao assalto contra a fortaleza do falso eu. Qualquer pessoa dedicada à preservação do seu

ego jamais permitiria que outro questionasse quanto mais que rebatesse suas próprias

ideias, sobretudo suas ideias acerca de si mesmo, de seu comportamento, de seu caráter,

de sua necessidade de crescimento espiritual e sobre a melhor maneira de colaborar com

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a ação de Deus. Merton acha que muitos contemplativos em potencial naufragaram

neste recife assim como nos outros já mencionados.

11. No caso de Merton, a pergunta o leva a um avanço importante. Se a renúncia generosa e

o esforço incessante ajudam a superar o apego a si mesmo em relação aos prazeres e

posses materiais (a propósito, Merton possui uma importante passagem sobre a absoluta

necessidade de simplicidade e de algum grau de pobreza a fim de se chegar um dia ao

novo eu), se esta renúncia pode ser aplicada com sucesso às satisfações espirituais, se a

obediência pode nos liberar da dominação de nosso próprio pensamento, o quê permitirá

a renúncia e o desenraizamento de todos nossos apegos inconscientes às coisas criadas e

às nossas vontades e desejos?” (p. 256). Merton chama esta luta específica de “o

problema crucial da perfeição e da pureza interior”. A dificuldade óbvia é que nós não

temos como chegar a elas através de nosso intelecto – elas são, precisamente,

inconscientes – e nossa vontade não nos servirá para coisa alguma. Pelo contrário, será

nosso inimigo. Pois aqui a nossa vontade, pelo menos no nível inconsciente, é o aliado

do falso eu. Algo sem dúvida alguma mais central está sendo tocado aqui, algo na linha

da “outra lei” que S. Paulo descreve como estando continuamente ativa nele e que o

impede em sua obediência à lei de Deus. Assim como S. Paulo, Merton reconhece a

incapacidade humana para sair deste emaranhado. Para ser libertado dos apegos

inconscientes, o próprio Deus terá que agir: “Temos que deixar a iniciativa nas mãos de

Deus atuando em nossas almas, seja diretamente na noite da aridez e do sofrimento, ou

através dos acontecimentos e dos outros homens” (p. 257).

12. Merton vê este momento – o encontro com os apegos inconscientes, sua irrupção parcial

na consciência, sua persistência e não-erradicabilidade, a consciência do dano que

fazem a si mesmo e aos demais, a intensa miséria que isto causa ao viandante espiritual,

como o ponto onde “muitos homens santos quebrarem e caírem em pedaços”. Ao

mesmo tempo, trata-se de um momento que não tem preço. Vale a pena citar a

passagem mais extensamente:

É nesta escuridão, quando nada resta em nós que possa agradar, confortar nossas próprias mentes, quando parecemos ser inúteis e dignos de todo desprezo, quando parecemos ter falhado, quando parecemos ter sido destruídos e

devorados, é então que o profundo e secreto egoísmo que está demasiadamente perto para que nós possamos identificá-lo, é arrancado de nossas almas. É nesta

escuridão que encontramos verdadeira liberdade... É esta a noite que nos esvazia e nos torna puros (p.258).

13. À esta altura, vocês, meus ouvintes, provavelmente estão gritando “Misericórdia”.

Gritemos juntos “Misericórdia!” De fato, tudo isto é a ação da incansável misericórdia

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divina (que Merton denominava a “misericórdia na misericórdia na misericórdia”). É

Deus salvando o nós, como Merton vai dizer, e não apenas “salvando nossas almas”. O

que precisamos de fato é o golpe de misericórdia e é agora que Merton nos conduz a ele.

Ele tem duas partes, dois tempos.

14. A primeira parte é chamada por Merton “destituição interior”. Ela só pode advir após

longos anos passados na busca de Deus e na liberdade espiritual, passados com tanta

generosidade e dedicação quanto a pessoa for capaz. Sem este investimento, a

destituição interior não seria possível. O que é ela? Por um lado, é a convicção de que

tudo tem sido em vão, que você nunca alcançará a única coisa que desejava, a única

coisa para a qual você foi feito. Ouçamos Merton: “Meça, se pode, a dor de perceber

que você tem uma natureza destinada por Deus para uma bem-aventurança que

absolutamente transcende tudo aquilo que você é e que jamais poderá ser; de ser

destituído de tudo a não ser si mesmo; de se encontrar sem o dom que é o único

significado da sua existência” (p. 262). [A festa de aniversário de George Washington]

Pedimos a Deus o unum necessarium e ele não foi, nem será, concedido.

15. Se isto não bastasse (e ainda estamos na primeira parte), aparece uma descoberta

verdadeiramente revoltante. O buscador espiritual, além de ser privado do seu único

desideratum, olha no espelho do seu eu e vê que a “sua natureza ainda está distorcida e

desfigurada pelo egoísmo e pela desordem do pecado, e que você está preso e

deformado por causa de uma forma de vida que o faz incessantemente voltar-se para os

seus próprios prazeres e os seus próprios interesses e que você não pode escapar a esta

distorção, e que você nem sequer merece escapar dela por sua própria força. Quão

grande não será a sua dor?” (pp. 262-3).

16. Acredite ou não, Merton diz que esta experiência, que ele chama de compunção, esta

“grande pobreza”, é o “princípio da alegria”. O falso eu foi radicalmente frustrado,

radicalmente derrotado. A santidade, e o mais caro de seus desejos, o desejo pela

suprema felicidade que é Deus, e que é, aliás, o mais fundamental e o mais lícito dos

desejos – lhe foi negado. Até este ponto, em algum nível intangível, em algum núcleo

da pessoa, o falso eu tem continuado a sobreviver e a atuar (quase que parasiticamente),

consentindo em renunciar a tudo o que é parcial, a se tornar quase nada, a fim de

apoderar-se do Tudo. E agora isto lhe foi recusado.

17. Você poderia pensar que isto mataria a pessoa. Mas não. A pessoa, espancada e jazendo

com a boca na poeira, espera pela esperança” (p. 263), reconhece que “todo o sentido da

nossa vida é uma pobreza e um vazio que, longe de ser uma derrota, são realmente um

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penhor de todos os grandes dons sobrenaturais dos quais são a potência” (em termos

escolásticos) (p. 264). O ser humano se mantém vigilante, com paciência e impaciência,

aguardando o tempo de Deus, “para ser livre e liberto de todos os últimos obstáculos e

apegos que ainda se põem entre ele e aquele vazio que será capaz de ser preenchido com

Deus” (pp. 264-5). Ele aguarda sua própria morte – isto é, a morte do seu falso eu.

18. E isto acontece. Deus tem trabalhado nisto desde bem o início da peregrinação. Se ele

não tiver desistido nunca, ele cujo poder e amor unicamente podem nos dar as forças

para perseverar, é por causa da infinitude do dom que ele tem desejado comunicar-nos

desde toda a eternidade: o dom de si mesmo no nosso eu, o dom de Deus vivendo sua

vida na nossa vida, o dom de duas vidas aparentemente separadas sendo reveladas na

sua mais profunda identidade: a vida de Deus na minha, da minha na Dele. O falso eu,

no sentido mais importante do termo, era falso porque se encontrava fora de Deus,

separado de Deus.

19. Não mais. Ouçam alguns dos pronunciamentos extáticos de Merton:

“A entidade separada que é você aparentemente desaparece e nada parece sobrar

a não ser uma pura liberdade indistinguível da Liberdade infinita, do amor identificado

com o Amor. Não dois amores, um esperando o outro, almejando o outro, buscando o

outro, mas o Amor amando na Liberdade” (p. 283).

“A contemplação não é mais algo infuso por Deus num sujeito criado, quanto

Deus vivendo em Deus e identificando uma vida criada com a sua própria Vida de

modo que nada resta de qualquer importância a não ser Deus vivendo em Deus”.

“Assim se passa com aquele que se desapareceu em Deus pela pura

contemplação. Só fica Deus. Ele é o “eu” (vamos repetir esta frase: “Ele é o eu’”) que

age... Ele é aquele que ama e que conhece e que se rejubila” (pp. 286-7).

20. Para Merton, assim como para Bernardo e João da Cruz, é nesta maneira que o primeiro

mandamento, de amar a Deus com toda a mente, coração, alma e força é cumprido na

sua integridade – Deus amando Deus em mim mesmo a quem ele uniu tão intimamente

a si mesmo.

21. Faltam duas tarefas por fazer nesta conferência: uma afirmação e uma pergunta. A

afirmação: Vez após vez, cada vez mais profundamente e com convicção cada vez

maior, Merton proclamava que a contemplação não é uma parte da vida, ela é a vida.

Isto significa que a experiência contemplativa descrita acima não é algo que se tem, com

maior ou menor frequência, intensidade, totalidade. Como Merton escreve no capítulo

“Puro Amor”: “Você não é você, você é fruição. ...Você não tem uma experiência, você

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se torna Experiência” (p.283). Não em momentos selecionados (selecionados por você

ou por Deus) mas naquilo que Eckhart chamava o “eterno agora”.

22. A pergunta: Será que a meta vale o processo? Espero, com todo o meu coração, que sua

resposta seja “sim”, que minha pergunta tire de vocês uma resposta afirmativa.

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IV. O Voo à Unidade

1. Em algum momento, logo no início da carreira de Merton como escritor, um observador

astuto notou que o verdadeiro gênero literário de Merton não era ficção, poesia, ou

mesmo teologia, mas sim, autobiografia espiritual. Foi bem esta a linha que Merton

acabou seguindo, não apenas em obras explicitamente autobiográficas como A

Montanha dos Sete Patamares e O Sinal de Jonas (e obviamente sua volumosa

correspondência e seus diários), mas em quase todos os seus escritos, incluindo Novas

Sementes de Contemplação. E em nenhum lugar Merton é mais autobiográfico do que

nos capítulos onde ele descreve a mudança radical que ele fez da fuga mundi àquilo que

ele poeticamente denominou de “o voo à unidade”.

2. De fato, ao mesmo tempo que Merton está delineando sua própria história espiritual

pessoal, ele está seguindo de perto o tratado de S. Bernardo sobre “Os Graus da

Humildade e da Soberba”. Isto não deveria nos surpreender, e por duas razões: a) S.

Bernardo está descrevendo um processo monástico arquetípico e b) é natural que o viés

e a orientação espiritual de uma figura fundante numa Ordem religiosa penetre no

próprio sentimento e pensamento dos monges das gerações seguintes. É por isto que

falamos de “Nosso Pai S. Bernardo”.

3. Merton fala nos capítulos 7 a 10 de Novas Sementes do desejo do ser humano de “se

fazer real”. Erroneamente, o homem acredita que ele pode chegar a este fim “cortando-

se de outras pessoas e construindo uma barreira de contraste e distinção entre si mesmo

e os outros homens” (p. 47). Por enquanto, Merton diz, esta é a única maneira pela qual

a pessoa que não conhece verdadeiramente a Deus pode conceber para estabelecer sua

própria realidade. Esta vontade de possuir uma realidade autossuficiente é tão forte que

ela leva ao desejo de “estabelecer o eu finito como infinito, permanentemente

independente de todos os outros seres” (p. 52) [cf. Cassiano, Instituições, Livro XII].

4. O monge é o caso clássico de uma pessoa buscando definir-se através de sua diferença

com relação aos demais, através de sua superioridade vis à vis outras pessoas, através do

seu “não ser como os outros homens” (parábola do Fariseu e do Publicano). Para

alcançar este fim, ele possui dois instrumentos especiais: a ascese e a oração.

Evidentemente, ascese e oração, quando corretamente entendidas e corretamente

aplicadas, são meios genuínos rumo à santificação; infelizmente e quase

inevitavelmente, eles são subordinados à busca do eu infinito. Nesta busca, o monge

busca colocar-se acima dos outros através de introversão e sublimação: aprofundando-se

cada vez mais profundamente em si mesmo (separando-se dos demais) e numa ascensão

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neoplatônica ao nível do divino. Por um longo tempo, diz Merton, o monge (ou

qualquer outra pessoa que pratique este isolacionismo espiritual) pode se enganar,

pensando estar alcançando o seu fim: “Ele flameja de autoadmiração e pensa: ‘É o fogo

do amor de Deus’” (p.50).

5. O que salva o monge, se ele estiver buscando verdadeiramente a Deus (apesar de todas

as impurezas massivas e o egoísmo latente de sua busca) é a experiência de fracasso, do

fracasso que advém através do dom divinamente concedido do autoconhecimento. Em

algum momento o véu da ilusão que ele urdiu para si mesmo é partido em dois e ele

percebe que, como todos os demais, ele não é “digno”. Ele não teve sucesso em fazer-se

perfeito; ele é como os outros homens, afinal. Ele é um pecador.

6. Para onde voltar-se agora? O autodenominado santo (seja ele monge ou leigo, seja sua

busca através da ascese ou do estudo ou de qualquer outra atividade que o possa fazer

acreditar e repousar sobre sua própria excelência) entra em parafuso. O que o salva é a

revelação da misericórdia de Deus, um tema que assumiu cada vez mais proeminência

nos escritos de Merton. Esta intuição penetrante levou Merton a dizer, num

refraseamento de 1 Jo 4,16: “A raiz do amor cristão não é a vontade de amar, mas a fé

de que se é amado. Que a gente é amado por Deus. Aquela fé de que se é amado por

Deus, embora sendo indigno – ou antes, independentemente de sua dignidade” (p. 75).

7. Esta intuição não é intelectual, mas existencial: ela produz um permanente “o abalo dos

alicerces”. Tudo virou de cabeça para baixo. Como diz Merton:

Um dos paradoxos da vida mística é este: que um homem não pode entrar no

centro mais profundo de si mesmo e passar deste centro a Deus a não ser que ele consiga transcender-se inteiramente para fora de si mesmo e esvaziar-se e

dar-se aos outros na pureza de um amor desinteressado (p.64). 8. Mas, como disse a Virgem Maria a Gabriel, “Como pode acontecer isto?” “Como”,

pergunta Merton, posso “eu, que sou sem amor tornar-me amor?” (p.63) – e o monge

Merton reconhece a esta altura que “ser amor” é a única e universal vocação humana,

certamente a única grande o suficiente para o ser humano, feito à imagem de Deus. O

único jeito de que esta transformação do autocentrismo do pecado original pode

acontecer é “se o Amor me identifica consigo. Se Ele envia seu próprio amor, Ele

mesmo, para agir e amar em mim e em tudo o que eu faço, então eu serei transformado”

(p. 63).

9. De fato, é isto que Deus faz, sobretudo pela infusão de seu próprio amor no coração

humano pelo derramamento do Espírito Santo. E os resultados são colossais.

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10. Em primeiro lugar, esta identificação do ser humano com o próprio amor divino leva a

uma compaixão universal. A pessoa genuinamente santa – isto é, a pessoa que se tornou

santa pelo dom imerecido do ágape divino – foi libertada “do fardo de julgar os outros,

de condenar os outros homens” (p. 57). Ele não está mais interessado em ser diferente

dos outros, mas se encontra imerso em solidariedade, uma solidariedade que começa

com a “percepção de que ele mesmo é um deles [pecadores] e que todos juntos

necessitamos da misericórdia de Deus!” (p. 57). Isto, por sua vez, o inspira a desejar

servir, sem negar sua identidade pessoal de pecador, como um ministro da compaixão

de Deus, “para evocar o bem dos outros pela compaixão, pela misericórdia e perdão” (p.

57).

11. E para sua surpresa, o bem nos outros, na humanidade pobre, pecadora, é realmente

muito grande. O homem soberbo autobuscante cegou-se a tudo nos outros exceto aos

seus defeitos que serviam como uma escada para sua própria exaltação. Agora que as

vendas foram tiradas (de uma vez por todas), tais pessoas

podem exultar nas virtudes e no bem dos outros mais do que jamais puderam fazê-lo em suas próprias. Eles ficam tão ofuscados pelo reflexo de Deus nas

almas dos homens com os quais convivem que eles não mais têm qualquer poder para condenar o que quer que seja que eles veem num outro. Mesmo nos maiores pecadores eles veem virtudes e bondades que ninguém mais consegue achar

(p.60) 12. O que vem depois do sentimento de “comunhão na miséria” e “comunhão na graça”

(Balduíno de Ford, “Sobre a Vida Cenobítica”) é um desejo de participar de corpo e

alma no esforço de recomposição do Corpo desmembrado de Cristo. Este Corpo,

partido por todas as espécies de ódio entre cristãos (e outros também) pode ter os seus

“ossos restituídos” se houver pessoas desejosas de pagar o preço desta “fisioterapia”.

“Há duas coisas que os homens podem fazer acerca da dor da desunião com os outros

homens. Eles podem odiar ou amar. O ódio recua diante do sacrifício e do pesar que são

o preço desta restituição dos ossos” (p. 72).

13. O amor, ao contrário, é desejoso de pagar o preço. E o preço não é nenhum mistério

esotérico. É muito simples. É “tratar os outros homens como se eles fossem homens.

Não agir como se só eu fosse um homem e todo outro ser humano fosse um animal ou

uma peça de mobília” (p. 76). Embora não seja inatingível, constância em tratar as

outras pessoas como pessoas não é algo automático: não é um produto de humanismo

secular. Para Merton, a habilidade em tratar os outros habitualmente como seres

humanos resulta de uma transfusão da compaixão divina em nós. É isto que nos

confirma em nossa determinação em trabalhar para a superação da desunião.

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14. A superação da desunião, segundo Merton (e todos os Padres da Igreja) é um dos dois

supremos e entrelaçados fins da Encarnação (cf. H. de Lubac: Catolicismo: O Aspecto

Social do Dogma). Como Merton diz, “Pois o cristianismo não é meramente uma

doutrina ou um sistema de crenças, é Cristo vivendo em nós e unindo os homens uns

aos outros em sua própria Vida e Unidade” (p.77). Isto é o que Cristo fez em sua

encarnação, paixão e ressurreição e aquilo que ele continua fazendo até o fim dos

tempos: “reunir na unidade os filhos de Deus dispersos” (Jo 11, 52).

15. Cristo é efetivo na sua obra e os homens libertos da cegueira da soberba percebem que

em Cristo, esta unidade já está presente, embora “obscuramente”:

Esta unidade é algo que nós não podemos ainda perceber e fruir a não ser na escuridão da fé. Mas mesmo aqui quanto mais somos um com Deus, mais

estamos unidos uns com os outros; e o silêncio da contemplação é uma profunda, rica unidade não apenas com Deus mas com os homens (p.66).

16. Merton, sabendo ou não (provavelmente sabendo) acompanha Balduíno na última

comunhão: a comunhão na glória. É na glória eterna de Deus que nós estaremos mais

unidos uns com os outros, perfeitamente unidos uns com os outros. Não será meramente

uma comunhão de amor (tal como nós a concebemos) ou de entendimento; será uma

comunhão de ser, uma comunhão de pessoas, onde todos aqueles em Cristo viverão não

apenas em Deus e Deus neles, mas cada um deles viverá em todos os outros (cf. “Vida

Eterna”, no Credo de Von Balthasar). Será um círculo contínuo e ininterrupto de vida e

amor passando entre nós – será (a coisa mais bela que se poderia dizer sobre ele) um

reflexo completo da mútua habitação das pessoas da Santíssima Trindade: “Iremos um

dia viver em Deus e um no outro como as Pessoas divinas vivem umas nas outras” (p.

69). Pois, “a perfeição última da vida contemplativa não é um paraíso de indivíduos

separados, cada um vendo sua intuição separada de Deus; é um mar de amor que flui do

Corpo Único de todos os eleitos, de todos os anjos e santos, e sua contemplação seria

incompleta se não fosse partilhada” (p. 65).

17. Tão intimamente relacionados, tão pessoalmente relacionados, nós seremos que a bem-

aventurança de um será aumentada pela bem-aventurança do outro, pela bem-

aventurança de todos os outros. Merton olha com alegria para o futuro: “Pelo fato do

amor de Deus estar em mim, ele pode vir a você de uma direção especial e diferente que

estaria fechada se ele não vivesse em mim” (p. 67). E devemos nos recordar, não é

questão de um “eu” e um “você” mas de um número infinito de “eus” e “vocês”. O

amor de Deus virá até mim de cada um dos “vocês” que vivem na visão bem-aventurada

de Deus. E o amor de Deus vivendo em mim sairá de mim para todos os “vocês” que

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vivem na visão bem-aventurada de Deus. E então se realizará a maravilhosa profecia de

S. Agostinho em seu comentário à 1 Jo: “E haverá um só Cristo, amando a si mesmo”.

18. Concluímos onde começamos – com “tornando-se real”. Aqui está o apelo de Merton:

“Vivamos neste amor e nesta felicidade, você e eu e todos nós, no amor de Cristo e na

contemplação, pois aí é onde nós encontramos a nós mesmos e uns aos outros como

verdadeiramente somos. É somente neste amor que nos tornamos finalmente reais” (pp.

67-8).

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V. Cristo, o “Sujeito” da Contemplação

Maria, o Modelo da Contemplação

1. Ao começarmos esta última conferência de nosso retiro, vejo uma foto de Merton num

grande cartaz, com seu gorro e sua jaqueta de trabalho – e seu sorriso especial. A

legenda: “Contemplação: É mais do que apenas uma experiência!”

2. Novas Sementes deixa totalmente claro que a contemplação não é uma “experiência”, tal

como a compreendemos geralmente, na qual o indivíduo orante, único sujeito da

situação, através de sua atividade contemplativa vem a possuir ou fruir de um objeto

divino numa forma estética ou mística. Isto simplesmente nos colocaria de novo no

mundo do ego buscador de si mesmo e do falso eu e o único propósito da contemplação

seria a satisfação e o bem-estar que a experiência fornece ao “contemplativo”.

3. Não, para Merton contemplação é relação: relação entre nós e Cristo. Mais exatamente,

nas palavras do próprio Merton, é “a união trans-subjetiva de amor que não une um

objeto com um sujeito mas dois sujeitos numa união afetiva” (p. 153). Prestemos

atenção que Merton diz “trans-subjetiva” ao invés do mais comum “intersubjetiva”. Isto

é totalmente intencional. Seu propósito é dizer que nesta união completamente pessoal

de dois sujeitos, Cristo e eu, há muito mais do que mera “interação” acontecendo.

Antes, Cristo habita em mim e age em mim e eu habito e ajo nele – cada um dos dois

sujeitos ativamente participando na vida do outro, assim como na sua própria. Merton

chega a dizer que tal “vida em Cristo” (que é o que a contemplação tem como meta e o

porquê a contemplação é indispensável para que esta vida em Cristo atinja

verdadeiramente sua realização) é “um mistério igual ao da Encarnação e semelhante a

ele” (p. 158). Pois

assim como Cristo na sua única Pessoa une as duas naturezas de Deus e homem,

assim também ao fazer-nos seus amigos, ele habita em nós, unindo-nos intimamente a si. Ao habitar em nós ele se torna como que nosso eu superior, pois ele uniu e identificou nosso eu mais íntimo consigo” (p. 158).

4. A palavra-chave é “união”, ou como João da Cruz vai dizer, “união transformativa”.

Contemplação não é um hobby, um passa-tempo, o mais sublime e raro dos prazeres

espirituais. É uma união de vidas – não ontológica, certamente, como no caso da união

entre o Pai e o Filho, mas “mais do que uma mera união moral ou uma concordância de

corações” (p. 159). Que tipo de união é esta, então? Merton a descreve como uma

“união mística” – “mística” implicando permanente e não transitória – “na qual o

próprio Cristo se torna a fonte e o princípio da vida divina em mim” (p. 159). Esta união

se realiza num tal grau que “um ‘novo ser’ vem a existir. Eu me torno um ‘novo

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homem’ e este novo homem, espiritual e misticamente uma única identidade, é ao

mesmo tempo Cristo e eu” (p. 158, original sem itálico). A contemplação, portanto, não

pode ser considerada como uma entre muitas de nossas atividades humanas. É o

processo de Cristo nos transformando em si mesmo pela graça e o poder de seu Santo

Espírito. É a razão e a realização de toda nossa existência.

5. Mas, vamos com calma. Como S. Tomás diz, “Aquilo que vem em primeiro na intenção

é o último na execução”. O que acabo de descrever é a completação de um processo

com uma longa história, um processo que começa com a “fé”. Esta fé é um

assentimento acolhedor tanto da mente quanto do coração à revelação de Cristo de si

mesmo – através das Escrituras, através dos ensinamentos da Igreja, através da graça do

Espírito Santo.

6. A autorrevelação de Cristo é a manifestação do seu amor por nós e uma afirmação da

intenção, de sua parte, de habitar dentro de nós, de fazer sua morada em nós, como S.

João escreve. De fato, diz Merton, “a partir do momento que respondemos com fé e

caridade” a este dom de Cristo, “uma união sobrenatural de nossas almas com sua

pessoa divina habitante” se estabelece (p. 158).

7. Normalmente, esta presença dentro de nós não é imediatamente percebida como tal. No

início da vida de oração contemplativa, diz Merton, buscamos fazer contato com Cristo

através da imaginação, “imaginando Cristo com a aparência que achamos que ele deve

ter tido” (p. 151) e relacionando-nos com ele através da imagem que criamos. Merton

admite que “o caminho normal para a contemplação é uma crença em Cristo que nasce

da consideração meditativa de sua vida e ensinamento” (p. 151). Mas consideração

meditativa não significa necessariamente “imaginação” e certamente, afirma Merton,

não é preciso formar uma imagem mental do homem Jesus cada vez que se deseja

relacionar com ele na oração.

8. Pelo contrário, uma simples “consciência amorosa” de Jesus através da invocação do

seu nome ou através de uma “noção indistinta, não-analisada” dele (pp. 154-5) é “algo

de longe mais real e mais valioso de qualquer coisa que possamos alcançar apenas pelos

nossos sentidos interiores” (p. 155). Por quê? Porque “o próprio Jesus faz este amor

jorrar dentro de nós, através de um efeito direto e pessoal da sua vontade” (p. 155). De

fato, segundo Merton, a única finalidade de passar por esta etapa de “refletir sobre as

imagens de Jesus em nossa memória” é “para que possamos estar preparados para o

contato mais íntimo com ele pelo amor” (p. 155). Aqueles de vocês que praticam oração

centrante ou meditação cristã sabem exatamente do que Merton está falando aqui.

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9. Nossa imaginação, completamente falível, nunca “nos ensinará quem é Cristo e nunca

formará Cristo em nós e nos transformará em outros Cristos” (p. 156). Estes

ensinamento, formação e transformação interiores são obras do Espírito Santo. E a

melhor maneira de deixá-lo realizar a sua obra e de permitir que a presença de Cristo se

torne mais forte e mais determinante em nós “é ter em nossos corações os afetos e as

disposições que Cristo tinha na terra” (p. 157) é abrindo mão das imagens de uma vez

por todas (radicalmente diferente de abrir mão de Cristo). Como Merton vai expressar,

na sua maneira geralmente enérgica: “Entra na escuridão da renúncia interior [a

renúncia das imagens e dos conceitos], despoja sua alma de imagens e permite Cristo

formar-se em você por sua cruz” (p. 157).

10. Esta união que Cristo realiza por sua autocomunicação e transformação na

contemplação ainda não acabou. A nossa alma por inteiro deve ser amolecida enquanto

nós nos expomos livremente à vontade de Deus e a abraçamos, recusando qualquer

recuo do “calor do fogo que deve amolecer-nos e preparar-nos para nos tornar nosso

verdadeiro eu” (p. 161). Através deste processo, diz Merton, nos tornamos prontos para

“receber, em nossa morte, o selo de nosso grau de semelhança a Deus em Cristo”. Este

calor, este fogo, é o Espírito Santo de Cristo, o “mistério do amor gratuito” (p. 159). Ao

mesmo tempo que ele nos aquece, ele “também sopra” em nós seu próprio ser. Como

sua natureza é de ser amor gratuito, recebê-lo em seu dom desinteressado de si mesmo é

ser movido a dar-lhe aos outros com a mesma gratuidade. “Recebemo-lo na ‘inspiração’

do amor secreto e lho damos aos outros ao expressarmos nossa própria caridade” (p.

159). Nossa vida se torna um perpétuo dar e receber Deus.

11. Em Novas Sementes, Merton descreve a oração contínua em termos eucarísticos. Para

ele, é crucial que a união consigo que Cristo realiza conosco na contemplação não se

restrinja a “uma participação sobrenatural escondida na vida divina na eternidade, mas

uma participação num mistério divino, uma ação sagrada na qual o próprio Deus

adentra no tempo”: o sacrifício redentor da Cruz (p. 163). A oração contemplativa está

assumida na oração litúrgica, na nossa participação na Missa, o grande ato salvífico de

Deus em Cristo, “um ato de incompreensível amplidão e magnitude, que... persegue a

você por onde quer que vá: e em todas as situações de sua vida diária... lhe faz

exigências secretas e insistentes, pedindo aceitação e consentimento” (p. 162). Aqui se

torna claro que liturgia e contemplação não competem, não alternam, mas que a própria

realidade da Eucaristia (tanto enquanto celebração quanto na sagrada comunhão) é em si

mesma “presença e ação contínua de Cristo realizando-se dentro de você”. Através da

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participação na Missa e da recepção do corpo e sangue de Cristo, Cristo se torna “este

Cúmplice anônimo ardendo dentro de você como um fogo profundo e pacífico” (p.

162). Tal contemplação não é só individual mas “mística e cósmica”. Ela não somente

une o cristão individual ao Cristo, mas todos os cristãos uns aos outros em Cristo e todo

o cosmo a Deus em Cristo. “Toda a criação assim como o trabalho do homem em todas

as suas legítimas aspirações naturais é elevada, consagrada e transformada” (p. 166). Na

contemplação litúrgica, todo privatismo é transcendido.

12. Desde o tempo dos primeiros Padres Cistercienses, Maria tem sido vista como modelo

de contemplação. No caso de Merton, sua devoção particular a Nossa Senhora se

manifestava mesmo antes de seu ingresso em Gethsemani, especialmente numa

experiência de seu amor que ele teve durante umas férias da faculdade em Cuba.

13. Maria, para Merton, em toda sua pessoa humana, é a epítome da receptividade ativa do

contemplativo a Cristo. Positivamente, “ela é... em todas as suas limitações humanas e

femininas, aquela que acreditou” (p. 170). Ela segue à letra a sua palavra (crê na sua

palavra) e ela vive de acordo com sua palavra. Ela possui fé e fidelidade. Em Maria,

esta abertura dinâmica a Deus através da fé não encontra qualquer tipo de resistência

interior. Não há autoafirmação egoísta em Maria. Em si mesma, ela é pobre, humilde,

vazia, pura, pacífica, silenciosa. “Ela é como um nada na presença de Cristo, de Deus”

(p. 169). Tudo o que obstrui a vinda de Cristo em nossas almas – autossuficiência,

orgulho, arrogância, sensualidade, violência, dessossego, barulho – não se encontra

nela. Ela foi protegida do seu assalto por sua Imaculada Conceição. (“Ela foi, em seu

sentido mais alto, uma pessoa precisamente porque, sendo ‘imaculada’, ela estava livre

de toda mancha de egoísmo que pudesse obscurecer a luz de Deus no seu ser”, p. 171).

Por conseguinte, ela pode ser repleta de Deus, “ela pode recebê-lo no mundo, ela pode

lhe oferecer a hospitalidade de um ser que está... centrado na mais completa humildade”

(p. 169). Ela não tem nada que não tenha recebido de Cristo e esta é sua maior glória

(cf. carta de Thomas Keating, 2014).

14. Porém Maria é mais do que um exemplo de virtudes interiores que nos dispõe à

contemplação. Ela é mediadora da vida da contemplação. “Se um dia conseguirmos

esvaziarmo-nos do barulho do mundo e de nossas próprias paixões”, escreve Merton, é

porque ela nos foi enviada bem perto de nós por Deus” (p. 169). As atitudes

contemplativas fundamentais brotam e são nutridas em nós quando, pela misericórdia

de Deus, vivemos em proximidade a Maria. Merton vai ainda além: estas atitudes

florescem em nós como uma participação na santidade e no escondimento de Maria.

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15. Em última instância, aquilo que Maria comunica a nós (e exatamente isto é a plenitude

da sua contemplação) não é a sua própria santidade. “Por ela ser... aquela que não

possui absolutamente nada que ela tenta possuir como próprio... ela é capaz de mais

plenamente nos comunicar a graça de um Deus infinitamente despojado” (p. 173).

16. O Deus infinitamente despojado habitando no ser humano totalmente pobre. Plenitude

absoluta esvaziando-se em pobreza radical que se gloria em receber tudo de Deus e se

gloria em não ter nada de próprio, nada a não ser aquilo que recebeu de Deus, que se

gloria em devolver tudo a Deus em amor e louvor, se gloria em dar tudo aos outros

homens e mulheres em amor e compaixão. Uma pobreza e um escondimento

glorificados e enriquecidos por Deus sem jamais cessarem de ser pobreza e

escondimento. Maria, imagem mertoniana (não poética, mas real) do contemplativo,

expressão perfeita daquela palavra que ele reverenciava mais do que todas as outras ao

falar sobre os seres humanos – Maria, uma pessoa.