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- ANTROPOLOGIA NAS ENCRUZILHADAS: "QUE É FEITO DA ETNOCIÊNCIA?" ALGUMAS REFLEXÕES TEÓRICAS A PARTIR DE PESQUISAS SOBRE ETNOMEDICINA E ETNOBOTÂNICA NO MUNDO DO CANDOMBLÉ* C omeçarei tratando de uma questão incômoda, que não pode ser eludida por quem se interessa pelo tema deste F& rum. O problema já é visível nas palavras-chave etnociência, emocieruista.Hoje, não é fácil achar quem as pronuncie "de boca cheia", com a grande ên- fase de outrora, e sem algum reparo a seguir. Sim, existem muitos espeoalsasqoesedarram de etnoecólogos, etnobiólogo, etnomusicólogos, etnohistoriadores etc. Mas pa- rece que a todos constrange um pouco o rótulo genérico, o nome de "etnocientista". Não soa bem. Ainda provoca os ar- repios de uma lembrança ne- gativa: a das ambições teóricas desmesuradas vividas no surgi- mento da plataforma de que se destacaram os varia- dos campos onde labutam os hoje muito mais pudicos etno-qualquer-coisa. O exaltado sucesso de pioneiros nesse tipo de pesquisas fizera crer que com elas se inaugu- rava uma scienza nuoua, com um programa bem delineado e um método rigoroso, quase uma Arubropologie ais strenge Wissenschaft. Miragem de antropólogos, por certo ... Mas outros estudio- sos acreditaram no porto seguro dessa Nova Etnologia, cujos fundamentos seriam estabeleci- 120 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS ORDEP SERRA ** RESUMO Neste artigo, procuro refletir sobre o acontecido com a etnociência, de que já não se fala, embora tenham pro- gredido, divergindo em rumos distintos, vários estudos "etnocientíficos": a etno-história, etnomusicologia, a etnobiologia, a etnoecologia etc. Tenho em mira a rela- ção entre esses estudos (cada vez mais interdisci- plinares) e a antropologia, que é evocada em todos como um fundamento comum, mas não se mostra capaz de reivindicar-Ihes o domínio, nem de unificá-Io, indago o que significa para a antropologia a morte prolífica da etnociência. Evoco debates que marcaram a trajetória da etnopsiquiatria e concluo com a discussão de pro- blemas teóricos da etnobiologia, a propósito de uma pes- quisa etnobotânica (e etnofarmacológica) sobre o sistema das 'folhas" no candomblé da Bahia. dos com base em uma profunda exploração teó- rica da dimensão cognitiva das culturas humanas. Hoje, estamos muito longe desse triunfalismo. São notáveis os progressos que pesquisas "etnocíentí- ficas" têm realizado em di- versas áreas, mas não sugerem nada como uma grande síntese teórica, ca- paz de funcionar, à peu prês, como uma epistemologia transcultural, montada num método elegante de descri- ção/decifração. E até fica- mos encabulados quando se fala em Etnociência, as- sim no singular, com a ex- pressiva maiúscula. Meu propósito é fa- zer uma provocação ao debate sobre um dado curioso: a Etnociência, pelo jeito, morreu ... e multiplicou-se. Uma dilaceração prolífica. O que isto quer dizer? Talvez eu tenha exagerado no anúncio catastrófico. Num encontro como este, onde é natural que se deparem alguns etno-issos e etno- aquilos (Remanescentes? Prosélitos? oviços tar- dios?) a velha imagem de Babel acode inevitável, mas é logo esconjurada: a nuvem tenebrosa é dissipada por votos cordiais. Pois embora seja • Comunicaçãoapresentadano Simpósio08: O que é fei- to da Etnociência?,durante a XXII ReuniãoBrasileirade Antropologia, Brasflia, DF,16 a 19 de julho de 2000. •• Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciên- cias Humanas. Departamento de Antropologia, Uni- versidade Federal da Bahia v.32 N. 1/2 2001

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-ANTROPOLOGIA NAS ENCRUZILHADAS:

"QUE É FEITO DA ETNOCIÊNCIA?" ALGUMAS REFLEXÕESTEÓRICAS A PARTIR DE PESQUISAS SOBRE

ETNOMEDICINA E ETNOBOTÂNICA NO MUNDO DOCANDOMBLÉ*

Começarei tratando de umaquestão incômoda, que nãopode ser eludida por quem

se interessa pelo tema deste F&rum. O problema já é visível naspalavras-chave etnociência,emocieruista.Hoje, não é fácilachar quem as pronuncie "deboca cheia", com a grande ên-fase de outrora, e sem algumreparo a seguir. Sim, existemmuitos espeoalsasqoesedarramde etnoecólogos, etnobiólogo,etnomusicólogos,etnohistoriadores etc. Mas pa-rece que a todos constrange umpouco o rótulo genérico, onome de "etnocientista". Nãosoa bem. Ainda provoca os ar-repios de uma lembrança ne-gativa: a das ambições teóricasdesmesuradas vividas no surgi-mento da plataforma de que se destacaram os varia-dos campos onde labutam os hoje muito mais pudicosetno-qualquer-coisa.

O exaltado sucesso de pioneiros nesse tipode pesquisas fizera crer que com elas se inaugu-rava uma scienza nuoua, com um programa bemdelineado e um método rigoroso, quase umaArubropologie ais strenge Wissenschaft. Miragemde antropólogos, por certo ... Mas outros estudio-sos acreditaram no porto seguro dessa NovaEtnologia, cujos fundamentos seriam estabeleci-

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ORDEP SERRA **

RESUMO

Neste artigo, procuro refletir sobre o acontecido com aetnociência, de que já não se fala, embora tenham pro-gredido, divergindo em rumos distintos, vários estudos"etnocientíficos": a etno-história, etnomusicologia, aetnobiologia, a etnoecologia etc. Tenho em mira a rela-ção entre esses estudos (cada vez mais interdisci-plinares) e a antropologia, que é evocada em todos comoum fundamento comum, mas não se mostra capaz dereivindicar-Ihes o domínio, nem de unificá-Io, indago oque significa para a antropologia a morte prolífica daetnociência. Evoco debates que marcaram a trajetóriada etnopsiquiatria e concluo com a discussão de pro-blemas teóricos da etnobiologia, a propósito de uma pes-quisa etnobotânica (e etnofarmacológica) sobre osistema das 'folhas" no candomblé da Bahia.

dos com base em umaprofunda exploração teó-rica da dimensão cognitivadas culturas humanas.

Hoje, estamos muitolonge desse triunfalismo.São notáveis os progressosque pesquisas "etnocíentí-ficas" têm realizado em di-versas áreas, mas nãosugerem nada como umagrande síntese teórica, ca-paz de funcionar, à peu prês,como uma epistemologiatranscultural, montada nummétodo elegante de descri-ção/decifração. E até fica-mos encabulados quandose fala em Etnociência, as-sim no singular, com a ex-pressiva maiúscula.

Meu propósito é fa-zer uma provocação ao debate sobre um dadocurioso: a Etnociência, pelo jeito, morreu ... emultiplicou-se. Uma dilaceração prolífica. O queisto quer dizer?

Talvez eu tenha exagerado no anúnciocatastrófico. Num encontro como este, onde énatural que se deparem alguns etno-issos e etno-aquilos (Remanescentes? Prosélitos? oviços tar-dios?) a velha imagem de Babel acode inevitável,mas é logo esconjurada: a nuvem tenebrosa édissipada por votos cordiais. Pois embora seja

• Comunicaçãoapresentadano Simpósio08: O que é fei-to da Etnociência?,durantea XXII ReuniãoBrasileiradeAntropologia,Brasflia, DF,16 a 19 de julho de 2000.

•• Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciên-cias Humanas. Departamento de Antropologia, Uni-versidade Federal da Bahia

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-muitíssimo provável que esses "(etno-Jparentes"sintam dificuldades de comunicação uns comos outros, nem por isso se desiste a priori detentá-Ia. em há por que rejeitar uma conversagenérica sobre teoria e métodos.

Sim, pode-se empreendê-Ia com a espe-rança de uma interação criativa. Há algo de co-mum na bagagem de todos, e concerne a umvalioso arsenal da Antropologia. Hoje, porém,esta não pode reivindicar o domínio das pes-quisas "etnocientíficas" como um distrito de seuterritório, uma simples faixa de seu campo deação. Agora mais do que nunca, essas pesquisasse sustentam na interdisciplinaridade.

Por outro lado, para muitos antropólogosa disciplina a que se dedicam, se é que algumdia o teve, já não tem um "território" de clarotraçado, unicamente seu, onde exerça domínioexclusivo, imperativo e inconteste. Ao contrá-rio: parece que a cada hora ela fica mais cigana.A meu ver, o que tem de melhor é a vocaçãopara a vagabundagem nas encruzilhadas. Se al-gum domínio lhe cabe por direito é o das fron-teiras entre sociedades, culturas, grupos humanosdiversos; e (por conseqüência) entre saberes,discursos, jogos de linguagem. Fronteiras queflutuam ... Cruzamentos precários, instáveis, to-cados pelo fluxo da mudança incessante.

Convenhamos: o nome pretensioso danossa disciplina assusta, com a barbaridade doseu grego forjado e a abrangência que insinua:parece consignar-lhe o estudo do genus homo,segundo os bioantropólogos sugerem apontan-do imediatamente para a ligação contraditóriaentre a unidade genérica que assinalam e a di-versidade à qual ela se liga de forma necessá-ria ... Ora, ao fazê-lo, confessam eles logo queesse estudo não cabe inteiro nos limites de umaúnica disciplina: assim procuram de pronto umlimite metodológico à sua pretensão, recuandoo quanto podem ao campo da biologia. Osetnólogos dirigem sua atenção ao espaço ondeessa conjunção inelutável de unidade e diver-sidade melhor se acusa: ocupam-se das váriasconfigurações socioculturais em cujos horizon-

tes fugidios nos achamos, todos os humanos,diferentemente inseridos, ainda que levados aconter a nossa celebrada plasticidade no limitede cada domínio desses a que nos prende ahistória de nossa socialização (cf. Gellner,1997:56-72). O terreno da pesquisa antropoló-gica é clivado pela interseção de campos cujoconfronto ela torna críticos: envolve o estudio-so e seu "lugar" (sua sociedade, seu tempo,seu grupo ou classe etc.), opondo-o a outro,seja como for que se recorte essa alteridade.Mesmo quando ela se afigura mínima, quandoo estudioso investiga sua cercania, o corte dapesquisa sempre a produz, e confronta códi-gos que deve ultrapassar. O antropólogo traba-lha em limbos e fronteiras, em efêmeros pontosde encontro. Sua disciplina é movediça comoo diálogo em que se origina. E neste caso, apesquisa necessariamente inclui na sua bola deneve o pesquisador.

Porque nasceu e vive em fronteiras, por-que se criou em encruzilhadas transculturais, aAntropologia teve ímpeto para fomentar os em-preendimentos chamados "etnocientíficos", indoao encontro de graves esfinges em trânsitocognitivo.

Mas repito que os novos campos em cujaabertura ela assim se empenhou através de umdiálogo travado, de forma simultânea, com dife-rentes disciplinas oriundas da mesma fonte his-tórico-cultural, da mesma tradição epistêmica ,e ainda com outros saberes - transcendentes àfronteira dos que lhe são conaturais -, esses no-vos espaços, é bom lembrar, de fato não lhepertencem.

De qualquer modo, a Antropologia encon-tra na sua própria natureza liminar o alento quea predispõe para as aventuras da interdisci-plinaridade e o desafio dos códigos cruzados -aventuras nas quais, como reza um terrível Evan-gelho, quem quiser salvar sua alma perdê-la-á.

Talvez a dispersão que tanto temos lamen-tado seja o nosso melhor destino ...

Eu acredito que um dos resultados positi-vos da dilacerada história da Etnociência foi a

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-abertura do horizonte etnoecológico, talvez oespaço mais favorável aos reencontros teóricosde muitas vertentes dessa diáspora. Ou seja: natribo dispersa e na sua descendência multifária,talvez o maior sucesso, em termos de reunião ede avanço, tenha acontecido nesse terreno, cujaexploração resultou do inegável progresso daEtnobiologia, com um desenvolvimento particu-larmente significativo aqui no Brasil.

A propósito: nesta mesa deveria estar umcolega ilustre cuja presença bastaria para atestá-10; refiro-me a Darrel Posey, a quem pendo mi-nha homenagem. Mesmo ausente, ele cumpreaqui a função de ativo monumentum da históriaque estou evocando, uma testemunha e um agen-te de sua rica continuidade.

Ainda a propósito, devo reportar-me aoutro desencontro. Para vir a esta reunião daABA tive de faltar a um simpósio que tambémme interessava muito, e está acontecendo ago-ra, de um modo bem importuno para mim: nomesmo período em que transcorre o nosso,mas em Piracicaba. Refiro-me ao III Simpósioda Sociedade Brasileira de Etnobiologia eEtnoecologia, entidade da qual sou membrofundador, junto com Posey e muitos outros. ASBEE representa uma fênix: sua fundação em1997, num memorável congresso científico quese realizou na Bahia, no campus da Universi-dade Estadual de Feira de Santana, foi um ver-dadeiro retorno, um sinal produtivo de quenão falecera o ímpeto da primeira iniciativaaqui feita neste sentido, o tentame pioneirode estabelecer no Brasil uma organização ci-entífica com este fim, isto é, a Sociedade Bra-sileira de Etnobiologia. O estatuto da SBEErecapitula a Declaração de Belém e evoca o ICongresso Internacional de Etnobiologia, rea-lizado na capital paraense em 1988.

O crescimento exponencial da SBEE per-mite constatar o progresso extraordinário dessaclasse de pesquisas no Brasil.

Feito esse registro, volto a refletir sobredificuldades teóricas relacionadas com os estu-dos "etnocientíficos".

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Recentemente, participei de um Simpósiode Etnopsiquiatria em que me coube discorrersobre um tema espinhoso. Já o título de minhacomunicação exigiu-me algumas explicaçõespreliminares, tornadas ainda mais imperativaspelo próprio lugar onde eu a fazia. Eu falava da"Etnopsiquiatria dos Ritos Afro-brasileiros". Oencontro deu-se no prédio que já foi o Colégiodos Jesuítas, no velho Terreiro de Jesus, em Sal-vador, e depois veio a ser, por muito tempo, asede da Faculdade de Medicina da Universida-de Federal da Bahia. Pois bem: como logo avi-sei a meu auditório, não era nada simplesrelacionar "Psiquiatria" e "Ritos Afro-Brasileiros"falando naquele cenário. Tanto assim que nãopude tugir à ironia de um certo esclarecimento.

Já explico. Na ilustre Casa onde eu faziaaquela exposição, pela primeira vez ritos afro-brasileiros foram tomados como objeto de umapreocupação acadêmica; pela primeira vez sefalou deles em nome da Ciência. E eles foram,então, caracterizados como afetos ao campo daPsiquiatria, um problema a ser enfrentado nohorizonte de um programa de Hygiene Men-tal, como se dizia à época uma época em quenosso humanismo confiava no progresso, namodernização, na educação, no avanço dacristianização dos negros e na suave limpezaétnica da mestiçagem cordial para a erradicaçãodesse tipo de coisas. Ali se constituiu um campoideológico-científico de configuração muito par-ticular, interligando os domínios de conhecimen-to psiquiátrico e antropológico, técnicas dehigiene e polícia, articuladas no horizonte "mé-dico-lega!"; nesse terreno, assentou um projetode intervenção prática, reguladora, discipli-nadora, voltado para o estudo e controle dosritos afro-brasileiros.

Evoco um testemunho notável: em 1945,prefaciando uma obra de Lins e Silva, GilbertoFreyre lembrava com veneração o projeto deNina Rodrigues, de controle psiquiátrico dos ter-reiros, proposto como alternativa à repressãodireta, à intervenção policial. Nina não o conse-guiu implantar; mas a idéia foi posta em prática

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-por discípulos seus com um êxito que o sábioprefaciador acentuou. Em Recife, isso foi feitopor Ulysses Pernambucano, e em Salvador, por"técnicos capazes" arregimentados pelo majorJuracy Magalhães. Ainda de acordo com o autorde Casa-Grande & Senzala, essa iniciativa decontrole dos terreiros por médicos (e etnólogos)veio a ser "uma das intervenções mais felizes daciência e da técnica antropológica, orientada poruma psiquiatria social, na vida de uma comuni-dade brasileira" (Veja-se Gilberto Freyre: "NinaRodrigues recordado por um discípulo". Prefá-cio ao livro de Augusto Lins e Silva: Atualidadede Nina Rodrigues. Rio de Janeiro: Leitura, 1945.O citado prefácio foi republicado em 1990, emSalvador, pela Fundação das Artes, numa cole-tânea de artigos do "Mestre de Apipucos"intitulada Bahia e Baianos).

Eu falava no espaço onde isto se imagi-nou: no mesmo prédio que abrigou o MuseuEstácio de Lima, com seu rico acervo de cabe-ças de cangaceiros degolados, monstros natu-rais, monumentos de crimes e instrumentos deculto do candomblé; tratava do meu belo temano lugar onde surgiu a teoria ilustrada por essamostra. Não pude fugir à explicação de que osritos afro-brasileiros não eram, no meu discur-so, o objeto de um cuidado cuja natureza a refe-rência aos saberes psiquiátricos evidenciaria:antes correspondiam ao espaço simbólico ondetal era minha suposição - se erige uma práticaterapêutica que importa estudar. Era neste senti-do que eu falava de "Etnopsiquiatria dos RitosAfro-Brasileiros", não no sentido em que enten-deriam o termo - se o conhecessem - os segui-dores de Nina; tampouco no sentido em quepodem entendê-lo notáveis estudiosos respon-sáveis pela ditusão do enfoque e do rótulo:etnopsiquiatras da primeira hora (como GeorgeDevereux, por exemplo.

Fiz o esclarecimento, mas não fiqueitranquilo. Tinha outro embaraço no caminho.Ele concerne a um abuso praticamente inevitá-vel, encerrado no emprego que dei então aonome técnico "etnopsiquiatria.

É claro que nem sempre se pode ser se-manticamente correto. Todo discurso científicolida com deslizamentos de sentido talvez só evi-táveis por completo com desgraça maior: atra-vés de um silêncio perfeito, de estéril prudência.Contudo, certos equívocos que temos de supor-tar não nos incomodam menos por isso - porserem um atrito até certo ponto necessário à mar-cha da exposição E preciso denunciá-Ios e en-frentar o problema que encobrem.

Quando falo em "Etnopsiquiatria dos Ri-tos Afro-Brasíleiros", dando à expressão o senti-do que acima esclareci, cometo, sim, uma certaimpropriedade. Seja um exemplo: o culto do can-domblé não destaca (ao menos do modo comoo faz o seu estudioso) os procedimentos queaplica ao trato dos problemas "de ordem psiqui-átrica" - segundo nós os categorizamos -, nemos isola em um domínio específico de sua pra-xe, como circunscritos ao ámbito de uma teoriae de uma técnica particulares cuja configuraçãoas distinga com clareza de outros componentesdo sistema em apreço, segundo diferençasteleológicas decisivas: só assim se erigiria, noreferido contexto, uma "ordem psiquiátrica" dequestões.

Em certos casos, até se pode falar em umreconhecimento dessa classe de fenômenos, porparte dos especialistas do povo-de-santo; mas,em geral, ele vem acompanhado de uma deter-minação que justamente os exclui do campoterapêutico do candomblé.

(Devo esclarecer que falo aqui de "terapia"pensando no sentido que tinha o étimo destapalavra: o nome grego tberapeia compreendia ossignificados de "culto", "serviço" e "tratamento").

Com efeito, tenho ouvido pais-de-santofalarem em "doença mental" - mas quase sem-pre eles acompanham esse diagnóstico da adver-tência de que "o caso é de médico", e assimsendo, no máximo podem dar apoio ao trata-mento recomendável (tal apoio limita-se apropicíações feitas para que se tenha sorte comos doutores ...). Claro está que muitas vezes, en-tretanto, o diagnóstico "de Ifá" acusa a pertinência

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-simultânea do problema ao horizonte médicoda "doença mental" e ao domínio "do axé"; porfim, em outras instâncias, os habalaôs conside-ram que o problema, embora pareça "doença",na verdade vem a ser uma perturbação de outraordem, algo que só pode ser tratado por meiosreligiosos. (Esses meios, segundo eles, convêmainda a remediar outros tipos de infortúnio, e apromover um equilíbrio ótimo, "acertando a vidada pessoa")

Em suma, não há negar que a tberapéiado candomblé envolve técnicas de restauração/promoção da saúde, e particularmente do quechamamos de "saúde mental"; deste ponto devista, creio mesmo que cabe falar, a propósito,em um "sistema médico", em uma "etnopsi-quiatria". Mas convém advertir que a pertinênciatem um limite

Sim, uma coisa deve ser reconhecida eexplicitada: falar em Etnopsiquiatria, neste sen-tido, implica referir o sistema estudado a umenfoque que assim o aborda. Ou seja: cumprenão eludir a perspectiva antropológica em queo objeto deste discurso etnográfico é erigidocomo tal: não pode o antropólogo esquecer-sedo que aporta à sua observação, no contextodialógico de seu trabalho. Se o olvida, reificasua descrição do fenômeno estudado, definin-do-o segundo uma projeção que nele faz, desuas próprias categorías. Esquecer essa adver-tência implicaria, no caso, "medicalizar" o ritoestudado, pretendendo que "no fundo", essen-cialmente", "objetivamente" é (apenas) isso mes-mo que ele vem a ser: um sistema médico. [Aindaquando não se mostre sob essa forma 'clara' aquem o pratica ." (Por desgraça, este tipo arro-gante de reducionismo é ainda comum em aná-lises de tipo flincionalista de modelos de açãoabordados na Etnologia)].

Por outro lado, convém ter em mente umdado manifesto pela consideração transculturaldo assunto: é uma característica que distingue(e quiçá singulariza) a nossa Biomedicina mo-derna, contemporânea, o fato de ela apresentar-se como um sistema exclusivamente médico. Há

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outros, muitos outros, que não se propõem des-te modo, que não se concebem cingidos ao pla-no das praxes iátricas.

Dito isso, não quero recuar ao modelo daEtnopsiquiatria que primeiro vingou: o da tam-bém chamada "Psiquiatria Transcultural". O pro-blema com ela, a meu ver, é que com freqüêncianão foi "transcultural" no sentido mais rico dotermo. Quase sempre cingiu-se a ensaios de trans-porte de um saber psiquiátrico considerado defi-nitivo, acabado, para contextos diferentes daqueleonde a grande Ciência se originou - e ao estudo"estratégico" de sua aplicação nessas condições.De maneira complexa, esse projeto coniundiu-secom a busca de compreensão dos modos comoas "sociedades tradicionais" lidam com proble-mas de saúde mental. Ora, bem: dava-se desta-que, nessa perspectiva, ao exame das taxionomiasnosológicas, em particular das relativas aos dis-túrbios "de natureza psíquica"; e as praxes iátricastradicionais eram postas em correspondência "sin-tomática' com os distúrbios acusados. A interpre-tação de modelos iátricos e construtos nosológicostendiam assim a fazer-se de modo unilateral, emsentido único, sem o retomo sobre si mesma dainterrogação que os alcançava.

Decorria disso uma pengosa simplificaçãodo recorte analítico dos níveis 'ético' e êmic6 deestudo, e um empobrecimento crítico da pró-pria teoria psiquiátrica, tomada como referênciainicial: o duro preço de conferir-lhe o domínioabsoluto, exclusivo, da revelação última - emseus termos previamente estabelecidos - do ver-dadeiro teor dos fenômenos abordados, eraimaginá-Ia "culrure free", isenta de valores, soci-ologicamente virgem, protegida por uma égideinfalível - a da Ciência como 'espelho da natu-reza" -, e posta assim fora da História, num pIa-no intocável pelo esforço interpretativo originadoem seu próprio seio. Tirava-se dela a suapotencialidade hermenêutica: Hermes foge dequem não se interroga.

Ora, aí está: quando frutífero, o diálogotranscultural não deixa intacta a fonte teórica doprojeto. Também neste domínio da hermenêutica

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-antropológica, é preciso deixar-se ler pelo textoque se considera.

Voltarei depois a este ponto. Quero agoradesenvolver meu argumento recorrendo a dadosde pesquisas que fiz, ainda no terreno do can-domblé, mas focalizando o que a princípio cha-mei - com alguns arrepios - de sua etnobotânica.

Reporto-me a um projeto financiado peloFundo Nacional do Meio Ambiente e desenvol-vido sob minha coordenação geral (em duas eta-pas, entre 1997 e 2000) por uma equipeinterdisciplinar composta por professores e es-tudantes do Instituto de Biologia e das Faculda-des de Farmácia e de Ciências Sociais da UFBA,equipe esta integrada também por especialistasnas artes de Ossain" - sacerdotes de terreirosestudados (ou seja, de alguns dos grandes san-tuários nagôs da Bahia), que atuavam no grupocomo consultores. O Projeto Ossain inventarioucerca de duas centenas de vegetais do repertó-rio das folhas do candomblé de rito nagô, reco-lhendo exemplares ao Herbário Alexandre LealCosta (do Instituto de Biologia da UFBA) e cata-logando devidamente esses espécimes. Veio as-sim a formar-se o núcleo de um sistema deinformações que continua a crescer: o Banco deDados ]ESSA, onde se cruzam dados etnográficos,lingüísticos, botânicos, e farmacognósicos sobreo thesaurus das folhas.

O candomblé tradicional, em cujo horizon-te se fez o estudo em apreço, pode definir-secomo um culto entusiástico em que, através dotranse e da possessão, certos iniciados encamamos espíritos invocados. Estes são também propi-ciados com sacrificios e oferendas diversas, e, se-gundo a crença, podem ainda comunicar-se comos humanos através do código ritual de um jogodivinatório (Ifâ). O culto associa à prática religio-sa um esforço terapêutico, voltado para a garan-tia, restauração e conservação do bem-estar dosiniciados, adeptos e clientes dos terreiros.

Nesse contexto, tem papel de destaqueuma liturgia das folhas - itens vegetais, obtidosatravés de coleta em área não cultivada, quefuncionam como elementos de um código sa-

cramental e como fármacos. (Porquanto naliturgia e na farmacopéia tradicional dos terrei-ros são as folhas as partes dos organismos vege-tais mais sistematicamente empregadas; o nome"folha" veio a usar-se aí como genérico, até comoequivalente de "vegetal"). A classificaçãoetnobotânica desses itens só pode compreen-der-se à luz de referências aos paradigmasflindamentais do sistema religioso em apreço.

Nos terreiros, muitos vegetais cultivadostêm um emprego sacro, pois o rito do candom-blé compreende, entre outras formas de oblação,a dedicação de oferendas alimentares, sistemati-camente produzidas através de um código culi-nário em que se combina a preparação de vítimasde sacrifício com a de pratos à base de plantasdomesticadas; mas a liturgia das folhas - queenvolve, como ficou dito, o emprego de vegetaiscolhidos em área nao cultivada - é um subsistematúndamental do mesmo Kultbild. Os religiososdos terreiros afirmam "semfolba não tem orixá.Sem Ossainnão se faz nada no candomblé. "Essesubsistema litúrgico que leva o nome do deusOssain tem alcance cosmológico, tal como o mo-delo da mântica de Ifá e os grandes mitos decriação. A "arte de Ifâ" e a "arte de Ossain" cons-tituem dois pilares básicos do culto dos Orixâs,culto que é o principal núcleo do candomblé.

A rigor, as folhas distribuem-se entreOrixás, Eguns, Exu (deuses, mortos, espiritocomunicador). Por outras palavras, existem fo-lhas de Orixâ, folhas de Egun, folhas de Exu, etambém as que se situam em espaços intermedi-ários entre esses domínios, além daquelas quese podem relacionar com os três. (Este últimosubconjunto, "indiferenciado", por vezes é indi-cado com a referência direta a Ossain. Ossaindesigna também o universo vegetal, o totum re-cortado pela divisão triádica Orixâ, Exu, Egun).

O esquema que serve de base à classifica-ção das folhas reporta-se a um grupo dos orixásem particular.

Os seguidores do candomblé afirmam quecada orixá tem suas folhas. Os Orixás são geral-mente considerados inumeráveis, embora um

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-número limitado receba um culto regular nosterreiros, Orixás funcionam como simbolos em-pregados no processo de classificação. Dá-se queeles transcendem o campo da Taxionoinia estu-dada, pois se aplicam também a outras. Sãosimbolos complexos não só por isso, mas tam-bém porque seu valor semântico admite umavariação lógica, desde quando eles se podemordenar em diferentes blocos de cifras e porquecada um deles representa um bloco per se:Xangô(o teônimo Xangô), por exemplo, tanto designaum deus "individualizado" no horizonte de de-terminados mitos ou liturgias., quanto uma clas-se divina: o povo do candomblé diz que "hámuitas qualidades de Xangô".

De acordo com o contexto mítico-ritual, oalcance desses símbolos pode ser modificado. Issotem a ver com a variação dos mitos, mas tambémcom a diferenciação das estruturas que eles sãochamados a descrever, e que obriga a alterar-lhes(em alguma medida) a sintaxe hierárquica. Um(signo-) orixá pode ter, num determinado con-texto, uma função equivalente à desempenhadapor outro da mesma natureza num contexto di-verso: isto permite fazer entre eles uma associaçãopassível de desdobrar-se em vários níveis, ligan-do também, por homologias, os planos conside-rados nos contextos distintos. Isso faculta variaçõesenriquecedoras na construção do modelo"cosmológico'. Às vezes, substituições dessa or-dem são claramente indicadas no discurso mítico.

O panteão básico dos orixás alinhadezesseis divindades, invocadas no xirê (no or-dinário da liturgia do candomblé); mas nem to-das elas se vêem referidas na estrutura maiselementar do sistema de Ossairi. Esta estruturacompreende sete grupos, que se distinguempelos patronos divinos, aos quais se relacionamas folhas consideradas "de maior importância"na celebração do euê jokó, realizada no contex-to dos ritos iniciáticos. Na forma expandida, po-rém, o cânon fixo do euê jokó chega a terdezesseis elementos.

A ordem se mio lógica deste cânon traduza estrutura do sistema etnofarmacobotânico do

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candomblé. Sua chave de leitura encontra-se aí,nessa liturgia iniciática das folhas de orixá.

Assim, o universo vegetal pode ser orga-nizado com a discriminação de sete campos prin-cipais. O modelo, no plano mais decisivo,combina a oposição binária com arranjostriádicos, organizando díades em pontos (lógi-cos) simétricos, a partir de um eixo que lhesserve de referência.

O modelo do euê jokó pode ainda ser des-dobrado numa configuração em que (como o sis-tema divinatório de Ifâ), consta de dezesseissimbolos (Orixás + vegetais associados). Nestecaso, evidentemente, a célula do setenário é am-pliada com a inclusão de um conjunto eneádico.

Isso exige uma breve explanação de cer-tos elementos estruturais do rito enfocado (o ritonagô do candomblé, observado nos terreirosonde foi feita a pesquisa).

Quando se estuda a cosmologia nagô, oprimeiro dado que salta à vista é a organizaçãodual, que ordena, aparentemente, todo o uni-verso através do confronto de pares de opostos,em esquemas binários. O universo é concebidocomo dividido em duas dimensões: o ayê, omundo fisico, e o orun, que o transcende. Fica-se logo tentado a ler assim a estrutura do siste-ma, caracterizando-o como simplesmentedualista. Mas seria um equívoco. De fato, a opo-sição "contrapolar" de campos e sua replicaçãovêm a ser procedimentos fundamentais na gra-mática do sistema nagô, tanto na construção dosmodelos de realidade que concernem àcosmogonia e à mântica, quanto no domínio dosarranjos taxionômicos que também compõemesta cosmo-lógica. Mas quando se aprotunda aanálise, logo se vê que o esquema binário resul-ta insuficiente. Nos discursos "cosmológicos" dascomunidades do candomblé nagô, os arranjosdiádicos freqüentemente encobrem outros, emtríades. Uma confirmação disto se acha na con-tínua e explícita referência à divisão do univer-so em nove partes. Os nove espaços do cosmoenvolvem o mundo físico: segundo uma expla-nação bem conhecida, trata-se, na verdade, de

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-dois conjuntos de quatro espaços (um superior,e o outro inferior à terra), mais um intermediário,correspondente ao ayê (mundo físico). ão exis-te contradição efetiva entre essa representaçãoe os esquemas que recorrem à divisão binária(simples ou quadripartite) do mundo, ou de suadimensão "superior": a enéade é uma forma ló-gica de articulação de um esquema diádico comum arranjo triádico: por exemplo, na base deuma composição 4 - 1 - 4, como na "cosmo-grafia" evocada. (Bastide, 1958; Morton-Williams,1964; Woortman, 1978; Becker, 1995; Serra, 1999).

É possível encontrar a confirmação do va-lor fundamental da tríade em muitos discursosmíticos e rituais correntes no mundo do can-domblé. Nos enunciados (teo)cosmológicos dareligião nagô um conjunto representado comobinário pode exigir a operação lógica de trêscampos de representação, ou conceptualização:assim, a oposição de orun e ayê (ou, no ayê, decéu x terra) remete à oposição de Obatalá eOdudua (as metades de Oxalá, o criador, cujosimbolo plástico equivale a uma representaçãodo mundo); no entanto, esta oposição se con-fronta de imediato com a afirmação de uma uni-dade que a transcende (Oxalá = Obatalá eOdudua).

Há outras vias que conduzem logicamenteao arranjo triádico no sistema. A oposição cons-tantemente feita entre Oxalá e Exu traduz-se(também) na oposição par x ímpar. Ora, consi-derada de um ponto de vista lógico, esta oposi-ção, que em princípio se diz em linguagembinária (P x I), encerra em si mesma a potênciada tríade.

Na cosmologia nagô são utilizadas comoalternativas equivalentes, ou esquemas passíveisde combinar-se, a divisão estrutural em nove eem sete. Um mito nagô muito conhecido na Bahiapermite captar a correspondência profunda en-tre o arranjo setenário e a enéade, embora co-mece por uma oposição de metades de umcosmo (social): ele tem a ver com a distribuiçãode poderes na sociedade humana, entre seuscomponentes separados pela divisão elementar

dos sexos: fala de uma disputa entre homens emulheres. Conta que no começo estas prevale-ciam sobre os parceiros, pois tinham o segredode ritos de mistério. Eram chefiadas por Oiâ,uma deusa guerreira. O poder das mulheres foicontestado por Ogun, que duelou com Oiá. Noduelo, a deusa dividiu Ogun em sete pedaços, eele a dividiu em nove. A vitória de Ogun (invo-cado também como Mejejê, o "Sétuplo") deter-minou a supremacia masculina no mundohumano. Ora, Oiá é mais conhecida no Brasilpor uma epiclese que refere a sua divisão: lansà[(>"lya Mesan), a "Senhora Novena"].

Ela é considerada uma Soberana dos Mor-tos e uma Grande Mãe (fya Nlâ), com poderessobre o domínio da fecundidade. Enquanto se-nhora dos mortos, tem a ver com as profundezasda terra; mas governa também a ventania (ar), erege águas caudalosas; por fim, com seu esposo,Xangô, ela comparte o fogo. Em suma, ela temuma feição "cósmica". Isso a qualifica para assu-mir, no contexto da cosmogonia social", um pa-pel decisivo, exprimindo, na oposição a outro"termo" divino, a situação de um todo em crise.O mito do duelo de Ogun e Oyá indica também apossibilidade de representar a diacosmese segun-do dois esquemas: embora assinale a vitória doSétuplo, nao exclui a figura oposta.

Quem estuda a etnofarmacobotânica nagô,vê-se logo confrontado com uma espécie de"modelo ideal" que distribui de forma ordena-da, paritária e simétrica, com um desenho lógi-co constante, os elementos do universo dasfolbas.Os especialistas dos terreiros estão conscientesdo fato de que este modelo não representa uma"tradução" completa dos dados empíricosverificáveis no mundo vegetal, que eles não con-sideram plenamente conhecido. Acreditam quepodem mapeá-Io com as categorias de que dis-põem, mas consideram que elas se aplicam, an-tes de mais nada, a um conjunto limitado, a umrepertório que exploram de forma sistemática.Os pontos de referência que tomam para a cons-trução de seu sistema estão dados sempre numaliturgia das folhas. A liturgia estabelece valores

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-que são combinados a funçoes (religiosas e te-rapêuticas), explorando correspondências entreos distintos domínios do cosmo.

Os especialistas do candomblé entendema terapia de uma forma abrangente: a cura comemprego de vegetais pode ser obtida, segundoadmitem, pela operação simbólica dos ritos e/ou-pelo efeito 'medicinal" das plantas. Eles dis-tinguem de forma explícita entre o valorterapêutico-simbólico e o correspondente à efi-cácia fisica dos itens, mas servem-se dosparâmetros litúrgicos para ordenar seus conhe-cimentos fármacológicos.

Da perspectiva do candomblé nagô, en-fermidades e infortúnios se equiparam na medi-da em que causam desconforto, consideradopassível de tratamento. As folhas permitem re-mover esse desconforto. (Podem também cau-sar danos. Têm a eficácia ambígua de fárrnacos).O povo-de-santo nagô caracteriza e ordena asfolhas em função desses valores. Elas podemser usadas em terapias nas quais funcionam atra-vés de uma ação direta - quando o corpo dopaciente as absorve (por iogestão ou aplicação,etc.) - ou de modo indireto, isto é, quando seconsidera que o contacto não leva à absorçãofisica e (em certos casos) até pode serdispensado: basta a proximidade ... As folhas quese usam no candomblé como recursos de umaterapia "indireta" são consideradas eficazes emdois sentidos principais: no sentido aversivo, vistocomo se supõe que afastam o mal, o infortúnio,a doença, impedindo que perturbações atinjama pessoa. São apotropaicos, em suma. Outras,embora não ajam de forma direta sobre o corpodo paciente, atraem para ele, se conservadas nasua cercania, o bem-estar, a saúde, a fortuna,propiciando o orixá. Para dizê-lo numa palavra,são propiciadoras. O alcance da ação direta dasfolhas sobre o corpo do paciente pode ser limi-tado a certos órgãos ou ainda ser difuso, agirsobre ele todo. Neste último caso estão as fo-lhas que 'limpam o corpo ,que "purificam a pes-soa exercendo um efeito catártico e profiláticogeral; também têm este amplo alcance tera-

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pêutico as folhas às quais se atribui o poder decontrolar estados de perturbação que em si mes-mos não são malignos, mas que podem, se nãoforem limitados, causar dano ao sujeito: elas"controlam" o transe, por exemplo, ou limitamcrises e distúrbios cuja remoção imediata nãoseria possível (ou mesmo desejável: a crise as-sim tratada pode ser considerada uma passagemnecessária ao desenvolvimento da pessoa, e be-néfica, se controlada). Entre asfolhasque se apli-cam de forma direta ao corpo do paciente, muitastêm sua ação relacionada de forma particular aum órgão ou região anatômica, cujo bom funcio-namento elas -são consideradas capazes de pro-mover ou restaurar, agindo de forma curativa.Outras são estimadas capazes de estimular fa-culdades ligadas a determinados órgáos, re-movendo barreiras que limitam a percepção e aexpressão: são reveladoras, permitem que seamplie o poder da visão, da audição, da fala.

O que acabei de fazer no parágrafo acimafoi uma breve indicação de registros utilizadosno candomblé de rito nagô para ordenar o re-pertório das folhas segundo uma grade "funcio-

- nal". (Na indicação, por economia, vali-me derótulos breves que escolhi arbitrariamente, emvez das locuções que indicam esses agrupamen-tos no dialeto dos terreiros). No pouco tempo,no enxuto espaço de que disponho, mesmo re-ceando que tanta concisão a torne críptica, nãoposso ir além desta apresentação sinóptica domodelo "etnofarmacobotânico" estudado. Tam-bém não é este o lugar apropriado para dar-lhecorpo numa análise detida... O meu objetivo,aqui e agora, é assinalar alguns tópicos da peri-pécia analítica que sugerem considerações teó-ricas de caráter mais geral.

No curso do Projeto Ossain, foram assina-ladas correspondências entre a taxionomia tra-dicional e a classificação botânica vigente nomundo científico, e exemplares da coleta siste-mática foram estudados do ponto de vistafarmacognósico, levando em conta as indicaçõesterapêuticas feitas pelos especialistas tradicionaispara a pesquisa de princípios químicos ativos.

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-Este, porém, nunca foi o objetivo único e "defi-nitivo" do estudo.

Vale a pena esclarecê-Io, pois a grandemaioria das pesquisas etnobotânicas, etnofar-macológicas, se resume a essa meta. Então tudose passa como se o resultado das verificaçõesfarmacognósicas, além de corresponder a uminteresse prático decisivo, levasse a termo, istoé, elevasse ao patamar da verdade científica, se-parando-o de uma escória simbólica (mística etc)o que de fato existe de válido nos sistemas tra-dicionais assim abordados (válido para o sabertecnocientífico autorizado, segundo um crivo deeficácia situado no horizonte inquestionável danatureza, no plano dos valores químicos).

Ora, ainda que dê resultados muito inte-ressantes a pesquisa dos fármacos do candom-blé feita por esse ângulo, reduzir a isso ainvestigação seria muito empobrecedor, limita-ria de modo estreito a compreensão da tberapeiados terreiros.

Para melhor compreendê-Ia, é preciso levarem conta seu grande investimento significativo.

De começo, chega a ser intrigante a idéiade uma classificação botânica toda ela depen-dente de uma terapêutica; mas logo se adverte,quando a pesquisa avança, que essa terapêuti-ca, por sua vez, só pode ser "lida" a partir dacosmologia que a sustenta. E há qualquer coisade musical nessa farmácia "cósmica".

Não me refiro apenas ao fato de que acoleta e o preparo das folhas no candombléexigem, entre outros, o conhecimento de umamúsica apropriada, de cânticos especiais quetambém ordenam, em outro nível de arranjo, ouniverso botânico; quero aludir ainda a outracoisa: às relações complexas que arranjam asfolhas de acordo com cifras (os símbolos-orixás)suscetíveis de leitura "harmônica" (com oposi-ções, correspondências e "intervalos" a ligar-lhes ou separar-hes nos mitos, nos ritos os"campos" de manifestação) e capazes de ligá4asa diferentes taxionomias - visto como orixástambém "classificam" pessoas, animais, fenô-menos diversos.

Há qualquer coisa de órfico na composi-ção desse texto cosmológico.

A relação entre o "código de Ossain" e o"código de Ifá", ou seja, entre o "alfabeto" litúr-gico das folhas e o do jogo divinatório dos búzios(que sistematiza narrativas, e as "reescreve" numprocesso estocástico, em coreogramas de caurís,para a efêmera lição mântica), corresponde aum outro aspecto do mesmo concerto simbóli-co, cuja audição exige diuinatio, pois sempre serevela sujeito a disrupções, ao ataque ruidosode uma entropia constante. A procura damusicalidade (lógica, cosmo-lógica) sempreameaçada é um vetor dessa tberapeia que nãose pode desprezar.

Não creio que seja possível transpor ocódigo da, digamos, "etnofarmacobotânica docandomblé em termos já ab initio disponíveisno arsenal de nossa ciência, de nossa etnologia.

Neste ponto, quero reportar-me ao velhoproblema da tradução. Segundo lembra Hannerz(993), declarada ou veladamente a traduçãocontínua sendo um inveterado paradigma do tra-balho antropológico: a analogia que aproxima oantropólogo do tradutor tornou-se já um clichê.Pois bem: acredito que esse paradigma aindapode ser útil, se for considerado de forma nova,sem a ingenuidade clássica. Sim: parece-memesmo que o desafio da etnologia é, de fato,efetuar uma tradução. Mas, inacabável, ensaia-da sempre de novo numa língua que ainda nãoexiste, e que ela se esforça por criar diante dodesafio dos códigos confrontados na experiên-cia transcultural. Um vocabulário e uma gramá-tica herdados de outros aventureiros servem deponto de partida; mas cada esforço do "tradu-tor" modifica o idioma em cuja fábrica ele seenvolveu, sujeitando-o, a cada passo, à pressãode uma nova, dilacerante metáfora neleintroduzida, para escândalos dos significadosanteriores. (Penso aqui em "metáfora" na acepçãoconsagrada por Davidson, 1984; cf Rorty, 1999).

Assim entendido, o estudo antropológicomerece ser aproximado da ciência - mas tam-bém da poesia.

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-REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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