AO AR LIVRE: UM ESTUDO NA ACADEMIA POPULAR DE SANTO...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DESPORTOS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA

SAYONARA CARLA DOS SANTOS PINTO

AO AR LIVRE: UM ESTUDO NA ACADEMIA POPULAR DE SANTO

ANTÔNIO EM VITÓRIA-ES

VITÓRIA

2015

SAYONARA CARLA DOS SANTOS PINTO

AO AR LIVRE: UM ESTUDO NA ACADEMIA POPULAR DE SANTO

ANTÔNIO EM VITÓRIA-ES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação Física do Centro de

Educação Física e Desportos da Universidade

Federal do Espírito Santo, como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre em

Educação Física.

Orientador: Prof. Dr. Felipe Quintão de

Almeida.

Coorientador: Prof. Dr. Ivan Marcelo Gomes

VITÓRIA

2015

A meus amados pais, Joana Dárc e Antonio

Carlos!

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que de alguma forma me fizeram continuar e sorrir... Em especial aos meus

guerreiros orientadores, Felipe e Ivan, e aos queridos professores da Academia Popular de

Santo Antônio!

Obrigada, Senhor!

Eu não sou besta pra tirar onda de herói

Sou vacinado, eu sou cowboy

Cowboy fora da lei

Durango Kid só existe no gibi

E quem quiser que fique aqui

Entrar pra história é com vocês!

(Cowboy Fora da Lei, Raul Seixas)

RESUMO

Este estudo teve como principal objetivo compreender os elementos que caracterizam o

processo de promoção de saúde no espaço público da Academia Popular de Santo Antônio em

Vitória-ES. A Academia tem a prática da musculação como atividade principal. Esta proposta

de investigação se caracteriza como um estudo de natureza etnográfica (STIGGER, 2002).

Foram realizadas 53 visitas ao lócus da pesquisa no período entre outubro de 2013 a janeiro

de 2015, durante o turno matutino em horários variados. As análises partiram da aproximação

com o lócus da pesquisa e inserção no mesmo, da descrição da Academia Popular de Santo

Antônio, da caracterização do local no qual a Academia se localiza e da apresentação do

Projeto Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória. A partir daí, apontamos a

história das academias de ginástica e musculação no Brasil considerando os estágios de

desenvolvimento das mesmas. Nesse contexto foram feitas considerações relacionando a

Academia Popular de Santo Antônio com os referidos estágios de desenvolvimento. Realizou-

se, além disso, a discussão sobre algumas diferenças marcantes entre as academias privadas

de musculação e a Academia Popular de Santo Antônio. Foram analisadas, também, as

“tecnologias da saúde” (MERHY, 2002) compartilhadas pelas professoras da e na Academia

Popular. Foi evidenciada a importância do uso, em específico, das “tecnologias leves” no

processo de promoção de saúde desenvolvido pelas professoras na Academia Popular. Nesse

aspecto, torna-se interessante a reflexão acerca de questões, essencialmente, relacionadas aos

vínculos e acolhimentos estabelecidos entre os sujeitos do lócus da pesquisa. A análise dessa

característica configura a questão da sociabilidade. Esta é pensada a partir das falas e dos

acontecimentos do dia-a-dia do lócus da pesquisa, que revelam como a promoção da saúde

pode se relacionar, ou mesmo estar ligada, diretamente, com as ações de vínculos e

acolhimentos entre os sujeitos envolvidos, de uma forma geral, com os projetos da área da

saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Academia Popular, Promoção da Saúde, Sociabilidade.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura ................. 16

Figura 2: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura ................. 17

Figura 3: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura ................. 17

Figura 4: Academia Popular de Santo Antônio após a reforma e sua estrutura sem paredes .. 17

Figura 5: Academia Popular de Santo Antônio e sua estrutura sem paredes ........................... 18

Figura 6: Academia Popular de Santo Antônio – maquinários e materiais para a prática da

musculação após a reforma em sua estrutura ........................................................................... 19

Figura 7: Academia Popular de Santo Antônio; espaço vazio, máquinas para a musculação e

módulo do SOE ........................................................................................................................ 26

Figura 8: Basílica de Santo Antônio, Vitória-ES ..................................................................... 32

Figura 9: Mapa da Regional 2 – Regional Santo Antônio ........................................................ 33

Figura 10: Baía de Vitória, Praça Estela Coimbra e parte do bairro de Santo Antônio ........... 37

Figura 11: Praça Estela Coimbra – pista para caminhada e Baía de Vitória ............................ 38

Figura 12: Playground em Praça Estela Coimbra ..................................................................... 38

Figura 13: Núcleo de Integração Social para Pessoas Idosas Ondina Escobar Fonseca, Praça

Estela Coimbra ......................................................................................................................... 39

Figura 14: Campo de areia e pista para caminhada em Praça Estela Coimbra ........................ 39

Figura 15: Quadra Poliesportiva localizada ao lado da Academia Popular de Santo Antônio e

pista para caminhada ................................................................................................................ 40

Figura 16: Academia Popular de Santo Antônio – espaço vazio e o Módulo do SOE ............ 42

Figura 17: Academia Popular de Santo Antônio descoberta e o Módulo do SOE ................... 44

Figura 18: Academia Popular de São Pedro ............................................................................. 92

Figura 19: Praça Dom João Batista, São Pedro, na qual se localiza a Academia Popular de São

Pedro ......................................................................................................................................... 92

Figura 20: Academia Popular de Maruípe ................................................................................ 93

Figura 21: Parque Municipal Horto de Maruípe, no qual se localiza a Academia Popular de

Maruípe ..................................................................................................................................... 93

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10

ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS ................................................................................ 15

1 UMA ESTRANHA NO NINHO: MINHA INSERÇÃO NA ACADEMIA POPULAR DE

SANTO ANTÔNIO .................................................................................................................. 25

1.1 A COMUNIDADE DE SANTO ANTÔNIO E A ACADEMIA POPULAR DE SANTO

ANTÔNIO ............................................................................................................................ 30

1.2 AS ACADEMIAS POPULARES DE VITÓRIA: O PROJETO POLÍTICO

PEDAGÓGICO DAS ACADEMIAS DE VITÓRIA (PPPAV)........................................... 46

2 ACADEMIAS DE MUSCULAÇÃO E DE GINÁSTICA: A HISTÓRIA NO BRASIL ..... 52

2.1 ACADEMIAS PRIVADAS DE MUSCULAÇÃO X ACADEMIA POPULAR:

ALGUMAS DIFERENÇAS ................................................................................................. 57

2.2 A PROMOÇÃO DA SAÚDE NA ACADEMIA POPULAR DE SANTO ANTÔNIO 66

3 A QUESTÃO DA SOCIABILIDADE NA ACADEMIA... .................................................. 78

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 86

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 89

ANEXOS .................................................................................................................................. 92

10

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como objetivo principal compreender os elementos que

caracterizam o processo de promoção da saúde no espaço público da Academia Popular de

Santo Antônio em Vitória-ES, na qual a prática da musculação acontece como atividade

principal.

Diferenciando-se, possivelmente, no que se refere aos fatores lucratividade e mercado

consumidor, do setor das academias privadas, encontramos as “Academias Populares ao Ar

Livre no Brasil” como exemplos de espaços públicos nos quais são propagados os ideais da

busca pela qualidade de vida atrelada ao exercício de atividade física de acordo com o Projeto

Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória (PPPAV, 2008). Espaços públicos

como estes contribuíram, em Vitória-ES, para a elaboração das “Academias Populares”, que

tendem a disponibilizar estruturas adequadas e profissionais de Educação Física buscando,

dessa forma, dar à população local condições e incentivos para a realização de atividades

físicas, visando, sobretudo, promover saúde.

A promoção da saúde é compreendida como ações diversas e interligadas dos vários

setores governamentais, não governamentais e privados, que, por meio de projetos sociais,

visam incentivar os indivíduos a buscar e/ou cuidar de sua saúde, dando-lhes

possibilidades/caminhos para a realização de tais ações. A respeito das práticas de saúde

orientadas à promoção da saúde, observamos que

Todas as práticas de saúde orientadas para os modos de andar a vida, melhorando as

condições de existência das pessoas e coletividades demarcam intervenção e

possibilidades às transformações nos modos de viver, trabalham com promoção da

saúde, prevenção de doenças e agravos, ações de reabilitação psicossocial e proteção

da cidadania, entre outras práticas de proteção e recuperação da saúde

(CARVALHO; CECCIN, 2006, p. 3).

O estudo dos projetos que buscam atender às políticas públicas de saúde, nos termos

da promoção da saúde, se tornou um fator fundamental para a análise e reflexão acerca do

comportamento relacionado à saúde e à atividade física que os sujeitos frequentadores desses

lugares operam em sociedade. Investigações relevantes que abarcam os temas em questão,

considerando o espaço público para a prática de atividades físicas dos indivíduos e seus

“desdobramentos” na sociedade, como estudos de Andrade (2010) e do Ministério da Saúde

(2011), evidenciam a necessidade de se estabelecer com esses ambientes uma relação estreita

de problematização, investigação e conhecimento.

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Essa pesquisa se insere no conjunto dos estudos e das problematizações que derivam

de novas políticas públicas na área da saúde as quais tendem a atingir os sujeitos em seus

hábitos de vida. Ela está inserida no contexto do projeto “Políticas de Formação em Educação

Física e Saúde Coletiva: atividade física/práticas corporais no SUS”, desenvolvido por grupos

de pesquisas pertencentes a três universidades públicas: Universidade Federal do Rio Grande

do Sul, Universidade de São Paulo e Universidade Federal do Espírito Santo. O propósito

geral deste projeto é investigar e problematizar políticas de formação de estudantes de

Educação Física para atuação em Saúde Coletiva e analisar a implantação das práticas

corporais junto ao SUS.

Buscar investigar espaços públicos, como as Academias Populares1, no município de

Vitória-ES, gera possibilidades de estudar de maneira aprofundada esses ambientes

considerados ainda “terrenos” pouco explorados por nossa comunidade científica e que são

estruturados/idealizados pelas esferas políticas para possibilitar o acesso dos indivíduos a

meios de se obter e manter saúde. Portanto, a pesquisa tende a colaborar com o

desenvolvimento, a compreensão e a exploração de questões acerca dos espaços públicos no

município de Vitória-ES que foram planejados e construídos, especificamente, para se atender

1 O munícipio de Vitória-ES possui 3 Academias Populares: 1) A Academia Popular de São Pedro fica

localizada no Bairro de São Pedro na Praça Dom João Batista e foi a segunda Academia Popular a ser

inaugurada no município, fato ocorrido no ano de 2007. A academia é coberta e apresenta espaço e maquinário

em boa conservação para a prática de musculação. Próximo à academia há um módulo SOE (ver nota de rodapé

número 5). Durante os turnos matutino, vespertino e noturno, assim como nas outras Academias Populares,

vigilantes patrimoniais se revezam nos trabalhos de cuidados e preservação da academia. A Praça Dom João

Batista se apresenta como um ambiente amplo, agradável e com boa estrutura para as práticas de atividades

físicas e recreativas, apresentando em seu espaço, além da Academia Popular, playground, áreas para eventos e

quadras poliesportivas; 2) A Academia Popular de Maruípe fica localizada no Parque Municipal Horto de

Maruípe, local com grande número de árvores e um pequeno e estreito rio que o atravessa. Além da academia,

neste local há quadras poliesportivas, pistas para caminhadas, módulo do SOE e uma Academia Popular para a

Pessoa Idosa. Em um total de 6 seguranças, o Horto de Maruípe é um ambiente muito frequentado não somente

pela população do bairro referido, mas também de bairros vizinhos: Bairro da Penha, Bairro do Bonfim e Bairro

de Itararé. Segundo informações acerca do Bairro de Maruípe, essas comunidades apresentam problemas sociais

diversos, dentre os quais se destaca a violência relacionada ao tráfico de drogas. Esse fator pode influenciar os

níveis de cuidados e segurança para com o espaço e pessoas que frequentam as localidades do Parque Municipal

Horto de Maruípe e suas dependências. De acordo com o projeto das Academias, a Academia Popular de

Maruípe teria sido inaugurada, também, no ano de 2007, após a inauguração da Academia Popular do Bairro de

Santo Antônio. Mas, de acordo com o professor da academia, ela foi inaugurada no início de 2008. Uma

característica marcante dessa academia refere-se à falta da cobertura em sua estrutura. A cobertura nunca foi

adotada nesse espaço. Com isso, as máquinas, os pesos, dentre outros materiais, ficam constantemente

enferrujados. O chão desta academia apresenta falta de borrachas (que são usadas para cobrirem o chão) e,

consequente, depredação do piso. Ver imagens em anexo; 3) A Academia Popular de Santo Antônio será

referenciada ao longo do texto por corresponder ao lócus da pesquisa proposta.

Obs.: Mais duas Academias Populares foram inauguradas no município de Vitória/ES: Academia Popular de

Itararé em novembro de 2014 e Academia Popular de Ilha de Santa Maria em julho de 2015. Devido ao tempo do

desenvolvimento deste estudo não apresentarei informações mais consistentes acerca dessas duas Academias

Populares.

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a determinadas necessidades colocadas em discurso para a sociedade a partir dos projetos para

a promoção da saúde dos sujeitos. De acordo com Leite (2002, p. 116),

Embora o espaço público se constitua, na maioria das vezes, no espaço urbano,

devemos entendê-lo como algo que ultrapassa a rua; como uma dimensão

socioespacial da vida urbana, caracterizada, fundamentalmente, pelas ações que

atribuem sentidos a certos espaços da cidade e são por eles influenciadas.

Pensar/refletir os conceitos acerca dos elementos que configuram a saúde do homem

nos remete, de um modo geral, aos caminhos tradicionais do pensamento médico-científico

que baseia, secularmente e de maneira expressiva, a formação de profissionais da área da

saúde e, consequentemente, as ações relacionadas aos atos dos cuidados em saúde em nossa

sociedade. Para Bilibio (2013, p. 134),

[...] desde o século XIX que o campo de saber médico-científico é legitimado

socialmente como o setor da sociedade apto para estabelecer a verdade sobre o que é

a saúde e a doença, o que é o normal e o patológico (Foucault, 1979). Os pontos da

reta do pensamento na saúde são estabelecidos pelo saber biomédico. Na perspectiva

moderna da biomedicina, a saúde é trabalhada como a ausência de doenças [...].

Dessa forma, este estudo pode contribuir, também, para a reflexão acerca de possíveis

novas formas/considerações de se pensar e se fazer saúde que não por meio, necessariamente,

de cristalizações e/ou padronizações dos elementos conceituais sobre a atividade física como

fator indispensável à conquista e à manutenção da saúde nesses lugares, pois:

Olhar ao redor e perceber as armadilhas que o discurso da atividade física e saúde

prepara pode ser um exercício interessante para a reflexão: „Deve-se fazer atividade

física para se ter saúde‟. Quais os pressupostos que fundamentam e justificam o uso

do verbo dever? Trata-se de uma mensagem que agrega – imperativos morais, éticos

e estéticos que ditam padrões a serem preconizados pelos interlocutores (ALVES;

CARVALHO, 2010, p. 230).

No Brasil, projetos políticos que envolvem a disseminação de ideias referentes aos

cuidados com a saúde têm tomado forma a partir de interferências diretas na vida de homens e

mulheres. Em 2006, foi criada a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), que

consiste em uma ação governamental que buscou, e ainda busca, ratificar o compromisso do

Ministério da Saúde na ampliação e na qualificação de ações da promoção da saúde nos

serviços e na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), buscando evidenciar e promover, por

meio de projetos diversos de âmbito nacional, a prática de hábitos saudáveis de vida e a

consequente melhoria da qualidade de vida dos indivíduos. No relatório da Política Nacional

de Promoção da Saúde (MALTA, 2009, p. 81), observamos que

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No sentido de garantir a integralidade do cuidado à saúde, a Política Nacional de

Promoção da Saúde dispõe diretrizes e recomenda estratégias de organização das

ações de promoção da saúde nas três esferas de gestão do SUS. Em seu texto

introdutório, o conceito e as ações de „Promoção da Saúde‟ apresentados e adotados

pelo Ministério da Saúde permitem entrever o centro do trabalho na produção da

saúde.

Espaços públicos planejados e construídos para a atuação de profissionais da saúde,

como médicos, psicólogos e professores de educação física, estão sendo oferecidos à

população por meio de recursos/investimentos federais, estaduais e municipais.

A partir desse contexto e de acordo com o PPPAV (2008), a primeira Academia

Popular ao Ar Livre surgiu em 1930, nos EUA, na praia de Santa Mônica, Sul da Califórnia.

“Durante quase três décadas, as pessoas frequentaram aquele local, até que, em 1959, o

espaço, também conhecido como Muscle Beach, foi fechado” (PPPAV, 2008, p. 9).

Outras academias correspondentes ao modelo citado foram idealizadas e se

apresentaram como uma boa opção para a prática da musculação em ambiente aberto (ao ar

livre), diferenciando-se, desse modo, das academias estruturalmente caracterizadas pelo

ambiente/espaço “fechado”, no qual os sujeitos realizam suas práticas corporais:

A partir daí, criou-se o conceito „Muscle Beach‟ e a cidade de Los Angeles logo

idealizou a academia Venice Muscle Beach, frequentada principalmente por

fisiculturistas e levantadores de peso, em busca do „corpo perfeito‟ ou desempenho

atlético. A intenção era praticar musculação sem estar dentro de uma academia

fechada e não demorou muito para a Venice ser chamada de Muscle Beach por seus

frequentadores nas décadas de 1960 e 1970 (PPPAV, 2008, p. 9).

Em 1999 foi criada a primeira Academia ao Ar Livre na América do Sul, sendo o

Brasil o País pioneiro em sua elaboração. Localizada na Praia de Ipanema, recebeu o nome de

Muscle Beach Ipanema e, apesar de ser idealizada aos moldes da Venice Muscle Beach, a

academia em Ipanema apresentou diferenças essenciais:

A Muscle Beach Ipanema, localizada na praia de mesmo nome, foi idealizada nos

moldes da Venice Muscle Beach, porém com algumas diferenças, como a qualidade

dos equipamentos, bem como a gratuidade na entrada, visando o aspecto social do

projeto. Na academia de Los Angeles, além de pagar pelo uso do espaço, as pessoas

tinham à disposição aparelhos mais simples e fabricados em ferro. Já na versão

carioca, todo o equipamento era fabricado em aço inoxidável, garantindo resistência

e durabilidade às máquinas (PPPAV, 2008, p. 10).

O projeto inaugurado, inicialmente, na Praia de Ipanema, foi expandido para outras

cidades do País e adaptado às necessidades de cada região. Nesse contexto, foi criada a

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primeira Academia Popular ao Ar Livre do Estado do Espírito Santo, mais precisamente, no

bairro Santo Antônio, localizado no município de Vitória:

Partindo dos modelos americanos e passando pelo sucesso da Muscle Beach

Ipanema, as academias ao ar livre foram adequadas e adaptadas às necessidades de

cada localidade, funcionando atualmente de forma permanente em diversos

municípios do Rio de Janeiro e de outros estados do Brasil. (...). Projetos como esse

visam a democratização do espaço, priorizando a saúde e o bem-estar dos

praticantes. A cidade de Vitória-ES aderiu a essa tendência e inaugurou, em 2006, a

primeira academia popular ao ar livre do Estado do Espírito Santo (PPPAV, 2008, p.

10).

X2, Secretário de Esportes e Lazer da Prefeitura de Vitória na época de inauguração da

Academia Popular de Santo Antônio, relatou-me que o prefeito João Coser, durante sua

gestão, buscou uma ideia relacionada à promoção de saúde para a população de Vitória. A

troca de informações sobre este projeto ocorreu entre o prefeito de Vitória e um contato que

ele possuía no município de Campos dos Goytacazes, no Estado do Rio de Janeiro, onde o

projeto das Academias Populares já funcionava. Dessa forma, João Coser trouxe o referido

projeto para o município de Vitória.

A escolha pela Academia Popular de Santo Antônio como lócus da pesquisa ocorreu

pelo fato de ela ser a primeira Academia Popular implantada no Estado, fato ocorrido em

2006. E, ainda, por localizar-se em uma região de grande população e extensão territorial,

sendo constantemente “alvo” de investimentos (projetos sociais) de políticas públicas do

município.

O turno matutino foi escolhido por questões particulares referentes: à locomoção

necessária para realizar as visitas na Academia (faço uso do transporte coletivo, num total de

quatro ônibus para a realização do percurso casa-Academia Popular-casa) e ao meu receio de

frequentar a comunidade em horário noturno, uma vez que a região é bastante conhecida no

quesito violência. Inclusive, a respeito do turno escolhido para a realização da pesquisa, após

estabelecer meus primeiros contatos dentro da Academia, alguns usuários me orientaram a

não ir, ou mesmo, a não frequentar a região à noite. Segundo esses usuários, eu poderia passar

por “situações perigosas” e/ou “não muito agradáveis”.

2 X: Entrevista realizada no dia 03/06/2014 em seu local de trabalho.

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ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS

Esta proposta de investigação se caracteriza como um estudo de natureza etnográfica,

uma vez que realizo a análise e busco compreender as relações estabelecidas entre os sujeitos

(professores e alunos) na Academia Popular de Santo Antônio em Vitória-ES, por meio de

minha inserção na Academia. Sobre o estudo de caráter etnográfico, afirma Stigger (2002, p.

5-6) que,

Neste caminho, o trabalho do investigador desenvolve-se num processo de imersão

na cultura estudada, na perspectiva de apreendê-la na sua complexidade, muitas

vezes não explícita, interpretando-a a partir das significações que os indivíduos

atribuem aos seus comportamentos; após este processo, o investigador deve torná-la

acessível pela sua apresentação na forma descritiva. Esta é uma característica

fundamental dos estudos etnográficos [...].

Em Magnani (2003) encontramos referência ao processo metodológico etnográfico na

pesquisa. Ele remete-se a Geertz para evidenciar as características que dão à etnografia suas

possibilidades de percepções a partir das variedades de elementos com que o pesquisador se

depara em seu campo de pesquisa e estudos:

[...] Fazer a etnografia é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio

de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escritos não

com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de

comportamento modelado (GEERTZ, 1978 apud MAGNANI, 2003, p. 19).

Realizei 53 visitas à Academia, no período entre outubro de 2013 a janeiro de 2015.

Frequentei o turno matutino, variando o número de visitas durante a semana, os dias da

semana e os horários referentes às aulas de musculação para minhas observações, conversas e

anotações. A intenção de tais variações foi de visualizar e conviver com o maior número

possível de alunos (e suas características diversas) que frequentam a Academia.

Compreendi, nesse processo metodológico, os sujeitos como colaboradores diretos,

cedendo a mim as entrevistas, e colaboradores indiretos que não participaram do processo das

entrevistas, mas, por frequentarem rotineiramente a Academia Popular, colaboraram com as

inúmeras observações e/ou percepções que eram despertadas em mim diante da dinâmica da

Academia Popular.

Em minha primeira visita à Academia, percebi a sensação de “liberdade” que os

alunos compartilham durante suas atividades. Relacionei, imediatamente, ao fator estrutural

que configura aquele lugar, já que não há ao redor da Academia paredes e espelhos. A

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impressão de “liberdade” ocorre também ao perceber que os alunos não buscam “desfilar”

roupas exuberantes e corpos super malhados, pois:

Não percebi relações comerciais naquele espaço. E os praticantes desenvolvem suas

práticas calmamente, parecem desfrutar o fator de a Academia ser aberta, ou seja,

não apresentar em sua estrutura paredes e espelhos. Consegui visualizar pessoas que,

por vários momentos descansam ao „vento‟ da Academia, que é possibilitado pela

estrutura da mesma (Diário de Campo, 2 de outubro de 2013).

Torna-se, portanto, um ambiente arejado, e os usuários usufruem dessa característica

da Academia.

Em seguida, há algumas imagens da Academia Popular de Santo Antônio, referentes

aos períodos anterior e posterior à reforma que ocorreu em sua “estrutura aberta” ao final do

ano de 2014.

Figura 1: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura

Diário de Campo

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Figura 2: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura

Diário de Campo

Figura 3: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura

Diário de Campo

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Figura 4: Academia Popular de Santo Antônio após a reforma e sua estrutura sem paredes

Diário de Campo

Figura 5: Academia Popular de Santo Antônio e sua estrutura sem paredes

Diário de Campo

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Figura 6: Academia Popular de Santo Antônio – maquinários e materiais para a prática da musculação após a

reforma em sua estrutura

Diário de Campo

Acredito ser interessante diferenciar os dias caraterísticos das visitas3 à Academia dos

dias nos quais eu estive inserida naquele lugar. A inserção propriamente dita foi caracterizada

pelo convite feito a mim para a participação no café da manhã em comemoração ao

aniversário do professor S. Nesse instante, os profissionais colaboraram para a configuração, a

meu ver, de minha completa e necessária inserção na Academia, bem como para a minha

aproximação em relação aos usuários, uma vez que eles puderam visualizar, de fato, a

convivência pacífica que ocorria entre mim e os profissionais. Em meu diário de campo

relatei o ocorrido, junto a minha sensação de não ser mais ou (apenas) visitante e, sim, pessoa

inserida no contexto da Academia Popular:

Hoje participei da primeira confraternização na Academia Popular para a qual fui

convidada: café da manhã em comemoração ao aniversário do professor S. A minha

sensação é de compor aquele grupo de profissionais, fazer parte dele! Foi um

momento de não estranhamento entre mim e eles, e os alunos que visualizavam tal

comemoração me observavam. Espero, com isso, conseguir me aproximar mais dos

usuários e estreitar as conversas com os profissionais, em especial com os

professores! (Diário de Campo, 10 de dezembro de 2013).

3 O termo “visita” será utilizado ao longo do texto para falar sobre os dias em que estive na Academia. Mas,

como relatado no texto, houve um momento que marcou minha total inserção no espaço pesquisado.

20

Para melhor explorar a possibilidade das variedades informativas que a Academia e

seus sujeitos poderiam conceder para minha posterior análise, iniciei a pesquisa com alguns

procedimentos metodológicos em vista: escrita do diário de campo, entrevistas com roteiros

diferentes para professores e alunos, diálogos abertos4, fotos da Academia e dos seus

arredores. Concentrei-me, ainda, nas expressões adversas que o campo poderia me mostrar

sem, a priori, questioná-lo.

Para a elaboração dos roteiros utilizados por mim na entrevista com os usuários e com

as professoras, observei a relação que os próprios buscavam estabelecer com o ambiente da

Academia e com seus sujeitos, fazendo uma combinação de possíveis questionamentos para

evidenciar informações acerca dos sujeitos ainda não percebidas por mim durante as minhas

visitas.

Termos como qualidade de vida, saúde e bem-estar foram utilizados no roteiro

elaborado para as entrevistas dos alunos e dos professores. A estrutura da Academia também

foi um tema abordado durante nossas entrevistas, uma vez que pude perceber inúmeras

menções feitas a ela durante minhas visitas ao local.

O roteiro utilizado para desenvolver as entrevistas com os professores da Academia foi

previamente revisado por mim e pelas professoras da Academia, em conversa que antecedeu a

realização das entrevistas e apresentou temas que abarcaram, também, a relação entre as

secretarias de Esportes e Lazer e Saúde, que administram os espaços da Academia Popular e

do Serviço de Orientação ao Exercício (SOE)5, respectivamente.

Realizamos uma conversa sobre os „rumos‟ do estudo, o diário de campo, as

entrevistas já feitas com alguns usuários e sobre os roteiros, principalmente sobre o

roteiro para a entrevista com as professoras. Os professores se mostraram

interessados (e muito) pela pesquisa e colaboraram para a construção do roteiro que

resultará em nossas discussões. Foi muito positiva para entendimentos e

4 Considero “diálogos abertos” aqueles que ocorrem durante a dinâmica das aulas entre os sujeitos da Academia

e entre mim e os mesmos, sem prévia estruturação de temas, nem escolhas de participantes. São as conversas

“imprevistas”.

5 Idealizado em 1991, o Serviço de Orientação ao Exercício (SOE) é um tipo de serviço oferecido pela Prefeitura

de Vitória, vinculado à Secretaria Municipal de Saúde, para o município em diversas localidades como: Santo

Antônio, São Pedro, Horto de Maruípe, Centro de Vitória, Avenida Beira Mar, dentre outras, sendo diretamente

ligado às ações de saúde promovidas pela Prefeitura. Podemos citar também as ações relacionadas às Unidades

Básicas de Saúde (UBS) e às Academias Populares para a Pessoa Idosa como exemplos de atuação dos

professores do SOE. Na Praça Estela Coimbra, em Santo Antônio, onde fica localizada a Academia Popular de

Santo Antônio, o SOE foi instalado no ano de 1992 para prestar serviços ligados à promoção da saúde à

comunidade. Com a implantação da Academia Popular nessa localidade, o SOE passou a subsidiá-la. Esse

subsídio também ocorre junto às outras Academias Populares do município. Para maiores informações sobre o

SOE ver estudo de Beccalli (2012) denominado “Mais que atividade física: os usos e entendimentos da saúde

entre usuários do Serviço de Orientação ao Exercício da Prefeitura Municipal de Vitória”.

21

questionamentos na conclusão da elaboração do roteiro (Diário de Campo, 2 de abril

de 2014).

Realizei 10 entrevistas; com autorização dos entrevistados, fiz a gravação de todas as

falas. As entrevistas ocorreram entre os meses de fevereiro do ano de 2014 e janeiro do ano de

2015. Os locais variavam entre o ambiente da Academia e a pracinha na qual ela funciona (o

colaborador quem escolhia o local), tendo todas as entrevistas sido feitas no turno matutino.

Excetuou-se a este padrão, apenas, o entrevistado X, com o qual desenvolvi a entrevista em

seu ambiente de trabalho, localizado no município de Vila Velha, no período vespertino.

Esboçarei e organizarei, a seguir, algumas características referentes aos entrevistados,

as quais considero interessantes para melhor compreensão dos possíveis leitores desse estudo,

para que tenham ideias mais próximas ao lócus da pesquisa e aos sujeitos estudados.

. Usuário U1: Homem, 33 anos, atendente de bar e frequentador da Academia há 8 meses;

. Usuário U2: Homem, 31 anos, auxiliar portuário e frequentador da Academia há 6 anos;

. Usuário U3: Homem, 32 anos, vigilante e agente penitenciário e frequentador da Academia

há 5 anos;

. Usuário U4: Mulher, 35 anos, dona de casa e estudante, frequentadora da Academia há 1

ano e meio;

. Usuário U5: Homem, 45 anos, técnico em informática, frequentador da Academia há 1 ano;

. Usuário U6: Mulher, idosa, dona de casa e pensionista, frequentadora da Academia há 7

anos;

. Entrevistado X: Secretário de Esportes na época da implementação/inauguração da

Academia Popular de Santo Antônio;

. Professor P1: Professora da Academia desde fevereiro de 2012, 45 anos, vinculada à

Secretaria de Esportes e Lazer de Vitória (SEMESP) e formada em Educação Física há 24

anos.

22

. Professor P2: Professora da Academia desde janeiro de 2013, 37 anos, vinculada à

Secretaria de Esportes e Lazer de Vitória (SEMESP) e formada em Educação Física há 15

anos; é formada também em Enfermagem; o curso foi feito após o término da faculdade de

Educação Física. A professora não trabalha como profissional de Enfermagem;

. Professor S: Professor do SOE desde 2007, 39 anos, vinculado à Secretaria de Saúde de

Vitória (SEMUS) e formado em Educação Física há 8 anos.

A escolha dos alunos que participaram das entrevistas ocorreu com total apoio das

professoras da Academia.

Para que alguns alunos aceitassem participar das entrevistas, percebi o papel

fundamental das professoras no processo de aproximação entre mim e eles. A fala/intervenção

das professoras tornou-se um “canal” direto entre mim e os usuários da Academia. Percebi

uma relação de confiança entre as professoras e os usuários. Com necessidade de

aproximação entre mim e os alunos, considerei, junto a elas, fatores como a assiduidade do

aluno e o horário em que ele frequenta a Academia. De acordo com as professoras, alguns

alunos têm preferência por horários específicos para frequentarem a Academia; desse modo,

podemos encontrar características particulares de sujeitos, ou mesmo dos grupos (que não

apresentam, necessariamente, os mesmos usuários todos os dias), levando em consideração o

horário de sua frequência.

As minhas percepções ficaram anotadas no diário de campo que atualizei diariamente

e de acordo com a quantidade de visitas realizadas na Academia Popular durante a semana.

As percepções aconteceram a partir de diálogos que estabeleci com os sujeitos, bem como da

observação dos diálogos estabelecidos entre eles próprios. Deram-se, também, a partir de

observações mais específicas acerca de elementos que configuram o ambiente da Academia,

por exemplo: roupas/acessórios utilizados pelos sujeitos, fundo musical que ocorre na

Academia, “ritmos” dos treinos, temperatura/clima da manhã, comportamento/ações dos

professores e dia da semana.

Às vezes, levei em consideração um evento diferenciado das ações corriqueiras da

Academia, uma palavra ou uma fala de algum aluno ou professor, fazendo com que o dito

e/ou o ocorrido se constituísse como possível reflexão e, consequentemente, como base das

anotações em meu diário de campo.

23

Entrevistas, diálogos em geral e diário de campo obtidos a partir de minha inserção no

lócus de pesquisa em questão correspondem ao conteúdo que utilizei para a análise das

problematizações acerca da Academia Popular e de seus sujeitos.

A análise de conteúdo é aplicada a diversos materiais, possibilitando a investigação de

seus variados aspectos e dimensões. Segundo Dionne e Laville (1999, p. 214), “É este o

princípio da análise de conteúdo: consiste em desmontar a estrutura e os elementos desse

conteúdo para esclarecer suas diferentes características e extrair sua significação”. Considerei,

também, as minhas percepções e as anotações em meu diário de campo como elemento

necessário para realização de tal proposta metodológica.

A partir desta introdução o trabalho está estruturado em três capítulos de análise.

O primeiro capítulo refere-se à minha aproximação com o lócus da pesquisa e inserção

no mesmo, a descrição da Academia Popular de Santo Antônio e a caracterização do local

(comunidade, bairro e a pracinha) no qual a Academia se localiza. Ao do final do capítulo,

apresento o Projeto Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória a partir de

reflexões acerca da dinâmica de funcionamento da Academia, bem como das ações de

intervenção das professoras que atuam nessa Academia Popular.

O segundo capítulo é organizado em três itens de análise. No primeiro, relato a história

das academias de ginástica e musculação no Brasil. Apresento os estágios de desenvolvimento

das academias e faço considerações relacionadas à Academia Popular de Santo Antônio. No

segundo, apresento e discuto algumas diferenças marcantes entre as academias privadas de

musculação e a Academia Popular de Santo Antônio. Essas diferenças vão desde as

características do ambiente em si das academias até a abordagem feita pelos professores

diante dos alunos/usuários. No terceiro, revelo as “tecnologias da saúde” (tecnologias leves,

tecnologias leve-duras e tecnologias duras) compartilhadas pelas professoras da e na

Academia Popular. Saliento a importância do uso, em específico, das tecnologias leves no

processo de promoção de saúde desenvolvido pelas professoras na Academia Popular.

Os elementos discutidos nos itens citados vão ajudar a configurar a compreensão dos

aspectos que caracterizam o processo de sociabilidade ocorrida na Academia Popular de

Santo Antônio.

A sociabilidade vivida na Academia Popular pode ser considerada como um fator de

busca e de permanência (ao mesmo tempo) para os usuários daquele lugar. Nesse aspecto,

torna-se interessante a reflexão acerca de questões essencialmente relacionadas aos vínculos e

acolhimentos estabelecidos entre os sujeitos do lócus da pesquisa. A análise dessa

característica da Academia configura o capítulo três, e nele evidencio falas e acontecimentos

24

do dia-a-dia do lócus da pesquisa, os quais nos mostram como a promoção da saúde pode se

relacionar, ou mesmo estar diretamente ligada, com as ações de vínculos e acolhimentos entre

os sujeitos envolvidos, de uma forma geral, com os projetos da área da saúde. Após tal

capítulo, apresentam-se as considerações finais, referências e anexos.

25

1 UMA ESTRANHA NO NINHO: MINHA INSERÇÃO NA ACADEMIA POPULAR DE

SANTO ANTÔNIO

Minha primeira visita às três Academias Populares no município de Vitória aconteceu

no dia 18 de abril de 2013, no período vespertino. Iniciei as visitas indo à Academia Popular

no Bairro de Santo Antônio, seguindo para a Academia Popular no Bairro de São Pedro e, por

último, visitei a Academia Popular no Bairro Maruípe. Durante o trajeto, pude visualizar, com

curiosidade, a intensa movimentação das pessoas no trânsito, no comércio, na rua etc. e a

extensão territorial das regiões nas quais se localizam as Academias. São regiões muito

movimentadas!

Continuei a observar toda essa dinâmica, mas concentrei-me no ambiente de cada

Academia Popular, buscando perceber algumas características em seus espaços para iniciar as

primeiras anotações em meu diário de campo.

As Academias Populares seguem o mesmo projeto (PPPAV, 2008) para atenderem a

população das referidas localidades. Em seus espaços, é desenvolvida a prática da

musculação. Outras atividades, contudo, podem ser adotadas por seus professores. Ao lado do

espaço ocupado pelas máquinas para a prática da musculação, há uma área que possibilita as

práticas de atividades de caráter recreativo (espaço vazio). Por exemplo, o jogo de voleibol é

adotado pela professora da Academia Popular de Maruípe para um grupo formado por alunos

da própria academia.

Este espaço (vazio) é usado, também, para os momentos de aquecimento e

alongamento que ocorrem antes e depois da musculação, respectivamente. Os profissionais se

dividem para realizar o alongamento, o aquecimento, a atividade recreativa (caso seja adotada

pela academia) e a assistência à musculação. Há, também, dentro dos espaços das Academias

Populares ou em suas proximidades, os módulos do Serviço de Orientação ao Exercício

(SOE).

26

Figura 7: Academia Popular de Santo Antônio; espaço vazio, máquinas para a musculação e módulo do SOE

Diário de Campo

Para iniciar a frequência nas atividades propostas pela Academia, o aluno deve passar

por uma avaliação física, que é feita exclusivamente pelos professores de Educação Física do

SOE. Normalmente, o módulo utilizado para a realização da avaliação física corresponde ao

mais próximo da academia que o aluno pretende frequentar. Após fazer a avaliação física, o

aluno estará apto ou não para frequentar as atividades da academia. Esta avaliação será

“encaminhada” ao professor de Educação Física da academia, que se encarrega de “montar o

treino” do aluno. O “treino”, comumente, é feito de acordo com os objetivos do aluno, os

quais são estabelecidos junto aos professores.

A partir dos diálogos abertos, das entrevistas e das minhas observações, reconheci

diferentes posicionamentos dos profissionais do SOE em relação às Academias Populares.

Busquei alguns professores do SOE, que me afirmaram que a única relação do SOE com as

Academias Populares acontece no momento da avaliação física dos alunos que pretendem

participar das atividades oferecidas pelas Academias. Mas, durante algumas conversas

ocorridas entre mim e os sujeitos da Academia Popular de Santo Antônio, pude notar que a

relação profissional entre os professores da Academia e do SOE (do lócus da pesquisa) não

27

acontecia de modo a corresponder com as falas dos professores de Educação Física atuantes

em outras Academias Populares e em outros módulos do SOE ligados às Academias.

As ações do professor do SOE, segundo os sujeitos da Academia Popular de Santo

Antônio, extrapolam sua função relacionada apenas à efetivação da avaliação física; ele

atende, também, na musculação em casos específicos, como atendimento a idosos e em caso

de ausência de uma das professoras da Academia.

A ausência de um profissional de Educação Física na Academia ocasiona a sobrecarga

do trabalho do profissional presente; neste caso, o professor do SOE realiza o apoio no auxílio

de instruções de musculação dos “treinos” dos usuários. Essa situação é relatada em entrevista

por P2,

Bom, nossa relação com o SOE, na pessoa do professor [S]... Que é ele que trabalha

conosco aqui... Eu acho a melhor possível. Pois ele tem uma parceria muito grande

conosco, em relação às avaliações e se precisar de alguma coisa dentro da

Academia, se precisarmos de alguma ajuda... Enfim, com o professor [S] isso

acontece! Já teve caso de eu ter que me ausentar por um problema de saúde, ele se

fazia presente na Academia, mesmo não sendo um professor da SEMESP.

Desse modo, a relação entre os profissionais da Academia e do SOE alcança outras

efetivações na e para a intervenção no processo de promoção de saúde naquele lugar. De

acordo com o professor S, essa parceria não foi pensada ou expressa nos projetos; no entanto,

ele não acredita que a relação entre os profissionais da academia popular e do SOE “tem que”

terminar aí. Dessa forma, o professor S nos fala em entrevista que:

Se a gente pensar nas funções... Na integração do trabalho como está colocado no

Projeto Político Pedagógico da Academia, a gente está colocado aqui [...] para se

fazer uma triagem, uma avaliação da pessoa que vai chegar... Que vai ser acolhida.

Ela passa por nós, depois é encaminhada para suas atividades com os profissionais

da Academia Popular e nosso serviço acaba aí de acordo com o que está colocado no

projeto. Eu acredito que a intenção de quem criou não tenha sido essa somente,

deveria ter uma integração... E eu acho importante, legal que houvesse essa

integração. O importante que as academias [populares] foram surgindo e cada uma

com suas particularidades e isso eu acredito que não foi pensado em nenhum

momento pelos gestores em se dar um padrão para essas coisas acontecerem, ou de

como essa continuidade se daria, como essa integração pudesse, de fato, ser positiva.

[...] Quem manda nesse espaço? Quem é que tem a última palavra em assuntos

referentes a essa ocupação? Sinceramente, eu nunca pensei nisso! Eu falo isso, mas,

não sei quem é o dono... Não tem!

A “escolha” dos profissionais pode ser mais bem compreendida ao refletirmos sobre

alguns elementos característicos relacionados às necessidades para um bom funcionamento da

Academia e do SOE, uma vez que, segundo P1, o trabalho em conjunto ao professor S visa a

28

qualidade do serviço prestado para a comunidade. O compartilhamento de materiais e a ação

integrada entre os profissionais são valorizados na fala de P1, que reconhece a importância

dessa intervenção no cuidado ao usuário da Academia.

Nesse sentido e a despeito das ações das secretarias que coordenam seus respectivos

funcionários, P1 afirma que:

[...] isso é muito importante [trabalho conjunto], então eu sinto que, muitas vezes

existe uma competição entre as secretarias, entre os serviços... Aqui eu não vejo

isso! Hoje não é tanto, mas, com a coordenação anterior a gente teve um problema

muito sério! [...] vendo a questão de materiais: „Ah, esse material é meu, esse

material é seu!‟ Essa separação... A gente está trabalhando junto, então é junto!

Vamos trabalhar os nossos materiais... Não é meu, não é seu... É nosso! Então é pra

comunidade, é pra gente trabalhar com a comunidade. Então, muitas vezes, eu quero

que a minha secretaria apareça mais! [isso] Tira o foco que é o usuário que tem que

ser atendido com qualidade!

P2 corrobora as ideias dos demais professores ao nos relatar que a colaboração e o

trabalho integrado que ocorrem entre a Academia e o SOE são uma ação específica dos

profissionais e não das secretarias (SEMESP e SEMUS) do município, mas essa situação está

melhor nos dias atuais:

[...] aqui a parceria é entre profissionais, e não entre secretarias. [...] aqui, por

exemplo, os [produtos] que vem para cá, de consumo... Pó de café, açúcar são

trazidos pela secretaria de esportes, mas, o [professor S] “faz” isso junto com a

gente. Não tem uma distinção, e já antes tinha com o antigo coordenador: “Quem

tem que trazer tal material é o SOE, quem tem que trazer tal material é a SEMESP!”

E hoje em dia isso não existe!

Refletir sobre o trabalho integrado entre esses professores nos faz pensar nas ações

que, em conjunto, eles promovem naquele lugar. Essas ações estão relacionadas aos cuidados

necessários à saúde dos usuários, cuidados que extrapolam a questão da avaliação física e/ou

do “treino” na musculação que a priori, “resumiriam” a obrigatoriedade da relação entre

aqueles professores.

Em Ceccim e Bilibio (2007), encontramos a importância do trabalho interprofissional

nas ações de intervenção nos processos de promoção da saúde do Sistema Único de Saúde, ou

mesmo nos processos públicos de promoção de saúde da população. A meu ver, considero a

importância e as características colocadas por esses estudiosos como possíveis de serem

articuladas e analisadas, também, na relação que encontrei entre os professores da Academia e

do SOE. A relação profissional que ocorre entre os professores de Educação Física no

ambiente da pesquisa se configura como um trabalho em equipe e orientado para os cuidados,

29

em saúde pública, aos usuários envolvidos no dia-a-dia da Academia Popular. Dessa forma,

compreendo que

O processo de trabalho dessa modelagem atinge sua dimensão propriamente

cuidadora, expondo a relevância de que todo profissional de saúde seja capaz de

produzir acolhimento, proporcionar escuta e estabelecer laços de confiança com os

usuários de modo que possam posicionar-se como gestores de projetos terapêuticos

singulares (CECCIM; BILIBIO, 2007, p. 59).

Pensar na questão do cuidado e, consequentemente, no processo de promoção de

saúde da Academia resultante dessa relação entre os professores é pensar numa intervenção

profissional a partir de uma perspectiva que corresponde a um modo de fazer a Educação

Física, em conjunto, e além das questões primordialmente relacionadas à composição corporal

(músculos, índices metabólicos/fisiológicos etc.) do indivíduo; é visualizar, a partir da

intervenção desses professores, ações que consideram, no usuário, suas características

singulares, ligadas também à questões sensitivas, emocionais, entre outras. Dessa maneira, o

professor S atenta-se, principalmente, para que suas alunas voltem para a aula do dia seguinte:

[...] eu tenho alunas que vêm às minhas aulas que elas têm mais saúde, ou

demonstram ter, no momento que riem de uma piada que eu conto do que de fato

quando elas precisam fazer um agachamento com calcanhar colado no chão...

Dobrar o joelho a 90º [...], quando ela lembrar amanhã que vai estar um pouco com

dores, é normal! Não sei se ela terá vontade de voltar [se] comparando com o

aspecto emocional de quando: „o professor chegar ele vai apertar minha mão, vai me

dar um abraço que é talvez o que eu mais preciso para hoje... E isso não vai doer em

mim, talvez isso me faça voltar mais vezes, e aí por conta dessa satisfação eu

consigo abaixar, consiga pegar um peso e levantar... E fazer de tudo isso saudável

para mim‟.

As professoras P1 e P2, assim como o professor S, se atentam, também, para o

“cuidado” ao usuário na ideia de fazê-lo voltar à Academia nos diversos dias da semana: “Não

queremos que eles venham, apenas, na segunda. Temos cuidado para não afastá-los daqui.

Cuidar da saúde deles é também cuidar deles. O lado psicológico, também!” (Diário de

Campo, 10 de junho de 2014). Na perspectiva de ação desses professores, encontramos a

prática da Educação Física correspondendo ao que Ceccim e Bilibio (2007, p. 54) nos dizem,

pois

É a educação física que mais propriamente pode recolocar a dimensão corpórea da

existência subjetiva na prática cuidadora, retirando o corpo do lugar instrumental da

atividade física para o lugar do desejo e da energia vital que se impulsione ao

contato com as sensações, ao contato/encontro com o outro de maneira concreta, real

(não em tese, não em filosofia do cuidado), mobilizando junto com um corpo de

ossos e músculos, um corpo de afetos e de expansão da experiência humana.

30

As questões do cuidado em saúde compartilhadas pelos professores e as

consequências desse tipo de intervenção vão embasar, nos próximos capítulos, os mecanismos

de sociabilidade produzidos pelos sujeitos na Academia Popular, uma vez que as

consequências da atuação desses profissionais da saúde, a meu ver, correspondem ao

estabelecimento de vínculos entre os sujeitos e a ação de acolhimento que eles desenvolvem

na dinâmica do funcionamento da Academia, contribuindo, dessa forma, para se entender

como uma dimensão central a sociabilidade no processo de promoção de saúde nesse lugar.

1.1 A COMUNIDADE DE SANTO ANTÔNIO E A ACADEMIA POPULAR DE SANTO

ANTÔNIO

O bairro de Santo Antônio, de acordo com o site “Vitória em Dados”, localiza-se no

extremo oeste da cidade de Vitória-ES e faz limites territoriais com outras comunidades do

próprio município: Morro de Alto Caratoíra, o Morro de Bela Vista e de Nossa Senhora

Aparecida, sendo, ainda, margeado pela Baía de Vitória.

Historicamente é o bairro mais antigo do município de Vitória, datado do início do

século XX. Foi ocupado por comerciantes estrangeiros que se instalaram na parte plana do

bairro. A área de instalação pertencia à Fazenda de Santo Antônio, sendo esta propriedade do

Estado. Em 1910, no governo de Jerônimo Monteiro, foram feitos lotes e vendidos aos

comerciantes, que iniciaram a ocupação no bairro.

Na década de 1940, foi construído no bairro o Cais do Avião, que impulsionou o

desenvolvimento econômico local. Nessa mesma época, chegaram ao bairro os padres da

ordem dos Pavonianos, que iniciaram um trabalho social denominado Obra Social São José,

ligado à Igreja, com famílias carentes. Este trabalho social acontecia no prédio que veio a se

tornar a escola de Primeiro Grau Alvimar Silva.

Os Pavonianos promoveram, também, a construção da atual Basílica de Santo

Antônio, sendo, nos dias de hoje, a maior referência histórica do bairro. Ainda nesta década e

na seguinte houve um aumento populacional da região com a chegada dos imigrantes

italianos, alemães e de outras famílias do município de Vitória.

Em 1960, ocupações de famílias marcaram a formação das áreas mais precárias do

bairro (pois aconteceram de forma desordenada), as áreas do mangue e as áreas do morro. A

ocupação do morro originou o Bairro de Bela Vista. Nas décadas de 1970 e 1980, ocorreu um

31

acelerado crescimento populacional, sendo que, em 1990, as áreas mais precárias se

constituíram como um aglomerado urbano de classe de baixa renda.

A parte plana do bairro de Santo Antônio apresenta um melhor padrão de habitação;

inclusive, é mais bem servida por equipamentos urbanos, em geral, do que as outras partes

que compõem a comunidade. O Parque Tancredão, a Escola de Samba Novo Império e o

Cemitério Público de Santo Antônio (inaugurado em 1912) são marcos valorativos dessa

região de Santo Antônio. Considero os equipamentos urbanos nas duas perspectivas que nos

falam Barbosa, Marcellino e Mariano (2008, p.135-137). Sendo assim, o bairro de Santo

Antônio apresenta, em sua estrutura, características equivalentes àquelas que os autores

classificam como equipamentos específicos (teatros, cinemas, bibliotecas, escola de samba

etc.) e equipamentos não específicos de lazer, como escolas, feiras livres, praças, igrejas etc.

Em 1960 os bondes que ligavam a região às outras partes do município foram

desativados e duas linhas de ônibus foram criadas para o transporte público de pessoas para

outros bairros de Vitória. Atualmente o bairro de Santo Antônio conta com uma frota de 81

linhas de ônibus que correspondem ao principal meio de transporte da população local. De

acordo com documento “Vitória Bairro a Bairro” (2013), da Secretaria Municipal de Gestão

Estratégica do Município de Vitória (SEGES), o bairro tem 5.947 habitantes.

32

Figura 8: Basílica de Santo Antônio, Vitória-ES

Fonte: http://www.butokukaisa.com.br/wp-content/uploads/2010/08/santuario-de-sto-antonio.jpg, acessado em

24/06/2015.

O município de Vitória é composto por 8 Regionais. Cada regional, por sua vez, é

composta por bairros. O bairro de Santo Antônio faz parte da Regional 2 do município de

Vitória. Essa regional leva o nome do próprio bairro, assim sendo: Santo Antônio.

Popularmente, porém, ela é conhecida como a Grande Santo Antônio, e, de acordo com o

documento Vitória Bairro a Bairro (2013), essa região tem 37.874 habitantes.

A Grande Santo Antônio é formada por 13 bairros: Ariovaldo Favalessa, Bela Vista,

Caratoíra, Do Cabral, Do Morro, Estrelinha, Centro de Vitória, Ilha do Príncipe, Inhanguetá,

Mário Cypreste, Santa Tereza, Santo Antônio, Universitário (SEGES, 2013, p. 3).

33

Figura 9: Mapa da Regional 2 – Regional Santo Antônio

Fonte: VITÓRIA BAIRRO A BAIRRO (2013).

Considerei para minhas análises, sem perder o foco sobre o bairro de Santo Antônio, a

Grande Santo Antônio como a localidade da Academia, ou mesmo a região para a qual ela foi

direcionada ao ser implementada no bairro de Santo Antônio, uma vez que as intervenções

políticas, econômicas e sociais são organizadas, no município de Vitória, de modo a atender a

essas regionais. Dessa forma, encontramos na Academia sujeitos que, em sua maioria,

residem nos diversos bairros que compõem a Regional 2.

Após minhas visitas às Academias Populares e com objetivo de me „ambientar‟ com a

investigação, fui à busca de algum documento que pudesse me informar em relação às

características gerais das Academias, características que passam pela elaboração, pela

construção e pelos motivos para a implantação do projeto no Município de Vitória-ES.

No dia 25 de abril de 2013, fui à Secretaria Municipal de Esportes e Lazer, localizada

no Forte São João (nas dependências do antigo Clube do Saldanha, em Vitória), para

estabelecer um contato direto com organizadores e administradores das Academias Populares.

Chegando lá, fui encaminhada para a sala na qual trabalham os profissionais da Prefeitura

34

envolvidos com as Academias Populares e com outros espaços do município destinados às

práticas de atividades físicas e lazer da população.

Na sala estavam três funcionários, um dos quais me entregou uma cópia impressa do

Projeto Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória. Os outros dois funcionários

estavam ocupados no momento da minha visita à secretaria, de modo que não consegui

estabelecer diálogo com nenhum deles.

Minha primeira visita à Academia Popular de Santo Antônio ocorreu no dia 2 de

outubro de 2013, no turno matutino. Fui recebida pelo professor do SOE, que, rapidamente,

chamou uma das professoras para conversar comigo. A professora P1 foi quem me recebeu e,

durante alguns minutos, falei sobre a minha pretensão de estudar a Academia e os sujeitos que

a frequentam.

Expliquei a ela que eu já havia feito o pedido formal à SEMESP-Vitória e conseguido

do Coordenador das Academias Populares de Vitória a autorização para minha inserção

naquele ambiente. Perguntei se não haviam chegado tais documentos para ela. A resposta foi

“não!”. A professora não sabia sobre a minha chegada e sobre o meu estudo na Academia.

Então, mostrei-lhe os documentos. A professora fez as devidas leituras e, tranquilamente,

liberou a minha entrada/frequência na Academia com tal propósito.

Durante minha primeira visita, aproveitei para buscar um pouco mais da história da

Academia, pois o que eu tinha em mãos era o seu projeto, sem falas e/ou maiores informações

acerca do seu funcionamento propriamente dito. Na parede do módulo do SOE, estão expostas

as informações acerca de políticos e seus cargos no momento de idealização e inauguração da

Academia Popular. Em meu diário, e considerando minhas primeiras anotações, organizei as

informações iniciais da Academia da seguinte forma:

A Academia Popular de Santo Antônio fica localizada na Praça Estela Coimbra e foi

inaugurada no dia 27 de setembro de 2006, durante a gestão do Prefeito João Carlos

Coser e sua equipe: Sebastião José Balarini [Vice-Prefeito], Luis Carlos Reblin

[Secretário de Saúde] e Silvio Roberto Ramos [Secretário de Obras] (Diário de

Campo, 2 de outubro de 2013).

Em minha segunda visita (10 de outubro de 2013) levei uma cópia autenticada dos

documentos e entreguei-a à professora P1, que se mostrou satisfeita com minha atitude.

Imediatamente, ela guardou os documentos na pasta da Academia.

A partir de minha primeira visita, iniciei uma nova fase do meu estudo, que até então

estava essencialmente relacionado aos livros, textos, leitura e prévia interpretação do projeto

das Academias (PPPAV). Ao pisar em meu lócus de pesquisa, eu senti a necessidade de me

35

desprender de alguns conhecimentos sedimentados por mim acerca desse universo chamado

academia de musculação ou de ginástica, para que eu pudesse conseguir captar inúmeras

informações que aquele ambiente me permitisse.

A estrutura diferenciada da Academia despertou inúmeras curiosidades em mim, que

até então nunca havia estado em um espaço destinado à prática da musculação, que oferecesse

aos sujeitos tamanha ventilação natural. Tal característica chamou minha atenção durante os

primeiros dias de minhas visitas à Academia e deu base para eu pensar e repensar sobre a

relação dos sujeitos com o espaço, com sua estrutura, com a sensação diferenciada que é a

prática da musculação desatrelada dos comuns ambientes fechados, ou mesmo concentrados

em suas máquinas e em seus espelhos.

A impressão obtida por mim, durante alguns dias, foi que a musculação não acontecia,

pois eu não visualizei o suor ou o cansaço dos usuários no movimento em si, não escutei a

música eletrônica em volume elevado, não percebi desfiles de roupas estilosas etc., aspectos

comumente presenciados por mim em ambientes de academias particulares. Em meu diário de

campo, registrei a dúvida/curiosidade acerca da prática corporal que ali ocorria, mas que para

mim ainda era algo “estranho”, meio “indeterminado” aos meus olhares e percepções: “Onde

está a prática da musculação? Porque eu não a „sinto‟” (Diário de Campo, 13 de novembro de

2013).

Os meses de outubro, novembro e parte do mês de dezembro (2013) corresponderam

ao que eu chamei de “período dos receios”. A minha impressão durante os meses citados foi a

de que eu e os profissionais da Academia formávamos dois extremos de ocupação naquele

lugar. Eu correspondia à pesquisadora, pertencente a uma realidade distante daquela vivida

por eles diariamente nos últimos anos de suas vidas, e eles, os profissionais da Academia

Popular, representavam a experiência do saber-fazer, do saber-lidar, do saber-resolver, e tais

ações não pareciam guardar, aos meus olhos, singularidades para que eu pudesse encontrar

algo fora da rotina de um professor de Educação Física de academia. Refiro-me à rotina, isto

é, aos fatores relativos às instruções técnicas dos movimentos,

preenchimento/acompanhamento das fichas dos treinos dos usuários. E os receios ficaram na

expressão do distanciamento entre mim e aqueles sujeitos.

Receios, curiosidades e esperança na efetivação de uma aproximação não forçada pela

necessidade da pesquisa, mas, sim, a vontade de que a aproximação entre mim e os sujeitos da

Academia ocorresse de forma agradável e livre dos medos/estranhamentos comuns à figura do

pesquisador. Foi o que me levou a caminhar pela praça, pela quadra utilizada pelo SOE e a

andar, constantemente, no espaço destinado à musculação na Academia, de máquina em

36

máquina, sem usar muito os olhos nos olhos, mas com o cuidado de realizar uma aproximação

que acontecia de forma despercebida pelos professores e pelos usuários. Ao final do mês

dezembro,

Depois de um longo período – 20 dias – sem ir à Academia Popular devido à chuva,

pude reparar um momento de saudade dos professores da academia para comigo. Fui

abraçada por todos com calorosas frases: „seja bem-vinda‟, „quanto tempo‟, „que

bom que você veio‟. Foi a primeira vez desde outubro – quando iniciei minhas

visitas à Academia – que me senti pertencendo ao grupo de profissionais da

Academia (Diário de Campo, 30 de dezembro de 2013).

Durante os meses citados, procurei me informar sobre o funcionamento da Academia e

toda a dinâmica que envolvia tal situação. Por meio desses assuntos, fui me aproximando dos

professores e dos outros profissionais, que também contribuem para a configuração do

ambiente.

Nesse período, aproveitei para conhecer a Praça Estela Coimbra. Dessa forma, eu

acreditei promover meu processo de inserção na dimensão estrutural que envolve a Academia.

A praça corresponde a um cenário adequado/facilitador às/das práticas de atividades físicas.

Ambiente arborizado e de fácil acesso para a população do bairro e adjacências, ela apresenta

em sua estrutura:

- 3 ambientes de areia: uma pequena quadra, geralmente usada para a prática do voleibol; um

playground; e um campo no qual crianças, adolescentes e adultos jogam futebol;

- 2 quadras: uma pequena e uma poliesportiva. Esta é usada para aulas de ginástica que

acontecem no período noturno e são dadas por profissionais contratados pelo centro

comunitário do bairro (são aulas gratuitas). Também é utilizada pelos professores do SOE em

suas atividades;

- Academia Popular para a Pessoa Idosa (APPI);

- Núcleo de Integração Social para Pessoas Idosas Ondina Escobar Fonseca; neste local, os

idosos participam/realizam atividades como: pinturas e jogos; atividades físicas e “oficinas da

memória”;

- Academia Popular;

37

- Pista para caminhada.

Por vezes, sentia-me sozinha no espaço da Academia e precisei, em alguns momentos,

mudar o foco” da visita. Por isso, voltei-me, durante alguns dias, para a praça e para o mar

que margeia aquele espaço e seus arredores, ainda buscando por curiosidades que pudessem

compor minhas anotações no diário referente ao dia da visita.

Figura 10: Baía de Vitória, Praça Estela Coimbra e parte do bairro de Santo Antônio

Fonte: Google Maps, buscar por Bairro de Santo Antônio – Vitória, ES (2014).

38

Figura 11: Praça Estela Coimbra – pista para caminhada e Baía de Vitória

Diário de Campo

Figura 12: Playground em Praça Estela Coimbra

Diário de Campo

39

Figura 13: Núcleo de Integração Social para Pessoas Idosas Ondina Escobar Fonseca, Praça Estela Coimbra

Diário de Campo

Figura 14: Campo de areia e pista para caminhada em Praça Estela Coimbra

Diário de Campo

40

Figura 15: Quadra Poliesportiva localizada ao lado da Academia Popular de Santo Antônio e pista para

caminhada

Diário de Campo

A Academia funciona em dois horários, matutino – 06h20 às 10h40 – e vespertino –

17h00 às 21h20. No turno matutino, há duas professoras de Educação Física, sendo uma

efetiva e a outra contratada pela Prefeitura Municipal de Vitória. Elas atuam juntamente aos

alunos. Há, também, uma Assistente de Serviços Gerais (ASG) e uma Vigilante Patrimonial

(esta não faz uso de arma de fogo, pois não acha necessário).

As professoras atuam no turno matutino. A professora P1, apesar de ser efetiva desde

2009 na Prefeitura de Vitória, iniciou seu trabalho na Academia Popular de Santo Antônio em

fevereiro de 2012; até então, ela lotava outra Academia Popular do município. A professora

P2 está nesta Academia desde janeiro de 2013; anteriormente, a professora atuou em outros

espaços da Prefeitura, relacionados, também, à promoção da saúde da população do

município; recentemente, duas vezes por semana (3ª e 5ª feiras, turno matutino), a professora

P2 passou a trabalhar na Academia Popular de São Pedro e a sensação que tive, durante o

período de inserção no lócus da pesquisa, foi de falta, sendo essa sensação compartilhada

igualmente pelos sujeitos do turno matutino. A ausência da professora ficou assim registrada

em meu diário:

41

A Academia hoje estava „desfalcada‟, pois a professora P2 foi encaminhada duas

vezes por semana para atuar na Academia Popular de São Pedro. Com um „ar

chateado/decepcionado‟, a professora P1 explicou-me que foi uma medida „tapa-

buraco‟, já que faltam profissionais nas Academias Populares espalhadas pelo

município (Diário de Campo, 25 de abril de 2014).

No mês de dezembro de 2013, foi contratado para a Academia um estagiário de

Educação Física; naquele momento ele estava em fase de finalização do curso (último

período) e o seu contrato se encerrou no mês de dezembro de 2014. Atuava sob os cuidados

das professoras formadas, não ficando sozinho, em momento algum, para coordenar as

atividades da Academia.

No turno vespertino, há apenas um professor de Educação Física e um Vigilante

Patrimonial. Este trabalha em regime de escala juntamente aos outros vigilantes da Academia.

Dessa forma, a Academia sempre tem a presença de um profissional de vigilância.

O espaço da Academia é composto por 25 máquinas para musculação, colchonetes,

halteres (pesos variados), cordas pequenas, caneleiras (pesos variados) e os pesos para as

máquinas de musculação. Um bebedouro e um banheiro, sendo este pertencente ao módulo do

SOE (que fica dentro do espaço da academia). A área para musculação é separada, por meio

de cordas, dos outros espaços, inclusive do espaço vazio. No chão são coladas as borrachas

antiderrapantes para piso e em dois armários são guardadas as caneleiras e as fichas dos

alunos.

42

Figura 16: Academia Popular de Santo Antônio – espaço vazio e o Módulo do SOE

Diário de Campo

A professora P1 leva para o espaço da Academia um rádio, já que a Academia não

apresenta esse recurso em sua estrutura. O som e o tipo de música proporcionados aos

usuários ocorrem de forma a colaborar com a característica “leve” do ambiente. Som em

volume baixo (ambiente), músicas dos gêneros gospel e pop, em ritmo remixado. Quando

ocorre a falta da música na Academia, alguns alunos se manifestam pedindo pela música, mas

não expressam gostos próprio/individuais pelo tipo e/ou gênero musical. Apenas querem a

música!

No dia 15 de outubro de 2013, foi exibida uma reportagem pela TV Gazeta sobre a

falta de cuidados por que as Academias Populares do município de Serra e de Vitória passam.

A Academia Popular na qual ocorreu a reportagem em Vitória foi justamente a de Santo

Antônio. Algumas máquinas quebradas (6 máquinas foram interditadas), algumas borrachas

do piso descoladas, a lona que faz o teto da academia com buracos (permitindo, assim, que, ao

chover, molhe uma determinada área da musculação) e a falta do bebedouro, foram noticiados

nessa reportagem. O bebedouro foi colocado imediatamente após gravação da reportagem,

mas ele não fornecia água filtrada. Os alunos do turno matutino continuavam a trazer água de

casa.

Após uma semana da realização da reportagem, os problemas apontados por ela foram

solucionados pela Prefeitura, com exceção da manutenção da cobertura, que acabou rasgando

43

dias depois. De acordo com os sujeitos da Academia, a lona (cobertura) rasga sempre no

período mais quente do ano e, durante alguns dias após a lona rasgar, profissionais e usuários

posicionam-se de maneira revoltada com o que eles afirmam ser “descaso da Prefeitura para

com a Academia Popular” (Diário de Campo, 14 de novembro de 2013).

Os diálogos, por dias seguidos, ficam em volta da questão da cobertura e da

necessidade de melhorar a estrutura da Academia. Em meu diário, relatei o acontecimento

durante alguns dias seguidos, uma vez que notei o tamanho do incômodo vivido por aqueles

sujeitos diante desse fato:

Em 13 de novembro de 2013, a lona que era utilizada como cobertura para a

Academia rasgou, caindo sobre os aparelhos e os usuários que faziam musculação no

primeiro horário do turno vespertino de funcionamento da Academia. De acordo com

professores e alunos do turno matutino, esse fato ocorre com frequência e, geralmente,

no período mais quente do ano (Diário de Campo, 14 de novembro de 2013).

Para a tranquilidade dos professores e dos alunos, ninguém se machucou no incidente.

O ambiente da Academia foi interditado até a retirada da lona. Em meu diário de campo, no

dia 14 de novembro de 2013, registrei que:

A lona que serve como o „teto‟ da Academia rasgou e caiu sobre os aparelhos. O

fato ocorreu no dia anterior por volta das 17h30min. O uso do espaço foi suspenso

pelo professor do turno vespertino, assim como pela professora P1 [turno matutino]

na manhã de hoje. Os professores ligaram para a Secretaria de Esportes e Lazer do

município [SEMESP] para avisar sobre o ocorrido; a Academia só poderá voltar a

atender aos usuários quando a lona for retirada devidamente. Não há data prevista

para o conserto da cobertura, enquanto isso não ocorrer, a academia poderá ser

usada, mas, provavelmente haverá mudanças nos horários matutino e vespertino,

pois o clima quente ou a ocorrência da chuva impedem a prática da atividade na

Academia em determinadas horas do dia.

44

Figura 17: Academia Popular de Santo Antônio descoberta e o Módulo do SOE

Diário de Campo

Uma segunda reportagem foi feita na Academia (4 de dezembro de 2013). A

reportagem falou, novamente, sobre o descaso com os cuidados do ambiente e evidenciou a

situação da cobertura. Pude perceber alguns alunos revoltados e conversei um pouco com as

professoras sobre “o clima tenso e diferente dos outros dias” que se encontrava na Academia

naquela manhã. Elas disseram que a comunidade de Santo Antônio é exigente. Os alunos

reclamam e buscam fazer as denúncias acerca dos problemas da Academia, ou na SEMESP

ou na imprensa. Os alunos, em falas diversas, faziam questão de dizer uns aos outros:

“Colocando a imprensa no meio, talvez eles resolvam logo. Só assim mesmo!” (Diário de

Campo, 5 de dezembro de 2013).

No total são 780 alunos, sendo 355 do turno matutino e 425 do turno vespertino. Não

há na Academia computador para serem feitos os arquivos sobre os alunos e documentos da

Academia. Os professores se organizam em fichas feitas manualmente e fazem a função da

secretaria da Academia, pois também não há esse profissional disponível para o espaço

referido.

Os alunos são organizados em grupos (número variado) que fazem um rodízio para o

uso do espaço para a musculação. Cada período, por grupo, dura cerca de 1 hora: 10 minutos

para aquecimento, 40 minutos para musculação, 10 minutos para alongamento. São

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configurados 6 grupos durante os períodos de atendimento da Academia, mas quando

acontece o fato da cobertura (citado acima), geralmente o número de grupos é reduzido para

5, pois o último horário é retirado do atendimento, uma vez que o sol está muito forte,

impedindo a ação das professoras e, segundo as elas próprias, os alunos evitam o último

horário quando não há cobertura: “Hoje a última turma ocorreu no horário de 8:40h. No

último horário, que seria às 9:40h, não houve/apareceu aluno. O sol está muito quente”

(Diário de Campo, 20 de novembro de 2013). A situação é aceita e conhecida por ambas as

partes e não há nenhum documento oficial que expresse tal acordo entre as professoras e os

usuários; estes reconhecem, junto às professoras, os perigos que o sol e suas altas

temperaturas podem causar à saúde. As professoras evidenciam em suas falas e repetem, com

certo mal-estar: “Expostas ao sol dessa forma, não temos como trabalhar. Isso faz mal aos

alunos também” (Diário de Campo, 20 de novembro de 2013).

Visualizei com certa frequência a professora P1 repondo o protetor solar em sua face,

cuidado tomado por ela, independentemente da “situação estrutural” da Academia, que às

vezes fica sem cobertura durante meses. Durante sua entrevista, P1 confirmou a doação do

protetor solar feita pela SEMESP para ela e para a outra professora da Academia, mas, com

uma significativa observação: “Ganhamos! Não de qualidade, mas, ganhamos (risos)! Não de

qualidade porque já foi comprovado. Eu usei um tempo e tive a pele manchada, tive que fazer

tratamento posterior por conta da questão das manchas adquiridas com o uso do protetor

solar”.

Diante dessas situações, iniciei, naquele dia, algumas falas junto às professoras sobre a

necessidade (ou não) de conversar com os alunos sobre questões acerca da saúde e seus

desdobramentos para a vida do homem. Por vários dias, conversamos sobre ideias que

pudessem ser tratadas junto aos alunos, em momento adequado na própria Academia. Mas, a

princípio, registrei a falta de tempo que as professoras têm para conversar, de forma mais

detalhada, com os usuários.

A dinâmica da Academia não facilita o “contato informativo” de modo a extrapolar as

orientações sobre a musculação em si, ou mesmo, sobre o treino individual dos usuários. Para

a professora P2:

Essa possibilidade de conversar com eles (alunos) com calma faz falta, pois não

podemos parar de atender na musculação para „fechar‟ um grupo e discutir algumas

questões sobre saúde, alimentação etc. Saber o que eles pensam sobre isso é muito

interessante também. Sabemos da importância de atender bem os alunos. Conversar!

A nossa atenção varia de acordo com o número de usuários presentes nas aulas. A

gente tem que dar conta (Diário de Campo, 20 de novembro de 2013).

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A atenção, ou mesmo, os cuidados que as professoras desenvolvem a partir dessa

deficiência estrutural/organizacional da Academia pode ser visualizada durante os momentos

nos quais o aquecimento, a musculação e o alongamento são feitos, uma vez que elas

aproveitam o contato durante essas atividades físicas para estabelecer com os usuários algum

tipo de conversa acerca de assuntos relacionados, também, à promoção da saúde. Ou seja, o

“contato informativo” não é facilitado pela dinâmica da Academia, mas não deixa de

acontecer de acordo com as ações das professoras.

Tal característica de intervenção corrobora, a meu ver, o aspecto da sociabilidade

naquele lugar, pois, as professoras criam meios para que o contato entre elas e os usuários se

intensifique nos diversos momentos de suas intervenções. Sendo assim, essas ações

caminham no sentido de facilitar o estabelecimento de vínculos entre os sujeitos da Academia

Popular.

A dinâmica do dia-a-dia que caracteriza a Academia pode ser mais bem compreendida

ao pensarmos na questão referente à sociabilidade. A despeito do “contato informativo”

possível ou não, alguns vínculos acontecem naquele ambiente nos momentos organizados

para a prática da musculação, configurando-o não somente como um local destinado à prática

de atividades físicas, mas possibilitando ao ambiente da Academia Popular uma nova forma

de ocupação. Esta, por sua vez, relaciona-se ao fator da sociabilidade que foi um elemento

que ocorreu como fator recorrente em minhas observações: “muito bate papo na Academia.

Os usuários e os profissionais interagem muito! (Diário de Campo, 5 de dezembro de 2013).

Em seguida farei a abordagem sobre o Projeto Político Pedagógico das Academias

Populares de Vitória, considerando algumas compreensões de sua efetivação no chão da

Academia, com relatos do diário de campo e das professoras.

1.2 AS ACADEMIAS POPULARES DE VITÓRIA: O PROJETO POLÍTICO

PEDAGÓGICO DAS ACADEMIAS DE VITÓRIA (PPPAV)

As ações de promoção da saúde se tornaram relevantes à população a partir das

mudanças ocorridas na forma de organização dos meios de produção econômica e,

consequentemente, da organização da sociedade. A integração dos vários órgãos e das

diversas instituições que compõem o funcionamento e a organização da vida social também é

fundamental para se promover saúde de forma ampla, objetivando atingir a maior parte

47

possível da população. De acordo com a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS),

para a promoção da saúde, é

[...] fundamental estabelecer parcerias com todos os setores da administração pública

(Educação, Meio ambiente, Agricultura, Trabalho, Indústria e Comércio, Transporte,

Direitos Humanos e outros), empresas, organizações não governamentais (ONG),

para induzir mudanças econômicas e ambientais que favoreçam políticas públicas

vinculadas à garantia de direitos de cidadania e à autonomia de sujeitos e

coletividades (MALTA, 2009, p. 81-82).

Ainda de acordo com o relatório da Política Nacional de Promoção da Saúde, os

modos de viver em sociedade, ou mesmo as relações sociais que se estabelecem entre os

variados sujeitos, devem ser considerados para entender e atender o homem e suas

necessidades. Dessa forma:

O modo de viver de homens e mulheres é entendido pela PNPS como produto e

produtor de transformações econômicas, políticas, sociais e culturais que alteraram e

alteram a vida em sociedade a uma velocidade cada vez maior, sem precedentes na

história. Ratificam-se as condições econômicas, sociais e políticas do existir, que

não devem ser tomadas, tão-somente, como meros contextos – para conhecimento e

possível intervenção na realidade – e sim como práticas sociais em si mesmas,

responsáveis por engendrar determinado domínio do saber e dar visibilidade a

conceitos, objetos, técnicas e modos de vida. Portanto, são as transformações da

sociedade, que implicam alterações na compreensão da saúde e nas estratégias para

trabalhar com ela, que fizeram emergir a questão da promoção da saúde na

sociedade (MALTA, 2009, p. 81).

Considerando as abordagens da PNPS referentes às políticas de promoção da saúde, a

Prefeitura de Vitória busca promover ações nesse sentido para o município, objetivando,

assim, melhorar a qualidade de vida dos sujeitos. Dentre as ações da prefeitura, encontramos

as Academias Populares instauradas em determinadas áreas que correspondem a regiões

expressivas (especialmente nos elementos social e territorial) do munícipio – bairros de Santo

Antônio (2006), São Pedro (2007) e Maruípe (2007).

Em conversa com as professoras da Academia, compreendi que, apesar de não

encontrarmos relações diretas (formais) entre o PPPAV e a PNPS, elas atuam na perspectiva

de promoção de saúde. Busquei informações nos sites da Prefeitura de Vitória, nas páginas da

SEMESP e da SEMUS e não encontrei alusões e/ou falas referenciando a PNPS; todavia,

nesses sites pude visualizar as ações de intervenção da prefeitura diante das comunidades do

município, objetivando a promoção de saúde nos variados espaços elaborados por ela para tal

finalidade. Em nota do diário de campo do dia 23 de julho de 2014, as professoras esclarecem

que:

48

Nós trabalhamos na perspectiva de promoção da saúde porque compreendemos a

Academia como sendo um ambiente feito para isso. Mas não encontramos relações

diretas [formais] entre os projetos da Academia e do governo federal acerca dessas

políticas de saúde. Talvez por isso, todo recurso que a gente pede para a Academia

demora a chegar. Se chegar!

O Projeto Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória revela o caráter

inclusivo de suas ideias no que se refere aos objetivos de sua implementação nas regiões

escolhidas, bem como à tentativa de atender, desse modo, a determinadas camadas sociais

mais humildes da população do município. O PPPAV “Tem caráter inclusivo e, por isso, os

locais de instalação das unidades foram escolhidos em função das regiões de vulnerabilidade

social da cidade” (PPPAV, 2008, p. 10). E, referindo-se à democratização desses espaços

públicos planejados para a sociedade como um todo (PPPAV, 2008, p. 3),

A democratização das academias populares pode ser percebida pelo convívio

harmonioso entre pessoas de diferentes classes sociais e idades, oferecendo à

população um local para o convívio, diversão, integração e saúde.

As Academias ao Ar Livre de Vitória, em especial as Academias Populares de Vitória,

correspondem às ações governamentais que caminham na tentativa de oferecer possibilidades

de acesso individual e coletivo aos meios possíveis de se obter saúde considerando aspectos

gerais da vida do indivíduo:

[...], o Projeto Político-Pedagógico das Academias Populares de Vitória-ES

(PPPAV), o qual irá orientar, a partir deste momento, a política de gestão e

promoção de saúde pública dentro de uma visão global do ser humano. Expressa o

esforço coletivo na busca da ruptura com as práticas corporais de natureza

essencialmente mecanicistas e pouco inclusivas, conduzindo o processo de

promoção da saúde da população, não somente pelo aspecto fisiológico, mas,

principalmente, pela complexidade do indivíduo e de suas vivências cognitivas,

culturais e emocionais (PPPAV, 2008, p. 2-3).

As Academias Populares correspondem a espaços públicos que foram elaborados a

partir da consideração acerca da necessidade de intervir no social para beneficiar os modos de

viver do homem e, consequentemente, sua saúde. Estes ambientes oferecem possibilidades

para que o indivíduo busque atividades físicas e adquira orientações para a conquista e/ou

manutenção de sua saúde:

O Projeto „Academia Popular de Vitória‟ é uma proposta que possibilita a prática de

exercícios físicos à população, fornecendo elementos que contribuam para a

49

aprendizagem efetiva e transformadora de hábitos de vida saudável (PPPVA, 2008,

p. 13).

Tratando-se, ainda, de espaços pensados especificamente para a promoção da saúde,

eles oferecem profissionais que podem auxiliar os praticantes na busca por hábitos de vida

saudáveis. São atribuídas ao profissional de Educação Física algumas responsabilidades,

compreendidas, segundo o PPPVA, como responsabilidades gerais, tais como:

Planejar, supervisionar, executar, orientar, e acompanhar a prática do exercício

sistematizado individual ou coletivo, aplicando a triagem para avaliação funcional,

identificando fatores de risco cardiovasculares e metabólicos nos usuários, bem

como planejar, coordenar e participar de intervenções educacionais de medidas

preventivas visando os cuidados com a saúde da população (PPPVA, 2008, p. 17).

O projeto também nos mostra, de forma diversificada, como a Prefeitura

pensa/interpreta o homem e a sua saúde para, assim, realizar as tentativas de intervenção

sobre ele. O projeto faz referências que visam novos e reflexivos conceitos e/ou dimensões

sobre o homem e sua dinâmica de vida, saúde e bem-estar.

No Projeto Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória, encontramos

alusões sobre as novas formas de organização do homem na sociedade, as quais ampliam e

discursam sobre os fatores que influenciam, direta ou indiretamente, o bem-estar do

indivíduo. Além disso, a caracterização do homem em sua dimensão holística é considerada

aspecto primordial para as ações que norteiam a prática implementada nesses espaços,

resultante das ideias que compõem o projeto. Para tanto, o ideal de saúde ampliada é

considerado ao se pensar na efetivação das políticas públicas em prol da promoção de saúde.

Portanto:

Por estes conceitos ampliados de saúde, fica evidente a necessidade de se criar

Políticas Públicas voltadas à melhoria da qualidade de vida pela promoção da saúde.

A visão do Projeto Político-pedagógico das Academias Populares de Vitória baseia-

se, portanto, no Ser Humano, complexo e sem dicotomias, em que Corpo, Mente,

Emoção e Espírito se interagem constantemente na busca pelo equilíbrio e bem-estar

do organismo (PPPAV, 2008, p. 6).

Para a professora P1, o PPPAV traz uma visão ampliada acerca da dimensão do

homem e dos elementos necessários na constituição do seu dia-a-dia. Mas P1 aponta

dificuldades, a partir de suas considerações, relacionadas à falta de profissionais específicos

para determinadas intervenções na Academia. Ou seja, o projeto das Academias considera a

questão holística acerca do homem, ou mesmo traz essa tentativa de intervenção para

Academia Popular, mas, em sua efetivação, o desenvolvimento sobre essas considerações

50

existentes no PPPAV não acontece de uma forma geral. Acredita também que o projeto da

Academia deveria ter/apresentar uma ação mais presente na comunidade de Santo Antônio.

Nas palavras de P1:

[...] o projeto foi passado que seria uma visão holística do aluno... Atendê-lo como

um todo! Mas assim... É complicado. A gente tenta trazer a principal parte que é a

questão do treinamento resistido, que é a proposta da Academia Popular. Pelo menos

essa parte está sendo bem atendida! Agora, as outras questões... A questão

psicológica, eu não vejo assim! A questão social, um pouco, mas muito deficiente.

Porque a gente não vê essa questão. [...] a questão da integração com a comunidade,

mesmo, como um todo... É o aluno que vem! Mas assim... O próprio projeto que

teria que estar chegando na comunidade... E estar tendo uma ação constante dentro

da comunidade. Não existe!

P1 relata também a falta da avaliação do projeto pelos usuários. Tal situação não faz

parte das ações da SEMESP nem da própria Academia, mas P1 acredita que o retorno acerca

do funcionamento da Academia seria relevante para melhorar as intervenções sobre ela,

considerando, dessa forma, algumas necessidades/intencionalidades mais específicas dos

usuários – desconhecidas pelos profissionais – ao frequentar a Academia. Sobre a avaliação

do projeto, para P1,

[...] uma troca de experiência, mudanças que a gente poderia estar fazendo pra

adequar melhor o atendimento, estar satisfazendo melhor a comunidade, chamar a

própria comunidade pra estar fazendo uma avaliação... Como está a Academia?

Como a gente pode estar mudando? [...] isso seria interessante porque a gente

veria... „Ah, não está bom assim!‟. O que a gente poderia estar fazendo pra mudar?

Como isso pode ser melhorado? A questão da avaliação, não só a questão da

avaliação física que já falamos sobre ela, mas a avaliação do próprio serviço em si...

Como está isso? A gente vê reclamações de um ou outro... Relação à cobertura,

relação ao piso... Mais a questão estrutural! Às vezes a questão do horário, a questão

da toalha [...].

Essa compreensão mais ampliada de saúde, presente no PPPAV, convive com um

discurso que enfatiza a importância da atividade física para a saúde do homem. Saúde que

está referenciada e/ou expressa por meio de índices e taxas metabólicas pertencentes aos

determinados parâmetros/padrões biológicos: “[...] Os exercícios em geral tendem a melhorar

a composição sanguínea, normalizando os níveis de glicose, gorduras e diversas outras

substâncias, que podem estar alterados e trazer riscos aos portadores” (PPPAV, 2008, p. 6,

grifo do documento).

A crença da melhoria da qualidade de vida atrelada, essencialmente, à prática de

atividades físicas é outra característica presente no projeto, tratando como verdade que “O

desenvolvimento de novos hábitos, com uma ênfase maior na prática de atividades físicas, é

51

um passo fundamental para a melhoria generalizada da saúde orgânica e, consequentemente,

da qualidade de vida” (PPPAV, 2008, p. 6). Termos como “especialistas” ou “órgãos

especializados”, “bem-estar” e “qualidade de vida” não são problematizados ao longo do

projeto.

O ideal de corpo condicionado às práticas de atividades físicas para, assim, apresentar-

se saudável, assim como o combate ao envelhecimento são elementos abordados pelo PPPAV

que nos mostram, novamente, sua condição eclética no pensar o homem e suas possíveis

“configurações” de saúde. As “partes” do corpo humano e sua consequente forma são

acompanhadas pela ideia de divisão segundo a qual o corpo humano pode ser compreendido;

o texto vale-se de falas de Hipócrates6 para evidenciar tal concepção: “Toda parte do corpo se

tornará sadia, bem desenvolvida e com envelhecimento lento se exercitada; no entanto, se não

forem exercitadas, tais partes se tornarão suscetíveis a doenças, deficientes no crescimento e

envelhecerão precocemente” (PPPAV, 2008, p. 6).

Compreendendo o caráter diversificado e/ou eclético no discurso do PPPAV, em

relação aos conceitos relacionados à busca e à manutenção da saúde, bem como a suas

implicações sociais, busquei atentar-me, também, às ações dos professores na Academia, uma

vez que essa diversificação conceitual poderia dar-lhes variadas possibilidades para suas

ações profissionais junto aos alunos. As abordagens biológica e social sobre o homem que

permeiam o PPPAV permitiram-me buscar, a partir das manifestações dos professores na

Academia Popular, compreensões acerca dos saberes/conhecimentos a eles necessários para a

realização de suas intervenções nesse ambiente.

6 Hipócrates de Cós: considerado o “pai da Medicina”, viveu no século V a.C.; de reputação tão elevada, seus

textos sobre Medicina vigoraram pela posteridade. Fonte: http://warj.med.br/pdf/hipocrates.pdf, acessado em

10/06/2015.

52

2 ACADEMIAS DE MUSCULAÇÃO E DE GINÁSTICA: A HISTÓRIA NO BRASIL

As academias são historicamente conhecidas no Brasil desde o ano de 1893.

Atividades como natação (São Luís-MA, 1893), lutas (Belém-PA, 1914), judô (Rio de

Janeiro-RJ, 1930) e aquelas ligadas diretamente à prática de halterofilismo7 eram encontradas,

até 1930, principalmente em grandes capitais brasileiras próximas ao litoral, com destaque

para as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. A partir de 1950, houve uma expansão das

academias para cidades de médio porte e interiores do País. Até o ano de 1940, os espaços

direcionados às práticas de atividades físicas ainda não apresentavam o modelo de academia

tal qual conhecemos, de modo que “[...] foi a partir de 1940 que o modelo de academias de

ginástica existente atualmente, com base na ginástica, lutas e halterofilismo ou culturismo se

delineou” (CAPINUSSÚ, 2006 apud FURTADO, 2009, p. 2).

As mudanças que ocorreram nos modelos de academias de ginástica no Brasil podem

ser divididas8 em três estágios de desenvolvimento diferentes, considerando, sobretudo, o

fator “racionalização” (FURTADO, 2009) da/na produção que foi inserido no ambiente das

academias. Com o avanço da “racionalização” sobre esses ambientes, a organização dos

modos de administrar e pensar a academia passou a corresponder a uma determinada

configuração mercadológica e, para elas, iniciou-se um movimento de investimentos

financeiros visando, de forma ampla, a lucratividade na oferta de produtos e serviços

relacionados à prática da atividade física. Assim, podemos visualizar tal evolução do seguinte

modo:

Um estágio inicial caracterizado pela afinidade com a área, como principal

motivação para a implementação das academias. Por isso, a administração empírica,

amadora ou do senso comum preponderava.

Um segundo estágio, caracterizado pela mescla entre a afinidade com a área e a

inserção das tecnologias da administração em busca de lucros, surgido,

principalmente, a partir dos anos 80.

E um terceiro estágio, onde as mais avançadas tecnologias dos instrumentos de

produção e da gestão são encontradas nas academias. Há presença da micro-

eletrônica nos instrumentos e das mais diversas teorias administrativas de gestão de

recursos humanos, de marketing, financeira e contábil, configurando a

racionalização nas academias (FURTADO, 2009, p. 5).

7 Halterofilismo: atividade na qual o praticante levanta grande quantidade de peso. Nessa atividade física, o

praticante não utiliza trajes de banho; os trajes de banho são referentes à bermuda ou sunga para homens e

biquíni, maiô e tanga para mulheres. Esses trajes são utilizados na prática do fisiculturismo, que corresponde

somente à exibição da forma corporal.

8 Essa divisão corresponde à organização meramente didática referente às mudanças ocorridas nas academias de

ginástica e musculação.

53

As academias que inicialmente eram organizadas em ambientes elaborados para a

oferta de uma determinada atividade física passaram, durante os três estágios, a ofertar, em

seus espaços, variados tipos de atividades como a musculação e a ginástica. Ou seja, os

ambientes foram reconfigurados para que houvesse a possibilidade de ofertar ao público uma

variedade de atividades físicas em uma mesma academia. Essa mudança ocorreu ao final da

década de 1980.

Até o ano de 1980, podemos citar algumas características correspondentes ao estágio 1

do desenvolvimento das academias de ginástica e musculação, como: considerável ausência

da busca pela lucratividade atrelada ao mercado das academias; a motivação para a prática do

halterofilismo relacionada à rivalidade entre os atletas da área, em detrimento do retorno

financeiro que a prática poderia dar ao atleta; os proprietários das academias eram,

normalmente, ligados às atividades das mesmas, como profissionais da Educação Física e

praticantes do halterofilismo.

Essa prática acontecia desarticulada das questões mercadológicas que vieram, mais

tarde, a embasar o funcionamento/objetivos das academias de ginástica e musculação. É

característica desse estágio, ainda, a pouca estruturação do ambiente das academias, de forma

a não se prestar ao exercício de atividades distintas em um mesmo local. Diante disso, a meu

ver, considero que a Academia Popular ainda guarda diversas características deste primeiro

estágio, uma vez que, em seu ambiente, a atividade física quase unicamente praticada é a

musculação, prática que ocorre desligada dos aspectos mercadológicos que incentivam o

consumo de produtos e serviços diversos, relacionados não somente à prática da musculação,

mas, também à busca desenfreada pela beleza e pela estética corporal, tão elevadas

socialmente.

Ao final dos anos de 1980, houve um aumento de público que aderiu à prática do

halterofilismo, o que se deveu a fatores que serviram como meios de divulgação dessa prática,

como a ocorrência de campeonatos (municipais, estaduais e internacionais), bem como a

inserção do Brasil no cenário mundial do halterofilismo – em 1978, o País filia-se a

International Federation of Body Builders e a outras entidades internacionais da modalidade

(FURTADO, 2009).

Nessa época, a ginástica, por sua vez, passou a ser praticada de forma significativa

pelo público feminino, sendo a mídia colaboradora para esse fator, uma vez que iniciou seu

papel na divulgação de tal prática. Segundo Nolasco et al., apud Furtado (2009, p. 3): “A

organização do espaço e do trabalho foi se modificando. No mesmo período, há um novo

54

impulso às academias de ginástica oriundo da ginástica aeróbica e sua principal divulgadora, a

atriz Jane Fonda”.

Com a ocorrência de tais circunstâncias, houve a formação de novos grupos de pessoas

consumidoras dos serviços das academias de ginástica, as quais, por sua vez, adotaram novos

aparatos para atender a esse novo mercado e ampliá-lo. Nesse contexto, a partir de 1980,

delineia-se o chamado estágio 2 das mudanças estruturais e administrativas das academias.

Quanto aos aspectos do estágio 2 do desenvolvimento das academias, relaciono-os

com a Academia Popular, principalmente, pelo traço característico referente ao ambiente

estruturado para a prática da musculação adaptada a um público feminino. Além do público

feminino, considero um ambiente estruturado também para faixas etárias variadas

(adolescentes, jovens e idosos). E mais uma vez, não vejo correspondência entre a Academia

Popular e os aspectos racionais pensados para o mercado consumidor atrelando-o à prática da

musculação, característica que se iniciou no referido estágio 2 do desenvolvimento das

academias.

As academias passaram, então, a buscar atingir um novo público “consumidor” para os

serviços que ofereciam, e novos objetivos mercadológicos, financeiros e de consumo deram

uma nova configuração aos espaços e anseios das academias. A partir de 1980, os espaços

organizados para a prática da ginástica e musculação receberam o nome, de forma definitiva,

de “academia”, mesmo já havendo alguns centros e institutos pensados para essas práticas.

Essa denominação significou a mudança no pensar a atividade física e sua relação com o

público:

O termo musculação passou a substituir o halterofilismo, visando abranger um

público maior de pessoas que não praticavam a modalidade por competição ou para

construir corpos com grande hipertrofia da musculatura. Assim, as academias que

surgiram a partir de meados de 1980 já apresentavam mudanças em seus nomes,

acompanhando a essa mudança de atendimento de necessidades do público. Ao

invés de nomes como „Músculo e Poder‟, „Academia do Tarzan‟, „Centros de

Fisiculturismo‟ e outros que buscavam demonstrar imponência e faziam referência

ao halterofilismo, começam a surgir nomes que evidenciam mais a ginástica e/ou a

musculação (FURTADO, 2009, p. 4).

Nesse estágio, o ambiente das academias foi (re)elaborado com a implantação de

máquinas e aparelhos adaptados para praticantes de musculação; a prática da musculação

passou a ser adotada, também, por mulheres; houve a inserção da ginástica aeróbica nas

academias e a divisão do trabalho entre os profissionais da musculação e de outras

modalidades. O desenvolvimento de teorias administrativas para as academias marcou a

idealização desses espaços como um negócio lucrativo.

55

A partir dos anos de 1990, o estágio 3 do desenvolvimento das academias, ocorreu a

chegada do Body Systems ao Brasil, que trouxe um diversificado conjunto de aulas pré-

coreografadas ou prontas, impactando o mercado brasileiro de produtos e serviços de

academias de ginástica lançados para consumo, bem como a variedade de modalidades de

atividades que passaram a ser disponibilizadas/vendidas aos sujeitos. Com o desenvolvimento

estrutural e com o avanço dos aspectos econômicos nesse setor, notamos a evolução das

academias em suas abordagens administrativas, diante de um mercado que crescia

significativamente.

O ideal de acumulação de capital, investimentos e retorno financeiro é, então, trazido

para a realidade das academias. Para tanto, a organização do trabalho nesses espaços passa a

incorporar técnicas e teorias administrativas essenciais ao funcionamento das academias ao

longo desses três estágios de mudanças referenciados acima.

Nesse contexto, modificam-se também os sentidos/significados atrelados ao ambiente

das academias. Adotaram-se ideais que passaram a priorizar a busca por saúde, qualidade de

vida, bem-estar, dentre outros fatores, por meio, essencialmente, da prática da atividade física.

Dessa forma, as academias privadas de ginástica objetivam conquistar, cada vez mais, um

número maior de pessoas interessadas nos seus serviços e produtos.

Diante de tais circunstâncias, o aumento do capital pelas academias torna-se

consequência, também, de um conjunto de falas/discursos que dão à prática da atividade física

um novo rosto ou, mesmo uma máscara, com significados relacionados a possibilidades de se

atingir os elementos de uma saúde plena e ideal para o ser humano, não colocando em

evidência, como outrora, a beleza e a estética corporal. Segundo Castro9 (2003, p. 35),

Durante os anos 90, todos os setores da economia envolvidos com a produção e/ou

manutenção da beleza experimentaram significativo crescimento. O setor

responsável pela fabricação dos produtos de higiene pessoal, cosméticos e

perfumaria, um dos principais filões da indústria da beleza, no período de 1991 a

1995, acumula um crescimento de 126,6% [...].

O estágio 3 do desenvolvimento das academias encontra-se distante da realidade em

que se encontra a Academia Popular. Todo esse arsenal de estrutura e mercado de produtos e

serviços estéticos voltados para o público não ocorre no ambiente estudado. E o próprio

9 Ana Lúcia de Castro (2003) realizou um estudo em três academias de ginástica e musculação (dentre outras

atividades) na cidade de São Paulo. As academias eram de grande e pequeno porte (considerando-se, para essa

classificação, o número de alunos e a área em m² da academia). O livro, intitulado Culto ao Corpo e Sociedade:

mídia, estilos de vida e cultura de consumo, teve como sua ideia norteadora “inquietação”: “quais as motivações

para os indivíduos estarem, cada vez mais, preocupados com a apresentação e a forma de seus corpos?”

(CASTRO, 2003, p. 15).

56

ambiente não corresponde à densa estrutura de aparelhos, serviços e oferta de atividades

físicas que são adotadas pelas maiores e mais desenvolvidas academias de ginástica.

O que passamos a encontrar, principalmente, a partir do estágio 3 das academias

privadas, são discursos que elucidam a importância do bem-estar como um todo, abordando

cada vez menos os ideais do fitness para a prática da atividade física. Dessa forma, o exercício

sistematizado com ênfase no delineamento e/ou na definição dos músculos, bem como no

desenvolvimento contínuo de uma estética corporal, parecem dar espaço à busca voltada

essencialmente à qualidade de vida e a suas consequências positivas para a vida do homem.

A partir desses discursos, o entrelaçamento entre os ideais de “saúde”, “qualidade de

vida”, “bem-estar” e a estética corporal foram intensificados na sociedade, uma vez que “A

beleza passa a ser significada como saúde e, assim, os indivíduos vão sendo oprimidos na

busca do modelo que os tornem „saudáveis‟ (SUDO; LUZ, 2007 apud SALLES; SANTOS,

2009, p. 88)”.

Com o uso de termos acerca das ideias sobre curar e sarar, por exemplo, podemos

encontrar alguns aspectos sobre os vínculos e/ou as relações entre o corpo modelado/malhado

e a saúde do homem, já que,

Esse vínculo entre saúde e beleza, fica bem explicito no uso do termo: „sarado‟, um

adjetivo que deriva do verbo „sarar‟, ou seja, „recobrar a saúde‟ ou „curar uma

ferida‟, mas que foi ressignificado para „corpo modelado‟ ou „corpo musculoso‟

(SALLES; SANTOS, 2009, p. 88,).

Tais discursos funcionam como um elemento de camuflagem ao tratamento dado à

prática da atividade física, não sendo esta primordialmente atrelada à busca pela beleza

corporal, mas sim ligada, fundamentalmente, à busca pela saúde. Nesse ponto, Santa‟Anna

(2003, p. 72), ao analisar alguns discursos da mídia impressa e considerar depoimentos de

frequentadores de academias, afirmou que

[...] os discursos sobre a saúde e a estética continuam indissociáveis e convergem

para um mesmo ponto: a importância da atividade física, como aponta a análise das

revistas estudadas e os depoimentos dos frequentadores das academias de ginástica,

sendo alimentado, ainda, pelo discurso médico.

Nesse contexto, “[...] o wellness „fortalece-se, aumentando cada vez mais a

participação e a manutenção saudável de pessoas em programas de exercícios físicos‟”

(SABA, 2006, apud FURTADO, 2009, p. 8). Em tal âmbito,

57

O wellness engloba o fitness. O conceito de wellness embora negue o conceito de

fitness, também é composto por ele. O condicionamento físico não deixa de ser

enfatizado, porém, é trabalhado em perspectivas mais amplas visando à qualidade de

vida e bem-estar. A estética não deixa de ser enfatizada, porém, é levada em

consideração a saúde nessa busca pela estética (FURTADO, 2009, p. 8).

A importância dada a esses fatores para a construção de estilos de vida saudáveis

ganha espaço, também, nos discursos e projetos diversos dos setores públicos ligados aos

cuidados da saúde do homem. Podemos encontrar esses discursos vinculados a termos como

“bem-estar” e “qualidade de vida”. Estes foram adotados por órgãos públicos na elaboração

de documentos que baseiam suas dinâmicas de gestão política, uma vez que medidas

relacionadas à promoção da saúde vêm ganhando espaço dentro dos planejamentos e da

efetivação dos projetos direcionados à população, como é o caso da Academia Popular de

Santo Antônio.

Considerando os três estágios de desenvolvimento das academias de ginástica e

musculação no Brasil e associando-os à realidade da Academia Popular, percebe-se que esta

apresenta características em comum com determinados elementos dessa evolução. A

observação nos revela, por outro lado, o distanciamento entre a configuração e a dinâmica que

ocorrem no ambiente da Academia Popular e a faceta que, progressivamente, assumiram as

academias a partir dos ideais essencialmente mercadológicos/financeiros que embasaram,

principalmente, o estágio 3 do seu desenvolvimento.

2.1 ACADEMIAS PRIVADAS DE MUSCULAÇÃO X ACADEMIA POPULAR:

ALGUMAS DIFERENÇAS

Estudos que têm como lócus de observação os espaços privados para a prática de

ginástica e musculação são frequentemente desenvolvidos, como os de Castro (2003), Cesaro

(2012) e Hansen e Vaz (2004, 2006). Em contrapartida, em relação aos espaços públicos, em

especial o das Academias Populares, vê-se pouco desenvolvimento de problematizações e,

consequente, de investigação. Diante disso, a seguir, apontarei diferenças entre o ambiente e a

dinâmica das academias privadas de musculação e da Academia Popular.

Utilizo, fundamentalmente, neste capítulo, Vaz e Hansen (2004, 2006) para as

reflexões e contrapontos entre esses ambientes, pois, a meu ver, as características e

considerações apontadas pelos autores atendem aos aspectos diferenciadores primordiais

existentes entre as academias privadas de musculação e a Academia Popular de Santo

Antônio.

58

Tratando-se de espaços públicos destinados a práticas de atividades físicas, dentre elas

a musculação, identifiquei em meu lócus de pesquisa caraterísticas marcantes que evidenciam

as diferenças entre as academias privadas de musculação e a Academia Popular. Acredito,

desse modo, ser um momento oportuno para (re)pensarmos as dinâmicas, as ações e os

sujeitos envolvidos no processo de promoção da saúde em ambientes públicos e/ou privados.

As academias referidas por Vaz e Hansen (2006, p. 136-137) são classificadas como

“Grande Academia” e “Pequena Academia” e diferenciam-se em estrutura e organização de

seus espaços e pessoas. Dessa forma, “A Pequena Academia consiste em uma única sala de

362 m2, metade deles destinada à musculação e a outra à ginástica. Não há parede divisória,

mas alguns aparelhos de musculação delimitam o espaço para cada atividade”.

A “Grande Academia” referenciada por Vaz e Hansen (2006, p. 138) possui

[...] características muito singulares. Trata-se de um portentoso centro de fitness no

qual os cuidados com os mais ínfimos detalhes são observados [...]. O fato de a

organização da academia ser feita por uma empresa especializada, a extrema

organização dos espaços e das máquinas, que jamais mudam um centímetro sequer

de lugar, a alta tecnologia empregada nos aparelhos, considerados os mais

sofisticados do mercado, a limpeza impecável da sala, tudo isso confere ao ambiente

uma sensação de assepsia e „perfeição‟.

Ao corresponder, ou se enquadrar, às particularidades presentes no ambiente da

“Grande Academia”, classifica-se o sujeito, por exemplo, de acordo com sua estrutura

muscular. Esta é colocada em evidência ao se pensar na classificação a que o sujeito

corresponderá em consequência de sua forma muscular “avantajada”, “ideal” ou “comum”,

medida em relação aos padrões estéticos corporais que permeiam o ambiente da academia. O

sujeito é hierarquicamente pensado como sendo um dos “[...] três personagens que cabem aos

homens e também às mulheres, na seguinte ordem: os fisiculturistas, os veteranos e os

comuns” (SABINO, 2002, apud VAZ; HANSEN, 2006, p. 139).

Na Academia Popular, tal situação não foi identificada por mim. Essa classificação, ou

mesmo essa divisão entre os homens e mulheres de acordo com sua “forma” corporal, não

corresponde ao modo como os usuários se organizam durante sua prática de musculação e,

consequente, durante a ocupação do ambiente da Academia. Em nota no diário de campo de

22 de agosto de 2014, registrei que “[...] os grupos que se organizam de acordo com os

horários para a prática da musculação, são misturados: adolescentes, jovens, adultos e idosos.

Vejo pessoas com características corporais variadas”.

59

Outras considerações também são possíveis em relação à aparência do sujeito

frequentador das academias privadas, de acordo, por exemplo, com suas roupas. “Todas as

mulheres, independentemente da faixa etária, usam roupas próprias para ginástica. São roupas

„modernas‟, muitas vezes de grifes famosas” e “Os homens das mais diversas faixas etárias

usam bermudas, regatas e camisetas justas nos braços e no peito. Tanto homens quanto

mulheres usam calçados novos” (HANSEN; VAZ, 2006, p. 140). Soma-se a isso o poderio

econômico do público, que é refletido na possibilidade de “adquirir” a beleza por meio,

também, de tratamentos estéticos e/ou intervenções cirúrgicas. Dessa forma, “A beleza é um

conjunto de bens que podem ser adquiridos, e o grau de embelezamento parece ser

diretamente proporcional ao poderio financeiro de cada um” (HANSEN; VAZ, 2006, p. 146).

E considerando os significados atribuídos à beleza estética corporal “adquirida”, encontramos

nas relações sociais o fator “aceitação” do indivíduo, a partir de sua aparência e dos cuidados

que ele toma com ela, uma vez que “Cuidar da aparência gera muitos dividendos, simbólicos

e materiais, na medida em que um corpo bem cuidado pode garantir ao indivíduo melhor

performance e aceitação social” (CASTRO, 2003, p. 71).

Como podemos notar, a roupa é um dos elementos marcantes na composição dos

possíveis significados que caracterizam os sujeitos nas academias. Na Academia Popular, foi

um fator que observei muito: os homens usam roupas discretas, sem dizeres de incentivos aos

atos árduos da prática da musculação, ali aparentemente entendidos como confortáveis, e as

mulheres, por sua vez, não utilizavam roupas que marcassem as suas formas corporais. Em

entrevista, U4 fala sobre sua preocupação em não chamar a atenção; desse modo, ela nos diz

que: “Olha... Com a roupa eu me preocupo, porque eu não gosto de nada chamativo... Aí eu

preocupo nessa parte!”. Para U2, comprar roupas específicas para malhar é algo que ele não

tem o hábito de fazer: “Não... Normal! Eu uso roupa normal! Pego uma bermuda, pego uma

camiseta e num tem dengo não!”.

Não se limitando às roupas usadas para a prática da musculação, o usuário U1 foi além

e referiu-se também aos acessórios de que alguns fazem uso de por buscarem “chamar” a

atenção ou se exibir. Tais atitudes não são adotadas por ele, pois, em suas próprias palavras:

Eu me sinto livre! Acho que não há necessidade de você comprar roupas pra você

vim malhar. Cordão vai te ajudar em que? O relógio e o cordão? Às vezes você

bota... Até mesmo o celular, você vai trazer o celular pra quê? É pra você se exibir, é

pra dizer que você tem! [...] Agora, tem umas pessoas que têm uma necessidade de

vim com aqueles cordãozões pesadão... Relojão! É pra se exibir, pra dizer que tem,

pra poder chamar a atenção. [...] tem umas pessoas que se preocupa em comprar

uma roupa... Que não é o meu caso. [...] pessoal só quer comprar roupa apertada pra

60

poder mostrar o que você tem. Tá entendendo? Mas eu não preocupo não... Sou

natural!

No diário de campo de 20 de novembro de 2013, utilizei poucas palavras para traduzir

o que eu compreendi acerca das roupas, dos acessórios e dos tênis de que os sujeitos da

Academia faziam uso: “Discrição! Simples assim”.

Para a professora P2, há no ambiente da Academia uma sensação de liberdade no ou

para o comportamento dos sujeitos. Liberdade relacionada ao que não é necessário vestir ou

fazer para realizar o “treino”. E foi objetiva ao revelar sobre a questão da competição, prática

comum em academias particulares:

Aqui não tem aquele desfile de moda que academia particular geralmente tem. Aqui

não tem aquilo de um estar competindo com o outro para ver quem está „crescendo‟

mais rápido... Quem está tomando o melhor suplemento. Aqui não existe nada disso!

As pessoas parecem que se libertam disso aqui dentro.

No processo de produção de seus corpos, homens e mulheres, geralmente,

diferenciam-se na prioridade dada às suas partes corporais, que parecem ser cada vez mais

divididas para que haja uma intervenção mais intensa sobre elas durante a prática da

musculação e da ginástica. A busca por uma forma corporal ideal torna-se contínua e intensa

em nossa sociedade, pois, “Na contemporaneidade, presenciamos a tendência à

supervalorização da aparência corporal, que leva os indivíduos a uma busca frenética pela

forma e volume corporal ideais” (CASTRO, 2003, p. 66). O fator estético corporal dentro da

Academia Popular, a meu ver, ultrapassa esses ideais que correspondem, diretamente, a uma

busca “frenética” pela beleza do corpo. Para P2, pensar na beleza corporal a partir dos

usuários é compreender que a “beleza vem como consequência [da “liberdade” dentro da

Academia] disso tudo. Se acontecer, bem... Se não acontecer... eu quero estar nesse ambiente.

O importante é isso!”.

Hansen e Vaz (2004) nos trazem a reflexão acerca do corpo como sendo um “vetor”

contemporâneo de construção subjetiva e de identidade do sujeito. Corroborando essa ideia,

encontramos em Cesaro (2012) a afirmação de que

[...] Um corpo „malhado‟, „sarado‟ não apenas mostra seus músculos bem

desenvolvidos, também carrega outras marcas, outros signos: assim como a orelha

ralada identifica os pit-boys que praticam jiu-jitsu (FRAGA, 2001 apud CESARO,

2012, p. 32).

61

Tal aspecto compreende uma característica de nossa sociedade em relação aos ideais

do culto ao corpo, que, segundo Castro (2003, p. 74), “[...] remete à possibilidade de

construção de um estilo de vida, afirmação de identidade [...]”. A busca e/ou a conquista da

beleza estética do corpo por meio da prática da musculação e de outras práticas direcionadas à

esse fim revela-se equivaler a um dos artefatos cabíveis ao processo das relações existentes

entre os sujeitos e os diversos ambientes que o fazem acontecer.

O tipo e a disposição do maquinário para a prática da musculação nas academias nos

mostram como ao corpo é direcionada a possibilidade de investimentos específicos para suas

áreas específicas. Tronco, braços, abdômen, glúteos, pernas e panturrilhas são exemplos de

partes do corpo que se tornam focos na e para a organização do ambiente das academias

privadas, uma vez que as máquinas são agrupadas por “regiões corporais”, otimizando, assim,

o treino do sujeito. Para esses cuidados mais específicos, são incluídas também aulas de

danças e/ou de ginástica. Essas práticas, junto à musculação, priorizam certas regiões do

corpo em detrimento de outras, de acordo com o sexo do indivíduo. Assim sendo,

As mulheres preocupam-se acima de tudo com a barriga – região onde qualquer

resquício de gordura deve ser eliminado – com o volume dos seios, com a

hipertrofia e delineamento das coxas, das pernas e, principalmente, das nádegas. [...].

Os homens, por sua vez, almejam, sobretudo, aumentar o volume muscular –

principalmente o dos membros superiores – e diminuir o percentual de gordura

(HANSEN; VAZ, 2006, p. 143-144).

A estrutura das academias parece colaborar para uma determinada pressão sobre os

sujeitos durante os treinos. O espelho, que geralmente é disposto nas paredes da academia

para a musculação, coloca os sujeitos diante de si em tempo constante. O olhar sobre si e

sobre o outro é demasiadamente evidenciado no processo da busca pelo corpo perfeito, pois a

beleza estética em sua plenitude é o principal objetivo do praticante de musculação das

academias privadas. Castro (2003, p. 71) nos revela que “O grupo de musculação preocupa-

se, acima de tudo, com a beleza de seus corpos. [...] este é o único grupo que assume

claramente a preocupação estética como principal motivação para a frequência regular à

academia”. Junto ao elemento espelho, a balança também corresponde a mais um artifício de

vigilância e/ou lembrança dos objetivos corporais a serem alcançados.

As academias privadas, diante desse contexto, colaboram para um modelo de

construção de corpos localizados dentro de um padrão estético contemporaneamente elevado:

“As academias de ginástica e musculação conjugam-se com um vasto repertório de práticas e

62

técnicas que contemporaneamente se acercam e produzem o corpo de mulheres e homens”

(HANSEN; VAZ, 2006, p. 133).

Os números desejados para o peso, e o manequim desejado por homens e mulheres

ficam quase que totalmente a cargo do olhar vigilante e sistemático com os movimentos

realizados durante a musculação. Com isso, “[...] o espelho e a balança representam a voz da

verdade que irá indicar os números do sucesso ou do fracasso na batalha pelo

„aperfeiçoamento‟ corporal” (HANSEN; VAZ, 2004, p. 141).

A estrutura da Academia Popular nos indica outro ponto de divergência entre os

ambientes privado e público (em estudo). Durante os diálogos abertos e as entrevistas, percebi

que, ao abordar a condição estrutural precária na qual a Academia se encontrava em alguns

momentos, os sujeitos não reclamavam da falta do espelho. Este não faz parte do ambiente da

Academia, apenas “dois espelhos pequenos... Para o rosto. Um fica no banheiro e outro em

uma sala pequena, ambos no módulo do SOE” (Diário de Campo, 13 de novembro de 2013).

A balança, que também fica dentro do módulo do SOE, é utilizada quando o professor S

realiza as avaliações físicas dos indivíduos que querem malhar na Academia ou as avaliações

físicas de seus alunos. O uso da balança parece não ser atrativo aos usuários da Academia,

uma vez que não o visualizei em quaisquer momentos fora aos citados acima. “Parece não

haver interesse pelos sujeitos da Academia em saber, ou mesmo controlar seus pesos e

medidas” (Diário de Campo, 14 de maio de 2014), fato incomum nas academias privadas.

Diferentemente das academias privadas de musculação, a estrutura do espaço físico da

Academia Popular apresenta como característica a ausência de paredes ao redor das máquinas

e dos aparelhos. Tal característica é tão relevante quanto a ausência dos espelhos, citada

anteriormente, para a reflexão acerca dos ideais de promoção de saúde que são adotados na

Academia. Usuários que frequentam esse espaço buscam por elementos que distanciam a

prática da musculação de fatores essencialmente ligados a imperativos da estética corporal

ideal, encontrados comumente nas academias particulares. A ausência das paredes nos indica

a “sensação de liberdade vivida pelos usuários pela falta de paredes na Academia. O que me

parece é que os sujeitos aqui dentro não sentem os limites para o movimento de seus corpos”

(Diário de Campo, 30 de outubro de 2013).

A musculação que, a priori, estaria livre dos ditames do treinamento rígido e

competitivo comum a algumas práticas desportivas, passou a ser vivida por seus praticantes

como um elemento de modelação corporal. A partir da realização dos treinos e de suas

características rígidas e performáticas, a musculação nas academias carrega um emaranhado

de características que correspondem a “[...] um caráter de treinamento e performance

63

incorporado como regra comum” (HANSEN; VAZ, 2004, p. 138). Ela ficou compreendida

dentro de um espaço de técnicas que extrapolam a prática do simples fazer musculação, indo

ao encontro dos fatores oriundos das práticas do desporto competitivo:

É curioso como nas academias de ginástica e musculação se retomam, com poucas

variações, a organização e o desenvolvimento das premissas e práticas do

treinamento desportivo: a divisão dos espaços das salas de musculação, a

especificidade do trabalho de acordo com o sexo e a faixa etária, a organização dos

exercícios balizada pelos programas referenciados no treinamento de atletas

(HANSEN; VAZ, 2004, p. 137).

Na Academia Popular, os aparelhos/máquinas para musculação também ficam

organizados de modo a obedecer a essa “divisão da sala de musculação”, que ocorre de

acordo com os grupamentos musculares do homem. Mas alguns aspectos referentes ao treino

na musculação podem ser diferenciados também, como, por exemplo, a música de volume

ambiente e de gênero gospel (remixado), colocado pela professora P1 “para „embalar‟ o ritmo

dos „treinos‟” (Diário de Campo, 02 de julho de 2014). Segundo um dos usuários “[...] É bom

malhar nesse ritmo... Acalma a gente!” (Diário de Campo, 02 de julho de 2014). Em

contrapartida, nas academias privadas “a música em volume alto e com muita batida embala

os treinos na musculação. Essa batida musical parece funcionar como um elemento

incentivador ao treino pesado na musculação” (Diário de Campo, 03 de junho de 2014).

Outra questão a evidenciar nesse contexto de diferenças, também relacionada ao

barulho no ambiente da Academia Popular, refere-se ao comportamento dos usuários, que não

fazem uso de gritos para ou na realização dos movimentos mais pesados durante sua prática.

“Me sinto bem lá, tranquila!”, foi a resposta da usuária U4, quando a questionei sobre a

tranquilidade que encontramos na Academia Popular. E continuei: “será o clima... o vento...o

mar. É isso?” U4 completou sua resposta: “Pode ser, mas eu acho pelas pessoas também,

não?! [...] Todo mundo tranquilo e tal, não tem aquela agitação, aquele pessoal mal-educado...

barulhento”. A preferência da usuária U4 pela Academia Popular fica expressa, dentre outros

fatores citados por ela durante a entrevista, diante da consideração acerca do gosto que ela

possui pela tranquilidade para malhar.

O uso de gritos, geralmente, é consequência da ocorrência da dor ou do sofrimento,

que, em academias privadas de musculação, são elementos normais para o sacrifício de

alcançar um ideal de corpo perfeito. Neste ponto, nos falam Hansen e Vaz (2004, p. 141) que

[...] a dor não é uma „aliada‟ do treinamento corporal, mas, do ponto de vista

subjetivo, o inimigo a ser combatido, superado, suportado, ignorado – ou ainda, num

64

registro mais fronteiriço, a experiência a ser glorificada, desejada, certificação de

que de fato se está indo além dos limites e que, portanto, há mérito na dilaceração do

próprio corpo.

As ações que envolvem a causa da dor e sua consequente aceitação, de modo a

suportá-la diante do manuseio do peso elevado e/ou da prática de exercícios exaustivos

durante os treinos de musculação é uma máxima não praticada pelas professoras da Academia

Popular. Ao detectarem algum movimento mais brusco do aluno, elas interferem orientando-o

a mudar/trocar o peso e/ou a intensidade do exercício, sendo assim “É interessante ver a

professora „acelerar o passo‟ para interromper o movimento que ocasiona a dor do usuário.

Não vejo incentivo ao movimento exaustivo de exercícios” (Diário de Campo, 23 de abril de

2014). Em outra uma nota, relatei que

A intervenção com o intuito de evitar a dor dos usuários é explícita na ação das

professoras diante dos treinos dos mesmos. Presenciei, mais uma vez, uma

interferência de P1 no treino do aluno. Motivo: diminuição do peso! (Diário de

Campo, 22 de agosto de 2014).

A intervenção das professoras também acontece no sentido de não estimular a prática

da musculação sobre os aspectos da chamada “maromba”. Na academia particular de

musculação, a “maromba” é, geralmente, praticada pelos conhecidos como “marombeiros”.

Segundo Hansen e Vaz (2004, p. 142),

A rotina dos marombeiros traduz-se em uma prática solitária e individualista, a qual

exige um grande esforço psicofísico que permite suportar a dureza e a repetitividade

dos exercícios necessários para o „aperfeiçoamento‟ da estética corporal.

Agindo contrariamente aos ideais da prática da “maromba” no ambiente da Academia

Popular, P1 nos fala em entrevista que, ao ser abordada por usuários que querem “tomar algo

para crescer e rapidamente”, ela faz a tentativa do incentivo para que o usuário busque

informações sobre as necessidades reais de sua saúde, sem incentivar o uso de suplementos

e/ou outros métodos de crescimento muscular. Nesse sentido, há no comportamento da

professora a busca pelo cuidado com fatores que não se relacionam, necessária ou

exclusivamente, ao corpo e/ou à construção corporal do usuário. P1 em entrevista relata:

[...] porque quando um aluno chega muitas vezes querendo já saber o que tomar para

poder crescer...ai nós entramos com a questão da saúde: „Não, espera! Devagar!

Vamos ver qual o seu objetivo. É esse? Vamos devagar! Vai na nutricionista, veja

direitinho o que você precisa e se você usar qualquer coisa vai danificar‟. Então

tentamos sempre dar essa orientação nesse sentido. Nós intervimos dessa

65

forma...muitas vezes falando: „Olha, muitas vezes é só sua alimentação que você

precisa mudar, você não precisa gastar com suplementação. Você tem que fazer todo

um estudo do seu dia-a-dia, do seu histórico alimentar, da sua atividade laborativa,

para ver o que você precisa realmente e se você precisa‟. Que muitas vezes, entra a

questão de padronizar: „Eu tenho que ficar marombado‟.

Em academias privadas é mais comum encontrarmos, à disposição de seus usuários,

suplementos alimentares que devem ou podem ser ingeridos antes, durante e após o treino da

musculação, com o intuito de potencializar os resultados dessa prática. Tal configuração do

ambiente, a meu ver, nos remete a pensar na facilidade/pressão que é colocada aos usuários

desses locais em relação aos cuidados com o corpo. Ao descrever parte da academia na qual

desenvolveu sua pesquisa, Cesaro (2012, p. 50) relata que

[...] Nesse espaço ficam localizados o balcão dos suplementos alimentares e a

secretaria da academia. No balcão, à direita de quem entra, ficam expostas as

embalagens dos mais variados pós que vão se transformar em shakes e sucos que são

ingeridos antes, durante e depois dos treinos.

Alguns usuários dividem a rotina dos treinos na musculação entre a Academia Popular

e a academia privada, uma vez que alguns trabalham em regime de escalas e em determinados

dias da semana não podem ir à Academia no período matutino, pois estão trabalhando. Diante

dessa impossibilidade, recorrem ao uso da academia privada no período vespertino ou

noturno. É interessante citar que a opção de permanecer na Academia Popular é colocada em

evidência quando se referem à preferência em utilizar o espaço público da Academia em

detrimento do privado. Nas palavras do usuário U3, podemos visualizar alguns elementos

principais que permeiam sua opção em continuar a frequentar a Academia Popular:

[...] eu vou ser bem sincero com você, aqui é melhor do que lá [academia privada].

A disputa lá é muito maior...a disputa de estética...de espelho... A disputa em todos

os sentidos! As pessoas te olham...te reparam! As pessoas [soberbas] está muito

maior nesse ambiente, aqui tem, mas, você consegue „passar por cima‟. Lá parece

que a „força que eu tenho... eu posso‟ é muito maior, e às vezes quem tá lá no

particular não tem porra nenhuma. As mulheres desfilam om aquelas roupas

cavadas, quanto mais provocantes melhor, e depois não querem que a galera da

academia fiquem olhando! Os homens ficam ali...se rasgando, uns gritam dentro da

academia que parece que querem chamar a atenção... Os caras não querem malhar!

Diz estudos que quando você grita num movimento te dá mais força, mas,

sinceramente...minha vergonha fala tão alto que eu não consigo adquirir essa força

(risos) [...]. E aquele tal de te olhar com um olhar diferente...um olhar discriminado!

A pessoa só chega até você quando ela sabe o que você tem... O interesse chega

primeiro!

Os ideais de saúde e de beleza e estética corporal são potencialmente entrelaçados no

contexto das academias de musculação, uma vez que

66

Saúde e estética são os principais motivadores para a frequência à academia e prática

de atividades físicas, o que pode ser atribuído à maneira como historicamente os

conceitos de saúde e beleza foram sendo construídos e tendo seus sentidos

entrelaçados (SANT‟ANNA, 2003, p. 63).

As diferenças citadas ao longo do capítulo nos levam a refletir a respeito dos aspectos

sob os quais o ideal de promoção da saúde acontece nos mais variados ambientes destinados,

a priori, ao processo de busca e manutenção da saúde pelo homem por meio da prática da

atividade física.

2.2 A PROMOÇÃO DA SAÚDE NA ACADEMIA POPULAR DE SANTO ANTÔNIO

A prática de atividades físicas (associadas a outros hábitos de vida entendidos como

saudáveis) com vistas a conquistar e promover saúde tem feito parte dos discursos de projetos

sociais. Compreender as necessidades da sociedade e atendê-las pressupõe lançar mão de

diferentes saberes, disciplinas, tecnologias materiais e não-materiais como instrumentos de

trabalho (FREITAS; BRASIL; SILVA, 2006). É nesse processo, então, que se destaca a

atividade física/as práticas corporais como tecnologias leves (MERHY, 2002), que podem

contribuir para ampliar e embasar novas formas de se pensar a formação e a ação dos

profissionais na/da área da saúde.

Merhy (2002, p. 48) faz referências ao “trabalho vivo em ato”, que corresponde às

ações dos profissionais dos campos da saúde e também da educação: “[...] o trabalho em

saúde é centrado no trabalho vivo em ato permanente, um pouco à semelhança do trabalho em

educação [...]” e ainda nos revela a ideia sobre os instrumentos/materiais que são

considerados “trabalho morto”, assim como o processo de organização para a intervenção dos

profissionais da saúde nos projetos dessa área: “[...] o trabalho em si atua como trabalho vivo

em ato e os instrumentos usados, bem como a organização do processo, como trabalho morto”

(2002, p. 47).

Os cuidados em saúde no âmbito da promoção da saúde devem ser, dessa maneira,

desenvolvidos a partir de ações que evidenciem a importância do estabelecimento de vínculos

e acolhimento entre usuários do serviço e profissionais nos variados ambientes que

correspondem aos projetos na área da saúde.

Para a professora P2, abordar ou acolher o usuário de acordo com aquilo de que ele

“precisa” é fundamental para o desenvolvimento de seu trabalho na Academia. Em entrevista,

67

relatou-me que alguns alunos chegam à Academia querendo apenas “desestressar”. Citando

um exemplo, ela contou o que ouviu de uma usuária da Academia e como reagiria caso

fizesse a intervenção sobre essa usuária:

„É, hoje eu vim aqui para me desestressar!‟ Foi a fala dela. Então, quer dizer... Ela

está com um problema fora e ela veio para esquecer. [...] Hoje eu não acompanhei o

horário dela, mas se eu tivesse do lado dela, eu iria conversar com ela, eu não iria

me preocupar se ela estava fazendo sua seção completa... Se ela estava

desenvolvendo bem o trabalho muscular. Hoje eu trabalharia com ela o problema

pessoal. Não que eu quisesse interferir, mas eu queria que ela alcançasse o objetivo

dela... Que era relaxar!

Pensar a Academia Popular sobre os aspectos do “trabalho vivo em ato” é pensá-la

como um lugar no qual a prática da musculação nem sempre representa o fator principal para

a ocorrência da promoção da saúde de fato e, consequentemente, para as ações dos

profissionais naquele lugar. Situações particulares/individuais podem acarretar uma

intervenção diferenciada em relação ao usuário e a sua condição, mesmo que momentânea,

em estar na Academia ou em buscá-la. Compreender que a prática da musculação não será

obrigatoriamente o elemento mais importante para a efetivação dos atos de cuidado naquele

lugar faz parte das considerações das professoras em suas ações, a partir das singularidades

e/ou dos objetivos dos usuários.

Nesse sentido, nos fala P2 que “aqui [Academia] é um lugar que alguns alunos usam

para desestressar, para mim também”. Para P1, receber o usuário com palavras de

acolhimento e atenção representa um momento importante para sua prática do cuidado

enquanto professora da Academia. Em suas palavras:

Um bom dia com certeza faz toda diferença! Um bom dia, um sorriso, independente

da forma que você esteja... Tem dia que a gente não está legal, mas, mesmo assim o

atendimento tem que ser feito de qualquer forma e, da melhor forma possível!

O uso do espaço público da Academia Popular para a prática da musculação como

atividade principal, mas não única, é uma característica que expressa a forma como os

usuários ocupam a Academia de maneira diferenciada do objetivo principal formulado para

sua criação. Nesse ponto, considerando Leite (2002), podemos compreender a Academia

como um “lugar” resultante dos “contra-usos” realizados pelos usuários. Os “contra-usos”

refletem como os usuários usam de outra forma ou para outras finalidades aquele ambiente,

atribuindo, assim, à Academia um contexto de promoção de saúde além da prática da

musculação. Leite considera as falas de Certeau e Zukin acerca das estratégias e táticas nos

68

“usos” e “contra-usos” para e na ocupação dos espaços públicos pelos sujeitos e,

consequentemente, a produção de “lugares”,

[...] gostaria de sugerir um desdobramento do esquema de Certeau, a partir da

contribuição de Sharon Zukin: diria que as „táticas‟, quando associadas à dimensão

espacial do lugar, que a tornam vernacular, constituem-se em um contra-uso capaz

não apenas de subverter os usos esperados de um espaço regulado, como também de

possibilitar que o espaço que resulta das „estratégias‟ se cinda para dar origem a

diferentes lugares, a partir da demarcação socioespacial da diferença e das

ressignificações que esses contra-usos realizam (LEITE, 2002, p. 122).

Algumas observações são feitas pela professora P1 no que diz respeito ao

(re)conhecimento que eles, os professores, devem ter em relação aos usuários da Academia,

para que se evite, diante de uma abordagem inadequada, afastá-los da Academia e dos

cuidados que seus profissionais podem oferecer a esses usuários. Por meio de observações

contínuas e diárias em seu local de trabalho, a professora passa a compreender os usuários e

suas diferenças. E, dessa forma, consegue estabelecer com eles relações específicas a partir de

seus “atos de cuidados em saúde” na Academia. A valorização de sua intervenção, na medida

do possível, individualizada com os usuários é algo que se percebe em suas falas na

entrevista:

Com certeza, tem que considerar [o diferente], tem que diferenciar isso... Tentar

tratar de outra forma. Mesma questão de alguns alunos... Você percebe a questão da

própria personalidade do aluno. Pois alguns alunos sabemos que têm alguns

problemas psicológicos que vem. Então você tem que saber como chegar nesse

aluno. Como tratar esse aluno. Como tratar esse aluno de uma forma diferenciada

para, muitas vezes, não afastá-lo da prática [...]. Então isso vem da própria prática de

você estar ali vivendo com o aluno, de você está vendo como ele é! E alguns pela

própria prática profissional [que vem de uma prática de trabalho em presídio] que

vem muitas vezes com um humor bem alterado, e você já percebe pela fisionomia,

pela diferença: Esse plantão não foi legal! Então a pessoa está „daquele‟ jeito...

Então, você tem que ter uma abordagem diferente!

Em 9 de julho de 2014, presenciei uma conversa ocorrida entre a professora P1 e uma

usuária da Academia. A professora, mais uma vez, comportou-se de forma atenciosa e

acolhedora em relação ao posicionamento da usuária acerca dos cuidados que ela preferia

estabelecer em relação a sua saúde, pois a usuária (U6) queixava-se bastante sobre o

posicionamento de seu médico ao querer interná-la, “de qualquer jeito”, por ela sentir,

frequentemente, indisposições para realizar suas atividades diárias/rotineiras. Durante a

conversa, a professora P1 correspondeu atenciosamente (perguntas sobre o “estado de saúde”

da usuária e gestos positivos com a cabeça ao longo da conversa) ao desabafo que a usuária

fazia e, com ares de indignação, esta fez o seguinte esclarecimento para a professora P1:

69

“Sempre fui assim. O médico que disse, mas sou eu que sei sobre mim. Não quero ficar

internada”.

A partir dessa fala, a Academia configurou-se para as professoras como um ambiente

de possíveis reflexões e opiniões acerca da autonomia dos sujeitos. Pois levei até as

professoras a frase da usuária e conversamos sobre autonomia na e para a vida do homem e

como os conceitos de saúde, ou mesmo a dimensão dos fatores que influenciam a saúde,

podem aumentar as possibilidades de entendimento e intervenção do profissional com seus

pacientes se considerarmos as possibilidades diversas de relação entre o sujeito e sua saúde.

Ao final de nossa conversa, concluí em minhas anotações o seguinte pensamento:

Autonomia para os usuários não somente para a realização da musculação, mas

também para viver suas vidas de acordo com os seus conhecimentos, suas

experiências de vida e suas vontades. A usuária mostrava-se certa em relação ao

„não querer‟ ficar internada mais uma vez. Não via motivos para isso e preferia ir

para a Academia malhar do que não fazer nada (Diário de Campo, 9 de julho de

2014).

O “trabalho vivo em ato” na saúde “é ordenado pelas tecnologias leves, sensíveis à

singularidade que reage à intervenção” (CECCIM; BILIBIO, 2007, p. 55). As “tecnologias

leves” fazem parte das chamadas “tecnologias da saúde” que são, ou deveriam ser, utilizadas

pelos profissionais da saúde em suas ações de intervenção nos processos de promoção de

saúde. Segundo Merhy (2002, p. 49), as “tecnologias da saúde” são classificadas em

“tecnologias leves”, “tecnologias leve-duras” e “tecnologias duras”. Desse modo,

[...] as tecnologias envolvidas no trabalho em saúde podem ser classificadas como:

leves (como no caso das tecnologias de relações do tipo produção de vínculo,

autonomização, acolhimento, gestão como forma de governar processos de

trabalho), leve-duras (como no caso de saberes bem estruturados que operam no

processo de trabalho em saúde, como na clínica médica, a clínica psicanalítica, a

epidemiologia, o taylorismo, o fayolismo) e duras (como no caso de equipamentos

tecnológicos do tipo máquinas, normas, estruturas organizacionais).

Considerando as “tecnologias” no dia-a-dia da dinâmica da Academia, encontramos,

de maneira expressiva, a situação da lona10

que foi usada até o final de 2013 para cobrir o

espaço referido. A falta da cobertura (que corresponde às “tecnologias duras” para aquele

ambiente) ocasionou situações curiosas quanto ao funcionamento da Academia. Algumas

foram a redução de número de alunos na frequência das aulas, insistentes reclamações aos

professores (como se eles tivessem algum poder para resolver o problema imediatamente), o

10

Atualmente a cobertura é fixa, portanto, a lona não é mais usada. Esta foi a principal reivindicação

(presenciada por mim) dos sujeitos da Academia durante todo o meu período de inserção.

70

cansaço/desgaste excessivo por parte dos profissionais da Academia, que ficavam expostos ao

calor, a falta de local para guardar (e preservar) alguns materiais livres etc. E, nos diálogos

abertos e nas entrevistas, as opiniões dos usuários acerca da estrutura da Academia Popular

foram incisivas diante do problema que a falta da lona ocasionava para sua prática corporal no

ambiente da Academia. Para U4, a cobertura fixa seria a melhor opção para resolver tal

situação:

Nossa! Ali vou te contar tá?! A gente já passou várias vezes de chegar ali... A lona tá

no chão! Volta todo mundo pra casa... Hoje não tem... E volta de novo! Aí, eles

colocaram a lona, tudo remendada e chovia, pingava na cabeça da gente! [...] Já

deveria ter colocado uma permanente... Assim, fixa... Sem ser a lona!

A cobertura da Academia tornou-se um elemento de extrema importância para os

sujeitos que frequentam seu ambiente, uma vez que percebi que nenhum outro problema na

estrutura dela é tão definitivo quanto a cobertura para a ausência de usuários e para a

reorganização dos horários de funcionamento da Academia. No período em que a Academia

se encontrava sem a cobertura, o uso de seu espaço no tempo chuvoso ficava restrito aos

usuários mais insistentes em praticar musculação. Em nota no diário de campo do dia 12 de

maio de 2014, fiz o seguinte relato:

Manhã fria e com chuvas (que iniciavam e paravam). Com isso a Academia

funciona de forma a „obedecer‟ a este fenômeno. Os usuários insistem em esperar o

„passar‟ da chuva e continuam sua prática! Poucos foram, e segundo as professoras

neste tempo de „chove e não chove‟ poucos arriscam ir à Academia. Os sujeitos se

lamentaram pela falta da cobertura e todos ficamos „espremidos‟ dentro do módulo

do SOE.

Na Academia, a professora P1, ao usar de adaptações para a utilização desse ambiente

descoberto (nos dias de sol), fazia uso, com frequência, da expressão “economizar pele” e os

usuários pareciam compreender a tentativa dela em associar as possibilidades de utilização

daquele lugar aos cuidados para com eles. Nesse sentido, continuamos e encontrar na ação da

professora a efetivação dos cuidados em saúde a partir do que nos fala Merhy acerca do

“trabalho vivo em ato” no campo da saúde. Pois a professora insistia no acolhimento e nos

cuidados com seus alunos, mesmo diante de uma estrutura parcialmente inadequada, naquele

momento, para a prática da musculação. Em entrevista, ela me explicou o que pretendia com

tal expressão:

[...] a questão do „vamos economizar pele‟ é a questão da nossa exposição ao sol.

Muitas vezes, em alguns exercícios a gente pode buscar um cantinho que ta com

71

sombra, aí eu falo pros alunos: „Vamos economizar pele! Vamos lá fazer naquele

cantinho que tem uma sombra!‟ Então o objetivo é isso... É estar trazendo mais

qualidade pro aluno... Um cuidado com o aluno pra ele ta economizando a pele

dele... Buscando fazer o que ele tem como fazer na sombra. Não deixar de fazer...

Fazer na sombra!

O trabalho em saúde tende a ser realizado, sobretudo, a partir das relações que se

estabelecem entre os sujeitos (profissional e usuário) no processo do cuidado. A manifestação

das “tecnologias leves” se expressa a partir do encontro entre essas tecnologias e o usuário, de

modo que a ação do profissional se torna relevante à possibilidade de se configurar uma

relação de trocas e intencionalidades no processo do ato de cuidar,

[...] que „representa‟, em última instância, necessidades de saúde como sua

intencionalidade, e, portanto, o que pode, com seu interesse particular, „publicizar‟

as distintas intencionalidades dos vários agentes em cena, do trabalho em saúde

(MERHY, 2002, p. 51).

Neste ponto, atender a necessidade do conhecimento acerca de saberes que vão além

dos conceituais e tecnológicos das determinadas áreas de intervenção torna-se essencial ao

desenvolvimento da prática do profissional da saúde para sua ação diante das particularidades

individuais. Nesse sentido, o manuseio do “trabalho morto” deve ocorrer em consonância ao

“trabalho vivo em ato” na saúde, ou seja, o “trabalho morto” não pode embasar,

essencialmente, a ação dos profissionais diante dos usuários dos projetos de saúde:

[...] o trabalho em saúde não pode ser globalmente capturado pela lógica do trabalho

morto, expresso nos equipamentos e nos saberes tecnológicos estruturados, pois o

seu objeto não é plenamente estruturado e suas tecnologias de ação mais estratégicas

configuram-se em processos de intervenção em ato, operando como tecnologias de

relações, de encontros de subjetividades, para além dos saberes tecnológicos

estruturados, comportando um grau de liberdade significativo na escolha do modo

de fazer essa produção (MERHY, 2002, p. 49).

“Orientar-se a partir do PPPAV gera possibilidades diferentes de/para intervenção”

(Diário de Campo, 6 de agosto de 2014). Essa afirmação foi colocada em evidência pelas

professoras em uma das nossas conversas sobre o projeto das Academias Populares,

considerando o ecletismo conceitual nele presente (situação relatada em capítulo anterior). Os

rumos da conversa sobre o projeto das Academias aconteceram em volta das falas sobre as

“linhas leve e dura” de intervenção na musculação ou em outros ambientes elaborados para a

promoção da saúde, fato que me remeteu à compreensão que Merhy (2002) nos traz acerca

das tecnologias da saúde.

72

As professoras reconheceram possibilidades de seguir uma “linha leve de

intervenção”, correspondente às ações de vínculos e cuidados voltados para o ideal de bem-

estar do usuário, ou seguir uma “linha dura na intervenção”, que se relaciona, no ambiente da

Academia, primordialmente, ao treino da musculação, caracterizado, dentre outros elementos,

pela ficha de acompanhamento ou de treino do indivíduo, geralmente padronizada para a sua

aplicação.

Ao final do bate-papo (que foi interrompido em alguns momentos para que as

professoras pudessem atender aos usuários) as professoras assumiram “fazer o melhor para os

usuários” (Diário de Campo, 6 de agosto de 2014), reafirmando P1 o que me relatou em

entrevista quando conversamos sobre a característica eclética do PPPAV, “vou trazer mais

conforto pro meu usuário... Pra pessoa que eu to atendendo... Vou trazer o melhor pra ele!”.

Dessa forma, elas acreditam na associação entre as “linhas” de intervenção, valorizando,

inclusive, a necessidade de conhecer saberes que extrapolem a questão fisiológica,

biomecânica, anatômica etc. acerca do homem: “sem desvalorizar os conhecimentos da

anatomia e suas “variações”, as professoras entendem a importância de compreender o lado

social e psicológico dos usuários para suas intervenções” (Diário de Campo, 6 de agosto de

2014).

As professoras P1 e P2 expressam, atenciosamente, em suas falas, a importância de

considerar diversos saberes e conhecimentos para a intervenção propriamente dita, no

processo de promoção da saúde na Academia Popular. P2 acredita que a função docente que

ela exerce dentro da Academia extrapola saberes acerca de disciplinas como anatomia

humana, fisiologia, biomecânica etc. P2 afirma sentir-se responsável por usuários que chegam

até ela pedindo algum tipo de orientação ou apoio em relação a assuntos que não permeiam a

prática da musculação, necessariamente. Dessa maneira, para ela, a utilização de saberes

como os da psicologia, por exemplo, podem influenciar os cuidados com seus alunos. Em

entrevista, P2 nos fala:

Até porque se formos parar para analisar o professor de educação física... ele tem

que ser um pouco psicólogo. Porque aqui aparece aluno de tudo quanto é jeito, em

variadas situações... Cada um está passando por uma coisa! E às vezes a pessoa vem

para cá até para desabafar conosco. Então nós temos que saber lidar com isso! Se

você falar alguma coisa para um aluno [...]... Você pode induzir um aluno a [ir] para

uma direção que não é muito legal para ele. Porque o aluno que vem aqui... Ele te

coloca numa posição que como um detentor do saber... Eu encaro dessa forma!

Então dependendo da referência que você [der] ao aluno, você pode até

desestruturar! [...] Eu acho que posso ser a pessoa mais capacitada do mundo, mas,

se eu vir aqui e não souber me relacionar com o aluno... Meu trabalho vai por água

abaixo... Não adianta, eu não vou conseguir me firmar neste local!

73

P1 relata o que pensa sobre a importância da interação dos diferentes saberes docentes

para sua prática. A professora afirma que, às vezes, o professor tem que “perceber” situações

e “buscar” no aluno informações sobre ele que ultrapassem a questão do físico. P1, assim

como P2, refere-se ao fator psicológico do aluno, que, em alguns casos, determina seu

comportamento no momento de sua prática corporal.

A partir de suas percepções com seus alunos, P1 não hesita em agir no cuidado

necessário àquele usuário. Em entrevista, ao ser questionada sobre quais saberes ela deve

buscar ou que considera em maior proporção para atuar na Academia, ela afirmou enxergar

como “um todo de saberes” necessário para sua prática docente. Dessa forma nos fala P1:

Eu vejo como um todo! Porque você tem que saber de fisiologia, da questão do

treinamento em si, mas você tem que ter aquela percepção não só do físico. Hoje

mesmo teve uma aluna que eu tive que chegar p ela e dar uma „chamada‟. Porque é

uma aluna que já tinha corrido aqui pela manhã no campo de areia... Um

treinamento forçado... Bem avançado! E depois foi para um circuito lá no

Tancredo... Depois veio fazer aula de musculação. Aí... O que dizer? Você vê uma

aluna dessa fazendo três práticas esportivas pesadas uma atrás da outra no mesmo

dia... Então temos que chegar „junto‟ e falar: „Por que você está fazendo isso? Isso

não vai fazer bem para você, vamos diminuir essa carga aí... Está muito pesada!‟.

[...]. Então é uma questão mais psíquica da pessoa, pois vemos como uma questão

psicológica, uma fuga, mas não se sabe de que!

A ação docente não estruturada apenas em saberes tecnológicos/conceituais, mas

praticada a partir da interação entre variados saberes, fato encontrado por mim na Academia,

tende a corresponder, de forma singular, à complexidade da prática docente a que se referem

Barroso, Custódio e Paixão (2014, p. 705), uma vez que,

[...] Essa complexidade inerente à intervenção profissional não reside apenas na

sofisticação erudita do conhecimento acadêmico, nem tão somente no

aprimoramento tecnológico advindo do conhecimento científico, mas na articulação

de diversos tipos de saberes e de recursos.

Segundo Barroso, Custódio e Paixão (2014, p. 705), “[...] a atuação profissional

docente estrutura-se a partir de sucessivas interações do sujeito cognoscente com diferentes

saberes, crenças, habilidades e competências específicas ao longo de sua trajetória”. Essas

interações, pensadas a partir das professoras da Academia, podem ser mais bem

compreendidas quando, em suas falas, elas reconhecem a necessidade de atualizações

contínuas dos diversos saberes e/ou conhecimentos, para que, pensando em uma prática cada

vez melhor, possam intervir de maneira mais qualificada em relação aos seus alunos,

74

realizando, dessa maneira, a articulação entre os mais variados elementos que constituem a

dimensão prática da profissão docente.

Os saberes docentes que fazem parte do processo de formação e, consequentemente,

dão base para a atuação profissional docente podem ser compreendidos como saberes

acadêmicos, pedagógicos e experienciais, “Os primeiros correspondem aos saberes científicos

e/ou disciplinares e se relacionam às instituições formadoras” (BARROSO; CUSTÓDIO;

PAIXÃO, 2014, p. 705). Considerando os saberes acadêmicos e pedagógicos, as professoras

os relacionam diretamente às ações adotadas por elas no dia-a-dia de suas práticas; de acordo

com P2, as disciplinas que fizeram parte de sua formação na graduação “até hoje” a auxiliam

na realização de sua função docente. Além dos conhecimentos anatômicos acerca do homem,

perguntei à professora P2 quais outros saberes ela utilizava nas ações de promoção da saúde e

se ela realmente acreditava que esses “outros conhecimentos” pudessem ocasionar ações

positivas em sua prática. Dessa forma, nos fala P2 sobre as disciplinas de sua graduação e de

sua importância para a intervenção da professora:

[...] mas aquela teoria nos ajuda agora... Sociologia... Antropologia que era uma

coisa que eu nunca tinha ouvido falar antes na minha vida... Antes de entrar na

faculdade. Têm coisas na antropologia, que eu sou formada há 15 anos... Que eu

lembro da faculdade. [...] eu me lembro até hoje porque eu tinha um professor muito

bom, não me recordo o nome dele, mas ele foi excelente! Ele levava

questionamentos para dentro da sala de aula que você consegue levar para o dia-a-

dia. As disciplinas como psicologia... As disciplinas que o pessoal reclamava: „Ai

que porre! É muita teoria!‟... Mas aquilo tudo... Na época da faculdade nós não

temos noção que aquilo vai ajudar... E hoje que tenho noção que isso me ajuda

muito!

Os saberes pedagógicos ocorrem “A partir de disciplinas como didática, metodologia

do ensino, prática de ensino e outras de cunho pedagógico (BARROSO; CUSTÓDIO;

PAIXÃO, 2014, p. 705)”. Com o ensino/aprendizado dessas disciplinas, acredita-se que o

graduando que visa sua formação na área da docência aprende a elaborar formas de

intervenção específicas no processo de ensinar. Sendo assim, os saberes pedagógicos,

[...] se referem à relação que se estabelece entre professor-aluno no decorrer do

processo instrucional, à capacidade de condução e elaboração de estratégias

didático-metodológicas que visem à motivação e ao interesse dos alunos e,

finalmente, ao emprego eficaz de técnicas ativas de ensinar.

Para P1, a Prefeitura de Vitória poderia fazer “articulações” entre a Academia, ou

mesmo entre os profissionais da saúde do município, e algumas instituições de ensino

superior com a perspectiva da realização de cursos acerca dos novos conhecimentos que

75

surgem na área da Educação Física e nas áreas a esta correlatas. Acerca dos saberes das áreas

diversas que se relacionam com a Educação Física nos processos de promoção de saúde,

Ceccim e Bilibio (2007, p. 59) consideram que

A educação física terá que aprender em atuação os saberes e as práticas de cuidado

da enfermagem, de escuta da psicologia, de composição de redes sociais do serviço

social, de tratamento da medicina etc. e terá de ensinar as redes de interação e

cooperação, a ludicidade com implicação do corpo, a especialização do corpo

individual e dos corpos em coletivos etc.

Os saberes acadêmicos e pedagógicos, para P1, seriam continuamente atualizados,

realizando-se, assim, uma tentativa para o não engessamento da prática docente dos

profissionais. De acordo com suas palavras,

[...] a gente sabe que essa questão da atividade física... Vêm pesquisas novas [e

acontecem] novas coisas no dia-a-dia. [...] acho que a prefeitura tem suporte pra

estar fazendo convênio com universidades... Que seria uma boa ideia [...].

P2, além de reconhecer a necessidade do estudo contínuo para aprimorar sua

intervenção na Academia, manifesta sua indignação face à impossibilidade vivida pelos

profissionais no momento em que tentam buscar alargar seus conhecimentos após a formação

inicial. Tal impossibilidade é expressa, na Academia, pela organização do trabalho (pela

SEMESP) que, de uma forma geral, dificulta, ou mesmo não incentiva, a busca do

conhecimento pelo profissional. Em suas palavras:

Em relação à qualificação profissional que você tinha perguntado, às vezes têm

simpósios, palestras, mas nós não somos liberados para estar saindo. Eu acho a

qualificação profissional de extrema importância porque os saberes vão se

renovando... Só que aqui nós esbarramos de não poder sair do espaço da Academia

para pode se qualificar. E isso pra mim é estressante! Porque você tem muitas vezes

a oportunidade de fazer um congresso, um simpósio... Muitas vezes de graça que a

universidade disponibiliza para você. Ou uma palestra... alguma coisa! Mas você

não pode sair do seu local de trabalho para poder se qualificar sendo que o benefício

daquilo tudo que você vai aprender você vai trazer para cá mesmo. [...] nesses

simpósios professora, nós adquirimos um conhecimento a mais... porque a nossa

questão aqui, por exemplo, trabalhamos com práticas corporais, nós estamos

pesquisando essa questão. Não [a questão] da musculação em si, não do movimento

enquadrado só pelo movimento.

Para a professora P1, a qualificação profissional é essencial para que ela se mantenha

conhecedora das mudanças que ocorrem na área de sua atuação. A professora nos fala que:

Foi ótimo [curso de especialização], foi proveitoso! Foi diferente da nossa prática,

mas acrescenta para nós enquanto profissionais. Você se atualiza em coisas que

76

estão chegando... que a nossa área está mudando direto... então não tem como você

estacionar: „Ah, eu sei tudo!‟ Não! Dia-a-dia novas pesquisas, novos aprendizados

vão chegando e buscamos essa atualização na questão de capacitação, na questão de

especializações, na questão de cursos que se faz. [...] porque eu gosto do

aprendizado... Gosto de buscar novos conhecimentos... Eu gosto de melhorar [o] que

eu já trabalho.

Os saberes experiencias são considerados de suma importância pelas professoras da

Academia. Elas assumem que o conhecimento adquirido no chão da Academia Popular

intensifica a capacidade de desenvolver suas ações no dia-a-dia: “Aqui a gente aprende todo

dia. Adquirimos muita experiência. São muitas pessoas diferentes” (Diário de Campo, 9 de

junho de 2014). E pensando sempre em considerar a junção desses saberes com “toda a

teoria” dos outros saberes necessários à prática do professor, elas acreditam no “alargamento”

de seus conhecimentos, que resulta, a partir de sua compreensão, numa melhor intervenção.

Tardif (2002, apud, BARROSO, CUSTÓDIO E PAIXÃO, 2014, p. 705), esclarece o que

pude visualizar na ação das professoras na Academia, considerando os saberes experienciais

que elas vivenciam e adquirem continuamente em seus dias de prática docente, desta forma:

[...] saberes experienciais constituem-se no exercício da prática cotidiana da

profissão, fundados no trabalho e no conhecimento do meio. São saberes que surgem

da experiência prática e são por ela validados a partir de uma íntima articulação com

os demais saberes apreendidos pelo sujeito no período em que se encontra no curso

de formação inicial. Incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de

habilidades, de saber fazer. Em sua maioria são saberes que não advêm unicamente

das instituições de formação. São saberes práticos e não da prática: eles não se

aplicam à prática para melhor conhecê-la, eles se integram a ela e são partes

constituintes dela enquanto prática docente.

Em relação à experiência, ou aos saberes que ela adquire por meio de sua prática

profissional, sem desconsiderar a importância dos outros saberes, afirma P1 que “[...] a

experiência é tudo! Você vê coisas que só a experiência trás. Então, essa vivência de pessoas

diferentes, de pessoas que trazem suas experiências para cá! Então... isso acrescenta!”. Essa

certeza de P1 nos remete a compreender que “[...] os saberes experiencias não são saberes

como os demais; são, ao contrário, formados de todos os demais, mas retraduzidos, „polidos‟

e submetidos às certezas construídas na prática e na experiência (TARDIF, 2012, apud

SKOWRONSKI, 2014, p. 45)”.

A fala de P1 relaciona-se com o pensamento de P2, que considera a “experiência”

como um saber essencial à sua prática e que traduz a consideração acerca das pessoas na

condição de sujeitos constituídos de características individuais e envolvidos no processo de

promoção da saúde. Lidar com pessoas, segundo P2, exige do profissional docente da área da

77

saúde o conhecimento dos mais variados saberes, ou mesmo o conhecimento acerca dos

saberes que ultrapassem “as fisiologias dos movimentos”. Diante disso, fala P2 que:

[...] é muito importante [o uso de saberes que não somente o fisiológico,

biomecânico etc.] porque você está lidando com gente. Você está lidando com

pessoas... Cada pessoa é de um jeito diferente, então você tem que saber lidar com

esse diferencial. Então para mim eu tenho facilidade nisso porque eu trabalho com o

público há muito tempo, então eu tenho muita experiência quanto a isso. Então para

mim fica mais fácil por causa disto.

É comum encontrarmos, nos espaços privados de academias para musculação,

profissionais que atuam restritamente com o uso das “tecnologias duras” citadas por Merhy

(2002), ou mesmo profissionais que, evidenciando os saberes tecnológicos/conceituais, fazem

de sua intervenção uma ação direcionada à dimensão corpórea do homem, limitando-se esses

profissionais à montagem da ficha para o treino de musculação dos usuários da academia.

Nesse contexto, o cuidado com usuário fica limitado à construção e à busca pelas questões

estéticas corporais e não à atenção com as diversas possibilidades de relações que este usuário

pode estabelecer com sua saúde. Para tanto, o uso das “tecnologias leve-duras” e “tecnologias

leves” seria fundamental.

A dinâmica do dia-a-dia que caracteriza a Academia Popular pode ser mais bem

compreendida ao pensarmos na questão referente à sociabilidade. Independentemente da

possibilidade do “contato informativo”, vínculos acontecem naquele ambiente nos momentos

organizados para a prática da musculação, configurando-o não somente como um local

destinado à prática de atividades físicas, mas sobretudo possibilitando ao ambiente da

Academia Popular uma nova forma de ocupação dentro de um ideal de promoção de saúde.

Esta, por sua vez, relaciona-se ao fator da sociabilidade, que foi um elemento que ocorreu

como fator recorrente em minhas observações: “muito bate papo na Academia. Os usuários e

os profissionais interagem muito!” (Diário de Campo, 5 de dezembro de 2013).

A sociabilidade vivida na Academia Popular pode ser considerada como um fator de

busca e de permanência (ao mesmo tempo) para os usuários daquele lugar. Nesse aspecto,

torna-se interessante a reflexão acerca de questões essencialmente relacionadas aos vínculos e

aos acolhimentos estabelecidos entre os sujeitos não somente do lócus da pesquisa, mas dos

diversos ambientes de promoção de saúde. Para este estudo, porém, farei a seguir alusões à

questão da sociabilidade no lócus da pesquisa.

78

3 A QUESTÃO DA SOCIABILIDADE NA ACADEMIA...

Hoje na Academia aconteceu um evento surpresa para o professor S. Os

funcionários do período matutino organizaram comidas e sucos para a comemoração

do aniversário dele. Uma aluna dele participou da confraternização junto aos

profissionais da Academia, vejo que ela tem bastante intimidade com os

profissionais (Academia Popular e SOE). O clima é de total integração e união entre

os profissionais (Diário de Campo, 10 de dezembro de 2013).

Me sinto bem [malhar na Academia Popular] ... Acho que quando você chega na

Academia e [você] tem problemas...quando você bota o pé na Academia e você fala

com o professor: Bom dia! A pessoa pergunta: “Bom dia. Como tá sendo seu dia?”

E começa a interagir...a conversar com você... Você acaba esquecendo os problemas

[...] (Entrevista de U1).

Hoje cheguei à Academia no início da primeira aula que ocorre às 6:20h. E

acompanhei todas as outras aulas até o último horário! Percebi um “clima” muito

descontraído entre os usuários da Academia: muita brincadeira, muita conversa e

integração. É impressionante a ocorrência dessa integração em todas as aulas da

Academia! (Diário de Campo, 19 de abril de 2014).

[...] eu quero buscar aquilo que os alunos buscam também, que é a socialização, que

é a interação. Interagir com os alunos, é isso que eu venho buscar também

(Entrevista de P2).

As relações sociais na Academia Popular despertaram minha atenção. Desde o início

da minha pesquisa de campo, pude notar a integração/familiaridade entre os sujeitos que

compõem a dinâmica do dia-a-dia da Academia. Tranquilidade e satisfação em frequentar a

Academia e relações afetivas entre os sujeitos foram elementos identificados por mim com

relevância para se pensar a Academia e suas características não somente vinculadas aos

aspectos da prática da musculação.

Os vínculos se estabelecem e o usuário, que poderia praticar musculação em outras

academias, abre mão de tal possibilidade ao reconhecer a importância da Academia a partir

das relações sociais que ele encontra ali. A usuária U4 fala sobre o sentimento de vínculo

relacionado à Academia Popular e aos seus sujeitos, aspecto que justifica sua permanência na

Academia: “Vamo supor, agora que passou um ano e meio... Hoje, hoje eu entrar numa

outra?! Eu até entraria. Mas... Só que eu criei um vínculo aqui... O pessoal... Tudo!

Entendeu?”.

Em entrevista, U1 também nos revela o aspecto afetivo que envolve os sujeitos na

Academia “[...] a Academia Popular virou uma família. Onde todo mundo se conhece, onde

todo mundo se dá bem. Tá entendendo? Todo mundo entende cada um! ”.

A sociabilidade acontece como um dos fatores essenciais na “movimentação” do dia-

a-dia daquele lugar, e em minhas observações visualizei as diferentes e complementares

79

relações entre os seus sujeitos: relação entre os próprios profissionais, entre os profissionais e

usuários e entre os próprios usuários. Segundo Dayrell (2007, p. 1111), a sociabilidade pode

“[...] ocorrer em um fluxo cotidiano, seja no intervalo entre as “obrigações”, o ir-e-vir da

escola ou do trabalho, seja nos tempos livres e de lazer, na deambulação pelo bairro ou pela

cidade”.

Nos diferentes momentos do período em que os grupos usam o espaço físico da

Academia, aquecimento, musculação e alongamento, identifiquei algumas diferenças no bate-

papo entre os sujeitos. No aquecimento, as conversas ocorrem num “clima receptivo”, no qual

os usuários se cumprimentam amigavelmente e os professores interagem amplamente com o

grupo. Essa interação funciona como uma espécie de abertura que o professor usa para o

acompanhamento posterior ao aquecimento, que ocorrerá na musculação. Nesse instante, as

conversas são intensificadas pelos sujeitos, e a aproximação amigável se torna ainda mais

visível/perceptível.

Durante o tempo em que o grupo ocupa a Academia, é notório o movimento realizado

pelos sujeitos na perspectiva de interação entre eles. O processo de sociabilidade caracteriza-

se, inclusive, quando, com satisfação em estar em um mesmo lugar e por opção, os sujeitos

exercem suas possibilidades de contato uns com os outros. Dessa forma, percebi a “sociação”

(CASTRO, 2003) como consequência da tranquila e satisfatória aproximação entre os

sujeitos.

Ao finalizar o tempo na musculação, é feito o alongamento, momento em que os

sujeitos trocam informações sobre como será o próximo dia da musculação e, posso dizer que

a “zuação” entre eles finaliza o encontro do grupo naquele dia.

Simmel nos remete a pensar o fator satisfação entre os sujeitos/indivíduos ao se

associarem, fator frequente na Academia Popular, ao compreendermos que os usuários

daquele lugar optam por frequentá-lo de modo a permanecerem na Academia, mesmo

havendo outras possibilidades de locais para a prática da musculação, valendo-se de

justificativas acerca das amizades/vínculos que “construíram” naquele espaço. De acordo com

Simmel, apud Castro (2003, p. 26-27),

Interesses e necessidades específicas certamente fazem com que os homens se unam

em associações econômicas, em irmandades de sangue, em sociedades religiosas,

em quadrilhas de bandidos. Além de seus conteúdos específicos, essas sociações

também se caracterizam, precisamente, por um sentimento entre seus membros, de

estarem sociados e pela satisfação derivada disso.

80

A sociabilidade identificada na Academia Popular corresponde, dentre outros fatores,

ao movimento de grupos que se associam e desassociam de acordo com os horários das aulas

de musculação. Há uma movimentação considerável de usuários durante a dinâmica

organizada pelas professoras da Academia, e mesmo havendo uma mistura e, consequente, a

rotatividade de usuários nos diferentes horários de musculação, é interessante frisar que, além

de amizades e/ou coleguismos já existentes, outras novas amizades e/ou coleguismos passam

a acontecer naquele lugar. Em Dayrell (2007, p. 1111), encontramos a sociabilidade e suas

nuances de relações possíveis:

A sociabilidade expressa uma dinâmica de relações, com as diferentes gradações que

definem aqueles que são os mais próximos („os amigos do peito‟) e aqueles mais

distantes (a „colegagem‟), bem como o movimento constante de aproximações e

afastamentos, numa mobilidade entre diferentes turmas ou galeras.

Identifiquei alguns limites entre essas relações, ocasionados pelas funções ocupadas

por cada um dos sujeitos no ambiente da Academia Popular: usuários e profissionais. Ainda

assim, há um estreito entrelaçamento nas relações estabelecidas por eles. Em relação aos

limites e ao entrelaçamento das relações, P2 nos relata seu posicionamento quanto a tais

questões:

[...] Quando eu coloquei o pé aqui dentro parece que eu não tenho problema mais!

Você nunca vai me ver aqui triste. Você nunca vai me ver aqui cabisbaixa. Eu posso

estar com o maior problema na minha casa, a fatura do meu cartão pode estar

vencendo e eu não tenho o dinheiro todo, com aquela preocupação toda, mas aqui os

alunos nunca vão saber de nada disso porque eu me desestresso aqui como eles.

Porque aqui é o lugar que eu venho, que eu converso, que eu brinco! Além de fazer

bem para eles faz bem para mim. Eu me resumo em uma [mulher] dentro da

Academia e uma [mulher] fora da Academia. Porque eu não sou extrovertida, como

eu sou aqui. Eu não sou assim no meu dia a dia. Sou até uma pessoa com fama de

ranzinza, por eu ser muito séria. Mas você sabe quando você chega em um lugar e

não consegue manter a seriedade? Sou eu dentro dessa Academia aqui. [...] Mas eu

sei separar também. Eu sou a professora aqui. Eu me coloco no meu lugar, eu tenho

minha postura de professora. Mas isso não me impede de me relacionar bem com os

meus alunos. Em momento algum! Se eu precisar tomar uma atitude mais enérgica

eu vou tomar. Mas se eu precisar de conversar com um aluno, bater papo, eu vou

bater papo também. Eu sei separar muito bem essa questão.

Foi de maneira curiosa que passei a perceber, em vários momentos, os sujeitos

questionando/percebendo a ausência de determinados indivíduos do horário da musculação. À

medida que me atentei para os sentimentos de falta que uns tinham por outros, pude perceber

também as relações sociais naquele lugar, baseadas na amizade e na convivência entre os

usuários do espaço.

81

Dayrell (2003) aponta determinadas características que levam a sociabilidade entre os

jovens a acontecer e, refletindo sobre as relações existentes na Academia, consigo fazer uma

articulação direta entre a afirmação do autor e a sociabilidade na Academia. Mesmo havendo

um público que varia em idade, sexo, gênero e gostos, ou seja, um público que não é somente

jovem, podemos pensar na sociabilidade desenvolvida, naquele lugar, de modo a corresponder

às palavras de Dayrell (2003, p. 1111), que nos afirma “[...] que a sociabilidade, para os

jovens, parece responder às suas necessidades de comunicação, de solidariedade, de

democracia, de autonomia, de trocas afetivas e, principalmente, de identidade”. Para realçar

tal situação, em entrevista, o usuário U2 falou sobre o que sentia em relação ao ambiente da

Academia e aos usuários e profissionais:

Bem, eu considero ali um ambiente, assim, muito fraterno! As pessoas, tanto os

funcionários quanto os usuários, assim, eles são bem receptivos, acolhedores. Então,

isso me faz me sentir muito bem ali malhando na Academia Popular.

Apelidos, piadas e histórias são essenciais para que essa aproximação ocorra entre os

sujeitos: “o pessoal são bom de papo, bom pra conversar, são brincalhão, certo? Isso é que é

bom!”, fala U5.

Algumas histórias, relatadas por eles e para eles, são intermináveis [principalmente

histórias relacionadas a experiências profissionais e hobbies]; algumas piadas são contadas

várias vezes e mesmo assim provocam sorrisos e gargalhadas dos usuários e profissionais. Em

entrevista, um usuário contou para mim que o apelido que ele tem e que “todos” conhecem foi

adquirido dentro da Academia:

Uma coisa que me marcou foi quando eu fui fazer um exercício, né?! Que o meu

braço era, era não, é torto e eu não conseguia fazer o movimento certo. Aí eu estava

conversando com a [Bia], a Bia era a professora quando você iniciou há 8 meses?

Há 8 meses era [...] e foi quando eu fui fazer o movimento do remador, aqui

[mostrou o braço e o movimento] meu braço fazia ao contrário, ela falou assim:”

Mutante, tá aí, mutante” Eu falei mutante com ela e ela como uma rapidez de um

raio: “Mutante, mutante, mutante”. Aí ficou, foi dessa forma que veio meu apelido.

Eu falei com ela: “Pô, eu pareço um mutante, né?” Porque eu não faço o movimento

certo, eu fazia ao contrário. E por isso que muitas vezes nos aparelhos eu não podia

fazer, é porque o meu músculo não tá acostumado, por exemplo, com o exercício

que eu ia fazer, fazia totalmente ao contrário. Dessa forma que veio meu apelido, foi

essa parte que ficou marcada.

A Academia pode ser compreendida como um lugar estruturado, à priori, para

intervenções de promoção de saúde baseadas, sobretudo, na prática da musculação, mas a

Academia acaba por corresponder, também, a um ambiente no qual os sujeitos passam a

82

buscar elementos que vão além da prática da musculação, elementos que superam, inclusive, a

busca pela estética corporal, sendo esta muitas vezes associada, diretamente, à prática desse

tipo de atividade física em academias particulares.

Durante a entrevista, questionado sobre os motivos que o levaram a praticar

musculação, o usuário U3 relatou-me que a prática da musculação em sua vida tem um

sentido que ultrapassa as questões da beleza: “musculação, no meu ver, é muito mais que isso,

musculação é a aproximação das pessoas, é o bem estar. Entendeu? Muito mais que isso”.

A opinião da professora P2 ilustra de forma expressiva como a questão da beleza pode

ser compreendida dentro da Academia Popular a partir dos objetivos que levam os sujeitos à

busca por aquele lugar. Nas palavras da professora P2:

Olha, a questão da beleza eu acho que o aluno que vem para a Academia Popular,

esse não é o principal objetivo dele. Embora esteja inserido no contexto. Mas não é

o principal objetivo da maioria dos alunos que frequentam a Academia Popular. O

objetivo de estar aqui é mais para socialização, tirar o estresse... Mas a beleza vem

como consequência disso. Porque alguns estão acima do peso, tem aquela coisa, e

nós como profissionais temos que orientar a respeito disso, a respeito de saúde.

Então isso está inserido no contexto, mas não é o principal foco do aluno. Eu encaro

dessa forma: aluno ele chega aqui, e começa a frequentar, e nós percebemos que ele

vem mais para conversar, para desestressar, para passar um tempo, ele não tem

aquela preocupação de pegar pesado. Alguns até têm, mas não são todos. Então tem

aquela questão que nós estávamos conversando de como é quando o aluno não

termina a série toda, se ele fica chateado, se não fica, e tem aluno que não fica: “Ah,

terminou professora? Tudo bem”. Guarda o material dele e vai alongar. Ele não está

interessado se ele terminou, se ele não terminou. O negócio dele é estar aqui!

O que percebi na Academia foi a prática da musculação funcionando como uma

“ponte” entre as possibilidades de relações, ou até de novas relações, que podem acontecer

entre os sujeitos. A confiança entre os sujeitos é encontrada, principalmente, quando as

conversas que ocorrem entre eles extrapolam questões referentes somente ao treino de

musculação.

Os profissionais, com certa frequência, são buscados por usuários para conversas mais

particulares de suas vidas: vida pessoal, profissional e financeira. Os professores da Academia

já se depararam com situações extra treino, no que se refere aos diálogos estabelecidos na

Academia. Nesse momento, podemos entender que a prática da musculação funcionou ou foi

usada como um artefato de aproximação e vínculo entre um sujeito e outro que, dessa forma,

encontrou possibilidades de desabafar alguns de seus problemas e/ou algumas de suas

inquietações. P1, em entrevista, evidenciou em suas falas a questão da confiança e dos

vínculos estabelecidos na Academia:

83

[...] a gente teve uma questão de marido, marido e mulher, mulher que estava

passando por separação. Uma coisa que a pessoa sentiu, no primeiro contato a

pessoa já foi se soltando, desabafo! Chegou, então, depois de um tempo a gente foi

conversando e foi vendo que já estava estabilizado. A questão do primeiro baque da

separação já estava sendo superada. [...] existe essa confiança pra falar. E muitas

outras questões que chegam: “ah professora eu tinha passado assim, eu tinha

passado assado”. Então isso vem muito desse clima! [...] porque quando você vê

numa academia diferente, dita tradicional, então geralmente a pessoa ta ali pro treino

e pro treino acabou. O vínculo muitas vezes não se estabelece, muitas vezes porque:

“ah eu to pagando então tenho que usar todo tempo que tenho”. Então muitas vezes,

por ser fechado! E essa questão de ser aberta aqui, da liberdade que se dá ao aluno, a

gente vê o contato de um aluno com outro. Esse convívio sendo alimentado, contato

sendo feito... Igual, aluna hoje falando que recebeu um whatsapp do aluno

convidando pro churrasco, mas ela estava trabalhando não deu pra ir. E ele vem

desse espaço aqui, foi feita a relação aqui. Namoro surgindo, a gente já viu isso aqui

sendo construído também, e muitas vezes a gente até ta de olho ali, muitas vezes a

gente da umas dicas também, a gente percebe alguma coisa.

A escolha por um lugar diferente dos corriqueiramente frequentados por ele, ou

mesmo a busca por um novo meio social, fez com que U3 buscasse a Academia quando, a seu

ver, precisou se afastar de “companhias erradas”. A Academia correspondeu a um lugar novo

que ofereceu a ele novas possibilidades de conhecer e conviver com pessoas que não faziam

parte de seu dia-a-dia. Um refúgio para U3!

[...] Mas não foi caso de eu chegar a experimentar, mas como eu vi... Pulando anos à

frente, que aquilo estava fazendo mal a minha saúde, tava prejudicando o que eu

fazia. Eu gosto de jogar futebol, de correr, essas coisas, e minha respiração estava

muito ofegante. Chegou uma vez que eu desmaiei no Tancredão11

, me lembro até

hoje! Eu tinha acabado de fumar e fui fazer exercício na barra, e foi muito puxado.

Não o exercício normal que a galera faz, são outros exercícios avançados. E ali

minha pressão caiu e eu sozinho ali não tinha ninguém pra me ajudar! Eu desmaiei,

simplesmente desmaiei, não sei quanto tempo eu fiquei. Só sei que quando eu

acordei, eu tava encostado no móvel, não tinha ninguém, graças a Deus –risos– e

aquilo ali foi um motivo pra mim, tipo assim, dar uma parada e falar: “cara você não

precisa disso!” Eu era modelo da Prefeitura de Vitória, eu fui modelo da Prefeitura

de Vitória, fiz alguns trabalhos aqui, fiz trabalhos no Rio de Janeiro na época da

minha adolescência, e eu vi que eu tava desperdiçando as coisas boas que a vida

tinha me oferecido, e justamente por estar com pessoas erradas e ter entrado pra

questão de usar maconha, só maconha também! E a Academia cara, quando eu vim

pra Academia, justamente aquele cara lá que eu falei bem assim: “a calma aê!” É o

[Antônio], eu vim pra Academia justamente através dele, ele sempre foi meu amigo

de infância e ele me chamou pra vir pra Academia, e a Academia foi um refúgio pra

mim fugir do meio das pessoas que eu andava, não eram pessoas assim do tráfico,

eram pessoas da alta sociedade, mas porém pessoas que usavam, pra mim parar de

usar eu tinha que me afastar um pouco dessas pessoas...

A escolha de U3 em frequentar a Academia, objetivando, dessa forma, novas

alternativas para suas relações sociais, inclusive relações que fossem estabelecidas fora do

11

Centro Esportivo Tancredo de Almeida Neves (Tancredão): complexo esportivo localizado no bairro Mário

Cypreste, este corresponde a um dos 12 bairros que fazem parte da Grande Santo Antônio.

84

ambiente do trabalho e, consequentemente, não obrigatórias, nos remete a Gomes (1993, p.

64) e a sua afirmação acerca da sociabilidade. Esta, para o autor, pode ser entendida como,

[...] um conjunto de formas de conviver com os pares, como um „domínio

intermediário‟ entre a família e a comunidade cívica obrigatória. As redes de

sociabilidade são entendidas assim como formando um „grupo permanente ou

temporário‟, qualquer que seja seu grau de institucionalização, no qual se escolha

participar.

Os usuários estabelecem entre si relações diferentes das que constituem,

necessariamente, suas vidas privadas, ou seja, as relações predominantemente familiares. A

prática da musculação funciona, para a maioria dos usuários, como um meio de buscar a

sociabilidade, e a Academia configura-se, conforme Magnani (2003, p. 116) nos fala, como

um dos possíveis lugares do “pedaço”:

Enquanto o pedaço apresenta um contorno nítido, suas bordas são fluidas e não

possuem uma delimitação territorial precisa. O termo na realidade designa aquele

espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma

sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais

densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas

pela sociedade.

Considerando a comunidade de Santo Antônio como o “pedaço” em questão,

localizamos a Academia Popular como sendo um dos lugares de sociabilidade do “pedaço”,

além das pracinhas, dos bares, das igrejas e das feiras livres. Ela é frequentada por sujeitos do

“pedaço” (maioria) e por sujeitos de “fora do pedaço”, mas que pertencem ao dia-a-dia das

dinâmicas correspondentes às relações sociais que nela se efetivam. Quanto à sociabilidade,

Magnani (2003, p. 117) nos fala sobre a ocorrência dela em bairros de periferia de grandes

centros urbanos, assim como a Grande Santo Antônio:

[...] a periferia de grandes centros urbanos não configura realidade contínua e

indiferenciada. Ao contrário, está repartida em espaços territorial e socialmente

definidos por regras, marcas e acontecimentos que os tornam densos de significação,

porque constitutivos de relações. Se se compara, por exemplo, este quadro, com o

que ocorre em bairros ocupados por outros segmentos sociais, pode-se avaliar a

importância que o „pedaço‟ representa para as camadas mais baixas. Diferentemente

daqueles setores – onde na maioria das vezes os vínculos que ampliam a

sociabilidade restrita da família nuclear não são os de vizinhança, mas os que se

estabelecem a partir de relações de profissionais – uma população sujeita a

oscilações do mercado de trabalho e a condições precárias de existência, é mais

dependente da rede formada por laços de parentesco, vizinhança e origem. Essa

malha de relações assegura o mínimo vital e cultural que assegura a sobrevivência, e

é no espaço regido por tais relações onde se desenvolve a vida associativa, desfruta-

se o lazer, trocam-se informações, pratica-se a devoção – onde se tece, enfim, a

trama do cotidiano.

85

Leite (2002, p. 127), a partir de seus estudos acerca da revitalização de espaços

urbanos e públicos no Estado de Pernambuco, nos fala sobre a possibilidade de significados

que os indivíduos podem dar aos lugares que frequentam. Pensar a Academia Popular também

é entendê-la como um lugar com significados característicos à utilização/interpretação que os

sujeitos fazem dele:

As pessoas que o frequentavam pareciam estar ali para „consumi-lo‟ como símbolo,

para trocar significados, mais, enfim, pelo o que aquele espaço significava. As

diferenças, que se codificavam em cada gesto, roupas e adereços, tornavam mais

fluidas as fronteiras simbólicas que separam as pessoas, permitindo interações

múltiplas.

A sociabilidade é, portanto, um elemento intenso de ou para utilização da Academia

Popular. Pensar a Academia como um lugar entendido e utilizado pelos sujeitos que a

frequentam é pensar num lugar a partir dos novos significados dados a ele e expressos na

vivência, para além da prática da musculação adotada pelos próprios sujeitos na Academia.

86

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o processo etnográfico que vivi em minha pesquisa descobri, curiosamente,

uma nova forma de se fazer saúde, ou uma nova forma de se buscar saúde. Inicialmente, não

enxerguei na Academia Popular de Santo Antônio um ambiente com singularidades, ou

mesmo um ambiente característico da ou para a prática da musculação. Desconfiei! E, como

relatei no texto, “não conseguia „ver‟ a musculação ali”.

Ao presenciar muita “amizade, piada, apelidos, bate-papo e confraternizações” e

poucos ou nada de “suor, gritos, músculos, suplementos, roupas que „marcam‟ o corpo”, foi

então que “caiu a ficha”: “Preciso esquecer, nesse instante, que conheço outras academias, e

interpretar/refletir sobre qual prática corporal ou atividade física é realizada aqui. Essa prática

está localizada dentro das relações entre essas pessoas, será?! Eu preciso iniciar uma nova

jornada de olhares e percepções acerca desse lugar!” (Diário de Campo, 25 de fevereiro de

2014).

Assim consegui iniciar minhas primeiras páginas, consistentes, para estudar a

Academia e seus sujeitos. Não posso desconsiderar, para as anotações do diário de campo, o

momento no qual eu apenas passei a conhecer a história, a organização das atividades, os

nomes dos profissionais (refiro-me, também, aos funcionários da limpeza e segurança) e

outras características “duras” da Academia, mas considero como uma abertura para o caminho

da pesquisa o momento em que participei da primeira confraternização entre os profissionais

e, depois, das várias outras confraternizações que aconteceram naquele lugar, às quais estive

presente!

Ao me sentir inserida, o percurso referente às minhas percepções foi intenso. Com o

apoio dos professores, me aproximei dos usuários. Consegui conversar e passei a ter ideias,

preliminares, dos motivos que os faziam escolher malhar e permanecer na Academia. Dentre

os mais citados: “a estrutura „aberta‟, o vento „batendo‟ no rosto o tempo todo e a atenção das

professoras” (Diário de Campo, 14 de abril de 2014). Foi quando percebi, com mais clareza,

que o processo de promoção de saúde ali passava por vieses ligados não somente ao

movimento do corpo na prática da musculação, mas também ao modo como as professoras

faziam a Educação Física em suas mais variadas possibilidades de intervenção social. Neste

caso, intervenção na saúde!

Os cuidados que os professores oferecem aos usuários e a postura desses profissionais

naquele lugar embasam, a meu ver, as principais diferenças entre os ideais de promoção de

saúde em academias privadas de ginástica e musculação e aqueles da Academia Popular. Isso

87

porque atuar na perspectiva de acolhimentos e vínculos, como esses profissionais da

Academia fazem em suas intervenções, traz elementos relacionados a possibilidades de

mudanças acerca de fatores não tão óbvios, porém válidos, no processo de busca pela saúde.

Nesse contexto, se destacam as “tecnologias da saúde” e, entre elas, as “tecnologias-

leves”, que funcionam por meio, essencialmente, do “trabalho vivo em ato” dos profissionais

da área referida e são expressas a partir das relações do “encontro” entre os sujeitos,

profissional da saúde e usuários. Diante do aspecto “encontro”, a possiblidade do cuidado se

apresenta com maiores chances de, efetivamente, ocasionar uma intervenção mais próxima

das “necessidades” dos usuários. Entendemos, dessa forma, que

As tecnologias leves do trabalho vivo em ato na saúde são expressão de um processo

de relações intercessoras numa dimensão-chave: o encontro com o usuário e com

suas necessidades de expressão de si, de produção de um corpo para si (CECCIM;

BILIBIO, 2007, p. 55).

Na ocorrência dos vínculos entre os sujeitos na Academia, identifiquei que, a partir

desse “movimento”, a formação de um ambiente propício para a promoção da saúde tornou-se

um lugar característico dos aspectos da sociabilidade. Os apelidos, as piadas, a preocupação

com a falta do colega, dão à Academia Popular uma nova cara ou novo jeito de ou para o

usuário expressar e viver caminhos que o fazem buscar sua saúde. A sociabilidade, elemento

que requer atenção na dinâmica da Academia, nos mostra que a musculação pode funcionar

como ponte entre as relações dos diversos sujeitos no processo de promoção de saúde nesse

projeto. Dessa forma, não é a musculação, como “prática-fim”, a principal responsável pela

permanência dos usuários na Academia.

O processo metodológico de etnografia nos abre os olhos para as inúmeras

diversidades características do comportamento humano em sociedade. Ao voltar-me para as

questões que compunham a sociabilidade, especificamente na Academia, reduzi a minha

atenção para o que acontecia ou acontece fora daquele lugar na vida daqueles sujeitos. Logo,

compreender alguns “comos” e/ou “porquês” para a busca da saúde fica para um outro

momento de estudo em minha trajetória acadêmica. Diante disso, quero ressaltar que, nos

vários momentos em que ocorriam os diálogos abertos e as entrevistas, as justificativas

relacionadas ao horário em que os usuários frequentavam a Academia e aos motivos pelos

quais eles buscavam obter/manter sua saúde – com a prática da musculação – eram

relacionadas às suas funções profissionais e às suas escalas no trabalho.

88

Alguns usuários fazem exercícios específicos para o fortalecimento de determinadas

“áreas” do corpo que são, frequentemente, desgastadas pelo movimento excessivo e

concentrado no momento do trabalho: “O meu objetivo é, a princípio, ganhar resistência. Eu

[treino] com esse objetivo porque me ajuda no [trabalho] que eu pratico (U2)”; Alguns

usuários procuram se movimentar de algum jeito porque trabalham “sentados ou parados”:

[...] eu não pratico exercício pra ficar malhado, meu negócio é em prol da minha

saúde [...]. O meu trabalho como técnico em informática é sentado, entendeu? É

mais parado... Sentado... Não caminho, entendeu? Então, isso me prejudica muito

(U5).

Outros veem na prática da musculação (ou seria na sociabilidade que ele, o usuário,

encontrou ali?) uma maneira de não pensar no trabalho. Dentre tantas falas, vejo a vida

regrada e definida a partir do trabalho que o homem desenvolve em seu dia-a-dia. Aprofundar

essa (s) questão (ões) seria uma forma de conhecer como, de fato, os processos de promoção

da saúde estão ou são influenciados pelos papéis necessários ou dados ao homem durante todo

o processo de sua vida, que, aparentemente, pode estar voltada para o mundo do trabalho.

A partir desse estudo vivenciei, intensamente, a possibilidade de compreender ou até

de visualizar com mais clareza o que afirma Lunardi (1999, p. 27), a partir de Dejours e

Caponi, acerca da saúde:

[...] a saúde das pessoas deve ser encarada como „um assunto

ligado às próprias pessoas‟ (Dejours, 1986, p. 8), „alheia a qualquer padronização e a

qualquer determinação fixa e pré-estabelecida‟ (Caponi, 1997, p. 2), de modo a

impedir diferentes interpretações e legitimações, a priori, de controle e governo dos

outros.

Dessa forma, como eu poderia “articular” as questões do trabalho com a sociabilidade

que encontrei na Academia? Sobre quais “pontos” essas questões se (des) encontram? E quais

as consequências desses (des) encontros na e para a saúde do homem e, consequentemente,

em sua vida?

Finalizo esse estudo com mais curiosidades do que certezas. Acredito, no entanto, que

o caminho que nós, profissionais da saúde, podemos buscar corresponde às

novas/diferentes/variadas formas de cuidar de nossos corpos, de nossas saúdes e de nossos

alunos. Sob a perspectiva do cuidado, portanto, a atividade física torna-se um meio, deixando

de ser o fim para e na intervenção nos mais variados processos de promoção de saúde.

89

REFERÊNCIAS

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92

ANEXOS

Figura 18: Academia Popular de São Pedro

Diário de Campo

Figura 19: Praça Dom João Batista, São Pedro, na qual se localiza a Academia Popular de São Pedro

Diário de Campo

93

Figura 20: Academia Popular de Maruípe

Diário de Campo

Figura 21: Parque Municipal Horto de Maruípe, no qual se localiza a Academia Popular de Maruípe

Fonte: https://ssl.panoramio.com/photo/38973113, acessado em 25/11/2014.

94

ROTEIRO PARA A ENTREVISTA DOS USUÁRIOS DA ACADEMIA POPULAR

. Caracterização do sujeito (informações gerais);

. Nome, idade e profissão;

- O sujeito e o espaço da Academia Popular:

. Quanto tempo você frequenta a Academia? Qual é a frequência? Já frequentou outra

academia? Por quanto tempo?

. Em qual horário você vem para a academia? Por quê?

. Você frequenta esta academia com qual objetivo? Quais atividades você realiza aqui?

. Por que a busca pelo espaço da Academia? Você faz outras atividades físicas fora daqui?

Quais?

. Qual é a importância do espaço? (existe alguma importância?)

. Qual é a relação com o espaço da Academia? (usuários/amigos e profissionais); E com o

SOE?

. Você considera que ela lhe proporciona os meios adequados (tanto equipamentos como

acompanhamento adequado) para que você possa atingir seus objetivos?

. Como se sente no espaço da Academia?

. Do que você mais gosta aqui? E do que menos gosta?

. O que poderia ser feito para melhorar o espaço?

. Qual era sua expectativa em relação ao espaço da Academia Popular? (havia?) Está sendo

correspondida?

. Algum episódio marcante aconteceu na Academia que você gostaria de falar?

- O sujeito, a saúde e a prática corporal:

. O que é saúde?

. O que é qualidade de vida?

. Por que a prática de atividade física?

. Existe algum “sentimento” de responsabilidade em relação aos cuidados para com a saúde?

. Relação prática corporal e saúde > comentários!

95

. Você tem cuidados especiais com sua alimentação?

. Você utiliza suplementos alimentares?

. Você compra roupas específicas para frequentar a Academia?

. Qual a imagem corporal você tem de si

. Existe a busca para obter informações/conhecimentos acerca de cuidados para com a saúde?

E em relação ao corpo? Quais?

ROTEIRO PARA A ENTREVISTA DOS PROFESSORES DA ACADEMIA POPULAR

Um diálogo sobre...

. A Academia Popular e a comunidade de Santo Antônio (serviços, buscas e atitudes dos

professores);

. A Academia Popular e o SOE: parceria? Como acontece?

. O funcionamento da Academia Popular;

. As secretarias da Prefeitura Municipal de Vitória: como trabalham na Academia Popular e

no SOE?

. A estrutura da Academia Popular (espelhos, materiais, localização etc.);

. Informações aos usuários: possíveis ações das professoras da Academia Popular diante das

questões relacionadas ao bem-estar, à qualidade de vida. Quais tipos de intervenção fazem

para com os usuários?

. Relação prática corporal e saúde;

. O projeto das Academias Populares e a ação das professoras: divergências e convergências;

. O que é saúde?

. O que é qualidade de vida?

. E a saúde da professora? E a qualidade de vida da professora?

. Formação continuada: necessidades e buscas;

. Quais saberes são mobilizados pelas professoras? Quais conhecimentos são necessários às

professoras para suas intervenções?

. A questão do belo, da beleza estética corporal no ambiente da Academia Popular.