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Antropologia da arquitetura musealizada: Paisagem museológica e as paisagens vernaculares da “esquina” do bairro de Nazaré, em Belém Rosangela Marques de Britto Flávio Leonel Abreu da Silveira

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Antropologia da arquitetura musealizada: Paisagem museológica e as paisagens

vernaculares da “esquina” do bairro de Nazaré, em Belém

Rosangela Marques de Britto

Flávio Leonel Abreu da Silveira

Rosangela Marques de Britto, Flávio Leonel Abreu da Silveira

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Antropologia da arquitetura musealizada: paisagem museológica e as paisagens

vernaculares da “esquina” do bairro de Nazaré, em Belém

Rosangela Marques de Britto

Graduada em Arquitetura, mestre em Museologia e Patrimônio, doutora em Antropologia pelo

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Universidade Federal do Pará e docente da

Universidade Federal do Pará. [email protected]

Flávio Leonel Abreu da Silveira

Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, docente do Programa de

Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará. [email protected]

Resumo

Os museus implantados junto ao patrimônio histórico tombado de Belém abrangem

prédios do século XVIII, XIX e início do XX, como o caso do Museu da Universidade Federal do

Pará. Estas arquiteturas de museus representam lugares de disputa entre o moderno e o antigo,

envolvendo uma querela patrimonial. Todavia, quando se pensa os seus usos públicos nos

espaços urbanos dos bairros, representam importantes polos de produção de significações e

sentidos socioculturais, e de memória coletiva no contexto das cidades da Amazônia Oriental, no

caso, Belém. Apresentamos parte da pesquisa de tese que versou sobre a interpretação dos usos

do espaço urbano-social: os interiores, definidos pela obra arquitetônica, e os espaços

urbanísticos, representados pela figura da rua, contrapondo o patrimônio cultural como categoria

de pensamento, situado entre as “narrativas do cotidiano” em relação à “narrativa do monumental”.

Abstract

The museums instaled in historic heritage listed in Belém cover buildings from XVIII, XIX

and early XX centuries, as the Museum of the Federal University of Pará. Those museums

architectures depict places of dispute between the modern and the antique, involving a heritage

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squabble. Nevertheless, when think about a public uses in the urban spot of the neighborhoods,

they are important production poles of meanings and sociocultural senses and colective memory in

a context of Oriental Amazon, as Belém. We present part of the thesis research that dealt with

interpretation between the uses of social-urban spot: inside, defined by architecture work, and the

urbanistcs spots, represented by the street image. Contrast the heritage cultural as think category,

between: the “daily narrative” with respect to “monumental narrative”.

Pretendemos apresentar sucintamente o debate teórico-conceitual que baseou o estudo

da relação dos grupos sociais urbanos com o patrimônio histórico tombado e musealizado no

espaço urbano da rua e do bairro de Nazaré, em Belém (PA). O estudo da percepção da

“musealidade” (SCHEINER, 2005) dos moradores, habitués, trabalhadores de rua do entorno do

Museu da Universidade Federal o Pará (MUFPA) está relacionado à pesquisa do patrimônio

cultural como categoria pensamento (GONÇALVES, 2002) – ou mesmo às “práticas culturais

espaciais de consumo cultural” (CERTEAU, 2008, p. 37-53; MAYOL, 2008, p. 37-45), portanto, das

relações de usos dos indivíduos e grupos sociais com o espaço urbano das ruas e do patrimônio

histórico musealizado. O objetivo geral da pesquisa consistiu em compreender as práticas sociais e

culturais que configuram e reconfiguram os sentidos e significados atribuídos aos espaços de vida

cotidiana e os transformam em “lugares praticados” (CERTEAU, 2008). Pretendemos descrever o

fenômeno das temporalidades da memória dos lugares desvelados pelos indivíduos e grupos

urbanos em seus itinerários nas ruas do bairro de Nazaré e no MUFPA, buscando entender as

mudanças e permanências das paisagens locais, a fim de observar as dinâmicas sociais dos atores

que frequentam o entorno da edificação e as exposições museológicas realizadas naquele museu.

Patrimônio Histórico Musealizado no espaço urbano da cidade de Belém

O patrimônio arquitetônico municipal belenense foi demarcado pela expansão da agência

portuguesa no vale amazônico, pela formação do aldeamento e povoamento do núcleo inicial de

formação urbana de Belém, que abrange o século XVII e o limiar do século XIX ao XX, destacando-

se seis momentos: 1) Fundação da cidade pela agência portuguesa em 1616; 2) A ocupação da

Amazônia e as ações do governador régio Marquês de Pombal, do século XVII até a segunda

metade do século XVIII; 3) A capital e o arquiteto régio, Antonio José Landi, que se destaca em

relação às construções de igrejas, palácios e todo um cenário urbanístico; 4) A Belle Époque, na

fase áurea da economia advinda das riquezas geradas pela exploração da borracha, no período de

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1870 a 1912; e 5) Os empreendimentos urbanísticos idealizados na administração de Antônio

Lemos, no período de 1897 a 1910 e ao governo estadual de Augusto Montenegro, eleito em 1901,

reeleito em 1905, ficando no cargo até 1909; 6) Expansão da cidade em direção à 3ª freguesia da

“Trindade”, no século XIX, que envolveu a área do “largo de Nazareth”, que originou o bairro de

mesmo nome (BRITTO, 2009, 2014).

As práticas adotadas pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e pelas

instituições locais, relativas à preservação do patrimônio histórico da cidade e do estado,

espelharam-se na política brasileira do período de 1930 a 1980, direcionada para o campo da

preservação do patrimônio histórico e artístico, com a criação dos “instrumentos de proteção”,

que continuaram praticamente os mesmos: “o tombamento para bens imóveis e os museus para

guarda dos acervos de bens móveis”(FONSECA, 2005, p. 217). A narrativa do monumental, na

fase heroica nos anos 1930, da qual a figura representativa era Rodrigo Melo Franco, enfatiza a

valorização do passado, em que os monumentos e obras de arte materializam a tradição como

fonte segura no delineamento de uma identidade nacional – fala em memória da nação. A narrativa

do cotidiano, nos anos 1970, tendo como figura representativa Aloísio Magalhães, enfatiza o

deslocamento do discurso do cotidiano de bens patrimoniais para o de bens culturais, em que o

presente é valorizado, em detrimento do passado. Nesta situação discursiva, as individualidades

fornecem o ponto de partida para narrar o patrimônio. Assim, os discursos que subsidiam a

configuração definidora da sociedade nacional estão centrados na heterogeneidade

(GONÇALVES, 1997; FONSECA, 2005).

Esta digressão da política de preservação do patrimônio nacional reflete-se nos

estados e municípios amazônicos. O patrimônio histórico tombado no centro histórico de

Belém reporta-se à fase heroica e moderna da trajetória nacional. Na década de 1970, foram

criadas as secretarias de cultura do estado do Pará e do município de Belém, assim como a

legislação de preservação do patrimônio histórico e cultural dessas instituições. Atualmente,

existe na paisagem urbana de Belém uma concentração de museus em prédios históricos que

foram restaurados e adaptados para a função museológica, como em outros estados

brasileiros (Figura 1). Esta é uma política de preservação da memória coletiva amplamente

adotada no Brasil. No bairro de São Brás, situa-se o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG),

instituição de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e o MUFPA,

vinculado ao Ministério da Educação, no bairro de Nazaré, ambos de âmbito federal, sediados

em sítios protegidos. A figura 1 traz uma vista panorâmica e a localização dessas edificações

ou sítios musealizados no espaço urbano de Belém, no intuito de situar espacialmente as

edificações e contextualizar um dos espaços delimitados para a pesquisa.

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Escolhemos estas edificações tombadas e musealizadas como áreas de futuros estudos. A

pesquisa no MUFPA e nos espaços das ruas do seu entorno vão ao encontro do seguinte

questionamento: Mas, até que ponto estas arquiteturas tombadas e musealizadas são, de fato,

espaços de sociabilidades urbanas? O que significam esses patrimônios culturais musealizados

nos bairros da cidade de Belém para os habitués que praticam os seus entornos? Qual a ideia de

patrimônio cultural musealizado presente no bairro de Nazaré, a partir das narrativas sobre o

cotidiano das ruas, de seus trabalhadores, moradores e frequentadores do MUFPA?

Figura 1 -. Mapa dos patrimônios musealizados em Belém. Ao centro, o destaque ao MUFPA.

Na tese da primeira autora, defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em

Antropologia da Universidade Federal do Pará, propomos analisar o patrimônio cultural

enquanto discursos do cotidiano, na dimensão da rua, ou seja, a partir das narrativas dos

trabalhadores de rua, moradores e habitués do espaço urbano. O espaço-território de

referência é o entorno do MUFPA, museu instituído pela UFPA e implantado em um prédio

histórico do início do século XX, inserido no circuito de museus da cidade. A figura 2 mostra a

paisagem urbana da pesquisa, em períodos históricos diferenciados.

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Figura 2 - Palacete como residência e como museu

Pelo o que tudo indica o lugar deste estudo, o MUFPA e o seu entorno, no bairro de Nazaré,

parece apontar a ideia presente entre alguns belenenses sobre Museu, em espaço fechado, neste

caso numa “casa” centenária, o que evocaria a imagem relacionada à “coisa velha e antiga”

(CHAGAS, 1987), causando-lhes certa aversão em visitar esses locais, em contraste com os

espaços abertos, parques, bosques, os nomeados “lugar de bichos” e “lugar de plantas”, como o

Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi e o Bosque Rodrigues Alves. Essas

expressões foram utilizadas por duas interlocutoras da pesquisa: a primeira, Ocilene Paiva (Leny),

36 anos, ao relatar os seus passeios na época escolar, quando um museu significava para ela o

“lugar dos bichos”; e a segunda, Terezinha Siqueira, ao relatar as idas com seus filhos e netos ao

Bosque Rodrigues Alves.

Ademais, partimos do princípio de que os conceitos atribuídos pela Museologia para o

entendimento sobre o Patrimônio, indicam que a categoria patrimonial passa a ser definida a partir

das relações entre as coisas, as pessoas e os espaços/cenários, produzindo uma paisagem urbana

de extrema complexidade, onde a ideia de patrimônio é de extraordinária relevância. A categoria

patrimônio cultural é interpretada como um conceito polissêmico, compreendido desde o conjunto

dos elementos que cada indivíduo entende como pertencente à sua esfera pessoal, até o conjunto

de evidências naturais e de produtos do fazer humano, definidores ou valorizadores das

identidades de determinados indivíduos e grupos sociais

Um objetivo específico da pesquisa foi descrever, por meio dos relatos e das imagens, o

fenômeno das temporalidades da memória dos lugares, desveladas pelos indivíduos e grupos

urbanos em seus itinerários nas ruas do bairro de Nazaré e no MUFPA, visando compreender as

mudanças e permanências das paisagens locais, afim de analisar as dinâmicas sociais dos atores

que frequentam e frequentavam aquelas “esquinas” ao longo das mudanças de usos e funções do

“palacete Montenegro” – de 1903, até se configurar como espaço administrativo, e depois ser

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convertido em museu da UFPA, de 1984 aos dias atuais. As questões que nortearam o

desenvolvimento da etnografia foram: Como os indivíduos e grupos sociais urbanos percebem

estes lugares de memória e o patrimônio histórico musealizado em seu cotidiano de vida, nos

espaços urbanos dos seus bairros? Como os indivíduos e grupos sociais urbanos compreendem

aquele “prédio da esquina” no seu cotidiano de trabalho, nas ruas e nos seus movimentos de ir e

vir naquele microcosmo da cidade, delimitado pela área de estudo situada na intercessão das

avenidas “José Malcher” e “Generalíssimo”?

A categoria patrimonial, estudada nesta dimensão teórica, visa correlacionar a atribuição de

valores e de usos de um determinado espaço sócio-histórico e simbólico, e nos instiga a aproximar

esta correlação teórica ao conceito de paisagem/paisagens (ABREU DA SILVEIRA, 2004), numa

abordagem antropológica. A categoria paisagem museológica se constitui pelos discursos de

preservação patrimonial (como parte do processo de ordenamento e fixação de sentidos), e é

continuamente reinterpretada pela memória individual e coletiva do espaço-lugar (memória fluida

ou lugar da resistência). O adjetivo museológico aplicado à paisagem está relacionado ao campo

disciplinar da museologia, que tem como objeto de estudo a musealidade, que se refere ao homem

e seus vínculos filosóficos, sócio-históricos e antropológicos em “relação ao espaço-tempo e

memória” (SCHEINER, 2005); bem como a constituição do “fato museológico” que, segundo

Waldisa Guarnieri (1989, p. 59-78), representa a abordagem do saber museológico em interação

com a realidade social, ligada à instituição museu – o “cenário museológico”.

A musealização é um processo científico que compreende um conjunto de atividades

do museu, envolvendo o trabalho de preservação (seleção, aquisição, gestão, conservação),

de pesquisa (documentação e catalogação) e de comunicação (exposição, educação e outros

meios de difusão). O patrimônio cultural musealizado pode ser considerado materialmente

como o passado tangível (prédio histórico ou patrimônio histórico) que foi convertido em

museu. Ademais, o ato de musealizar o patrimônio cultural, compreendido como processo,

nos permite afirmar, em acordo com Mathilde Bellailgue (1992), que a teoria museológica é

elaborada a partir da prática museal, quando o museu é o laboratório da museologia e, por

sua vez, tem o seu material de experimento no real. O real, no museu, é representado pelo

objeto, compreendido em seu sentido amplo: tangível e intangível, podendo ser comparado

às duas faces de uma moeda, que se complementam.

Lygia Martins Costa, museóloga graduada em 1939 pelo Museu Histórico Nacional, e

técnica do IPHAN por 40 anos, refere-se, em 1972, à perspectiva dos museus no Brasil,

argumentando que um “país se reflete em seus museus” (COSTA, 2002, p.37), sendo necessária a

capacitação de museólogos para atuarem nessas instituições, no intuito de adaptar os museus ao

mundo contemporâneo. A autora se refere, ainda, aos museus existentes nas regiões brasileiras e

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ao papel do IPHAN à época, mas também ao comportamento dos brasileiros, que pouco

frequentavam os museus, associando este fato ao número reduzido de serviços educativos nestas

instituições, reiterando que “a máquina montada que é um museu só se justifica pela presença do

público” (COSTA, 2002, p.46).

No sentido de compreendermos a relação do público com o espaço arquitetônico

musealizado na cidade, já apontada como relevante por Costa (2002), notamos que ela

continua sendo uma temática significativa a ser investigada. Nesta direção, a pesquisa se

baseou na interpretação do “Palacete Montenegro” como ator ou agente da paisagem urbana

e a relação dos grupos sociais urbanos com aquela paisagem da “esquina” no contexto do

bairro de Nazaré. Realizamos uma abordagem cruzada e entrelaçada do espaço

arquitetônico, por suas várias dimensões, e associada ao que propõe Igor kopytoff (2008), de

interpretar a trajetória da Casa-Palacete ressaltando a sua “biografia cultural” (KOPYTOFF,

2008, p. 85-121). Neste contexto urbano, o “espaço arquitetônico” (MALARD, 2006) está

relacionado ao ambiente construído, ou seja, as formas arquitetônicas estão vinculadas às

experiências humanas vividas, seja do espaço, da distância ou do tempo. O espaço

arquitetônico como forma de concretização existencial do humano, pode ser interpretado em

três dimensões: a simbólica, relacionada ao universo das percepções, emoções, ideias,

crenças e desejos; a funcional, referente ao uso e/ou dimensionamento das coisas no espaço

para o desempenho das atividades cotidianas; e a tecnológica, integrada ao conhecimento

técnico e habilidades necessárias ao homem para criar os lugares significativos (simbólicos)

e funcionais (usos para determinadas atividades).

A noção de Antropologia da Arquitetura Musealizada baseia-se num enfoque fundamental,

que nos permitiu adentrar em uma “poética do espaço”, na abordagem de Bachelard (1988, 2008,

2010) sobre a duração do ritmo do tempo e do espaço pelas perspectivas da “ritmanálise” e da

“topoanálise”, respectivamente, relacionadas à dialética de duração e do espaço. Outro enfoque

refere-se à “antropologia de grupos urbanos”, guiada pela perspectiva de abordagem das cidades

em processo de urbanização, conforme apontado por Ruben Oliven (1984). Aventuramo-nos pelos

caminhos da perspectiva da “antropologia na cidade”, seguindo os ensinamentos de Ana Luiza da

Rocha e Cornelia Eckert (2013, 2005). Em especial, nos permitimos deambular pelos territórios

urbanos, que nos conduziram aos meandros das memórias individuais e coletivas dos

interlocutores, a partir dos métodos da etnografia de rua, da observação participante e da

realização de entrevistas.

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Biografia sociocultural do Palacete Montenegro e a espacialização das atividades de lazer

familiar, de “ir ao museu”.

A “biografia cultural” das coisas, segundo Igor Kopytoff (2008, p. 89-121) envolve uma

trajetória informada culturalmente, no intuito de refletir sobre os tipos de biografias de pessoas e

coisas em sociedades simples e complexas. Em suas análises contextuais, o autor apresenta como

se pode traçar uma analogia entre a forma pela qual as sociedades constituem os indivíduos e a

maneira pela qual constroem coisas. Nestes termos, as sociedades ordenam o mundo das coisas e

das pessoas simultaneamente e, da mesma forma, constituem objetos e pessoas na mesma

estrutura. Seguindo esta direção, observa-se que todas as pessoas têm biografias diversas-

pessoal, econômica, familiar, profissional, dentre outras.

No Quadro 1 sintetizamos a biografia cultural do “Palacete Montenegro”, relacionando as

mudanças de uso ou função daquele espaço arquitetônico ao longo do tempo. Edificado em 1903,

para residência e espaço de trabalho do ex-governador do Pará, Augusto Montenegro, e posterior

residência de famílias abastadas até 1965, quando foi adquirido pela Universidade Federal do Pará

(UFPA) para abrigar a sede da reitoria. O Museu da UFPA foi criado em 1983, e instalado no

Palacete em 1984. Foi tombado pelo Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural da

Secretaria de Cultura do Estado do Pará em 2002, por representar uma das edificações

características do início do ecletismo arquitetônico da região.

Na Figura 3 a-b apresentamos duas maquetes para sintetizar as mudanças físicas do

espaço urbano, que após a aquisição dos lotes entre 1948 e 1950, o Palacete adquiriu a condição

de “esquina”. Na primeira maquete, a residência de Montenegro; na segunda maquete observa-se

o jardim de esculturas implantado em 2006.

PERÍODOS INSCRIÇÕES USOS / FUNÇÕES

1903-1909 1º Residencial (Construção; Família de Augusto Montenegro)

1910-1950 1º Residencial/famílias ricas (expansão do lote, criação do jardim)

1950-1965 1º Residencial/famílias ricas

1965-1984 2º Administrativo/sede da reitoria da UFPA

1984-2002 3º Museológico/processos museológico de salvaguarda e comunicação

2002-2014 4º Memorial e Museológico/tombamento estadual; livro de tombo bens imóveis (Publicado no DOE, 20/12/2002).

Quadro 1 - Biografia sociocultural da Casa-Palacete ao Museu da UFPA, por ordem de atribuições de valores:

econômico, social, cultural, patrimonial, artístico, monumental ou arquitetônico e museológico.

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a

b

Figura 3 - Maquetes do palacete no lote.

Sobre a pesquisa relativa aos estudos de público, realizamos a observação participante

junto a grupos de visitantes agendados, e entrevistamos um total de 33 pessoas, entre 10 e 40

anos, discentes, docentes, mediadores educacionais e técnicos escolares. Em síntese, as

questões iniciais se referiam à apresentação do visitante: nome, idade, e o que tinha achado da

visita ao museu. Em seguida, ampliamos para outras questões: Quais museus o visitante conhecia

em Belém? Se tinha ido acompanhado (a) ao museu? Em seu tempo livre, quais os tipos de

diversão ou lazer? No Quadro 2 apresentamos os lugares citados pelos interlocutores, em

relação à primeira questão: Quais museus você conhece em Belém?

Local Frequência

Museu Paraense Emílio Goeldi – “O Parque” 12

Bosque Rodrigues Alves 10

Museu de Arte Sacra 04

Museu do Estado do Pará 01

Museu de Arte de Belém 01

Canil da Polícia Militar 01

Parque da Residência 01

Palacete Pinho 01

Colégio IEP 01

Casa das Onze Janelas 01

Total de visitantes 33

Quadro 2 - Espaços visitados pelos interlocutores em Belém.

Fonte: Entrevistas realizadas no MUFPA por Rosangela Britto.

As respostas a estas questões não foram conclusivas, uma vez que a nossa intenção foi de

potencializar as categorias nativas de museu, em contraponto à noção aferida pelo campo

disciplinar da Museologia e do Patrimônio. Ao conversarmos com as crianças e adolescentes, no

intuito de observar aquela experiência de visita ao MUFPA como parte de suas atividades

educativas, percebemos que as referências de museus para elas, quando havia, para alguns

estavam relacionadas a “espaços abertos” no meio urbano. Esboçamos as frequências das

respostas, relacionadas a determinados lugares ou equipamentos públicos existentes na cidade,

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expostas no Quadro 2. Destacaram-se dois locais: “o parque do MPEG”, o mais citado, seguido

pelo o Bosque Rodrigues Alves. Iluminaremos estas ocasiões de lazer na cidade apresentando

um trecho de uma das interlocuções com Isaías Souza Silva Junior, 16 anos, morador do município

de Marituba. Ele visitou a exposição “Poesia Gravada: Oswaldo Goeldi” com o grupo da sua Escola

Maria Helena, do Distrito de Icoaraci:

“É, tava todo mundo pensado, égua a gente vai vê as onças (risos) é porque não

falaram pra gente, por isso que eu até não entendi porque o nome do outro é museu

e não zoológico! Que a gente vai lá pra vê os animais, mas aqui é o museu

mesmo, que tem exposição!

Não, eu achei que a gente ia agora no zoológico, quando soube que não era

zoológico que ia ser chato, mas não foi tão chato assim, eu gostei!

É porque pensei... aqui[MUFPA] tem muitas coisas de regras e a gente fica até um

pouco, meio, intimidado, não pode tocar nisso, não pode tocar naquilo (risos) só

norma! No outro [no MPEG] a gente sai correndo [...]. É, no zoológico.”

O relato de Isaías demonstra bem as diferenças atribuídas por ele ao espaço aberto do

parque do MPEG, que lhe possibilita uma sensação de liberdade, sem as normas rígidas de

conduta. O espaço museológico do MUFPA é cercado de muitas “regras” e “normas”, que lhe

causou a sensação de repressão à sua conduta e deslocamento no espaço expositivo dos salões

do Palacete. Outra questão abordada foi que ele considerou o MUFPA “um museu” de fato, por ter

“exposição”, diferente do MPEG, que é um ”zoológico”.

Gonçalves (2007), ao propor uma aproximação dos patrimônios culturais como gêneros

discursivos, faz uma comparação entre as estratégias narrativas do monumental e do cotidiano. No

primeiro, a memória é valorizada enquanto uma memória da nação presa ao passado. No

cotidiano, o passado é relativizado e o uso do presente é bastante plural. O ponto de partida é a

experiência pessoal e coletiva dos diversos grupos sociais. Em ambos os gêneros discursivos

adotam-se as estratégias narrativas dos modos de conhecer os espaços públicos diferenciados –

“Ora um espaço público monológico, policiado, fechado; ora um espaço tendencialmente mais

aberto, polifônico” (Gonçalves 2007, p. 154).

Para a interpretação dos relatos dos grupos sociais urbanos e das paisagens

vernaculares, adentramos o espaço urbano da rua, a partir do cotidiano das/nas “esquinas”. A

meta foi compreender os modos de vida dos vendedores de rua situados nos espaços das

calçadas – entre eles: Bené (vendedor de doces), Zeca (sapateiro), Jerônimo (bombonzeiro),

Ribamar (relojoeiro) e Nazareno (vendedor de pastéis) – e como se estruturam no interior de

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um bairro enobrecido como o de Nazaré. Interessava-nos compreender como eles percebem

as mudanças e permanências daquelas paisagens das “esquinas”?

Ribamar utilizou a expressão “trabalho-lazeando”, ao argumentar sobre o que significa

desenvolver o seu ofício de relojoeiro nas calçadas da rua, com sua minúscula mesa de abrir

e fechar, ciente que ele está num “bairro chique”. Na sua opinião, era simples dizer o que se

faz no MUFPA: é um “trabalho” que envolve as “pessoas” no ato de pesquisar. O Bené, da

“família Bandurra”, associou a sua noção de museu ao “passado” e à dimensão pessoal ,

comparando o museu a uma casa, na qual se pode guardar objetos e contar a história de um

ente querido”. Entre os cinco citados, ele era o único que sabia, por intermédio de seus

“clientes”, que ali funcionava o Museu da Universidade, apesar de ainda não conhecê-lo

internamente. Bené ao responder a nossa pergunta sobre o que havia no museu, comentou:

“A pessoa vai no museu pra quê?” “Pra ver! Égua é o Museu da Universidade! Então, a gente

vai lá no Museu da Universidade pra ver o histórico da Universidade”.

Moisés, da banca de revista situada na frente do MUFPA, que também é morador do

bairro de Nazaré, era o único que já tinha visitado o MUFPA. Nutre uma relação de afeto

e de sensibilidade ao patrimônio edificado “antigo”, aos “prédios antigos” de seu bairro,

mostrando-se preocupado com seus usos e manutenção. Conforme o seu relato, ele e a

diretora atual do MUFPA tiveram um pequeno “atritozinho” em certa ocasião, motivado pelo

uso do muro e da grade do museu como expositor e assento, respectivamente.

As táticas dos trabalhadores de rua do entorno do MUFPA e os seus esquemas de

“contra-usos” (LEITE, 2007) das calçadas convertem os espaços urbanos em lugares,

tornando-os vernaculares. A subversão dos usos dos espaços, conforme esperado pelos

agentes urbanos se cinda dando origem a vários espaços-territórios marcados pelas

idiossincrasias de seus usuários, e as suas diferenças de significações constituem as

“paisagens vernaculares” (ZUKIN, 2000). Os usos e contra-usos do bairro de Nazaré,

conforme descrito, visaram relatar como ocorre à construção socioespacial da diferença

naquele lugar. Os usos cotidianos subvertem as “maneiras de fazer” (CERTEAU, 2008)

esperadas para o espaço urbano, do que seriam as concepções oficiais de conservação do

patrimônio histórico e planejamento urbano. O espaço da rua, para eles, transforma-se em

um “espaço doméstico”, da casa e os ritmos do tempo são marcados por suas expressões

corporais ao executarem os “gestos técnicos” (LEROI-GOURHAN, 2002) de seus ofícios: de

furar e costurar o couro, de descascar a castanha-do-pará, de manusear pequenas

ferramentas nas engrenagens dos relógios e outras técnicas.

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Considerações

Apresentamos neste texto parte dos resultados da pesquisa etnográfica realizada no intuito de

expor ao debate a importância dos estudos interdisciplinares e de interpretar as relações dos grupos

sociais urbanos com o espaço arquitetônico musealizado nas cidades da Região Norte, e a relação

do Museu da Universidade Federal do Pará com os atores sociais em seu entorno, sejam eles

trabalhadores de rua, habitués ou moradores. No objetivo da pesquisa de abordar a noção nativa de

museu, conseguimos explicitar que esta noção está relacionada a uma atividade de lazer realizada

em família, e socialmente estruturada como a noção de habitus (BOURDIEU, 1996). Em síntese:

quanto à noção de museu e sobre o patrimônio histórico musealizado, as preferências dos

interlocutores estão ligadas à ideia de espaço aberto, de Museu a céu aberto e de áreas verdes ou

patrimônio ambiental – e não como a noção de museu identificada para o Rio de Janeiro

(CHAGAS,1987), ou seja, a de que o museu está associado à “ideia de coisa velha e antiga”.

A noção de museu associada à “ideia de coisa velha e antiga” foi suscitada por Moisés (60

anos), da banca de revista, por Bené (50 anos), da banca de doces, e por Hillarina (89 anos). Para

estes interlocutores, o patrimônio histórico e os objetos para guarda em museus estão associados a

um “passado da nação”, às narrativas do patrimônio como discurso do monumental (GONÇALVES,

2007). Mas, as noções de “velho” e de “edificação antiga” explicitadas por eles relembram as teorias

de valores de Alois Riegl (2006), referendo-se ao valor de antiguidade, que é uma das atribuições

dos bens culturais no nível da percepção mais imediata, intuitiva e menos culta.

Referências bibliográficas

ABREU DA SILVEIRA, Flávio Leonel. As Paisagens fantásticas e o barroquismo das imagens.

Estudo da memória coletiva de contadores de causos da região missioneira do Rio Grande do Sul.

2004. 805f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, Porto Alegre, 2004.

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