AO AR LIVRE: UM ESTUDO NA ACADEMIA POPULAR DE SANTO...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DESPORTOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA
SAYONARA CARLA DOS SANTOS PINTO
AO AR LIVRE: UM ESTUDO NA ACADEMIA POPULAR DE SANTO
ANTÔNIO EM VITÓRIA-ES
VITÓRIA
2015
SAYONARA CARLA DOS SANTOS PINTO
AO AR LIVRE: UM ESTUDO NA ACADEMIA POPULAR DE SANTO
ANTÔNIO EM VITÓRIA-ES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação Física do Centro de
Educação Física e Desportos da Universidade
Federal do Espírito Santo, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Educação Física.
Orientador: Prof. Dr. Felipe Quintão de
Almeida.
Coorientador: Prof. Dr. Ivan Marcelo Gomes
VITÓRIA
2015
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que de alguma forma me fizeram continuar e sorrir... Em especial aos meus
guerreiros orientadores, Felipe e Ivan, e aos queridos professores da Academia Popular de
Santo Antônio!
Obrigada, Senhor!
Eu não sou besta pra tirar onda de herói
Sou vacinado, eu sou cowboy
Cowboy fora da lei
Durango Kid só existe no gibi
E quem quiser que fique aqui
Entrar pra história é com vocês!
(Cowboy Fora da Lei, Raul Seixas)
RESUMO
Este estudo teve como principal objetivo compreender os elementos que caracterizam o
processo de promoção de saúde no espaço público da Academia Popular de Santo Antônio em
Vitória-ES. A Academia tem a prática da musculação como atividade principal. Esta proposta
de investigação se caracteriza como um estudo de natureza etnográfica (STIGGER, 2002).
Foram realizadas 53 visitas ao lócus da pesquisa no período entre outubro de 2013 a janeiro
de 2015, durante o turno matutino em horários variados. As análises partiram da aproximação
com o lócus da pesquisa e inserção no mesmo, da descrição da Academia Popular de Santo
Antônio, da caracterização do local no qual a Academia se localiza e da apresentação do
Projeto Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória. A partir daí, apontamos a
história das academias de ginástica e musculação no Brasil considerando os estágios de
desenvolvimento das mesmas. Nesse contexto foram feitas considerações relacionando a
Academia Popular de Santo Antônio com os referidos estágios de desenvolvimento. Realizou-
se, além disso, a discussão sobre algumas diferenças marcantes entre as academias privadas
de musculação e a Academia Popular de Santo Antônio. Foram analisadas, também, as
“tecnologias da saúde” (MERHY, 2002) compartilhadas pelas professoras da e na Academia
Popular. Foi evidenciada a importância do uso, em específico, das “tecnologias leves” no
processo de promoção de saúde desenvolvido pelas professoras na Academia Popular. Nesse
aspecto, torna-se interessante a reflexão acerca de questões, essencialmente, relacionadas aos
vínculos e acolhimentos estabelecidos entre os sujeitos do lócus da pesquisa. A análise dessa
característica configura a questão da sociabilidade. Esta é pensada a partir das falas e dos
acontecimentos do dia-a-dia do lócus da pesquisa, que revelam como a promoção da saúde
pode se relacionar, ou mesmo estar ligada, diretamente, com as ações de vínculos e
acolhimentos entre os sujeitos envolvidos, de uma forma geral, com os projetos da área da
saúde.
PALAVRAS-CHAVE: Academia Popular, Promoção da Saúde, Sociabilidade.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura ................. 16
Figura 2: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura ................. 17
Figura 3: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura ................. 17
Figura 4: Academia Popular de Santo Antônio após a reforma e sua estrutura sem paredes .. 17
Figura 5: Academia Popular de Santo Antônio e sua estrutura sem paredes ........................... 18
Figura 6: Academia Popular de Santo Antônio – maquinários e materiais para a prática da
musculação após a reforma em sua estrutura ........................................................................... 19
Figura 7: Academia Popular de Santo Antônio; espaço vazio, máquinas para a musculação e
módulo do SOE ........................................................................................................................ 26
Figura 8: Basílica de Santo Antônio, Vitória-ES ..................................................................... 32
Figura 9: Mapa da Regional 2 – Regional Santo Antônio ........................................................ 33
Figura 10: Baía de Vitória, Praça Estela Coimbra e parte do bairro de Santo Antônio ........... 37
Figura 11: Praça Estela Coimbra – pista para caminhada e Baía de Vitória ............................ 38
Figura 12: Playground em Praça Estela Coimbra ..................................................................... 38
Figura 13: Núcleo de Integração Social para Pessoas Idosas Ondina Escobar Fonseca, Praça
Estela Coimbra ......................................................................................................................... 39
Figura 14: Campo de areia e pista para caminhada em Praça Estela Coimbra ........................ 39
Figura 15: Quadra Poliesportiva localizada ao lado da Academia Popular de Santo Antônio e
pista para caminhada ................................................................................................................ 40
Figura 16: Academia Popular de Santo Antônio – espaço vazio e o Módulo do SOE ............ 42
Figura 17: Academia Popular de Santo Antônio descoberta e o Módulo do SOE ................... 44
Figura 18: Academia Popular de São Pedro ............................................................................. 92
Figura 19: Praça Dom João Batista, São Pedro, na qual se localiza a Academia Popular de São
Pedro ......................................................................................................................................... 92
Figura 20: Academia Popular de Maruípe ................................................................................ 93
Figura 21: Parque Municipal Horto de Maruípe, no qual se localiza a Academia Popular de
Maruípe ..................................................................................................................................... 93
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10
ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS ................................................................................ 15
1 UMA ESTRANHA NO NINHO: MINHA INSERÇÃO NA ACADEMIA POPULAR DE
SANTO ANTÔNIO .................................................................................................................. 25
1.1 A COMUNIDADE DE SANTO ANTÔNIO E A ACADEMIA POPULAR DE SANTO
ANTÔNIO ............................................................................................................................ 30
1.2 AS ACADEMIAS POPULARES DE VITÓRIA: O PROJETO POLÍTICO
PEDAGÓGICO DAS ACADEMIAS DE VITÓRIA (PPPAV)........................................... 46
2 ACADEMIAS DE MUSCULAÇÃO E DE GINÁSTICA: A HISTÓRIA NO BRASIL ..... 52
2.1 ACADEMIAS PRIVADAS DE MUSCULAÇÃO X ACADEMIA POPULAR:
ALGUMAS DIFERENÇAS ................................................................................................. 57
2.2 A PROMOÇÃO DA SAÚDE NA ACADEMIA POPULAR DE SANTO ANTÔNIO 66
3 A QUESTÃO DA SOCIABILIDADE NA ACADEMIA... .................................................. 78
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 86
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 89
ANEXOS .................................................................................................................................. 92
10
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo principal compreender os elementos que
caracterizam o processo de promoção da saúde no espaço público da Academia Popular de
Santo Antônio em Vitória-ES, na qual a prática da musculação acontece como atividade
principal.
Diferenciando-se, possivelmente, no que se refere aos fatores lucratividade e mercado
consumidor, do setor das academias privadas, encontramos as “Academias Populares ao Ar
Livre no Brasil” como exemplos de espaços públicos nos quais são propagados os ideais da
busca pela qualidade de vida atrelada ao exercício de atividade física de acordo com o Projeto
Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória (PPPAV, 2008). Espaços públicos
como estes contribuíram, em Vitória-ES, para a elaboração das “Academias Populares”, que
tendem a disponibilizar estruturas adequadas e profissionais de Educação Física buscando,
dessa forma, dar à população local condições e incentivos para a realização de atividades
físicas, visando, sobretudo, promover saúde.
A promoção da saúde é compreendida como ações diversas e interligadas dos vários
setores governamentais, não governamentais e privados, que, por meio de projetos sociais,
visam incentivar os indivíduos a buscar e/ou cuidar de sua saúde, dando-lhes
possibilidades/caminhos para a realização de tais ações. A respeito das práticas de saúde
orientadas à promoção da saúde, observamos que
Todas as práticas de saúde orientadas para os modos de andar a vida, melhorando as
condições de existência das pessoas e coletividades demarcam intervenção e
possibilidades às transformações nos modos de viver, trabalham com promoção da
saúde, prevenção de doenças e agravos, ações de reabilitação psicossocial e proteção
da cidadania, entre outras práticas de proteção e recuperação da saúde
(CARVALHO; CECCIN, 2006, p. 3).
O estudo dos projetos que buscam atender às políticas públicas de saúde, nos termos
da promoção da saúde, se tornou um fator fundamental para a análise e reflexão acerca do
comportamento relacionado à saúde e à atividade física que os sujeitos frequentadores desses
lugares operam em sociedade. Investigações relevantes que abarcam os temas em questão,
considerando o espaço público para a prática de atividades físicas dos indivíduos e seus
“desdobramentos” na sociedade, como estudos de Andrade (2010) e do Ministério da Saúde
(2011), evidenciam a necessidade de se estabelecer com esses ambientes uma relação estreita
de problematização, investigação e conhecimento.
11
Essa pesquisa se insere no conjunto dos estudos e das problematizações que derivam
de novas políticas públicas na área da saúde as quais tendem a atingir os sujeitos em seus
hábitos de vida. Ela está inserida no contexto do projeto “Políticas de Formação em Educação
Física e Saúde Coletiva: atividade física/práticas corporais no SUS”, desenvolvido por grupos
de pesquisas pertencentes a três universidades públicas: Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Universidade de São Paulo e Universidade Federal do Espírito Santo. O propósito
geral deste projeto é investigar e problematizar políticas de formação de estudantes de
Educação Física para atuação em Saúde Coletiva e analisar a implantação das práticas
corporais junto ao SUS.
Buscar investigar espaços públicos, como as Academias Populares1, no município de
Vitória-ES, gera possibilidades de estudar de maneira aprofundada esses ambientes
considerados ainda “terrenos” pouco explorados por nossa comunidade científica e que são
estruturados/idealizados pelas esferas políticas para possibilitar o acesso dos indivíduos a
meios de se obter e manter saúde. Portanto, a pesquisa tende a colaborar com o
desenvolvimento, a compreensão e a exploração de questões acerca dos espaços públicos no
município de Vitória-ES que foram planejados e construídos, especificamente, para se atender
1 O munícipio de Vitória-ES possui 3 Academias Populares: 1) A Academia Popular de São Pedro fica
localizada no Bairro de São Pedro na Praça Dom João Batista e foi a segunda Academia Popular a ser
inaugurada no município, fato ocorrido no ano de 2007. A academia é coberta e apresenta espaço e maquinário
em boa conservação para a prática de musculação. Próximo à academia há um módulo SOE (ver nota de rodapé
número 5). Durante os turnos matutino, vespertino e noturno, assim como nas outras Academias Populares,
vigilantes patrimoniais se revezam nos trabalhos de cuidados e preservação da academia. A Praça Dom João
Batista se apresenta como um ambiente amplo, agradável e com boa estrutura para as práticas de atividades
físicas e recreativas, apresentando em seu espaço, além da Academia Popular, playground, áreas para eventos e
quadras poliesportivas; 2) A Academia Popular de Maruípe fica localizada no Parque Municipal Horto de
Maruípe, local com grande número de árvores e um pequeno e estreito rio que o atravessa. Além da academia,
neste local há quadras poliesportivas, pistas para caminhadas, módulo do SOE e uma Academia Popular para a
Pessoa Idosa. Em um total de 6 seguranças, o Horto de Maruípe é um ambiente muito frequentado não somente
pela população do bairro referido, mas também de bairros vizinhos: Bairro da Penha, Bairro do Bonfim e Bairro
de Itararé. Segundo informações acerca do Bairro de Maruípe, essas comunidades apresentam problemas sociais
diversos, dentre os quais se destaca a violência relacionada ao tráfico de drogas. Esse fator pode influenciar os
níveis de cuidados e segurança para com o espaço e pessoas que frequentam as localidades do Parque Municipal
Horto de Maruípe e suas dependências. De acordo com o projeto das Academias, a Academia Popular de
Maruípe teria sido inaugurada, também, no ano de 2007, após a inauguração da Academia Popular do Bairro de
Santo Antônio. Mas, de acordo com o professor da academia, ela foi inaugurada no início de 2008. Uma
característica marcante dessa academia refere-se à falta da cobertura em sua estrutura. A cobertura nunca foi
adotada nesse espaço. Com isso, as máquinas, os pesos, dentre outros materiais, ficam constantemente
enferrujados. O chão desta academia apresenta falta de borrachas (que são usadas para cobrirem o chão) e,
consequente, depredação do piso. Ver imagens em anexo; 3) A Academia Popular de Santo Antônio será
referenciada ao longo do texto por corresponder ao lócus da pesquisa proposta.
Obs.: Mais duas Academias Populares foram inauguradas no município de Vitória/ES: Academia Popular de
Itararé em novembro de 2014 e Academia Popular de Ilha de Santa Maria em julho de 2015. Devido ao tempo do
desenvolvimento deste estudo não apresentarei informações mais consistentes acerca dessas duas Academias
Populares.
12
a determinadas necessidades colocadas em discurso para a sociedade a partir dos projetos para
a promoção da saúde dos sujeitos. De acordo com Leite (2002, p. 116),
Embora o espaço público se constitua, na maioria das vezes, no espaço urbano,
devemos entendê-lo como algo que ultrapassa a rua; como uma dimensão
socioespacial da vida urbana, caracterizada, fundamentalmente, pelas ações que
atribuem sentidos a certos espaços da cidade e são por eles influenciadas.
Pensar/refletir os conceitos acerca dos elementos que configuram a saúde do homem
nos remete, de um modo geral, aos caminhos tradicionais do pensamento médico-científico
que baseia, secularmente e de maneira expressiva, a formação de profissionais da área da
saúde e, consequentemente, as ações relacionadas aos atos dos cuidados em saúde em nossa
sociedade. Para Bilibio (2013, p. 134),
[...] desde o século XIX que o campo de saber médico-científico é legitimado
socialmente como o setor da sociedade apto para estabelecer a verdade sobre o que é
a saúde e a doença, o que é o normal e o patológico (Foucault, 1979). Os pontos da
reta do pensamento na saúde são estabelecidos pelo saber biomédico. Na perspectiva
moderna da biomedicina, a saúde é trabalhada como a ausência de doenças [...].
Dessa forma, este estudo pode contribuir, também, para a reflexão acerca de possíveis
novas formas/considerações de se pensar e se fazer saúde que não por meio, necessariamente,
de cristalizações e/ou padronizações dos elementos conceituais sobre a atividade física como
fator indispensável à conquista e à manutenção da saúde nesses lugares, pois:
Olhar ao redor e perceber as armadilhas que o discurso da atividade física e saúde
prepara pode ser um exercício interessante para a reflexão: „Deve-se fazer atividade
física para se ter saúde‟. Quais os pressupostos que fundamentam e justificam o uso
do verbo dever? Trata-se de uma mensagem que agrega – imperativos morais, éticos
e estéticos que ditam padrões a serem preconizados pelos interlocutores (ALVES;
CARVALHO, 2010, p. 230).
No Brasil, projetos políticos que envolvem a disseminação de ideias referentes aos
cuidados com a saúde têm tomado forma a partir de interferências diretas na vida de homens e
mulheres. Em 2006, foi criada a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), que
consiste em uma ação governamental que buscou, e ainda busca, ratificar o compromisso do
Ministério da Saúde na ampliação e na qualificação de ações da promoção da saúde nos
serviços e na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), buscando evidenciar e promover, por
meio de projetos diversos de âmbito nacional, a prática de hábitos saudáveis de vida e a
consequente melhoria da qualidade de vida dos indivíduos. No relatório da Política Nacional
de Promoção da Saúde (MALTA, 2009, p. 81), observamos que
13
No sentido de garantir a integralidade do cuidado à saúde, a Política Nacional de
Promoção da Saúde dispõe diretrizes e recomenda estratégias de organização das
ações de promoção da saúde nas três esferas de gestão do SUS. Em seu texto
introdutório, o conceito e as ações de „Promoção da Saúde‟ apresentados e adotados
pelo Ministério da Saúde permitem entrever o centro do trabalho na produção da
saúde.
Espaços públicos planejados e construídos para a atuação de profissionais da saúde,
como médicos, psicólogos e professores de educação física, estão sendo oferecidos à
população por meio de recursos/investimentos federais, estaduais e municipais.
A partir desse contexto e de acordo com o PPPAV (2008), a primeira Academia
Popular ao Ar Livre surgiu em 1930, nos EUA, na praia de Santa Mônica, Sul da Califórnia.
“Durante quase três décadas, as pessoas frequentaram aquele local, até que, em 1959, o
espaço, também conhecido como Muscle Beach, foi fechado” (PPPAV, 2008, p. 9).
Outras academias correspondentes ao modelo citado foram idealizadas e se
apresentaram como uma boa opção para a prática da musculação em ambiente aberto (ao ar
livre), diferenciando-se, desse modo, das academias estruturalmente caracterizadas pelo
ambiente/espaço “fechado”, no qual os sujeitos realizam suas práticas corporais:
A partir daí, criou-se o conceito „Muscle Beach‟ e a cidade de Los Angeles logo
idealizou a academia Venice Muscle Beach, frequentada principalmente por
fisiculturistas e levantadores de peso, em busca do „corpo perfeito‟ ou desempenho
atlético. A intenção era praticar musculação sem estar dentro de uma academia
fechada e não demorou muito para a Venice ser chamada de Muscle Beach por seus
frequentadores nas décadas de 1960 e 1970 (PPPAV, 2008, p. 9).
Em 1999 foi criada a primeira Academia ao Ar Livre na América do Sul, sendo o
Brasil o País pioneiro em sua elaboração. Localizada na Praia de Ipanema, recebeu o nome de
Muscle Beach Ipanema e, apesar de ser idealizada aos moldes da Venice Muscle Beach, a
academia em Ipanema apresentou diferenças essenciais:
A Muscle Beach Ipanema, localizada na praia de mesmo nome, foi idealizada nos
moldes da Venice Muscle Beach, porém com algumas diferenças, como a qualidade
dos equipamentos, bem como a gratuidade na entrada, visando o aspecto social do
projeto. Na academia de Los Angeles, além de pagar pelo uso do espaço, as pessoas
tinham à disposição aparelhos mais simples e fabricados em ferro. Já na versão
carioca, todo o equipamento era fabricado em aço inoxidável, garantindo resistência
e durabilidade às máquinas (PPPAV, 2008, p. 10).
O projeto inaugurado, inicialmente, na Praia de Ipanema, foi expandido para outras
cidades do País e adaptado às necessidades de cada região. Nesse contexto, foi criada a
14
primeira Academia Popular ao Ar Livre do Estado do Espírito Santo, mais precisamente, no
bairro Santo Antônio, localizado no município de Vitória:
Partindo dos modelos americanos e passando pelo sucesso da Muscle Beach
Ipanema, as academias ao ar livre foram adequadas e adaptadas às necessidades de
cada localidade, funcionando atualmente de forma permanente em diversos
municípios do Rio de Janeiro e de outros estados do Brasil. (...). Projetos como esse
visam a democratização do espaço, priorizando a saúde e o bem-estar dos
praticantes. A cidade de Vitória-ES aderiu a essa tendência e inaugurou, em 2006, a
primeira academia popular ao ar livre do Estado do Espírito Santo (PPPAV, 2008, p.
10).
X2, Secretário de Esportes e Lazer da Prefeitura de Vitória na época de inauguração da
Academia Popular de Santo Antônio, relatou-me que o prefeito João Coser, durante sua
gestão, buscou uma ideia relacionada à promoção de saúde para a população de Vitória. A
troca de informações sobre este projeto ocorreu entre o prefeito de Vitória e um contato que
ele possuía no município de Campos dos Goytacazes, no Estado do Rio de Janeiro, onde o
projeto das Academias Populares já funcionava. Dessa forma, João Coser trouxe o referido
projeto para o município de Vitória.
A escolha pela Academia Popular de Santo Antônio como lócus da pesquisa ocorreu
pelo fato de ela ser a primeira Academia Popular implantada no Estado, fato ocorrido em
2006. E, ainda, por localizar-se em uma região de grande população e extensão territorial,
sendo constantemente “alvo” de investimentos (projetos sociais) de políticas públicas do
município.
O turno matutino foi escolhido por questões particulares referentes: à locomoção
necessária para realizar as visitas na Academia (faço uso do transporte coletivo, num total de
quatro ônibus para a realização do percurso casa-Academia Popular-casa) e ao meu receio de
frequentar a comunidade em horário noturno, uma vez que a região é bastante conhecida no
quesito violência. Inclusive, a respeito do turno escolhido para a realização da pesquisa, após
estabelecer meus primeiros contatos dentro da Academia, alguns usuários me orientaram a
não ir, ou mesmo, a não frequentar a região à noite. Segundo esses usuários, eu poderia passar
por “situações perigosas” e/ou “não muito agradáveis”.
2 X: Entrevista realizada no dia 03/06/2014 em seu local de trabalho.
15
ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
Esta proposta de investigação se caracteriza como um estudo de natureza etnográfica,
uma vez que realizo a análise e busco compreender as relações estabelecidas entre os sujeitos
(professores e alunos) na Academia Popular de Santo Antônio em Vitória-ES, por meio de
minha inserção na Academia. Sobre o estudo de caráter etnográfico, afirma Stigger (2002, p.
5-6) que,
Neste caminho, o trabalho do investigador desenvolve-se num processo de imersão
na cultura estudada, na perspectiva de apreendê-la na sua complexidade, muitas
vezes não explícita, interpretando-a a partir das significações que os indivíduos
atribuem aos seus comportamentos; após este processo, o investigador deve torná-la
acessível pela sua apresentação na forma descritiva. Esta é uma característica
fundamental dos estudos etnográficos [...].
Em Magnani (2003) encontramos referência ao processo metodológico etnográfico na
pesquisa. Ele remete-se a Geertz para evidenciar as características que dão à etnografia suas
possibilidades de percepções a partir das variedades de elementos com que o pesquisador se
depara em seu campo de pesquisa e estudos:
[...] Fazer a etnografia é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio
de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escritos não
com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de
comportamento modelado (GEERTZ, 1978 apud MAGNANI, 2003, p. 19).
Realizei 53 visitas à Academia, no período entre outubro de 2013 a janeiro de 2015.
Frequentei o turno matutino, variando o número de visitas durante a semana, os dias da
semana e os horários referentes às aulas de musculação para minhas observações, conversas e
anotações. A intenção de tais variações foi de visualizar e conviver com o maior número
possível de alunos (e suas características diversas) que frequentam a Academia.
Compreendi, nesse processo metodológico, os sujeitos como colaboradores diretos,
cedendo a mim as entrevistas, e colaboradores indiretos que não participaram do processo das
entrevistas, mas, por frequentarem rotineiramente a Academia Popular, colaboraram com as
inúmeras observações e/ou percepções que eram despertadas em mim diante da dinâmica da
Academia Popular.
Em minha primeira visita à Academia, percebi a sensação de “liberdade” que os
alunos compartilham durante suas atividades. Relacionei, imediatamente, ao fator estrutural
que configura aquele lugar, já que não há ao redor da Academia paredes e espelhos. A
16
impressão de “liberdade” ocorre também ao perceber que os alunos não buscam “desfilar”
roupas exuberantes e corpos super malhados, pois:
Não percebi relações comerciais naquele espaço. E os praticantes desenvolvem suas
práticas calmamente, parecem desfrutar o fator de a Academia ser aberta, ou seja,
não apresentar em sua estrutura paredes e espelhos. Consegui visualizar pessoas que,
por vários momentos descansam ao „vento‟ da Academia, que é possibilitado pela
estrutura da mesma (Diário de Campo, 2 de outubro de 2013).
Torna-se, portanto, um ambiente arejado, e os usuários usufruem dessa característica
da Academia.
Em seguida, há algumas imagens da Academia Popular de Santo Antônio, referentes
aos períodos anterior e posterior à reforma que ocorreu em sua “estrutura aberta” ao final do
ano de 2014.
Figura 1: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura
Diário de Campo
17
Figura 2: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura
Diário de Campo
Figura 3: Academia Popular de Santo Antônio antes da reforma em sua estrutura
Diário de Campo
18
Figura 4: Academia Popular de Santo Antônio após a reforma e sua estrutura sem paredes
Diário de Campo
Figura 5: Academia Popular de Santo Antônio e sua estrutura sem paredes
Diário de Campo
19
Figura 6: Academia Popular de Santo Antônio – maquinários e materiais para a prática da musculação após a
reforma em sua estrutura
Diário de Campo
Acredito ser interessante diferenciar os dias caraterísticos das visitas3 à Academia dos
dias nos quais eu estive inserida naquele lugar. A inserção propriamente dita foi caracterizada
pelo convite feito a mim para a participação no café da manhã em comemoração ao
aniversário do professor S. Nesse instante, os profissionais colaboraram para a configuração, a
meu ver, de minha completa e necessária inserção na Academia, bem como para a minha
aproximação em relação aos usuários, uma vez que eles puderam visualizar, de fato, a
convivência pacífica que ocorria entre mim e os profissionais. Em meu diário de campo
relatei o ocorrido, junto a minha sensação de não ser mais ou (apenas) visitante e, sim, pessoa
inserida no contexto da Academia Popular:
Hoje participei da primeira confraternização na Academia Popular para a qual fui
convidada: café da manhã em comemoração ao aniversário do professor S. A minha
sensação é de compor aquele grupo de profissionais, fazer parte dele! Foi um
momento de não estranhamento entre mim e eles, e os alunos que visualizavam tal
comemoração me observavam. Espero, com isso, conseguir me aproximar mais dos
usuários e estreitar as conversas com os profissionais, em especial com os
professores! (Diário de Campo, 10 de dezembro de 2013).
3 O termo “visita” será utilizado ao longo do texto para falar sobre os dias em que estive na Academia. Mas,
como relatado no texto, houve um momento que marcou minha total inserção no espaço pesquisado.
20
Para melhor explorar a possibilidade das variedades informativas que a Academia e
seus sujeitos poderiam conceder para minha posterior análise, iniciei a pesquisa com alguns
procedimentos metodológicos em vista: escrita do diário de campo, entrevistas com roteiros
diferentes para professores e alunos, diálogos abertos4, fotos da Academia e dos seus
arredores. Concentrei-me, ainda, nas expressões adversas que o campo poderia me mostrar
sem, a priori, questioná-lo.
Para a elaboração dos roteiros utilizados por mim na entrevista com os usuários e com
as professoras, observei a relação que os próprios buscavam estabelecer com o ambiente da
Academia e com seus sujeitos, fazendo uma combinação de possíveis questionamentos para
evidenciar informações acerca dos sujeitos ainda não percebidas por mim durante as minhas
visitas.
Termos como qualidade de vida, saúde e bem-estar foram utilizados no roteiro
elaborado para as entrevistas dos alunos e dos professores. A estrutura da Academia também
foi um tema abordado durante nossas entrevistas, uma vez que pude perceber inúmeras
menções feitas a ela durante minhas visitas ao local.
O roteiro utilizado para desenvolver as entrevistas com os professores da Academia foi
previamente revisado por mim e pelas professoras da Academia, em conversa que antecedeu a
realização das entrevistas e apresentou temas que abarcaram, também, a relação entre as
secretarias de Esportes e Lazer e Saúde, que administram os espaços da Academia Popular e
do Serviço de Orientação ao Exercício (SOE)5, respectivamente.
Realizamos uma conversa sobre os „rumos‟ do estudo, o diário de campo, as
entrevistas já feitas com alguns usuários e sobre os roteiros, principalmente sobre o
roteiro para a entrevista com as professoras. Os professores se mostraram
interessados (e muito) pela pesquisa e colaboraram para a construção do roteiro que
resultará em nossas discussões. Foi muito positiva para entendimentos e
4 Considero “diálogos abertos” aqueles que ocorrem durante a dinâmica das aulas entre os sujeitos da Academia
e entre mim e os mesmos, sem prévia estruturação de temas, nem escolhas de participantes. São as conversas
“imprevistas”.
5 Idealizado em 1991, o Serviço de Orientação ao Exercício (SOE) é um tipo de serviço oferecido pela Prefeitura
de Vitória, vinculado à Secretaria Municipal de Saúde, para o município em diversas localidades como: Santo
Antônio, São Pedro, Horto de Maruípe, Centro de Vitória, Avenida Beira Mar, dentre outras, sendo diretamente
ligado às ações de saúde promovidas pela Prefeitura. Podemos citar também as ações relacionadas às Unidades
Básicas de Saúde (UBS) e às Academias Populares para a Pessoa Idosa como exemplos de atuação dos
professores do SOE. Na Praça Estela Coimbra, em Santo Antônio, onde fica localizada a Academia Popular de
Santo Antônio, o SOE foi instalado no ano de 1992 para prestar serviços ligados à promoção da saúde à
comunidade. Com a implantação da Academia Popular nessa localidade, o SOE passou a subsidiá-la. Esse
subsídio também ocorre junto às outras Academias Populares do município. Para maiores informações sobre o
SOE ver estudo de Beccalli (2012) denominado “Mais que atividade física: os usos e entendimentos da saúde
entre usuários do Serviço de Orientação ao Exercício da Prefeitura Municipal de Vitória”.
21
questionamentos na conclusão da elaboração do roteiro (Diário de Campo, 2 de abril
de 2014).
Realizei 10 entrevistas; com autorização dos entrevistados, fiz a gravação de todas as
falas. As entrevistas ocorreram entre os meses de fevereiro do ano de 2014 e janeiro do ano de
2015. Os locais variavam entre o ambiente da Academia e a pracinha na qual ela funciona (o
colaborador quem escolhia o local), tendo todas as entrevistas sido feitas no turno matutino.
Excetuou-se a este padrão, apenas, o entrevistado X, com o qual desenvolvi a entrevista em
seu ambiente de trabalho, localizado no município de Vila Velha, no período vespertino.
Esboçarei e organizarei, a seguir, algumas características referentes aos entrevistados,
as quais considero interessantes para melhor compreensão dos possíveis leitores desse estudo,
para que tenham ideias mais próximas ao lócus da pesquisa e aos sujeitos estudados.
. Usuário U1: Homem, 33 anos, atendente de bar e frequentador da Academia há 8 meses;
. Usuário U2: Homem, 31 anos, auxiliar portuário e frequentador da Academia há 6 anos;
. Usuário U3: Homem, 32 anos, vigilante e agente penitenciário e frequentador da Academia
há 5 anos;
. Usuário U4: Mulher, 35 anos, dona de casa e estudante, frequentadora da Academia há 1
ano e meio;
. Usuário U5: Homem, 45 anos, técnico em informática, frequentador da Academia há 1 ano;
. Usuário U6: Mulher, idosa, dona de casa e pensionista, frequentadora da Academia há 7
anos;
. Entrevistado X: Secretário de Esportes na época da implementação/inauguração da
Academia Popular de Santo Antônio;
. Professor P1: Professora da Academia desde fevereiro de 2012, 45 anos, vinculada à
Secretaria de Esportes e Lazer de Vitória (SEMESP) e formada em Educação Física há 24
anos.
22
. Professor P2: Professora da Academia desde janeiro de 2013, 37 anos, vinculada à
Secretaria de Esportes e Lazer de Vitória (SEMESP) e formada em Educação Física há 15
anos; é formada também em Enfermagem; o curso foi feito após o término da faculdade de
Educação Física. A professora não trabalha como profissional de Enfermagem;
. Professor S: Professor do SOE desde 2007, 39 anos, vinculado à Secretaria de Saúde de
Vitória (SEMUS) e formado em Educação Física há 8 anos.
A escolha dos alunos que participaram das entrevistas ocorreu com total apoio das
professoras da Academia.
Para que alguns alunos aceitassem participar das entrevistas, percebi o papel
fundamental das professoras no processo de aproximação entre mim e eles. A fala/intervenção
das professoras tornou-se um “canal” direto entre mim e os usuários da Academia. Percebi
uma relação de confiança entre as professoras e os usuários. Com necessidade de
aproximação entre mim e os alunos, considerei, junto a elas, fatores como a assiduidade do
aluno e o horário em que ele frequenta a Academia. De acordo com as professoras, alguns
alunos têm preferência por horários específicos para frequentarem a Academia; desse modo,
podemos encontrar características particulares de sujeitos, ou mesmo dos grupos (que não
apresentam, necessariamente, os mesmos usuários todos os dias), levando em consideração o
horário de sua frequência.
As minhas percepções ficaram anotadas no diário de campo que atualizei diariamente
e de acordo com a quantidade de visitas realizadas na Academia Popular durante a semana.
As percepções aconteceram a partir de diálogos que estabeleci com os sujeitos, bem como da
observação dos diálogos estabelecidos entre eles próprios. Deram-se, também, a partir de
observações mais específicas acerca de elementos que configuram o ambiente da Academia,
por exemplo: roupas/acessórios utilizados pelos sujeitos, fundo musical que ocorre na
Academia, “ritmos” dos treinos, temperatura/clima da manhã, comportamento/ações dos
professores e dia da semana.
Às vezes, levei em consideração um evento diferenciado das ações corriqueiras da
Academia, uma palavra ou uma fala de algum aluno ou professor, fazendo com que o dito
e/ou o ocorrido se constituísse como possível reflexão e, consequentemente, como base das
anotações em meu diário de campo.
23
Entrevistas, diálogos em geral e diário de campo obtidos a partir de minha inserção no
lócus de pesquisa em questão correspondem ao conteúdo que utilizei para a análise das
problematizações acerca da Academia Popular e de seus sujeitos.
A análise de conteúdo é aplicada a diversos materiais, possibilitando a investigação de
seus variados aspectos e dimensões. Segundo Dionne e Laville (1999, p. 214), “É este o
princípio da análise de conteúdo: consiste em desmontar a estrutura e os elementos desse
conteúdo para esclarecer suas diferentes características e extrair sua significação”. Considerei,
também, as minhas percepções e as anotações em meu diário de campo como elemento
necessário para realização de tal proposta metodológica.
A partir desta introdução o trabalho está estruturado em três capítulos de análise.
O primeiro capítulo refere-se à minha aproximação com o lócus da pesquisa e inserção
no mesmo, a descrição da Academia Popular de Santo Antônio e a caracterização do local
(comunidade, bairro e a pracinha) no qual a Academia se localiza. Ao do final do capítulo,
apresento o Projeto Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória a partir de
reflexões acerca da dinâmica de funcionamento da Academia, bem como das ações de
intervenção das professoras que atuam nessa Academia Popular.
O segundo capítulo é organizado em três itens de análise. No primeiro, relato a história
das academias de ginástica e musculação no Brasil. Apresento os estágios de desenvolvimento
das academias e faço considerações relacionadas à Academia Popular de Santo Antônio. No
segundo, apresento e discuto algumas diferenças marcantes entre as academias privadas de
musculação e a Academia Popular de Santo Antônio. Essas diferenças vão desde as
características do ambiente em si das academias até a abordagem feita pelos professores
diante dos alunos/usuários. No terceiro, revelo as “tecnologias da saúde” (tecnologias leves,
tecnologias leve-duras e tecnologias duras) compartilhadas pelas professoras da e na
Academia Popular. Saliento a importância do uso, em específico, das tecnologias leves no
processo de promoção de saúde desenvolvido pelas professoras na Academia Popular.
Os elementos discutidos nos itens citados vão ajudar a configurar a compreensão dos
aspectos que caracterizam o processo de sociabilidade ocorrida na Academia Popular de
Santo Antônio.
A sociabilidade vivida na Academia Popular pode ser considerada como um fator de
busca e de permanência (ao mesmo tempo) para os usuários daquele lugar. Nesse aspecto,
torna-se interessante a reflexão acerca de questões essencialmente relacionadas aos vínculos e
acolhimentos estabelecidos entre os sujeitos do lócus da pesquisa. A análise dessa
característica da Academia configura o capítulo três, e nele evidencio falas e acontecimentos
24
do dia-a-dia do lócus da pesquisa, os quais nos mostram como a promoção da saúde pode se
relacionar, ou mesmo estar diretamente ligada, com as ações de vínculos e acolhimentos entre
os sujeitos envolvidos, de uma forma geral, com os projetos da área da saúde. Após tal
capítulo, apresentam-se as considerações finais, referências e anexos.
25
1 UMA ESTRANHA NO NINHO: MINHA INSERÇÃO NA ACADEMIA POPULAR DE
SANTO ANTÔNIO
Minha primeira visita às três Academias Populares no município de Vitória aconteceu
no dia 18 de abril de 2013, no período vespertino. Iniciei as visitas indo à Academia Popular
no Bairro de Santo Antônio, seguindo para a Academia Popular no Bairro de São Pedro e, por
último, visitei a Academia Popular no Bairro Maruípe. Durante o trajeto, pude visualizar, com
curiosidade, a intensa movimentação das pessoas no trânsito, no comércio, na rua etc. e a
extensão territorial das regiões nas quais se localizam as Academias. São regiões muito
movimentadas!
Continuei a observar toda essa dinâmica, mas concentrei-me no ambiente de cada
Academia Popular, buscando perceber algumas características em seus espaços para iniciar as
primeiras anotações em meu diário de campo.
As Academias Populares seguem o mesmo projeto (PPPAV, 2008) para atenderem a
população das referidas localidades. Em seus espaços, é desenvolvida a prática da
musculação. Outras atividades, contudo, podem ser adotadas por seus professores. Ao lado do
espaço ocupado pelas máquinas para a prática da musculação, há uma área que possibilita as
práticas de atividades de caráter recreativo (espaço vazio). Por exemplo, o jogo de voleibol é
adotado pela professora da Academia Popular de Maruípe para um grupo formado por alunos
da própria academia.
Este espaço (vazio) é usado, também, para os momentos de aquecimento e
alongamento que ocorrem antes e depois da musculação, respectivamente. Os profissionais se
dividem para realizar o alongamento, o aquecimento, a atividade recreativa (caso seja adotada
pela academia) e a assistência à musculação. Há, também, dentro dos espaços das Academias
Populares ou em suas proximidades, os módulos do Serviço de Orientação ao Exercício
(SOE).
26
Figura 7: Academia Popular de Santo Antônio; espaço vazio, máquinas para a musculação e módulo do SOE
Diário de Campo
Para iniciar a frequência nas atividades propostas pela Academia, o aluno deve passar
por uma avaliação física, que é feita exclusivamente pelos professores de Educação Física do
SOE. Normalmente, o módulo utilizado para a realização da avaliação física corresponde ao
mais próximo da academia que o aluno pretende frequentar. Após fazer a avaliação física, o
aluno estará apto ou não para frequentar as atividades da academia. Esta avaliação será
“encaminhada” ao professor de Educação Física da academia, que se encarrega de “montar o
treino” do aluno. O “treino”, comumente, é feito de acordo com os objetivos do aluno, os
quais são estabelecidos junto aos professores.
A partir dos diálogos abertos, das entrevistas e das minhas observações, reconheci
diferentes posicionamentos dos profissionais do SOE em relação às Academias Populares.
Busquei alguns professores do SOE, que me afirmaram que a única relação do SOE com as
Academias Populares acontece no momento da avaliação física dos alunos que pretendem
participar das atividades oferecidas pelas Academias. Mas, durante algumas conversas
ocorridas entre mim e os sujeitos da Academia Popular de Santo Antônio, pude notar que a
relação profissional entre os professores da Academia e do SOE (do lócus da pesquisa) não
27
acontecia de modo a corresponder com as falas dos professores de Educação Física atuantes
em outras Academias Populares e em outros módulos do SOE ligados às Academias.
As ações do professor do SOE, segundo os sujeitos da Academia Popular de Santo
Antônio, extrapolam sua função relacionada apenas à efetivação da avaliação física; ele
atende, também, na musculação em casos específicos, como atendimento a idosos e em caso
de ausência de uma das professoras da Academia.
A ausência de um profissional de Educação Física na Academia ocasiona a sobrecarga
do trabalho do profissional presente; neste caso, o professor do SOE realiza o apoio no auxílio
de instruções de musculação dos “treinos” dos usuários. Essa situação é relatada em entrevista
por P2,
Bom, nossa relação com o SOE, na pessoa do professor [S]... Que é ele que trabalha
conosco aqui... Eu acho a melhor possível. Pois ele tem uma parceria muito grande
conosco, em relação às avaliações e se precisar de alguma coisa dentro da
Academia, se precisarmos de alguma ajuda... Enfim, com o professor [S] isso
acontece! Já teve caso de eu ter que me ausentar por um problema de saúde, ele se
fazia presente na Academia, mesmo não sendo um professor da SEMESP.
Desse modo, a relação entre os profissionais da Academia e do SOE alcança outras
efetivações na e para a intervenção no processo de promoção de saúde naquele lugar. De
acordo com o professor S, essa parceria não foi pensada ou expressa nos projetos; no entanto,
ele não acredita que a relação entre os profissionais da academia popular e do SOE “tem que”
terminar aí. Dessa forma, o professor S nos fala em entrevista que:
Se a gente pensar nas funções... Na integração do trabalho como está colocado no
Projeto Político Pedagógico da Academia, a gente está colocado aqui [...] para se
fazer uma triagem, uma avaliação da pessoa que vai chegar... Que vai ser acolhida.
Ela passa por nós, depois é encaminhada para suas atividades com os profissionais
da Academia Popular e nosso serviço acaba aí de acordo com o que está colocado no
projeto. Eu acredito que a intenção de quem criou não tenha sido essa somente,
deveria ter uma integração... E eu acho importante, legal que houvesse essa
integração. O importante que as academias [populares] foram surgindo e cada uma
com suas particularidades e isso eu acredito que não foi pensado em nenhum
momento pelos gestores em se dar um padrão para essas coisas acontecerem, ou de
como essa continuidade se daria, como essa integração pudesse, de fato, ser positiva.
[...] Quem manda nesse espaço? Quem é que tem a última palavra em assuntos
referentes a essa ocupação? Sinceramente, eu nunca pensei nisso! Eu falo isso, mas,
não sei quem é o dono... Não tem!
A “escolha” dos profissionais pode ser mais bem compreendida ao refletirmos sobre
alguns elementos característicos relacionados às necessidades para um bom funcionamento da
Academia e do SOE, uma vez que, segundo P1, o trabalho em conjunto ao professor S visa a
28
qualidade do serviço prestado para a comunidade. O compartilhamento de materiais e a ação
integrada entre os profissionais são valorizados na fala de P1, que reconhece a importância
dessa intervenção no cuidado ao usuário da Academia.
Nesse sentido e a despeito das ações das secretarias que coordenam seus respectivos
funcionários, P1 afirma que:
[...] isso é muito importante [trabalho conjunto], então eu sinto que, muitas vezes
existe uma competição entre as secretarias, entre os serviços... Aqui eu não vejo
isso! Hoje não é tanto, mas, com a coordenação anterior a gente teve um problema
muito sério! [...] vendo a questão de materiais: „Ah, esse material é meu, esse
material é seu!‟ Essa separação... A gente está trabalhando junto, então é junto!
Vamos trabalhar os nossos materiais... Não é meu, não é seu... É nosso! Então é pra
comunidade, é pra gente trabalhar com a comunidade. Então, muitas vezes, eu quero
que a minha secretaria apareça mais! [isso] Tira o foco que é o usuário que tem que
ser atendido com qualidade!
P2 corrobora as ideias dos demais professores ao nos relatar que a colaboração e o
trabalho integrado que ocorrem entre a Academia e o SOE são uma ação específica dos
profissionais e não das secretarias (SEMESP e SEMUS) do município, mas essa situação está
melhor nos dias atuais:
[...] aqui a parceria é entre profissionais, e não entre secretarias. [...] aqui, por
exemplo, os [produtos] que vem para cá, de consumo... Pó de café, açúcar são
trazidos pela secretaria de esportes, mas, o [professor S] “faz” isso junto com a
gente. Não tem uma distinção, e já antes tinha com o antigo coordenador: “Quem
tem que trazer tal material é o SOE, quem tem que trazer tal material é a SEMESP!”
E hoje em dia isso não existe!
Refletir sobre o trabalho integrado entre esses professores nos faz pensar nas ações
que, em conjunto, eles promovem naquele lugar. Essas ações estão relacionadas aos cuidados
necessários à saúde dos usuários, cuidados que extrapolam a questão da avaliação física e/ou
do “treino” na musculação que a priori, “resumiriam” a obrigatoriedade da relação entre
aqueles professores.
Em Ceccim e Bilibio (2007), encontramos a importância do trabalho interprofissional
nas ações de intervenção nos processos de promoção da saúde do Sistema Único de Saúde, ou
mesmo nos processos públicos de promoção de saúde da população. A meu ver, considero a
importância e as características colocadas por esses estudiosos como possíveis de serem
articuladas e analisadas, também, na relação que encontrei entre os professores da Academia e
do SOE. A relação profissional que ocorre entre os professores de Educação Física no
ambiente da pesquisa se configura como um trabalho em equipe e orientado para os cuidados,
29
em saúde pública, aos usuários envolvidos no dia-a-dia da Academia Popular. Dessa forma,
compreendo que
O processo de trabalho dessa modelagem atinge sua dimensão propriamente
cuidadora, expondo a relevância de que todo profissional de saúde seja capaz de
produzir acolhimento, proporcionar escuta e estabelecer laços de confiança com os
usuários de modo que possam posicionar-se como gestores de projetos terapêuticos
singulares (CECCIM; BILIBIO, 2007, p. 59).
Pensar na questão do cuidado e, consequentemente, no processo de promoção de
saúde da Academia resultante dessa relação entre os professores é pensar numa intervenção
profissional a partir de uma perspectiva que corresponde a um modo de fazer a Educação
Física, em conjunto, e além das questões primordialmente relacionadas à composição corporal
(músculos, índices metabólicos/fisiológicos etc.) do indivíduo; é visualizar, a partir da
intervenção desses professores, ações que consideram, no usuário, suas características
singulares, ligadas também à questões sensitivas, emocionais, entre outras. Dessa maneira, o
professor S atenta-se, principalmente, para que suas alunas voltem para a aula do dia seguinte:
[...] eu tenho alunas que vêm às minhas aulas que elas têm mais saúde, ou
demonstram ter, no momento que riem de uma piada que eu conto do que de fato
quando elas precisam fazer um agachamento com calcanhar colado no chão...
Dobrar o joelho a 90º [...], quando ela lembrar amanhã que vai estar um pouco com
dores, é normal! Não sei se ela terá vontade de voltar [se] comparando com o
aspecto emocional de quando: „o professor chegar ele vai apertar minha mão, vai me
dar um abraço que é talvez o que eu mais preciso para hoje... E isso não vai doer em
mim, talvez isso me faça voltar mais vezes, e aí por conta dessa satisfação eu
consigo abaixar, consiga pegar um peso e levantar... E fazer de tudo isso saudável
para mim‟.
As professoras P1 e P2, assim como o professor S, se atentam, também, para o
“cuidado” ao usuário na ideia de fazê-lo voltar à Academia nos diversos dias da semana: “Não
queremos que eles venham, apenas, na segunda. Temos cuidado para não afastá-los daqui.
Cuidar da saúde deles é também cuidar deles. O lado psicológico, também!” (Diário de
Campo, 10 de junho de 2014). Na perspectiva de ação desses professores, encontramos a
prática da Educação Física correspondendo ao que Ceccim e Bilibio (2007, p. 54) nos dizem,
pois
É a educação física que mais propriamente pode recolocar a dimensão corpórea da
existência subjetiva na prática cuidadora, retirando o corpo do lugar instrumental da
atividade física para o lugar do desejo e da energia vital que se impulsione ao
contato com as sensações, ao contato/encontro com o outro de maneira concreta, real
(não em tese, não em filosofia do cuidado), mobilizando junto com um corpo de
ossos e músculos, um corpo de afetos e de expansão da experiência humana.
30
As questões do cuidado em saúde compartilhadas pelos professores e as
consequências desse tipo de intervenção vão embasar, nos próximos capítulos, os mecanismos
de sociabilidade produzidos pelos sujeitos na Academia Popular, uma vez que as
consequências da atuação desses profissionais da saúde, a meu ver, correspondem ao
estabelecimento de vínculos entre os sujeitos e a ação de acolhimento que eles desenvolvem
na dinâmica do funcionamento da Academia, contribuindo, dessa forma, para se entender
como uma dimensão central a sociabilidade no processo de promoção de saúde nesse lugar.
1.1 A COMUNIDADE DE SANTO ANTÔNIO E A ACADEMIA POPULAR DE SANTO
ANTÔNIO
O bairro de Santo Antônio, de acordo com o site “Vitória em Dados”, localiza-se no
extremo oeste da cidade de Vitória-ES e faz limites territoriais com outras comunidades do
próprio município: Morro de Alto Caratoíra, o Morro de Bela Vista e de Nossa Senhora
Aparecida, sendo, ainda, margeado pela Baía de Vitória.
Historicamente é o bairro mais antigo do município de Vitória, datado do início do
século XX. Foi ocupado por comerciantes estrangeiros que se instalaram na parte plana do
bairro. A área de instalação pertencia à Fazenda de Santo Antônio, sendo esta propriedade do
Estado. Em 1910, no governo de Jerônimo Monteiro, foram feitos lotes e vendidos aos
comerciantes, que iniciaram a ocupação no bairro.
Na década de 1940, foi construído no bairro o Cais do Avião, que impulsionou o
desenvolvimento econômico local. Nessa mesma época, chegaram ao bairro os padres da
ordem dos Pavonianos, que iniciaram um trabalho social denominado Obra Social São José,
ligado à Igreja, com famílias carentes. Este trabalho social acontecia no prédio que veio a se
tornar a escola de Primeiro Grau Alvimar Silva.
Os Pavonianos promoveram, também, a construção da atual Basílica de Santo
Antônio, sendo, nos dias de hoje, a maior referência histórica do bairro. Ainda nesta década e
na seguinte houve um aumento populacional da região com a chegada dos imigrantes
italianos, alemães e de outras famílias do município de Vitória.
Em 1960, ocupações de famílias marcaram a formação das áreas mais precárias do
bairro (pois aconteceram de forma desordenada), as áreas do mangue e as áreas do morro. A
ocupação do morro originou o Bairro de Bela Vista. Nas décadas de 1970 e 1980, ocorreu um
31
acelerado crescimento populacional, sendo que, em 1990, as áreas mais precárias se
constituíram como um aglomerado urbano de classe de baixa renda.
A parte plana do bairro de Santo Antônio apresenta um melhor padrão de habitação;
inclusive, é mais bem servida por equipamentos urbanos, em geral, do que as outras partes
que compõem a comunidade. O Parque Tancredão, a Escola de Samba Novo Império e o
Cemitério Público de Santo Antônio (inaugurado em 1912) são marcos valorativos dessa
região de Santo Antônio. Considero os equipamentos urbanos nas duas perspectivas que nos
falam Barbosa, Marcellino e Mariano (2008, p.135-137). Sendo assim, o bairro de Santo
Antônio apresenta, em sua estrutura, características equivalentes àquelas que os autores
classificam como equipamentos específicos (teatros, cinemas, bibliotecas, escola de samba
etc.) e equipamentos não específicos de lazer, como escolas, feiras livres, praças, igrejas etc.
Em 1960 os bondes que ligavam a região às outras partes do município foram
desativados e duas linhas de ônibus foram criadas para o transporte público de pessoas para
outros bairros de Vitória. Atualmente o bairro de Santo Antônio conta com uma frota de 81
linhas de ônibus que correspondem ao principal meio de transporte da população local. De
acordo com documento “Vitória Bairro a Bairro” (2013), da Secretaria Municipal de Gestão
Estratégica do Município de Vitória (SEGES), o bairro tem 5.947 habitantes.
32
Figura 8: Basílica de Santo Antônio, Vitória-ES
Fonte: http://www.butokukaisa.com.br/wp-content/uploads/2010/08/santuario-de-sto-antonio.jpg, acessado em
24/06/2015.
O município de Vitória é composto por 8 Regionais. Cada regional, por sua vez, é
composta por bairros. O bairro de Santo Antônio faz parte da Regional 2 do município de
Vitória. Essa regional leva o nome do próprio bairro, assim sendo: Santo Antônio.
Popularmente, porém, ela é conhecida como a Grande Santo Antônio, e, de acordo com o
documento Vitória Bairro a Bairro (2013), essa região tem 37.874 habitantes.
A Grande Santo Antônio é formada por 13 bairros: Ariovaldo Favalessa, Bela Vista,
Caratoíra, Do Cabral, Do Morro, Estrelinha, Centro de Vitória, Ilha do Príncipe, Inhanguetá,
Mário Cypreste, Santa Tereza, Santo Antônio, Universitário (SEGES, 2013, p. 3).
33
Figura 9: Mapa da Regional 2 – Regional Santo Antônio
Fonte: VITÓRIA BAIRRO A BAIRRO (2013).
Considerei para minhas análises, sem perder o foco sobre o bairro de Santo Antônio, a
Grande Santo Antônio como a localidade da Academia, ou mesmo a região para a qual ela foi
direcionada ao ser implementada no bairro de Santo Antônio, uma vez que as intervenções
políticas, econômicas e sociais são organizadas, no município de Vitória, de modo a atender a
essas regionais. Dessa forma, encontramos na Academia sujeitos que, em sua maioria,
residem nos diversos bairros que compõem a Regional 2.
Após minhas visitas às Academias Populares e com objetivo de me „ambientar‟ com a
investigação, fui à busca de algum documento que pudesse me informar em relação às
características gerais das Academias, características que passam pela elaboração, pela
construção e pelos motivos para a implantação do projeto no Município de Vitória-ES.
No dia 25 de abril de 2013, fui à Secretaria Municipal de Esportes e Lazer, localizada
no Forte São João (nas dependências do antigo Clube do Saldanha, em Vitória), para
estabelecer um contato direto com organizadores e administradores das Academias Populares.
Chegando lá, fui encaminhada para a sala na qual trabalham os profissionais da Prefeitura
34
envolvidos com as Academias Populares e com outros espaços do município destinados às
práticas de atividades físicas e lazer da população.
Na sala estavam três funcionários, um dos quais me entregou uma cópia impressa do
Projeto Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória. Os outros dois funcionários
estavam ocupados no momento da minha visita à secretaria, de modo que não consegui
estabelecer diálogo com nenhum deles.
Minha primeira visita à Academia Popular de Santo Antônio ocorreu no dia 2 de
outubro de 2013, no turno matutino. Fui recebida pelo professor do SOE, que, rapidamente,
chamou uma das professoras para conversar comigo. A professora P1 foi quem me recebeu e,
durante alguns minutos, falei sobre a minha pretensão de estudar a Academia e os sujeitos que
a frequentam.
Expliquei a ela que eu já havia feito o pedido formal à SEMESP-Vitória e conseguido
do Coordenador das Academias Populares de Vitória a autorização para minha inserção
naquele ambiente. Perguntei se não haviam chegado tais documentos para ela. A resposta foi
“não!”. A professora não sabia sobre a minha chegada e sobre o meu estudo na Academia.
Então, mostrei-lhe os documentos. A professora fez as devidas leituras e, tranquilamente,
liberou a minha entrada/frequência na Academia com tal propósito.
Durante minha primeira visita, aproveitei para buscar um pouco mais da história da
Academia, pois o que eu tinha em mãos era o seu projeto, sem falas e/ou maiores informações
acerca do seu funcionamento propriamente dito. Na parede do módulo do SOE, estão expostas
as informações acerca de políticos e seus cargos no momento de idealização e inauguração da
Academia Popular. Em meu diário, e considerando minhas primeiras anotações, organizei as
informações iniciais da Academia da seguinte forma:
A Academia Popular de Santo Antônio fica localizada na Praça Estela Coimbra e foi
inaugurada no dia 27 de setembro de 2006, durante a gestão do Prefeito João Carlos
Coser e sua equipe: Sebastião José Balarini [Vice-Prefeito], Luis Carlos Reblin
[Secretário de Saúde] e Silvio Roberto Ramos [Secretário de Obras] (Diário de
Campo, 2 de outubro de 2013).
Em minha segunda visita (10 de outubro de 2013) levei uma cópia autenticada dos
documentos e entreguei-a à professora P1, que se mostrou satisfeita com minha atitude.
Imediatamente, ela guardou os documentos na pasta da Academia.
A partir de minha primeira visita, iniciei uma nova fase do meu estudo, que até então
estava essencialmente relacionado aos livros, textos, leitura e prévia interpretação do projeto
das Academias (PPPAV). Ao pisar em meu lócus de pesquisa, eu senti a necessidade de me
35
desprender de alguns conhecimentos sedimentados por mim acerca desse universo chamado
academia de musculação ou de ginástica, para que eu pudesse conseguir captar inúmeras
informações que aquele ambiente me permitisse.
A estrutura diferenciada da Academia despertou inúmeras curiosidades em mim, que
até então nunca havia estado em um espaço destinado à prática da musculação, que oferecesse
aos sujeitos tamanha ventilação natural. Tal característica chamou minha atenção durante os
primeiros dias de minhas visitas à Academia e deu base para eu pensar e repensar sobre a
relação dos sujeitos com o espaço, com sua estrutura, com a sensação diferenciada que é a
prática da musculação desatrelada dos comuns ambientes fechados, ou mesmo concentrados
em suas máquinas e em seus espelhos.
A impressão obtida por mim, durante alguns dias, foi que a musculação não acontecia,
pois eu não visualizei o suor ou o cansaço dos usuários no movimento em si, não escutei a
música eletrônica em volume elevado, não percebi desfiles de roupas estilosas etc., aspectos
comumente presenciados por mim em ambientes de academias particulares. Em meu diário de
campo, registrei a dúvida/curiosidade acerca da prática corporal que ali ocorria, mas que para
mim ainda era algo “estranho”, meio “indeterminado” aos meus olhares e percepções: “Onde
está a prática da musculação? Porque eu não a „sinto‟” (Diário de Campo, 13 de novembro de
2013).
Os meses de outubro, novembro e parte do mês de dezembro (2013) corresponderam
ao que eu chamei de “período dos receios”. A minha impressão durante os meses citados foi a
de que eu e os profissionais da Academia formávamos dois extremos de ocupação naquele
lugar. Eu correspondia à pesquisadora, pertencente a uma realidade distante daquela vivida
por eles diariamente nos últimos anos de suas vidas, e eles, os profissionais da Academia
Popular, representavam a experiência do saber-fazer, do saber-lidar, do saber-resolver, e tais
ações não pareciam guardar, aos meus olhos, singularidades para que eu pudesse encontrar
algo fora da rotina de um professor de Educação Física de academia. Refiro-me à rotina, isto
é, aos fatores relativos às instruções técnicas dos movimentos,
preenchimento/acompanhamento das fichas dos treinos dos usuários. E os receios ficaram na
expressão do distanciamento entre mim e aqueles sujeitos.
Receios, curiosidades e esperança na efetivação de uma aproximação não forçada pela
necessidade da pesquisa, mas, sim, a vontade de que a aproximação entre mim e os sujeitos da
Academia ocorresse de forma agradável e livre dos medos/estranhamentos comuns à figura do
pesquisador. Foi o que me levou a caminhar pela praça, pela quadra utilizada pelo SOE e a
andar, constantemente, no espaço destinado à musculação na Academia, de máquina em
36
máquina, sem usar muito os olhos nos olhos, mas com o cuidado de realizar uma aproximação
que acontecia de forma despercebida pelos professores e pelos usuários. Ao final do mês
dezembro,
Depois de um longo período – 20 dias – sem ir à Academia Popular devido à chuva,
pude reparar um momento de saudade dos professores da academia para comigo. Fui
abraçada por todos com calorosas frases: „seja bem-vinda‟, „quanto tempo‟, „que
bom que você veio‟. Foi a primeira vez desde outubro – quando iniciei minhas
visitas à Academia – que me senti pertencendo ao grupo de profissionais da
Academia (Diário de Campo, 30 de dezembro de 2013).
Durante os meses citados, procurei me informar sobre o funcionamento da Academia e
toda a dinâmica que envolvia tal situação. Por meio desses assuntos, fui me aproximando dos
professores e dos outros profissionais, que também contribuem para a configuração do
ambiente.
Nesse período, aproveitei para conhecer a Praça Estela Coimbra. Dessa forma, eu
acreditei promover meu processo de inserção na dimensão estrutural que envolve a Academia.
A praça corresponde a um cenário adequado/facilitador às/das práticas de atividades físicas.
Ambiente arborizado e de fácil acesso para a população do bairro e adjacências, ela apresenta
em sua estrutura:
- 3 ambientes de areia: uma pequena quadra, geralmente usada para a prática do voleibol; um
playground; e um campo no qual crianças, adolescentes e adultos jogam futebol;
- 2 quadras: uma pequena e uma poliesportiva. Esta é usada para aulas de ginástica que
acontecem no período noturno e são dadas por profissionais contratados pelo centro
comunitário do bairro (são aulas gratuitas). Também é utilizada pelos professores do SOE em
suas atividades;
- Academia Popular para a Pessoa Idosa (APPI);
- Núcleo de Integração Social para Pessoas Idosas Ondina Escobar Fonseca; neste local, os
idosos participam/realizam atividades como: pinturas e jogos; atividades físicas e “oficinas da
memória”;
- Academia Popular;
37
- Pista para caminhada.
Por vezes, sentia-me sozinha no espaço da Academia e precisei, em alguns momentos,
mudar o foco” da visita. Por isso, voltei-me, durante alguns dias, para a praça e para o mar
que margeia aquele espaço e seus arredores, ainda buscando por curiosidades que pudessem
compor minhas anotações no diário referente ao dia da visita.
Figura 10: Baía de Vitória, Praça Estela Coimbra e parte do bairro de Santo Antônio
Fonte: Google Maps, buscar por Bairro de Santo Antônio – Vitória, ES (2014).
38
Figura 11: Praça Estela Coimbra – pista para caminhada e Baía de Vitória
Diário de Campo
Figura 12: Playground em Praça Estela Coimbra
Diário de Campo
39
Figura 13: Núcleo de Integração Social para Pessoas Idosas Ondina Escobar Fonseca, Praça Estela Coimbra
Diário de Campo
Figura 14: Campo de areia e pista para caminhada em Praça Estela Coimbra
Diário de Campo
40
Figura 15: Quadra Poliesportiva localizada ao lado da Academia Popular de Santo Antônio e pista para
caminhada
Diário de Campo
A Academia funciona em dois horários, matutino – 06h20 às 10h40 – e vespertino –
17h00 às 21h20. No turno matutino, há duas professoras de Educação Física, sendo uma
efetiva e a outra contratada pela Prefeitura Municipal de Vitória. Elas atuam juntamente aos
alunos. Há, também, uma Assistente de Serviços Gerais (ASG) e uma Vigilante Patrimonial
(esta não faz uso de arma de fogo, pois não acha necessário).
As professoras atuam no turno matutino. A professora P1, apesar de ser efetiva desde
2009 na Prefeitura de Vitória, iniciou seu trabalho na Academia Popular de Santo Antônio em
fevereiro de 2012; até então, ela lotava outra Academia Popular do município. A professora
P2 está nesta Academia desde janeiro de 2013; anteriormente, a professora atuou em outros
espaços da Prefeitura, relacionados, também, à promoção da saúde da população do
município; recentemente, duas vezes por semana (3ª e 5ª feiras, turno matutino), a professora
P2 passou a trabalhar na Academia Popular de São Pedro e a sensação que tive, durante o
período de inserção no lócus da pesquisa, foi de falta, sendo essa sensação compartilhada
igualmente pelos sujeitos do turno matutino. A ausência da professora ficou assim registrada
em meu diário:
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A Academia hoje estava „desfalcada‟, pois a professora P2 foi encaminhada duas
vezes por semana para atuar na Academia Popular de São Pedro. Com um „ar
chateado/decepcionado‟, a professora P1 explicou-me que foi uma medida „tapa-
buraco‟, já que faltam profissionais nas Academias Populares espalhadas pelo
município (Diário de Campo, 25 de abril de 2014).
No mês de dezembro de 2013, foi contratado para a Academia um estagiário de
Educação Física; naquele momento ele estava em fase de finalização do curso (último
período) e o seu contrato se encerrou no mês de dezembro de 2014. Atuava sob os cuidados
das professoras formadas, não ficando sozinho, em momento algum, para coordenar as
atividades da Academia.
No turno vespertino, há apenas um professor de Educação Física e um Vigilante
Patrimonial. Este trabalha em regime de escala juntamente aos outros vigilantes da Academia.
Dessa forma, a Academia sempre tem a presença de um profissional de vigilância.
O espaço da Academia é composto por 25 máquinas para musculação, colchonetes,
halteres (pesos variados), cordas pequenas, caneleiras (pesos variados) e os pesos para as
máquinas de musculação. Um bebedouro e um banheiro, sendo este pertencente ao módulo do
SOE (que fica dentro do espaço da academia). A área para musculação é separada, por meio
de cordas, dos outros espaços, inclusive do espaço vazio. No chão são coladas as borrachas
antiderrapantes para piso e em dois armários são guardadas as caneleiras e as fichas dos
alunos.
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Figura 16: Academia Popular de Santo Antônio – espaço vazio e o Módulo do SOE
Diário de Campo
A professora P1 leva para o espaço da Academia um rádio, já que a Academia não
apresenta esse recurso em sua estrutura. O som e o tipo de música proporcionados aos
usuários ocorrem de forma a colaborar com a característica “leve” do ambiente. Som em
volume baixo (ambiente), músicas dos gêneros gospel e pop, em ritmo remixado. Quando
ocorre a falta da música na Academia, alguns alunos se manifestam pedindo pela música, mas
não expressam gostos próprio/individuais pelo tipo e/ou gênero musical. Apenas querem a
música!
No dia 15 de outubro de 2013, foi exibida uma reportagem pela TV Gazeta sobre a
falta de cuidados por que as Academias Populares do município de Serra e de Vitória passam.
A Academia Popular na qual ocorreu a reportagem em Vitória foi justamente a de Santo
Antônio. Algumas máquinas quebradas (6 máquinas foram interditadas), algumas borrachas
do piso descoladas, a lona que faz o teto da academia com buracos (permitindo, assim, que, ao
chover, molhe uma determinada área da musculação) e a falta do bebedouro, foram noticiados
nessa reportagem. O bebedouro foi colocado imediatamente após gravação da reportagem,
mas ele não fornecia água filtrada. Os alunos do turno matutino continuavam a trazer água de
casa.
Após uma semana da realização da reportagem, os problemas apontados por ela foram
solucionados pela Prefeitura, com exceção da manutenção da cobertura, que acabou rasgando
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dias depois. De acordo com os sujeitos da Academia, a lona (cobertura) rasga sempre no
período mais quente do ano e, durante alguns dias após a lona rasgar, profissionais e usuários
posicionam-se de maneira revoltada com o que eles afirmam ser “descaso da Prefeitura para
com a Academia Popular” (Diário de Campo, 14 de novembro de 2013).
Os diálogos, por dias seguidos, ficam em volta da questão da cobertura e da
necessidade de melhorar a estrutura da Academia. Em meu diário, relatei o acontecimento
durante alguns dias seguidos, uma vez que notei o tamanho do incômodo vivido por aqueles
sujeitos diante desse fato:
Em 13 de novembro de 2013, a lona que era utilizada como cobertura para a
Academia rasgou, caindo sobre os aparelhos e os usuários que faziam musculação no
primeiro horário do turno vespertino de funcionamento da Academia. De acordo com
professores e alunos do turno matutino, esse fato ocorre com frequência e, geralmente,
no período mais quente do ano (Diário de Campo, 14 de novembro de 2013).
Para a tranquilidade dos professores e dos alunos, ninguém se machucou no incidente.
O ambiente da Academia foi interditado até a retirada da lona. Em meu diário de campo, no
dia 14 de novembro de 2013, registrei que:
A lona que serve como o „teto‟ da Academia rasgou e caiu sobre os aparelhos. O
fato ocorreu no dia anterior por volta das 17h30min. O uso do espaço foi suspenso
pelo professor do turno vespertino, assim como pela professora P1 [turno matutino]
na manhã de hoje. Os professores ligaram para a Secretaria de Esportes e Lazer do
município [SEMESP] para avisar sobre o ocorrido; a Academia só poderá voltar a
atender aos usuários quando a lona for retirada devidamente. Não há data prevista
para o conserto da cobertura, enquanto isso não ocorrer, a academia poderá ser
usada, mas, provavelmente haverá mudanças nos horários matutino e vespertino,
pois o clima quente ou a ocorrência da chuva impedem a prática da atividade na
Academia em determinadas horas do dia.
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Figura 17: Academia Popular de Santo Antônio descoberta e o Módulo do SOE
Diário de Campo
Uma segunda reportagem foi feita na Academia (4 de dezembro de 2013). A
reportagem falou, novamente, sobre o descaso com os cuidados do ambiente e evidenciou a
situação da cobertura. Pude perceber alguns alunos revoltados e conversei um pouco com as
professoras sobre “o clima tenso e diferente dos outros dias” que se encontrava na Academia
naquela manhã. Elas disseram que a comunidade de Santo Antônio é exigente. Os alunos
reclamam e buscam fazer as denúncias acerca dos problemas da Academia, ou na SEMESP
ou na imprensa. Os alunos, em falas diversas, faziam questão de dizer uns aos outros:
“Colocando a imprensa no meio, talvez eles resolvam logo. Só assim mesmo!” (Diário de
Campo, 5 de dezembro de 2013).
No total são 780 alunos, sendo 355 do turno matutino e 425 do turno vespertino. Não
há na Academia computador para serem feitos os arquivos sobre os alunos e documentos da
Academia. Os professores se organizam em fichas feitas manualmente e fazem a função da
secretaria da Academia, pois também não há esse profissional disponível para o espaço
referido.
Os alunos são organizados em grupos (número variado) que fazem um rodízio para o
uso do espaço para a musculação. Cada período, por grupo, dura cerca de 1 hora: 10 minutos
para aquecimento, 40 minutos para musculação, 10 minutos para alongamento. São
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configurados 6 grupos durante os períodos de atendimento da Academia, mas quando
acontece o fato da cobertura (citado acima), geralmente o número de grupos é reduzido para
5, pois o último horário é retirado do atendimento, uma vez que o sol está muito forte,
impedindo a ação das professoras e, segundo as elas próprias, os alunos evitam o último
horário quando não há cobertura: “Hoje a última turma ocorreu no horário de 8:40h. No
último horário, que seria às 9:40h, não houve/apareceu aluno. O sol está muito quente”
(Diário de Campo, 20 de novembro de 2013). A situação é aceita e conhecida por ambas as
partes e não há nenhum documento oficial que expresse tal acordo entre as professoras e os
usuários; estes reconhecem, junto às professoras, os perigos que o sol e suas altas
temperaturas podem causar à saúde. As professoras evidenciam em suas falas e repetem, com
certo mal-estar: “Expostas ao sol dessa forma, não temos como trabalhar. Isso faz mal aos
alunos também” (Diário de Campo, 20 de novembro de 2013).
Visualizei com certa frequência a professora P1 repondo o protetor solar em sua face,
cuidado tomado por ela, independentemente da “situação estrutural” da Academia, que às
vezes fica sem cobertura durante meses. Durante sua entrevista, P1 confirmou a doação do
protetor solar feita pela SEMESP para ela e para a outra professora da Academia, mas, com
uma significativa observação: “Ganhamos! Não de qualidade, mas, ganhamos (risos)! Não de
qualidade porque já foi comprovado. Eu usei um tempo e tive a pele manchada, tive que fazer
tratamento posterior por conta da questão das manchas adquiridas com o uso do protetor
solar”.
Diante dessas situações, iniciei, naquele dia, algumas falas junto às professoras sobre a
necessidade (ou não) de conversar com os alunos sobre questões acerca da saúde e seus
desdobramentos para a vida do homem. Por vários dias, conversamos sobre ideias que
pudessem ser tratadas junto aos alunos, em momento adequado na própria Academia. Mas, a
princípio, registrei a falta de tempo que as professoras têm para conversar, de forma mais
detalhada, com os usuários.
A dinâmica da Academia não facilita o “contato informativo” de modo a extrapolar as
orientações sobre a musculação em si, ou mesmo, sobre o treino individual dos usuários. Para
a professora P2:
Essa possibilidade de conversar com eles (alunos) com calma faz falta, pois não
podemos parar de atender na musculação para „fechar‟ um grupo e discutir algumas
questões sobre saúde, alimentação etc. Saber o que eles pensam sobre isso é muito
interessante também. Sabemos da importância de atender bem os alunos. Conversar!
A nossa atenção varia de acordo com o número de usuários presentes nas aulas. A
gente tem que dar conta (Diário de Campo, 20 de novembro de 2013).
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A atenção, ou mesmo, os cuidados que as professoras desenvolvem a partir dessa
deficiência estrutural/organizacional da Academia pode ser visualizada durante os momentos
nos quais o aquecimento, a musculação e o alongamento são feitos, uma vez que elas
aproveitam o contato durante essas atividades físicas para estabelecer com os usuários algum
tipo de conversa acerca de assuntos relacionados, também, à promoção da saúde. Ou seja, o
“contato informativo” não é facilitado pela dinâmica da Academia, mas não deixa de
acontecer de acordo com as ações das professoras.
Tal característica de intervenção corrobora, a meu ver, o aspecto da sociabilidade
naquele lugar, pois, as professoras criam meios para que o contato entre elas e os usuários se
intensifique nos diversos momentos de suas intervenções. Sendo assim, essas ações
caminham no sentido de facilitar o estabelecimento de vínculos entre os sujeitos da Academia
Popular.
A dinâmica do dia-a-dia que caracteriza a Academia pode ser mais bem compreendida
ao pensarmos na questão referente à sociabilidade. A despeito do “contato informativo”
possível ou não, alguns vínculos acontecem naquele ambiente nos momentos organizados
para a prática da musculação, configurando-o não somente como um local destinado à prática
de atividades físicas, mas possibilitando ao ambiente da Academia Popular uma nova forma
de ocupação. Esta, por sua vez, relaciona-se ao fator da sociabilidade que foi um elemento
que ocorreu como fator recorrente em minhas observações: “muito bate papo na Academia.
Os usuários e os profissionais interagem muito! (Diário de Campo, 5 de dezembro de 2013).
Em seguida farei a abordagem sobre o Projeto Político Pedagógico das Academias
Populares de Vitória, considerando algumas compreensões de sua efetivação no chão da
Academia, com relatos do diário de campo e das professoras.
1.2 AS ACADEMIAS POPULARES DE VITÓRIA: O PROJETO POLÍTICO
PEDAGÓGICO DAS ACADEMIAS DE VITÓRIA (PPPAV)
As ações de promoção da saúde se tornaram relevantes à população a partir das
mudanças ocorridas na forma de organização dos meios de produção econômica e,
consequentemente, da organização da sociedade. A integração dos vários órgãos e das
diversas instituições que compõem o funcionamento e a organização da vida social também é
fundamental para se promover saúde de forma ampla, objetivando atingir a maior parte
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possível da população. De acordo com a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS),
para a promoção da saúde, é
[...] fundamental estabelecer parcerias com todos os setores da administração pública
(Educação, Meio ambiente, Agricultura, Trabalho, Indústria e Comércio, Transporte,
Direitos Humanos e outros), empresas, organizações não governamentais (ONG),
para induzir mudanças econômicas e ambientais que favoreçam políticas públicas
vinculadas à garantia de direitos de cidadania e à autonomia de sujeitos e
coletividades (MALTA, 2009, p. 81-82).
Ainda de acordo com o relatório da Política Nacional de Promoção da Saúde, os
modos de viver em sociedade, ou mesmo as relações sociais que se estabelecem entre os
variados sujeitos, devem ser considerados para entender e atender o homem e suas
necessidades. Dessa forma:
O modo de viver de homens e mulheres é entendido pela PNPS como produto e
produtor de transformações econômicas, políticas, sociais e culturais que alteraram e
alteram a vida em sociedade a uma velocidade cada vez maior, sem precedentes na
história. Ratificam-se as condições econômicas, sociais e políticas do existir, que
não devem ser tomadas, tão-somente, como meros contextos – para conhecimento e
possível intervenção na realidade – e sim como práticas sociais em si mesmas,
responsáveis por engendrar determinado domínio do saber e dar visibilidade a
conceitos, objetos, técnicas e modos de vida. Portanto, são as transformações da
sociedade, que implicam alterações na compreensão da saúde e nas estratégias para
trabalhar com ela, que fizeram emergir a questão da promoção da saúde na
sociedade (MALTA, 2009, p. 81).
Considerando as abordagens da PNPS referentes às políticas de promoção da saúde, a
Prefeitura de Vitória busca promover ações nesse sentido para o município, objetivando,
assim, melhorar a qualidade de vida dos sujeitos. Dentre as ações da prefeitura, encontramos
as Academias Populares instauradas em determinadas áreas que correspondem a regiões
expressivas (especialmente nos elementos social e territorial) do munícipio – bairros de Santo
Antônio (2006), São Pedro (2007) e Maruípe (2007).
Em conversa com as professoras da Academia, compreendi que, apesar de não
encontrarmos relações diretas (formais) entre o PPPAV e a PNPS, elas atuam na perspectiva
de promoção de saúde. Busquei informações nos sites da Prefeitura de Vitória, nas páginas da
SEMESP e da SEMUS e não encontrei alusões e/ou falas referenciando a PNPS; todavia,
nesses sites pude visualizar as ações de intervenção da prefeitura diante das comunidades do
município, objetivando a promoção de saúde nos variados espaços elaborados por ela para tal
finalidade. Em nota do diário de campo do dia 23 de julho de 2014, as professoras esclarecem
que:
48
Nós trabalhamos na perspectiva de promoção da saúde porque compreendemos a
Academia como sendo um ambiente feito para isso. Mas não encontramos relações
diretas [formais] entre os projetos da Academia e do governo federal acerca dessas
políticas de saúde. Talvez por isso, todo recurso que a gente pede para a Academia
demora a chegar. Se chegar!
O Projeto Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória revela o caráter
inclusivo de suas ideias no que se refere aos objetivos de sua implementação nas regiões
escolhidas, bem como à tentativa de atender, desse modo, a determinadas camadas sociais
mais humildes da população do município. O PPPAV “Tem caráter inclusivo e, por isso, os
locais de instalação das unidades foram escolhidos em função das regiões de vulnerabilidade
social da cidade” (PPPAV, 2008, p. 10). E, referindo-se à democratização desses espaços
públicos planejados para a sociedade como um todo (PPPAV, 2008, p. 3),
A democratização das academias populares pode ser percebida pelo convívio
harmonioso entre pessoas de diferentes classes sociais e idades, oferecendo à
população um local para o convívio, diversão, integração e saúde.
As Academias ao Ar Livre de Vitória, em especial as Academias Populares de Vitória,
correspondem às ações governamentais que caminham na tentativa de oferecer possibilidades
de acesso individual e coletivo aos meios possíveis de se obter saúde considerando aspectos
gerais da vida do indivíduo:
[...], o Projeto Político-Pedagógico das Academias Populares de Vitória-ES
(PPPAV), o qual irá orientar, a partir deste momento, a política de gestão e
promoção de saúde pública dentro de uma visão global do ser humano. Expressa o
esforço coletivo na busca da ruptura com as práticas corporais de natureza
essencialmente mecanicistas e pouco inclusivas, conduzindo o processo de
promoção da saúde da população, não somente pelo aspecto fisiológico, mas,
principalmente, pela complexidade do indivíduo e de suas vivências cognitivas,
culturais e emocionais (PPPAV, 2008, p. 2-3).
As Academias Populares correspondem a espaços públicos que foram elaborados a
partir da consideração acerca da necessidade de intervir no social para beneficiar os modos de
viver do homem e, consequentemente, sua saúde. Estes ambientes oferecem possibilidades
para que o indivíduo busque atividades físicas e adquira orientações para a conquista e/ou
manutenção de sua saúde:
O Projeto „Academia Popular de Vitória‟ é uma proposta que possibilita a prática de
exercícios físicos à população, fornecendo elementos que contribuam para a
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aprendizagem efetiva e transformadora de hábitos de vida saudável (PPPVA, 2008,
p. 13).
Tratando-se, ainda, de espaços pensados especificamente para a promoção da saúde,
eles oferecem profissionais que podem auxiliar os praticantes na busca por hábitos de vida
saudáveis. São atribuídas ao profissional de Educação Física algumas responsabilidades,
compreendidas, segundo o PPPVA, como responsabilidades gerais, tais como:
Planejar, supervisionar, executar, orientar, e acompanhar a prática do exercício
sistematizado individual ou coletivo, aplicando a triagem para avaliação funcional,
identificando fatores de risco cardiovasculares e metabólicos nos usuários, bem
como planejar, coordenar e participar de intervenções educacionais de medidas
preventivas visando os cuidados com a saúde da população (PPPVA, 2008, p. 17).
O projeto também nos mostra, de forma diversificada, como a Prefeitura
pensa/interpreta o homem e a sua saúde para, assim, realizar as tentativas de intervenção
sobre ele. O projeto faz referências que visam novos e reflexivos conceitos e/ou dimensões
sobre o homem e sua dinâmica de vida, saúde e bem-estar.
No Projeto Político Pedagógico das Academias Populares de Vitória, encontramos
alusões sobre as novas formas de organização do homem na sociedade, as quais ampliam e
discursam sobre os fatores que influenciam, direta ou indiretamente, o bem-estar do
indivíduo. Além disso, a caracterização do homem em sua dimensão holística é considerada
aspecto primordial para as ações que norteiam a prática implementada nesses espaços,
resultante das ideias que compõem o projeto. Para tanto, o ideal de saúde ampliada é
considerado ao se pensar na efetivação das políticas públicas em prol da promoção de saúde.
Portanto:
Por estes conceitos ampliados de saúde, fica evidente a necessidade de se criar
Políticas Públicas voltadas à melhoria da qualidade de vida pela promoção da saúde.
A visão do Projeto Político-pedagógico das Academias Populares de Vitória baseia-
se, portanto, no Ser Humano, complexo e sem dicotomias, em que Corpo, Mente,
Emoção e Espírito se interagem constantemente na busca pelo equilíbrio e bem-estar
do organismo (PPPAV, 2008, p. 6).
Para a professora P1, o PPPAV traz uma visão ampliada acerca da dimensão do
homem e dos elementos necessários na constituição do seu dia-a-dia. Mas P1 aponta
dificuldades, a partir de suas considerações, relacionadas à falta de profissionais específicos
para determinadas intervenções na Academia. Ou seja, o projeto das Academias considera a
questão holística acerca do homem, ou mesmo traz essa tentativa de intervenção para
Academia Popular, mas, em sua efetivação, o desenvolvimento sobre essas considerações
50
existentes no PPPAV não acontece de uma forma geral. Acredita também que o projeto da
Academia deveria ter/apresentar uma ação mais presente na comunidade de Santo Antônio.
Nas palavras de P1:
[...] o projeto foi passado que seria uma visão holística do aluno... Atendê-lo como
um todo! Mas assim... É complicado. A gente tenta trazer a principal parte que é a
questão do treinamento resistido, que é a proposta da Academia Popular. Pelo menos
essa parte está sendo bem atendida! Agora, as outras questões... A questão
psicológica, eu não vejo assim! A questão social, um pouco, mas muito deficiente.
Porque a gente não vê essa questão. [...] a questão da integração com a comunidade,
mesmo, como um todo... É o aluno que vem! Mas assim... O próprio projeto que
teria que estar chegando na comunidade... E estar tendo uma ação constante dentro
da comunidade. Não existe!
P1 relata também a falta da avaliação do projeto pelos usuários. Tal situação não faz
parte das ações da SEMESP nem da própria Academia, mas P1 acredita que o retorno acerca
do funcionamento da Academia seria relevante para melhorar as intervenções sobre ela,
considerando, dessa forma, algumas necessidades/intencionalidades mais específicas dos
usuários – desconhecidas pelos profissionais – ao frequentar a Academia. Sobre a avaliação
do projeto, para P1,
[...] uma troca de experiência, mudanças que a gente poderia estar fazendo pra
adequar melhor o atendimento, estar satisfazendo melhor a comunidade, chamar a
própria comunidade pra estar fazendo uma avaliação... Como está a Academia?
Como a gente pode estar mudando? [...] isso seria interessante porque a gente
veria... „Ah, não está bom assim!‟. O que a gente poderia estar fazendo pra mudar?
Como isso pode ser melhorado? A questão da avaliação, não só a questão da
avaliação física que já falamos sobre ela, mas a avaliação do próprio serviço em si...
Como está isso? A gente vê reclamações de um ou outro... Relação à cobertura,
relação ao piso... Mais a questão estrutural! Às vezes a questão do horário, a questão
da toalha [...].
Essa compreensão mais ampliada de saúde, presente no PPPAV, convive com um
discurso que enfatiza a importância da atividade física para a saúde do homem. Saúde que
está referenciada e/ou expressa por meio de índices e taxas metabólicas pertencentes aos
determinados parâmetros/padrões biológicos: “[...] Os exercícios em geral tendem a melhorar
a composição sanguínea, normalizando os níveis de glicose, gorduras e diversas outras
substâncias, que podem estar alterados e trazer riscos aos portadores” (PPPAV, 2008, p. 6,
grifo do documento).
A crença da melhoria da qualidade de vida atrelada, essencialmente, à prática de
atividades físicas é outra característica presente no projeto, tratando como verdade que “O
desenvolvimento de novos hábitos, com uma ênfase maior na prática de atividades físicas, é
51
um passo fundamental para a melhoria generalizada da saúde orgânica e, consequentemente,
da qualidade de vida” (PPPAV, 2008, p. 6). Termos como “especialistas” ou “órgãos
especializados”, “bem-estar” e “qualidade de vida” não são problematizados ao longo do
projeto.
O ideal de corpo condicionado às práticas de atividades físicas para, assim, apresentar-
se saudável, assim como o combate ao envelhecimento são elementos abordados pelo PPPAV
que nos mostram, novamente, sua condição eclética no pensar o homem e suas possíveis
“configurações” de saúde. As “partes” do corpo humano e sua consequente forma são
acompanhadas pela ideia de divisão segundo a qual o corpo humano pode ser compreendido;
o texto vale-se de falas de Hipócrates6 para evidenciar tal concepção: “Toda parte do corpo se
tornará sadia, bem desenvolvida e com envelhecimento lento se exercitada; no entanto, se não
forem exercitadas, tais partes se tornarão suscetíveis a doenças, deficientes no crescimento e
envelhecerão precocemente” (PPPAV, 2008, p. 6).
Compreendendo o caráter diversificado e/ou eclético no discurso do PPPAV, em
relação aos conceitos relacionados à busca e à manutenção da saúde, bem como a suas
implicações sociais, busquei atentar-me, também, às ações dos professores na Academia, uma
vez que essa diversificação conceitual poderia dar-lhes variadas possibilidades para suas
ações profissionais junto aos alunos. As abordagens biológica e social sobre o homem que
permeiam o PPPAV permitiram-me buscar, a partir das manifestações dos professores na
Academia Popular, compreensões acerca dos saberes/conhecimentos a eles necessários para a
realização de suas intervenções nesse ambiente.
6 Hipócrates de Cós: considerado o “pai da Medicina”, viveu no século V a.C.; de reputação tão elevada, seus
textos sobre Medicina vigoraram pela posteridade. Fonte: http://warj.med.br/pdf/hipocrates.pdf, acessado em
10/06/2015.
52
2 ACADEMIAS DE MUSCULAÇÃO E DE GINÁSTICA: A HISTÓRIA NO BRASIL
As academias são historicamente conhecidas no Brasil desde o ano de 1893.
Atividades como natação (São Luís-MA, 1893), lutas (Belém-PA, 1914), judô (Rio de
Janeiro-RJ, 1930) e aquelas ligadas diretamente à prática de halterofilismo7 eram encontradas,
até 1930, principalmente em grandes capitais brasileiras próximas ao litoral, com destaque
para as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. A partir de 1950, houve uma expansão das
academias para cidades de médio porte e interiores do País. Até o ano de 1940, os espaços
direcionados às práticas de atividades físicas ainda não apresentavam o modelo de academia
tal qual conhecemos, de modo que “[...] foi a partir de 1940 que o modelo de academias de
ginástica existente atualmente, com base na ginástica, lutas e halterofilismo ou culturismo se
delineou” (CAPINUSSÚ, 2006 apud FURTADO, 2009, p. 2).
As mudanças que ocorreram nos modelos de academias de ginástica no Brasil podem
ser divididas8 em três estágios de desenvolvimento diferentes, considerando, sobretudo, o
fator “racionalização” (FURTADO, 2009) da/na produção que foi inserido no ambiente das
academias. Com o avanço da “racionalização” sobre esses ambientes, a organização dos
modos de administrar e pensar a academia passou a corresponder a uma determinada
configuração mercadológica e, para elas, iniciou-se um movimento de investimentos
financeiros visando, de forma ampla, a lucratividade na oferta de produtos e serviços
relacionados à prática da atividade física. Assim, podemos visualizar tal evolução do seguinte
modo:
Um estágio inicial caracterizado pela afinidade com a área, como principal
motivação para a implementação das academias. Por isso, a administração empírica,
amadora ou do senso comum preponderava.
Um segundo estágio, caracterizado pela mescla entre a afinidade com a área e a
inserção das tecnologias da administração em busca de lucros, surgido,
principalmente, a partir dos anos 80.
E um terceiro estágio, onde as mais avançadas tecnologias dos instrumentos de
produção e da gestão são encontradas nas academias. Há presença da micro-
eletrônica nos instrumentos e das mais diversas teorias administrativas de gestão de
recursos humanos, de marketing, financeira e contábil, configurando a
racionalização nas academias (FURTADO, 2009, p. 5).
7 Halterofilismo: atividade na qual o praticante levanta grande quantidade de peso. Nessa atividade física, o
praticante não utiliza trajes de banho; os trajes de banho são referentes à bermuda ou sunga para homens e
biquíni, maiô e tanga para mulheres. Esses trajes são utilizados na prática do fisiculturismo, que corresponde
somente à exibição da forma corporal.
8 Essa divisão corresponde à organização meramente didática referente às mudanças ocorridas nas academias de
ginástica e musculação.
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As academias que inicialmente eram organizadas em ambientes elaborados para a
oferta de uma determinada atividade física passaram, durante os três estágios, a ofertar, em
seus espaços, variados tipos de atividades como a musculação e a ginástica. Ou seja, os
ambientes foram reconfigurados para que houvesse a possibilidade de ofertar ao público uma
variedade de atividades físicas em uma mesma academia. Essa mudança ocorreu ao final da
década de 1980.
Até o ano de 1980, podemos citar algumas características correspondentes ao estágio 1
do desenvolvimento das academias de ginástica e musculação, como: considerável ausência
da busca pela lucratividade atrelada ao mercado das academias; a motivação para a prática do
halterofilismo relacionada à rivalidade entre os atletas da área, em detrimento do retorno
financeiro que a prática poderia dar ao atleta; os proprietários das academias eram,
normalmente, ligados às atividades das mesmas, como profissionais da Educação Física e
praticantes do halterofilismo.
Essa prática acontecia desarticulada das questões mercadológicas que vieram, mais
tarde, a embasar o funcionamento/objetivos das academias de ginástica e musculação. É
característica desse estágio, ainda, a pouca estruturação do ambiente das academias, de forma
a não se prestar ao exercício de atividades distintas em um mesmo local. Diante disso, a meu
ver, considero que a Academia Popular ainda guarda diversas características deste primeiro
estágio, uma vez que, em seu ambiente, a atividade física quase unicamente praticada é a
musculação, prática que ocorre desligada dos aspectos mercadológicos que incentivam o
consumo de produtos e serviços diversos, relacionados não somente à prática da musculação,
mas, também à busca desenfreada pela beleza e pela estética corporal, tão elevadas
socialmente.
Ao final dos anos de 1980, houve um aumento de público que aderiu à prática do
halterofilismo, o que se deveu a fatores que serviram como meios de divulgação dessa prática,
como a ocorrência de campeonatos (municipais, estaduais e internacionais), bem como a
inserção do Brasil no cenário mundial do halterofilismo – em 1978, o País filia-se a
International Federation of Body Builders e a outras entidades internacionais da modalidade
(FURTADO, 2009).
Nessa época, a ginástica, por sua vez, passou a ser praticada de forma significativa
pelo público feminino, sendo a mídia colaboradora para esse fator, uma vez que iniciou seu
papel na divulgação de tal prática. Segundo Nolasco et al., apud Furtado (2009, p. 3): “A
organização do espaço e do trabalho foi se modificando. No mesmo período, há um novo
54
impulso às academias de ginástica oriundo da ginástica aeróbica e sua principal divulgadora, a
atriz Jane Fonda”.
Com a ocorrência de tais circunstâncias, houve a formação de novos grupos de pessoas
consumidoras dos serviços das academias de ginástica, as quais, por sua vez, adotaram novos
aparatos para atender a esse novo mercado e ampliá-lo. Nesse contexto, a partir de 1980,
delineia-se o chamado estágio 2 das mudanças estruturais e administrativas das academias.
Quanto aos aspectos do estágio 2 do desenvolvimento das academias, relaciono-os
com a Academia Popular, principalmente, pelo traço característico referente ao ambiente
estruturado para a prática da musculação adaptada a um público feminino. Além do público
feminino, considero um ambiente estruturado também para faixas etárias variadas
(adolescentes, jovens e idosos). E mais uma vez, não vejo correspondência entre a Academia
Popular e os aspectos racionais pensados para o mercado consumidor atrelando-o à prática da
musculação, característica que se iniciou no referido estágio 2 do desenvolvimento das
academias.
As academias passaram, então, a buscar atingir um novo público “consumidor” para os
serviços que ofereciam, e novos objetivos mercadológicos, financeiros e de consumo deram
uma nova configuração aos espaços e anseios das academias. A partir de 1980, os espaços
organizados para a prática da ginástica e musculação receberam o nome, de forma definitiva,
de “academia”, mesmo já havendo alguns centros e institutos pensados para essas práticas.
Essa denominação significou a mudança no pensar a atividade física e sua relação com o
público:
O termo musculação passou a substituir o halterofilismo, visando abranger um
público maior de pessoas que não praticavam a modalidade por competição ou para
construir corpos com grande hipertrofia da musculatura. Assim, as academias que
surgiram a partir de meados de 1980 já apresentavam mudanças em seus nomes,
acompanhando a essa mudança de atendimento de necessidades do público. Ao
invés de nomes como „Músculo e Poder‟, „Academia do Tarzan‟, „Centros de
Fisiculturismo‟ e outros que buscavam demonstrar imponência e faziam referência
ao halterofilismo, começam a surgir nomes que evidenciam mais a ginástica e/ou a
musculação (FURTADO, 2009, p. 4).
Nesse estágio, o ambiente das academias foi (re)elaborado com a implantação de
máquinas e aparelhos adaptados para praticantes de musculação; a prática da musculação
passou a ser adotada, também, por mulheres; houve a inserção da ginástica aeróbica nas
academias e a divisão do trabalho entre os profissionais da musculação e de outras
modalidades. O desenvolvimento de teorias administrativas para as academias marcou a
idealização desses espaços como um negócio lucrativo.
55
A partir dos anos de 1990, o estágio 3 do desenvolvimento das academias, ocorreu a
chegada do Body Systems ao Brasil, que trouxe um diversificado conjunto de aulas pré-
coreografadas ou prontas, impactando o mercado brasileiro de produtos e serviços de
academias de ginástica lançados para consumo, bem como a variedade de modalidades de
atividades que passaram a ser disponibilizadas/vendidas aos sujeitos. Com o desenvolvimento
estrutural e com o avanço dos aspectos econômicos nesse setor, notamos a evolução das
academias em suas abordagens administrativas, diante de um mercado que crescia
significativamente.
O ideal de acumulação de capital, investimentos e retorno financeiro é, então, trazido
para a realidade das academias. Para tanto, a organização do trabalho nesses espaços passa a
incorporar técnicas e teorias administrativas essenciais ao funcionamento das academias ao
longo desses três estágios de mudanças referenciados acima.
Nesse contexto, modificam-se também os sentidos/significados atrelados ao ambiente
das academias. Adotaram-se ideais que passaram a priorizar a busca por saúde, qualidade de
vida, bem-estar, dentre outros fatores, por meio, essencialmente, da prática da atividade física.
Dessa forma, as academias privadas de ginástica objetivam conquistar, cada vez mais, um
número maior de pessoas interessadas nos seus serviços e produtos.
Diante de tais circunstâncias, o aumento do capital pelas academias torna-se
consequência, também, de um conjunto de falas/discursos que dão à prática da atividade física
um novo rosto ou, mesmo uma máscara, com significados relacionados a possibilidades de se
atingir os elementos de uma saúde plena e ideal para o ser humano, não colocando em
evidência, como outrora, a beleza e a estética corporal. Segundo Castro9 (2003, p. 35),
Durante os anos 90, todos os setores da economia envolvidos com a produção e/ou
manutenção da beleza experimentaram significativo crescimento. O setor
responsável pela fabricação dos produtos de higiene pessoal, cosméticos e
perfumaria, um dos principais filões da indústria da beleza, no período de 1991 a
1995, acumula um crescimento de 126,6% [...].
O estágio 3 do desenvolvimento das academias encontra-se distante da realidade em
que se encontra a Academia Popular. Todo esse arsenal de estrutura e mercado de produtos e
serviços estéticos voltados para o público não ocorre no ambiente estudado. E o próprio
9 Ana Lúcia de Castro (2003) realizou um estudo em três academias de ginástica e musculação (dentre outras
atividades) na cidade de São Paulo. As academias eram de grande e pequeno porte (considerando-se, para essa
classificação, o número de alunos e a área em m² da academia). O livro, intitulado Culto ao Corpo e Sociedade:
mídia, estilos de vida e cultura de consumo, teve como sua ideia norteadora “inquietação”: “quais as motivações
para os indivíduos estarem, cada vez mais, preocupados com a apresentação e a forma de seus corpos?”
(CASTRO, 2003, p. 15).
56
ambiente não corresponde à densa estrutura de aparelhos, serviços e oferta de atividades
físicas que são adotadas pelas maiores e mais desenvolvidas academias de ginástica.
O que passamos a encontrar, principalmente, a partir do estágio 3 das academias
privadas, são discursos que elucidam a importância do bem-estar como um todo, abordando
cada vez menos os ideais do fitness para a prática da atividade física. Dessa forma, o exercício
sistematizado com ênfase no delineamento e/ou na definição dos músculos, bem como no
desenvolvimento contínuo de uma estética corporal, parecem dar espaço à busca voltada
essencialmente à qualidade de vida e a suas consequências positivas para a vida do homem.
A partir desses discursos, o entrelaçamento entre os ideais de “saúde”, “qualidade de
vida”, “bem-estar” e a estética corporal foram intensificados na sociedade, uma vez que “A
beleza passa a ser significada como saúde e, assim, os indivíduos vão sendo oprimidos na
busca do modelo que os tornem „saudáveis‟ (SUDO; LUZ, 2007 apud SALLES; SANTOS,
2009, p. 88)”.
Com o uso de termos acerca das ideias sobre curar e sarar, por exemplo, podemos
encontrar alguns aspectos sobre os vínculos e/ou as relações entre o corpo modelado/malhado
e a saúde do homem, já que,
Esse vínculo entre saúde e beleza, fica bem explicito no uso do termo: „sarado‟, um
adjetivo que deriva do verbo „sarar‟, ou seja, „recobrar a saúde‟ ou „curar uma
ferida‟, mas que foi ressignificado para „corpo modelado‟ ou „corpo musculoso‟
(SALLES; SANTOS, 2009, p. 88,).
Tais discursos funcionam como um elemento de camuflagem ao tratamento dado à
prática da atividade física, não sendo esta primordialmente atrelada à busca pela beleza
corporal, mas sim ligada, fundamentalmente, à busca pela saúde. Nesse ponto, Santa‟Anna
(2003, p. 72), ao analisar alguns discursos da mídia impressa e considerar depoimentos de
frequentadores de academias, afirmou que
[...] os discursos sobre a saúde e a estética continuam indissociáveis e convergem
para um mesmo ponto: a importância da atividade física, como aponta a análise das
revistas estudadas e os depoimentos dos frequentadores das academias de ginástica,
sendo alimentado, ainda, pelo discurso médico.
Nesse contexto, “[...] o wellness „fortalece-se, aumentando cada vez mais a
participação e a manutenção saudável de pessoas em programas de exercícios físicos‟”
(SABA, 2006, apud FURTADO, 2009, p. 8). Em tal âmbito,
57
O wellness engloba o fitness. O conceito de wellness embora negue o conceito de
fitness, também é composto por ele. O condicionamento físico não deixa de ser
enfatizado, porém, é trabalhado em perspectivas mais amplas visando à qualidade de
vida e bem-estar. A estética não deixa de ser enfatizada, porém, é levada em
consideração a saúde nessa busca pela estética (FURTADO, 2009, p. 8).
A importância dada a esses fatores para a construção de estilos de vida saudáveis
ganha espaço, também, nos discursos e projetos diversos dos setores públicos ligados aos
cuidados da saúde do homem. Podemos encontrar esses discursos vinculados a termos como
“bem-estar” e “qualidade de vida”. Estes foram adotados por órgãos públicos na elaboração
de documentos que baseiam suas dinâmicas de gestão política, uma vez que medidas
relacionadas à promoção da saúde vêm ganhando espaço dentro dos planejamentos e da
efetivação dos projetos direcionados à população, como é o caso da Academia Popular de
Santo Antônio.
Considerando os três estágios de desenvolvimento das academias de ginástica e
musculação no Brasil e associando-os à realidade da Academia Popular, percebe-se que esta
apresenta características em comum com determinados elementos dessa evolução. A
observação nos revela, por outro lado, o distanciamento entre a configuração e a dinâmica que
ocorrem no ambiente da Academia Popular e a faceta que, progressivamente, assumiram as
academias a partir dos ideais essencialmente mercadológicos/financeiros que embasaram,
principalmente, o estágio 3 do seu desenvolvimento.
2.1 ACADEMIAS PRIVADAS DE MUSCULAÇÃO X ACADEMIA POPULAR:
ALGUMAS DIFERENÇAS
Estudos que têm como lócus de observação os espaços privados para a prática de
ginástica e musculação são frequentemente desenvolvidos, como os de Castro (2003), Cesaro
(2012) e Hansen e Vaz (2004, 2006). Em contrapartida, em relação aos espaços públicos, em
especial o das Academias Populares, vê-se pouco desenvolvimento de problematizações e,
consequente, de investigação. Diante disso, a seguir, apontarei diferenças entre o ambiente e a
dinâmica das academias privadas de musculação e da Academia Popular.
Utilizo, fundamentalmente, neste capítulo, Vaz e Hansen (2004, 2006) para as
reflexões e contrapontos entre esses ambientes, pois, a meu ver, as características e
considerações apontadas pelos autores atendem aos aspectos diferenciadores primordiais
existentes entre as academias privadas de musculação e a Academia Popular de Santo
Antônio.
58
Tratando-se de espaços públicos destinados a práticas de atividades físicas, dentre elas
a musculação, identifiquei em meu lócus de pesquisa caraterísticas marcantes que evidenciam
as diferenças entre as academias privadas de musculação e a Academia Popular. Acredito,
desse modo, ser um momento oportuno para (re)pensarmos as dinâmicas, as ações e os
sujeitos envolvidos no processo de promoção da saúde em ambientes públicos e/ou privados.
As academias referidas por Vaz e Hansen (2006, p. 136-137) são classificadas como
“Grande Academia” e “Pequena Academia” e diferenciam-se em estrutura e organização de
seus espaços e pessoas. Dessa forma, “A Pequena Academia consiste em uma única sala de
362 m2, metade deles destinada à musculação e a outra à ginástica. Não há parede divisória,
mas alguns aparelhos de musculação delimitam o espaço para cada atividade”.
A “Grande Academia” referenciada por Vaz e Hansen (2006, p. 138) possui
[...] características muito singulares. Trata-se de um portentoso centro de fitness no
qual os cuidados com os mais ínfimos detalhes são observados [...]. O fato de a
organização da academia ser feita por uma empresa especializada, a extrema
organização dos espaços e das máquinas, que jamais mudam um centímetro sequer
de lugar, a alta tecnologia empregada nos aparelhos, considerados os mais
sofisticados do mercado, a limpeza impecável da sala, tudo isso confere ao ambiente
uma sensação de assepsia e „perfeição‟.
Ao corresponder, ou se enquadrar, às particularidades presentes no ambiente da
“Grande Academia”, classifica-se o sujeito, por exemplo, de acordo com sua estrutura
muscular. Esta é colocada em evidência ao se pensar na classificação a que o sujeito
corresponderá em consequência de sua forma muscular “avantajada”, “ideal” ou “comum”,
medida em relação aos padrões estéticos corporais que permeiam o ambiente da academia. O
sujeito é hierarquicamente pensado como sendo um dos “[...] três personagens que cabem aos
homens e também às mulheres, na seguinte ordem: os fisiculturistas, os veteranos e os
comuns” (SABINO, 2002, apud VAZ; HANSEN, 2006, p. 139).
Na Academia Popular, tal situação não foi identificada por mim. Essa classificação, ou
mesmo essa divisão entre os homens e mulheres de acordo com sua “forma” corporal, não
corresponde ao modo como os usuários se organizam durante sua prática de musculação e,
consequente, durante a ocupação do ambiente da Academia. Em nota no diário de campo de
22 de agosto de 2014, registrei que “[...] os grupos que se organizam de acordo com os
horários para a prática da musculação, são misturados: adolescentes, jovens, adultos e idosos.
Vejo pessoas com características corporais variadas”.
59
Outras considerações também são possíveis em relação à aparência do sujeito
frequentador das academias privadas, de acordo, por exemplo, com suas roupas. “Todas as
mulheres, independentemente da faixa etária, usam roupas próprias para ginástica. São roupas
„modernas‟, muitas vezes de grifes famosas” e “Os homens das mais diversas faixas etárias
usam bermudas, regatas e camisetas justas nos braços e no peito. Tanto homens quanto
mulheres usam calçados novos” (HANSEN; VAZ, 2006, p. 140). Soma-se a isso o poderio
econômico do público, que é refletido na possibilidade de “adquirir” a beleza por meio,
também, de tratamentos estéticos e/ou intervenções cirúrgicas. Dessa forma, “A beleza é um
conjunto de bens que podem ser adquiridos, e o grau de embelezamento parece ser
diretamente proporcional ao poderio financeiro de cada um” (HANSEN; VAZ, 2006, p. 146).
E considerando os significados atribuídos à beleza estética corporal “adquirida”, encontramos
nas relações sociais o fator “aceitação” do indivíduo, a partir de sua aparência e dos cuidados
que ele toma com ela, uma vez que “Cuidar da aparência gera muitos dividendos, simbólicos
e materiais, na medida em que um corpo bem cuidado pode garantir ao indivíduo melhor
performance e aceitação social” (CASTRO, 2003, p. 71).
Como podemos notar, a roupa é um dos elementos marcantes na composição dos
possíveis significados que caracterizam os sujeitos nas academias. Na Academia Popular, foi
um fator que observei muito: os homens usam roupas discretas, sem dizeres de incentivos aos
atos árduos da prática da musculação, ali aparentemente entendidos como confortáveis, e as
mulheres, por sua vez, não utilizavam roupas que marcassem as suas formas corporais. Em
entrevista, U4 fala sobre sua preocupação em não chamar a atenção; desse modo, ela nos diz
que: “Olha... Com a roupa eu me preocupo, porque eu não gosto de nada chamativo... Aí eu
preocupo nessa parte!”. Para U2, comprar roupas específicas para malhar é algo que ele não
tem o hábito de fazer: “Não... Normal! Eu uso roupa normal! Pego uma bermuda, pego uma
camiseta e num tem dengo não!”.
Não se limitando às roupas usadas para a prática da musculação, o usuário U1 foi além
e referiu-se também aos acessórios de que alguns fazem uso de por buscarem “chamar” a
atenção ou se exibir. Tais atitudes não são adotadas por ele, pois, em suas próprias palavras:
Eu me sinto livre! Acho que não há necessidade de você comprar roupas pra você
vim malhar. Cordão vai te ajudar em que? O relógio e o cordão? Às vezes você
bota... Até mesmo o celular, você vai trazer o celular pra quê? É pra você se exibir, é
pra dizer que você tem! [...] Agora, tem umas pessoas que têm uma necessidade de
vim com aqueles cordãozões pesadão... Relojão! É pra se exibir, pra dizer que tem,
pra poder chamar a atenção. [...] tem umas pessoas que se preocupa em comprar
uma roupa... Que não é o meu caso. [...] pessoal só quer comprar roupa apertada pra
60
poder mostrar o que você tem. Tá entendendo? Mas eu não preocupo não... Sou
natural!
No diário de campo de 20 de novembro de 2013, utilizei poucas palavras para traduzir
o que eu compreendi acerca das roupas, dos acessórios e dos tênis de que os sujeitos da
Academia faziam uso: “Discrição! Simples assim”.
Para a professora P2, há no ambiente da Academia uma sensação de liberdade no ou
para o comportamento dos sujeitos. Liberdade relacionada ao que não é necessário vestir ou
fazer para realizar o “treino”. E foi objetiva ao revelar sobre a questão da competição, prática
comum em academias particulares:
Aqui não tem aquele desfile de moda que academia particular geralmente tem. Aqui
não tem aquilo de um estar competindo com o outro para ver quem está „crescendo‟
mais rápido... Quem está tomando o melhor suplemento. Aqui não existe nada disso!
As pessoas parecem que se libertam disso aqui dentro.
No processo de produção de seus corpos, homens e mulheres, geralmente,
diferenciam-se na prioridade dada às suas partes corporais, que parecem ser cada vez mais
divididas para que haja uma intervenção mais intensa sobre elas durante a prática da
musculação e da ginástica. A busca por uma forma corporal ideal torna-se contínua e intensa
em nossa sociedade, pois, “Na contemporaneidade, presenciamos a tendência à
supervalorização da aparência corporal, que leva os indivíduos a uma busca frenética pela
forma e volume corporal ideais” (CASTRO, 2003, p. 66). O fator estético corporal dentro da
Academia Popular, a meu ver, ultrapassa esses ideais que correspondem, diretamente, a uma
busca “frenética” pela beleza do corpo. Para P2, pensar na beleza corporal a partir dos
usuários é compreender que a “beleza vem como consequência [da “liberdade” dentro da
Academia] disso tudo. Se acontecer, bem... Se não acontecer... eu quero estar nesse ambiente.
O importante é isso!”.
Hansen e Vaz (2004) nos trazem a reflexão acerca do corpo como sendo um “vetor”
contemporâneo de construção subjetiva e de identidade do sujeito. Corroborando essa ideia,
encontramos em Cesaro (2012) a afirmação de que
[...] Um corpo „malhado‟, „sarado‟ não apenas mostra seus músculos bem
desenvolvidos, também carrega outras marcas, outros signos: assim como a orelha
ralada identifica os pit-boys que praticam jiu-jitsu (FRAGA, 2001 apud CESARO,
2012, p. 32).
61
Tal aspecto compreende uma característica de nossa sociedade em relação aos ideais
do culto ao corpo, que, segundo Castro (2003, p. 74), “[...] remete à possibilidade de
construção de um estilo de vida, afirmação de identidade [...]”. A busca e/ou a conquista da
beleza estética do corpo por meio da prática da musculação e de outras práticas direcionadas à
esse fim revela-se equivaler a um dos artefatos cabíveis ao processo das relações existentes
entre os sujeitos e os diversos ambientes que o fazem acontecer.
O tipo e a disposição do maquinário para a prática da musculação nas academias nos
mostram como ao corpo é direcionada a possibilidade de investimentos específicos para suas
áreas específicas. Tronco, braços, abdômen, glúteos, pernas e panturrilhas são exemplos de
partes do corpo que se tornam focos na e para a organização do ambiente das academias
privadas, uma vez que as máquinas são agrupadas por “regiões corporais”, otimizando, assim,
o treino do sujeito. Para esses cuidados mais específicos, são incluídas também aulas de
danças e/ou de ginástica. Essas práticas, junto à musculação, priorizam certas regiões do
corpo em detrimento de outras, de acordo com o sexo do indivíduo. Assim sendo,
As mulheres preocupam-se acima de tudo com a barriga – região onde qualquer
resquício de gordura deve ser eliminado – com o volume dos seios, com a
hipertrofia e delineamento das coxas, das pernas e, principalmente, das nádegas. [...].
Os homens, por sua vez, almejam, sobretudo, aumentar o volume muscular –
principalmente o dos membros superiores – e diminuir o percentual de gordura
(HANSEN; VAZ, 2006, p. 143-144).
A estrutura das academias parece colaborar para uma determinada pressão sobre os
sujeitos durante os treinos. O espelho, que geralmente é disposto nas paredes da academia
para a musculação, coloca os sujeitos diante de si em tempo constante. O olhar sobre si e
sobre o outro é demasiadamente evidenciado no processo da busca pelo corpo perfeito, pois a
beleza estética em sua plenitude é o principal objetivo do praticante de musculação das
academias privadas. Castro (2003, p. 71) nos revela que “O grupo de musculação preocupa-
se, acima de tudo, com a beleza de seus corpos. [...] este é o único grupo que assume
claramente a preocupação estética como principal motivação para a frequência regular à
academia”. Junto ao elemento espelho, a balança também corresponde a mais um artifício de
vigilância e/ou lembrança dos objetivos corporais a serem alcançados.
As academias privadas, diante desse contexto, colaboram para um modelo de
construção de corpos localizados dentro de um padrão estético contemporaneamente elevado:
“As academias de ginástica e musculação conjugam-se com um vasto repertório de práticas e
62
técnicas que contemporaneamente se acercam e produzem o corpo de mulheres e homens”
(HANSEN; VAZ, 2006, p. 133).
Os números desejados para o peso, e o manequim desejado por homens e mulheres
ficam quase que totalmente a cargo do olhar vigilante e sistemático com os movimentos
realizados durante a musculação. Com isso, “[...] o espelho e a balança representam a voz da
verdade que irá indicar os números do sucesso ou do fracasso na batalha pelo
„aperfeiçoamento‟ corporal” (HANSEN; VAZ, 2004, p. 141).
A estrutura da Academia Popular nos indica outro ponto de divergência entre os
ambientes privado e público (em estudo). Durante os diálogos abertos e as entrevistas, percebi
que, ao abordar a condição estrutural precária na qual a Academia se encontrava em alguns
momentos, os sujeitos não reclamavam da falta do espelho. Este não faz parte do ambiente da
Academia, apenas “dois espelhos pequenos... Para o rosto. Um fica no banheiro e outro em
uma sala pequena, ambos no módulo do SOE” (Diário de Campo, 13 de novembro de 2013).
A balança, que também fica dentro do módulo do SOE, é utilizada quando o professor S
realiza as avaliações físicas dos indivíduos que querem malhar na Academia ou as avaliações
físicas de seus alunos. O uso da balança parece não ser atrativo aos usuários da Academia,
uma vez que não o visualizei em quaisquer momentos fora aos citados acima. “Parece não
haver interesse pelos sujeitos da Academia em saber, ou mesmo controlar seus pesos e
medidas” (Diário de Campo, 14 de maio de 2014), fato incomum nas academias privadas.
Diferentemente das academias privadas de musculação, a estrutura do espaço físico da
Academia Popular apresenta como característica a ausência de paredes ao redor das máquinas
e dos aparelhos. Tal característica é tão relevante quanto a ausência dos espelhos, citada
anteriormente, para a reflexão acerca dos ideais de promoção de saúde que são adotados na
Academia. Usuários que frequentam esse espaço buscam por elementos que distanciam a
prática da musculação de fatores essencialmente ligados a imperativos da estética corporal
ideal, encontrados comumente nas academias particulares. A ausência das paredes nos indica
a “sensação de liberdade vivida pelos usuários pela falta de paredes na Academia. O que me
parece é que os sujeitos aqui dentro não sentem os limites para o movimento de seus corpos”
(Diário de Campo, 30 de outubro de 2013).
A musculação que, a priori, estaria livre dos ditames do treinamento rígido e
competitivo comum a algumas práticas desportivas, passou a ser vivida por seus praticantes
como um elemento de modelação corporal. A partir da realização dos treinos e de suas
características rígidas e performáticas, a musculação nas academias carrega um emaranhado
de características que correspondem a “[...] um caráter de treinamento e performance
63
incorporado como regra comum” (HANSEN; VAZ, 2004, p. 138). Ela ficou compreendida
dentro de um espaço de técnicas que extrapolam a prática do simples fazer musculação, indo
ao encontro dos fatores oriundos das práticas do desporto competitivo:
É curioso como nas academias de ginástica e musculação se retomam, com poucas
variações, a organização e o desenvolvimento das premissas e práticas do
treinamento desportivo: a divisão dos espaços das salas de musculação, a
especificidade do trabalho de acordo com o sexo e a faixa etária, a organização dos
exercícios balizada pelos programas referenciados no treinamento de atletas
(HANSEN; VAZ, 2004, p. 137).
Na Academia Popular, os aparelhos/máquinas para musculação também ficam
organizados de modo a obedecer a essa “divisão da sala de musculação”, que ocorre de
acordo com os grupamentos musculares do homem. Mas alguns aspectos referentes ao treino
na musculação podem ser diferenciados também, como, por exemplo, a música de volume
ambiente e de gênero gospel (remixado), colocado pela professora P1 “para „embalar‟ o ritmo
dos „treinos‟” (Diário de Campo, 02 de julho de 2014). Segundo um dos usuários “[...] É bom
malhar nesse ritmo... Acalma a gente!” (Diário de Campo, 02 de julho de 2014). Em
contrapartida, nas academias privadas “a música em volume alto e com muita batida embala
os treinos na musculação. Essa batida musical parece funcionar como um elemento
incentivador ao treino pesado na musculação” (Diário de Campo, 03 de junho de 2014).
Outra questão a evidenciar nesse contexto de diferenças, também relacionada ao
barulho no ambiente da Academia Popular, refere-se ao comportamento dos usuários, que não
fazem uso de gritos para ou na realização dos movimentos mais pesados durante sua prática.
“Me sinto bem lá, tranquila!”, foi a resposta da usuária U4, quando a questionei sobre a
tranquilidade que encontramos na Academia Popular. E continuei: “será o clima... o vento...o
mar. É isso?” U4 completou sua resposta: “Pode ser, mas eu acho pelas pessoas também,
não?! [...] Todo mundo tranquilo e tal, não tem aquela agitação, aquele pessoal mal-educado...
barulhento”. A preferência da usuária U4 pela Academia Popular fica expressa, dentre outros
fatores citados por ela durante a entrevista, diante da consideração acerca do gosto que ela
possui pela tranquilidade para malhar.
O uso de gritos, geralmente, é consequência da ocorrência da dor ou do sofrimento,
que, em academias privadas de musculação, são elementos normais para o sacrifício de
alcançar um ideal de corpo perfeito. Neste ponto, nos falam Hansen e Vaz (2004, p. 141) que
[...] a dor não é uma „aliada‟ do treinamento corporal, mas, do ponto de vista
subjetivo, o inimigo a ser combatido, superado, suportado, ignorado – ou ainda, num
64
registro mais fronteiriço, a experiência a ser glorificada, desejada, certificação de
que de fato se está indo além dos limites e que, portanto, há mérito na dilaceração do
próprio corpo.
As ações que envolvem a causa da dor e sua consequente aceitação, de modo a
suportá-la diante do manuseio do peso elevado e/ou da prática de exercícios exaustivos
durante os treinos de musculação é uma máxima não praticada pelas professoras da Academia
Popular. Ao detectarem algum movimento mais brusco do aluno, elas interferem orientando-o
a mudar/trocar o peso e/ou a intensidade do exercício, sendo assim “É interessante ver a
professora „acelerar o passo‟ para interromper o movimento que ocasiona a dor do usuário.
Não vejo incentivo ao movimento exaustivo de exercícios” (Diário de Campo, 23 de abril de
2014). Em outra uma nota, relatei que
A intervenção com o intuito de evitar a dor dos usuários é explícita na ação das
professoras diante dos treinos dos mesmos. Presenciei, mais uma vez, uma
interferência de P1 no treino do aluno. Motivo: diminuição do peso! (Diário de
Campo, 22 de agosto de 2014).
A intervenção das professoras também acontece no sentido de não estimular a prática
da musculação sobre os aspectos da chamada “maromba”. Na academia particular de
musculação, a “maromba” é, geralmente, praticada pelos conhecidos como “marombeiros”.
Segundo Hansen e Vaz (2004, p. 142),
A rotina dos marombeiros traduz-se em uma prática solitária e individualista, a qual
exige um grande esforço psicofísico que permite suportar a dureza e a repetitividade
dos exercícios necessários para o „aperfeiçoamento‟ da estética corporal.
Agindo contrariamente aos ideais da prática da “maromba” no ambiente da Academia
Popular, P1 nos fala em entrevista que, ao ser abordada por usuários que querem “tomar algo
para crescer e rapidamente”, ela faz a tentativa do incentivo para que o usuário busque
informações sobre as necessidades reais de sua saúde, sem incentivar o uso de suplementos
e/ou outros métodos de crescimento muscular. Nesse sentido, há no comportamento da
professora a busca pelo cuidado com fatores que não se relacionam, necessária ou
exclusivamente, ao corpo e/ou à construção corporal do usuário. P1 em entrevista relata:
[...] porque quando um aluno chega muitas vezes querendo já saber o que tomar para
poder crescer...ai nós entramos com a questão da saúde: „Não, espera! Devagar!
Vamos ver qual o seu objetivo. É esse? Vamos devagar! Vai na nutricionista, veja
direitinho o que você precisa e se você usar qualquer coisa vai danificar‟. Então
tentamos sempre dar essa orientação nesse sentido. Nós intervimos dessa
65
forma...muitas vezes falando: „Olha, muitas vezes é só sua alimentação que você
precisa mudar, você não precisa gastar com suplementação. Você tem que fazer todo
um estudo do seu dia-a-dia, do seu histórico alimentar, da sua atividade laborativa,
para ver o que você precisa realmente e se você precisa‟. Que muitas vezes, entra a
questão de padronizar: „Eu tenho que ficar marombado‟.
Em academias privadas é mais comum encontrarmos, à disposição de seus usuários,
suplementos alimentares que devem ou podem ser ingeridos antes, durante e após o treino da
musculação, com o intuito de potencializar os resultados dessa prática. Tal configuração do
ambiente, a meu ver, nos remete a pensar na facilidade/pressão que é colocada aos usuários
desses locais em relação aos cuidados com o corpo. Ao descrever parte da academia na qual
desenvolveu sua pesquisa, Cesaro (2012, p. 50) relata que
[...] Nesse espaço ficam localizados o balcão dos suplementos alimentares e a
secretaria da academia. No balcão, à direita de quem entra, ficam expostas as
embalagens dos mais variados pós que vão se transformar em shakes e sucos que são
ingeridos antes, durante e depois dos treinos.
Alguns usuários dividem a rotina dos treinos na musculação entre a Academia Popular
e a academia privada, uma vez que alguns trabalham em regime de escalas e em determinados
dias da semana não podem ir à Academia no período matutino, pois estão trabalhando. Diante
dessa impossibilidade, recorrem ao uso da academia privada no período vespertino ou
noturno. É interessante citar que a opção de permanecer na Academia Popular é colocada em
evidência quando se referem à preferência em utilizar o espaço público da Academia em
detrimento do privado. Nas palavras do usuário U3, podemos visualizar alguns elementos
principais que permeiam sua opção em continuar a frequentar a Academia Popular:
[...] eu vou ser bem sincero com você, aqui é melhor do que lá [academia privada].
A disputa lá é muito maior...a disputa de estética...de espelho... A disputa em todos
os sentidos! As pessoas te olham...te reparam! As pessoas [soberbas] está muito
maior nesse ambiente, aqui tem, mas, você consegue „passar por cima‟. Lá parece
que a „força que eu tenho... eu posso‟ é muito maior, e às vezes quem tá lá no
particular não tem porra nenhuma. As mulheres desfilam om aquelas roupas
cavadas, quanto mais provocantes melhor, e depois não querem que a galera da
academia fiquem olhando! Os homens ficam ali...se rasgando, uns gritam dentro da
academia que parece que querem chamar a atenção... Os caras não querem malhar!
Diz estudos que quando você grita num movimento te dá mais força, mas,
sinceramente...minha vergonha fala tão alto que eu não consigo adquirir essa força
(risos) [...]. E aquele tal de te olhar com um olhar diferente...um olhar discriminado!
A pessoa só chega até você quando ela sabe o que você tem... O interesse chega
primeiro!
Os ideais de saúde e de beleza e estética corporal são potencialmente entrelaçados no
contexto das academias de musculação, uma vez que
66
Saúde e estética são os principais motivadores para a frequência à academia e prática
de atividades físicas, o que pode ser atribuído à maneira como historicamente os
conceitos de saúde e beleza foram sendo construídos e tendo seus sentidos
entrelaçados (SANT‟ANNA, 2003, p. 63).
As diferenças citadas ao longo do capítulo nos levam a refletir a respeito dos aspectos
sob os quais o ideal de promoção da saúde acontece nos mais variados ambientes destinados,
a priori, ao processo de busca e manutenção da saúde pelo homem por meio da prática da
atividade física.
2.2 A PROMOÇÃO DA SAÚDE NA ACADEMIA POPULAR DE SANTO ANTÔNIO
A prática de atividades físicas (associadas a outros hábitos de vida entendidos como
saudáveis) com vistas a conquistar e promover saúde tem feito parte dos discursos de projetos
sociais. Compreender as necessidades da sociedade e atendê-las pressupõe lançar mão de
diferentes saberes, disciplinas, tecnologias materiais e não-materiais como instrumentos de
trabalho (FREITAS; BRASIL; SILVA, 2006). É nesse processo, então, que se destaca a
atividade física/as práticas corporais como tecnologias leves (MERHY, 2002), que podem
contribuir para ampliar e embasar novas formas de se pensar a formação e a ação dos
profissionais na/da área da saúde.
Merhy (2002, p. 48) faz referências ao “trabalho vivo em ato”, que corresponde às
ações dos profissionais dos campos da saúde e também da educação: “[...] o trabalho em
saúde é centrado no trabalho vivo em ato permanente, um pouco à semelhança do trabalho em
educação [...]” e ainda nos revela a ideia sobre os instrumentos/materiais que são
considerados “trabalho morto”, assim como o processo de organização para a intervenção dos
profissionais da saúde nos projetos dessa área: “[...] o trabalho em si atua como trabalho vivo
em ato e os instrumentos usados, bem como a organização do processo, como trabalho morto”
(2002, p. 47).
Os cuidados em saúde no âmbito da promoção da saúde devem ser, dessa maneira,
desenvolvidos a partir de ações que evidenciem a importância do estabelecimento de vínculos
e acolhimento entre usuários do serviço e profissionais nos variados ambientes que
correspondem aos projetos na área da saúde.
Para a professora P2, abordar ou acolher o usuário de acordo com aquilo de que ele
“precisa” é fundamental para o desenvolvimento de seu trabalho na Academia. Em entrevista,
67
relatou-me que alguns alunos chegam à Academia querendo apenas “desestressar”. Citando
um exemplo, ela contou o que ouviu de uma usuária da Academia e como reagiria caso
fizesse a intervenção sobre essa usuária:
„É, hoje eu vim aqui para me desestressar!‟ Foi a fala dela. Então, quer dizer... Ela
está com um problema fora e ela veio para esquecer. [...] Hoje eu não acompanhei o
horário dela, mas se eu tivesse do lado dela, eu iria conversar com ela, eu não iria
me preocupar se ela estava fazendo sua seção completa... Se ela estava
desenvolvendo bem o trabalho muscular. Hoje eu trabalharia com ela o problema
pessoal. Não que eu quisesse interferir, mas eu queria que ela alcançasse o objetivo
dela... Que era relaxar!
Pensar a Academia Popular sobre os aspectos do “trabalho vivo em ato” é pensá-la
como um lugar no qual a prática da musculação nem sempre representa o fator principal para
a ocorrência da promoção da saúde de fato e, consequentemente, para as ações dos
profissionais naquele lugar. Situações particulares/individuais podem acarretar uma
intervenção diferenciada em relação ao usuário e a sua condição, mesmo que momentânea,
em estar na Academia ou em buscá-la. Compreender que a prática da musculação não será
obrigatoriamente o elemento mais importante para a efetivação dos atos de cuidado naquele
lugar faz parte das considerações das professoras em suas ações, a partir das singularidades
e/ou dos objetivos dos usuários.
Nesse sentido, nos fala P2 que “aqui [Academia] é um lugar que alguns alunos usam
para desestressar, para mim também”. Para P1, receber o usuário com palavras de
acolhimento e atenção representa um momento importante para sua prática do cuidado
enquanto professora da Academia. Em suas palavras:
Um bom dia com certeza faz toda diferença! Um bom dia, um sorriso, independente
da forma que você esteja... Tem dia que a gente não está legal, mas, mesmo assim o
atendimento tem que ser feito de qualquer forma e, da melhor forma possível!
O uso do espaço público da Academia Popular para a prática da musculação como
atividade principal, mas não única, é uma característica que expressa a forma como os
usuários ocupam a Academia de maneira diferenciada do objetivo principal formulado para
sua criação. Nesse ponto, considerando Leite (2002), podemos compreender a Academia
como um “lugar” resultante dos “contra-usos” realizados pelos usuários. Os “contra-usos”
refletem como os usuários usam de outra forma ou para outras finalidades aquele ambiente,
atribuindo, assim, à Academia um contexto de promoção de saúde além da prática da
musculação. Leite considera as falas de Certeau e Zukin acerca das estratégias e táticas nos
68
“usos” e “contra-usos” para e na ocupação dos espaços públicos pelos sujeitos e,
consequentemente, a produção de “lugares”,
[...] gostaria de sugerir um desdobramento do esquema de Certeau, a partir da
contribuição de Sharon Zukin: diria que as „táticas‟, quando associadas à dimensão
espacial do lugar, que a tornam vernacular, constituem-se em um contra-uso capaz
não apenas de subverter os usos esperados de um espaço regulado, como também de
possibilitar que o espaço que resulta das „estratégias‟ se cinda para dar origem a
diferentes lugares, a partir da demarcação socioespacial da diferença e das
ressignificações que esses contra-usos realizam (LEITE, 2002, p. 122).
Algumas observações são feitas pela professora P1 no que diz respeito ao
(re)conhecimento que eles, os professores, devem ter em relação aos usuários da Academia,
para que se evite, diante de uma abordagem inadequada, afastá-los da Academia e dos
cuidados que seus profissionais podem oferecer a esses usuários. Por meio de observações
contínuas e diárias em seu local de trabalho, a professora passa a compreender os usuários e
suas diferenças. E, dessa forma, consegue estabelecer com eles relações específicas a partir de
seus “atos de cuidados em saúde” na Academia. A valorização de sua intervenção, na medida
do possível, individualizada com os usuários é algo que se percebe em suas falas na
entrevista:
Com certeza, tem que considerar [o diferente], tem que diferenciar isso... Tentar
tratar de outra forma. Mesma questão de alguns alunos... Você percebe a questão da
própria personalidade do aluno. Pois alguns alunos sabemos que têm alguns
problemas psicológicos que vem. Então você tem que saber como chegar nesse
aluno. Como tratar esse aluno. Como tratar esse aluno de uma forma diferenciada
para, muitas vezes, não afastá-lo da prática [...]. Então isso vem da própria prática de
você estar ali vivendo com o aluno, de você está vendo como ele é! E alguns pela
própria prática profissional [que vem de uma prática de trabalho em presídio] que
vem muitas vezes com um humor bem alterado, e você já percebe pela fisionomia,
pela diferença: Esse plantão não foi legal! Então a pessoa está „daquele‟ jeito...
Então, você tem que ter uma abordagem diferente!
Em 9 de julho de 2014, presenciei uma conversa ocorrida entre a professora P1 e uma
usuária da Academia. A professora, mais uma vez, comportou-se de forma atenciosa e
acolhedora em relação ao posicionamento da usuária acerca dos cuidados que ela preferia
estabelecer em relação a sua saúde, pois a usuária (U6) queixava-se bastante sobre o
posicionamento de seu médico ao querer interná-la, “de qualquer jeito”, por ela sentir,
frequentemente, indisposições para realizar suas atividades diárias/rotineiras. Durante a
conversa, a professora P1 correspondeu atenciosamente (perguntas sobre o “estado de saúde”
da usuária e gestos positivos com a cabeça ao longo da conversa) ao desabafo que a usuária
fazia e, com ares de indignação, esta fez o seguinte esclarecimento para a professora P1:
69
“Sempre fui assim. O médico que disse, mas sou eu que sei sobre mim. Não quero ficar
internada”.
A partir dessa fala, a Academia configurou-se para as professoras como um ambiente
de possíveis reflexões e opiniões acerca da autonomia dos sujeitos. Pois levei até as
professoras a frase da usuária e conversamos sobre autonomia na e para a vida do homem e
como os conceitos de saúde, ou mesmo a dimensão dos fatores que influenciam a saúde,
podem aumentar as possibilidades de entendimento e intervenção do profissional com seus
pacientes se considerarmos as possibilidades diversas de relação entre o sujeito e sua saúde.
Ao final de nossa conversa, concluí em minhas anotações o seguinte pensamento:
Autonomia para os usuários não somente para a realização da musculação, mas
também para viver suas vidas de acordo com os seus conhecimentos, suas
experiências de vida e suas vontades. A usuária mostrava-se certa em relação ao
„não querer‟ ficar internada mais uma vez. Não via motivos para isso e preferia ir
para a Academia malhar do que não fazer nada (Diário de Campo, 9 de julho de
2014).
O “trabalho vivo em ato” na saúde “é ordenado pelas tecnologias leves, sensíveis à
singularidade que reage à intervenção” (CECCIM; BILIBIO, 2007, p. 55). As “tecnologias
leves” fazem parte das chamadas “tecnologias da saúde” que são, ou deveriam ser, utilizadas
pelos profissionais da saúde em suas ações de intervenção nos processos de promoção de
saúde. Segundo Merhy (2002, p. 49), as “tecnologias da saúde” são classificadas em
“tecnologias leves”, “tecnologias leve-duras” e “tecnologias duras”. Desse modo,
[...] as tecnologias envolvidas no trabalho em saúde podem ser classificadas como:
leves (como no caso das tecnologias de relações do tipo produção de vínculo,
autonomização, acolhimento, gestão como forma de governar processos de
trabalho), leve-duras (como no caso de saberes bem estruturados que operam no
processo de trabalho em saúde, como na clínica médica, a clínica psicanalítica, a
epidemiologia, o taylorismo, o fayolismo) e duras (como no caso de equipamentos
tecnológicos do tipo máquinas, normas, estruturas organizacionais).
Considerando as “tecnologias” no dia-a-dia da dinâmica da Academia, encontramos,
de maneira expressiva, a situação da lona10
que foi usada até o final de 2013 para cobrir o
espaço referido. A falta da cobertura (que corresponde às “tecnologias duras” para aquele
ambiente) ocasionou situações curiosas quanto ao funcionamento da Academia. Algumas
foram a redução de número de alunos na frequência das aulas, insistentes reclamações aos
professores (como se eles tivessem algum poder para resolver o problema imediatamente), o
10
Atualmente a cobertura é fixa, portanto, a lona não é mais usada. Esta foi a principal reivindicação
(presenciada por mim) dos sujeitos da Academia durante todo o meu período de inserção.
70
cansaço/desgaste excessivo por parte dos profissionais da Academia, que ficavam expostos ao
calor, a falta de local para guardar (e preservar) alguns materiais livres etc. E, nos diálogos
abertos e nas entrevistas, as opiniões dos usuários acerca da estrutura da Academia Popular
foram incisivas diante do problema que a falta da lona ocasionava para sua prática corporal no
ambiente da Academia. Para U4, a cobertura fixa seria a melhor opção para resolver tal
situação:
Nossa! Ali vou te contar tá?! A gente já passou várias vezes de chegar ali... A lona tá
no chão! Volta todo mundo pra casa... Hoje não tem... E volta de novo! Aí, eles
colocaram a lona, tudo remendada e chovia, pingava na cabeça da gente! [...] Já
deveria ter colocado uma permanente... Assim, fixa... Sem ser a lona!
A cobertura da Academia tornou-se um elemento de extrema importância para os
sujeitos que frequentam seu ambiente, uma vez que percebi que nenhum outro problema na
estrutura dela é tão definitivo quanto a cobertura para a ausência de usuários e para a
reorganização dos horários de funcionamento da Academia. No período em que a Academia
se encontrava sem a cobertura, o uso de seu espaço no tempo chuvoso ficava restrito aos
usuários mais insistentes em praticar musculação. Em nota no diário de campo do dia 12 de
maio de 2014, fiz o seguinte relato:
Manhã fria e com chuvas (que iniciavam e paravam). Com isso a Academia
funciona de forma a „obedecer‟ a este fenômeno. Os usuários insistem em esperar o
„passar‟ da chuva e continuam sua prática! Poucos foram, e segundo as professoras
neste tempo de „chove e não chove‟ poucos arriscam ir à Academia. Os sujeitos se
lamentaram pela falta da cobertura e todos ficamos „espremidos‟ dentro do módulo
do SOE.
Na Academia, a professora P1, ao usar de adaptações para a utilização desse ambiente
descoberto (nos dias de sol), fazia uso, com frequência, da expressão “economizar pele” e os
usuários pareciam compreender a tentativa dela em associar as possibilidades de utilização
daquele lugar aos cuidados para com eles. Nesse sentido, continuamos e encontrar na ação da
professora a efetivação dos cuidados em saúde a partir do que nos fala Merhy acerca do
“trabalho vivo em ato” no campo da saúde. Pois a professora insistia no acolhimento e nos
cuidados com seus alunos, mesmo diante de uma estrutura parcialmente inadequada, naquele
momento, para a prática da musculação. Em entrevista, ela me explicou o que pretendia com
tal expressão:
[...] a questão do „vamos economizar pele‟ é a questão da nossa exposição ao sol.
Muitas vezes, em alguns exercícios a gente pode buscar um cantinho que ta com
71
sombra, aí eu falo pros alunos: „Vamos economizar pele! Vamos lá fazer naquele
cantinho que tem uma sombra!‟ Então o objetivo é isso... É estar trazendo mais
qualidade pro aluno... Um cuidado com o aluno pra ele ta economizando a pele
dele... Buscando fazer o que ele tem como fazer na sombra. Não deixar de fazer...
Fazer na sombra!
O trabalho em saúde tende a ser realizado, sobretudo, a partir das relações que se
estabelecem entre os sujeitos (profissional e usuário) no processo do cuidado. A manifestação
das “tecnologias leves” se expressa a partir do encontro entre essas tecnologias e o usuário, de
modo que a ação do profissional se torna relevante à possibilidade de se configurar uma
relação de trocas e intencionalidades no processo do ato de cuidar,
[...] que „representa‟, em última instância, necessidades de saúde como sua
intencionalidade, e, portanto, o que pode, com seu interesse particular, „publicizar‟
as distintas intencionalidades dos vários agentes em cena, do trabalho em saúde
(MERHY, 2002, p. 51).
Neste ponto, atender a necessidade do conhecimento acerca de saberes que vão além
dos conceituais e tecnológicos das determinadas áreas de intervenção torna-se essencial ao
desenvolvimento da prática do profissional da saúde para sua ação diante das particularidades
individuais. Nesse sentido, o manuseio do “trabalho morto” deve ocorrer em consonância ao
“trabalho vivo em ato” na saúde, ou seja, o “trabalho morto” não pode embasar,
essencialmente, a ação dos profissionais diante dos usuários dos projetos de saúde:
[...] o trabalho em saúde não pode ser globalmente capturado pela lógica do trabalho
morto, expresso nos equipamentos e nos saberes tecnológicos estruturados, pois o
seu objeto não é plenamente estruturado e suas tecnologias de ação mais estratégicas
configuram-se em processos de intervenção em ato, operando como tecnologias de
relações, de encontros de subjetividades, para além dos saberes tecnológicos
estruturados, comportando um grau de liberdade significativo na escolha do modo
de fazer essa produção (MERHY, 2002, p. 49).
“Orientar-se a partir do PPPAV gera possibilidades diferentes de/para intervenção”
(Diário de Campo, 6 de agosto de 2014). Essa afirmação foi colocada em evidência pelas
professoras em uma das nossas conversas sobre o projeto das Academias Populares,
considerando o ecletismo conceitual nele presente (situação relatada em capítulo anterior). Os
rumos da conversa sobre o projeto das Academias aconteceram em volta das falas sobre as
“linhas leve e dura” de intervenção na musculação ou em outros ambientes elaborados para a
promoção da saúde, fato que me remeteu à compreensão que Merhy (2002) nos traz acerca
das tecnologias da saúde.
72
As professoras reconheceram possibilidades de seguir uma “linha leve de
intervenção”, correspondente às ações de vínculos e cuidados voltados para o ideal de bem-
estar do usuário, ou seguir uma “linha dura na intervenção”, que se relaciona, no ambiente da
Academia, primordialmente, ao treino da musculação, caracterizado, dentre outros elementos,
pela ficha de acompanhamento ou de treino do indivíduo, geralmente padronizada para a sua
aplicação.
Ao final do bate-papo (que foi interrompido em alguns momentos para que as
professoras pudessem atender aos usuários) as professoras assumiram “fazer o melhor para os
usuários” (Diário de Campo, 6 de agosto de 2014), reafirmando P1 o que me relatou em
entrevista quando conversamos sobre a característica eclética do PPPAV, “vou trazer mais
conforto pro meu usuário... Pra pessoa que eu to atendendo... Vou trazer o melhor pra ele!”.
Dessa forma, elas acreditam na associação entre as “linhas” de intervenção, valorizando,
inclusive, a necessidade de conhecer saberes que extrapolem a questão fisiológica,
biomecânica, anatômica etc. acerca do homem: “sem desvalorizar os conhecimentos da
anatomia e suas “variações”, as professoras entendem a importância de compreender o lado
social e psicológico dos usuários para suas intervenções” (Diário de Campo, 6 de agosto de
2014).
As professoras P1 e P2 expressam, atenciosamente, em suas falas, a importância de
considerar diversos saberes e conhecimentos para a intervenção propriamente dita, no
processo de promoção da saúde na Academia Popular. P2 acredita que a função docente que
ela exerce dentro da Academia extrapola saberes acerca de disciplinas como anatomia
humana, fisiologia, biomecânica etc. P2 afirma sentir-se responsável por usuários que chegam
até ela pedindo algum tipo de orientação ou apoio em relação a assuntos que não permeiam a
prática da musculação, necessariamente. Dessa maneira, para ela, a utilização de saberes
como os da psicologia, por exemplo, podem influenciar os cuidados com seus alunos. Em
entrevista, P2 nos fala:
Até porque se formos parar para analisar o professor de educação física... ele tem
que ser um pouco psicólogo. Porque aqui aparece aluno de tudo quanto é jeito, em
variadas situações... Cada um está passando por uma coisa! E às vezes a pessoa vem
para cá até para desabafar conosco. Então nós temos que saber lidar com isso! Se
você falar alguma coisa para um aluno [...]... Você pode induzir um aluno a [ir] para
uma direção que não é muito legal para ele. Porque o aluno que vem aqui... Ele te
coloca numa posição que como um detentor do saber... Eu encaro dessa forma!
Então dependendo da referência que você [der] ao aluno, você pode até
desestruturar! [...] Eu acho que posso ser a pessoa mais capacitada do mundo, mas,
se eu vir aqui e não souber me relacionar com o aluno... Meu trabalho vai por água
abaixo... Não adianta, eu não vou conseguir me firmar neste local!
73
P1 relata o que pensa sobre a importância da interação dos diferentes saberes docentes
para sua prática. A professora afirma que, às vezes, o professor tem que “perceber” situações
e “buscar” no aluno informações sobre ele que ultrapassem a questão do físico. P1, assim
como P2, refere-se ao fator psicológico do aluno, que, em alguns casos, determina seu
comportamento no momento de sua prática corporal.
A partir de suas percepções com seus alunos, P1 não hesita em agir no cuidado
necessário àquele usuário. Em entrevista, ao ser questionada sobre quais saberes ela deve
buscar ou que considera em maior proporção para atuar na Academia, ela afirmou enxergar
como “um todo de saberes” necessário para sua prática docente. Dessa forma nos fala P1:
Eu vejo como um todo! Porque você tem que saber de fisiologia, da questão do
treinamento em si, mas você tem que ter aquela percepção não só do físico. Hoje
mesmo teve uma aluna que eu tive que chegar p ela e dar uma „chamada‟. Porque é
uma aluna que já tinha corrido aqui pela manhã no campo de areia... Um
treinamento forçado... Bem avançado! E depois foi para um circuito lá no
Tancredo... Depois veio fazer aula de musculação. Aí... O que dizer? Você vê uma
aluna dessa fazendo três práticas esportivas pesadas uma atrás da outra no mesmo
dia... Então temos que chegar „junto‟ e falar: „Por que você está fazendo isso? Isso
não vai fazer bem para você, vamos diminuir essa carga aí... Está muito pesada!‟.
[...]. Então é uma questão mais psíquica da pessoa, pois vemos como uma questão
psicológica, uma fuga, mas não se sabe de que!
A ação docente não estruturada apenas em saberes tecnológicos/conceituais, mas
praticada a partir da interação entre variados saberes, fato encontrado por mim na Academia,
tende a corresponder, de forma singular, à complexidade da prática docente a que se referem
Barroso, Custódio e Paixão (2014, p. 705), uma vez que,
[...] Essa complexidade inerente à intervenção profissional não reside apenas na
sofisticação erudita do conhecimento acadêmico, nem tão somente no
aprimoramento tecnológico advindo do conhecimento científico, mas na articulação
de diversos tipos de saberes e de recursos.
Segundo Barroso, Custódio e Paixão (2014, p. 705), “[...] a atuação profissional
docente estrutura-se a partir de sucessivas interações do sujeito cognoscente com diferentes
saberes, crenças, habilidades e competências específicas ao longo de sua trajetória”. Essas
interações, pensadas a partir das professoras da Academia, podem ser mais bem
compreendidas quando, em suas falas, elas reconhecem a necessidade de atualizações
contínuas dos diversos saberes e/ou conhecimentos, para que, pensando em uma prática cada
vez melhor, possam intervir de maneira mais qualificada em relação aos seus alunos,
74
realizando, dessa maneira, a articulação entre os mais variados elementos que constituem a
dimensão prática da profissão docente.
Os saberes docentes que fazem parte do processo de formação e, consequentemente,
dão base para a atuação profissional docente podem ser compreendidos como saberes
acadêmicos, pedagógicos e experienciais, “Os primeiros correspondem aos saberes científicos
e/ou disciplinares e se relacionam às instituições formadoras” (BARROSO; CUSTÓDIO;
PAIXÃO, 2014, p. 705). Considerando os saberes acadêmicos e pedagógicos, as professoras
os relacionam diretamente às ações adotadas por elas no dia-a-dia de suas práticas; de acordo
com P2, as disciplinas que fizeram parte de sua formação na graduação “até hoje” a auxiliam
na realização de sua função docente. Além dos conhecimentos anatômicos acerca do homem,
perguntei à professora P2 quais outros saberes ela utilizava nas ações de promoção da saúde e
se ela realmente acreditava que esses “outros conhecimentos” pudessem ocasionar ações
positivas em sua prática. Dessa forma, nos fala P2 sobre as disciplinas de sua graduação e de
sua importância para a intervenção da professora:
[...] mas aquela teoria nos ajuda agora... Sociologia... Antropologia que era uma
coisa que eu nunca tinha ouvido falar antes na minha vida... Antes de entrar na
faculdade. Têm coisas na antropologia, que eu sou formada há 15 anos... Que eu
lembro da faculdade. [...] eu me lembro até hoje porque eu tinha um professor muito
bom, não me recordo o nome dele, mas ele foi excelente! Ele levava
questionamentos para dentro da sala de aula que você consegue levar para o dia-a-
dia. As disciplinas como psicologia... As disciplinas que o pessoal reclamava: „Ai
que porre! É muita teoria!‟... Mas aquilo tudo... Na época da faculdade nós não
temos noção que aquilo vai ajudar... E hoje que tenho noção que isso me ajuda
muito!
Os saberes pedagógicos ocorrem “A partir de disciplinas como didática, metodologia
do ensino, prática de ensino e outras de cunho pedagógico (BARROSO; CUSTÓDIO;
PAIXÃO, 2014, p. 705)”. Com o ensino/aprendizado dessas disciplinas, acredita-se que o
graduando que visa sua formação na área da docência aprende a elaborar formas de
intervenção específicas no processo de ensinar. Sendo assim, os saberes pedagógicos,
[...] se referem à relação que se estabelece entre professor-aluno no decorrer do
processo instrucional, à capacidade de condução e elaboração de estratégias
didático-metodológicas que visem à motivação e ao interesse dos alunos e,
finalmente, ao emprego eficaz de técnicas ativas de ensinar.
Para P1, a Prefeitura de Vitória poderia fazer “articulações” entre a Academia, ou
mesmo entre os profissionais da saúde do município, e algumas instituições de ensino
superior com a perspectiva da realização de cursos acerca dos novos conhecimentos que
75
surgem na área da Educação Física e nas áreas a esta correlatas. Acerca dos saberes das áreas
diversas que se relacionam com a Educação Física nos processos de promoção de saúde,
Ceccim e Bilibio (2007, p. 59) consideram que
A educação física terá que aprender em atuação os saberes e as práticas de cuidado
da enfermagem, de escuta da psicologia, de composição de redes sociais do serviço
social, de tratamento da medicina etc. e terá de ensinar as redes de interação e
cooperação, a ludicidade com implicação do corpo, a especialização do corpo
individual e dos corpos em coletivos etc.
Os saberes acadêmicos e pedagógicos, para P1, seriam continuamente atualizados,
realizando-se, assim, uma tentativa para o não engessamento da prática docente dos
profissionais. De acordo com suas palavras,
[...] a gente sabe que essa questão da atividade física... Vêm pesquisas novas [e
acontecem] novas coisas no dia-a-dia. [...] acho que a prefeitura tem suporte pra
estar fazendo convênio com universidades... Que seria uma boa ideia [...].
P2, além de reconhecer a necessidade do estudo contínuo para aprimorar sua
intervenção na Academia, manifesta sua indignação face à impossibilidade vivida pelos
profissionais no momento em que tentam buscar alargar seus conhecimentos após a formação
inicial. Tal impossibilidade é expressa, na Academia, pela organização do trabalho (pela
SEMESP) que, de uma forma geral, dificulta, ou mesmo não incentiva, a busca do
conhecimento pelo profissional. Em suas palavras:
Em relação à qualificação profissional que você tinha perguntado, às vezes têm
simpósios, palestras, mas nós não somos liberados para estar saindo. Eu acho a
qualificação profissional de extrema importância porque os saberes vão se
renovando... Só que aqui nós esbarramos de não poder sair do espaço da Academia
para pode se qualificar. E isso pra mim é estressante! Porque você tem muitas vezes
a oportunidade de fazer um congresso, um simpósio... Muitas vezes de graça que a
universidade disponibiliza para você. Ou uma palestra... alguma coisa! Mas você
não pode sair do seu local de trabalho para poder se qualificar sendo que o benefício
daquilo tudo que você vai aprender você vai trazer para cá mesmo. [...] nesses
simpósios professora, nós adquirimos um conhecimento a mais... porque a nossa
questão aqui, por exemplo, trabalhamos com práticas corporais, nós estamos
pesquisando essa questão. Não [a questão] da musculação em si, não do movimento
enquadrado só pelo movimento.
Para a professora P1, a qualificação profissional é essencial para que ela se mantenha
conhecedora das mudanças que ocorrem na área de sua atuação. A professora nos fala que:
Foi ótimo [curso de especialização], foi proveitoso! Foi diferente da nossa prática,
mas acrescenta para nós enquanto profissionais. Você se atualiza em coisas que
76
estão chegando... que a nossa área está mudando direto... então não tem como você
estacionar: „Ah, eu sei tudo!‟ Não! Dia-a-dia novas pesquisas, novos aprendizados
vão chegando e buscamos essa atualização na questão de capacitação, na questão de
especializações, na questão de cursos que se faz. [...] porque eu gosto do
aprendizado... Gosto de buscar novos conhecimentos... Eu gosto de melhorar [o] que
eu já trabalho.
Os saberes experiencias são considerados de suma importância pelas professoras da
Academia. Elas assumem que o conhecimento adquirido no chão da Academia Popular
intensifica a capacidade de desenvolver suas ações no dia-a-dia: “Aqui a gente aprende todo
dia. Adquirimos muita experiência. São muitas pessoas diferentes” (Diário de Campo, 9 de
junho de 2014). E pensando sempre em considerar a junção desses saberes com “toda a
teoria” dos outros saberes necessários à prática do professor, elas acreditam no “alargamento”
de seus conhecimentos, que resulta, a partir de sua compreensão, numa melhor intervenção.
Tardif (2002, apud, BARROSO, CUSTÓDIO E PAIXÃO, 2014, p. 705), esclarece o que
pude visualizar na ação das professoras na Academia, considerando os saberes experienciais
que elas vivenciam e adquirem continuamente em seus dias de prática docente, desta forma:
[...] saberes experienciais constituem-se no exercício da prática cotidiana da
profissão, fundados no trabalho e no conhecimento do meio. São saberes que surgem
da experiência prática e são por ela validados a partir de uma íntima articulação com
os demais saberes apreendidos pelo sujeito no período em que se encontra no curso
de formação inicial. Incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de
habilidades, de saber fazer. Em sua maioria são saberes que não advêm unicamente
das instituições de formação. São saberes práticos e não da prática: eles não se
aplicam à prática para melhor conhecê-la, eles se integram a ela e são partes
constituintes dela enquanto prática docente.
Em relação à experiência, ou aos saberes que ela adquire por meio de sua prática
profissional, sem desconsiderar a importância dos outros saberes, afirma P1 que “[...] a
experiência é tudo! Você vê coisas que só a experiência trás. Então, essa vivência de pessoas
diferentes, de pessoas que trazem suas experiências para cá! Então... isso acrescenta!”. Essa
certeza de P1 nos remete a compreender que “[...] os saberes experiencias não são saberes
como os demais; são, ao contrário, formados de todos os demais, mas retraduzidos, „polidos‟
e submetidos às certezas construídas na prática e na experiência (TARDIF, 2012, apud
SKOWRONSKI, 2014, p. 45)”.
A fala de P1 relaciona-se com o pensamento de P2, que considera a “experiência”
como um saber essencial à sua prática e que traduz a consideração acerca das pessoas na
condição de sujeitos constituídos de características individuais e envolvidos no processo de
promoção da saúde. Lidar com pessoas, segundo P2, exige do profissional docente da área da
77
saúde o conhecimento dos mais variados saberes, ou mesmo o conhecimento acerca dos
saberes que ultrapassem “as fisiologias dos movimentos”. Diante disso, fala P2 que:
[...] é muito importante [o uso de saberes que não somente o fisiológico,
biomecânico etc.] porque você está lidando com gente. Você está lidando com
pessoas... Cada pessoa é de um jeito diferente, então você tem que saber lidar com
esse diferencial. Então para mim eu tenho facilidade nisso porque eu trabalho com o
público há muito tempo, então eu tenho muita experiência quanto a isso. Então para
mim fica mais fácil por causa disto.
É comum encontrarmos, nos espaços privados de academias para musculação,
profissionais que atuam restritamente com o uso das “tecnologias duras” citadas por Merhy
(2002), ou mesmo profissionais que, evidenciando os saberes tecnológicos/conceituais, fazem
de sua intervenção uma ação direcionada à dimensão corpórea do homem, limitando-se esses
profissionais à montagem da ficha para o treino de musculação dos usuários da academia.
Nesse contexto, o cuidado com usuário fica limitado à construção e à busca pelas questões
estéticas corporais e não à atenção com as diversas possibilidades de relações que este usuário
pode estabelecer com sua saúde. Para tanto, o uso das “tecnologias leve-duras” e “tecnologias
leves” seria fundamental.
A dinâmica do dia-a-dia que caracteriza a Academia Popular pode ser mais bem
compreendida ao pensarmos na questão referente à sociabilidade. Independentemente da
possibilidade do “contato informativo”, vínculos acontecem naquele ambiente nos momentos
organizados para a prática da musculação, configurando-o não somente como um local
destinado à prática de atividades físicas, mas sobretudo possibilitando ao ambiente da
Academia Popular uma nova forma de ocupação dentro de um ideal de promoção de saúde.
Esta, por sua vez, relaciona-se ao fator da sociabilidade, que foi um elemento que ocorreu
como fator recorrente em minhas observações: “muito bate papo na Academia. Os usuários e
os profissionais interagem muito!” (Diário de Campo, 5 de dezembro de 2013).
A sociabilidade vivida na Academia Popular pode ser considerada como um fator de
busca e de permanência (ao mesmo tempo) para os usuários daquele lugar. Nesse aspecto,
torna-se interessante a reflexão acerca de questões essencialmente relacionadas aos vínculos e
aos acolhimentos estabelecidos entre os sujeitos não somente do lócus da pesquisa, mas dos
diversos ambientes de promoção de saúde. Para este estudo, porém, farei a seguir alusões à
questão da sociabilidade no lócus da pesquisa.
78
3 A QUESTÃO DA SOCIABILIDADE NA ACADEMIA...
Hoje na Academia aconteceu um evento surpresa para o professor S. Os
funcionários do período matutino organizaram comidas e sucos para a comemoração
do aniversário dele. Uma aluna dele participou da confraternização junto aos
profissionais da Academia, vejo que ela tem bastante intimidade com os
profissionais (Academia Popular e SOE). O clima é de total integração e união entre
os profissionais (Diário de Campo, 10 de dezembro de 2013).
Me sinto bem [malhar na Academia Popular] ... Acho que quando você chega na
Academia e [você] tem problemas...quando você bota o pé na Academia e você fala
com o professor: Bom dia! A pessoa pergunta: “Bom dia. Como tá sendo seu dia?”
E começa a interagir...a conversar com você... Você acaba esquecendo os problemas
[...] (Entrevista de U1).
Hoje cheguei à Academia no início da primeira aula que ocorre às 6:20h. E
acompanhei todas as outras aulas até o último horário! Percebi um “clima” muito
descontraído entre os usuários da Academia: muita brincadeira, muita conversa e
integração. É impressionante a ocorrência dessa integração em todas as aulas da
Academia! (Diário de Campo, 19 de abril de 2014).
[...] eu quero buscar aquilo que os alunos buscam também, que é a socialização, que
é a interação. Interagir com os alunos, é isso que eu venho buscar também
(Entrevista de P2).
As relações sociais na Academia Popular despertaram minha atenção. Desde o início
da minha pesquisa de campo, pude notar a integração/familiaridade entre os sujeitos que
compõem a dinâmica do dia-a-dia da Academia. Tranquilidade e satisfação em frequentar a
Academia e relações afetivas entre os sujeitos foram elementos identificados por mim com
relevância para se pensar a Academia e suas características não somente vinculadas aos
aspectos da prática da musculação.
Os vínculos se estabelecem e o usuário, que poderia praticar musculação em outras
academias, abre mão de tal possibilidade ao reconhecer a importância da Academia a partir
das relações sociais que ele encontra ali. A usuária U4 fala sobre o sentimento de vínculo
relacionado à Academia Popular e aos seus sujeitos, aspecto que justifica sua permanência na
Academia: “Vamo supor, agora que passou um ano e meio... Hoje, hoje eu entrar numa
outra?! Eu até entraria. Mas... Só que eu criei um vínculo aqui... O pessoal... Tudo!
Entendeu?”.
Em entrevista, U1 também nos revela o aspecto afetivo que envolve os sujeitos na
Academia “[...] a Academia Popular virou uma família. Onde todo mundo se conhece, onde
todo mundo se dá bem. Tá entendendo? Todo mundo entende cada um! ”.
A sociabilidade acontece como um dos fatores essenciais na “movimentação” do dia-
a-dia daquele lugar, e em minhas observações visualizei as diferentes e complementares
79
relações entre os seus sujeitos: relação entre os próprios profissionais, entre os profissionais e
usuários e entre os próprios usuários. Segundo Dayrell (2007, p. 1111), a sociabilidade pode
“[...] ocorrer em um fluxo cotidiano, seja no intervalo entre as “obrigações”, o ir-e-vir da
escola ou do trabalho, seja nos tempos livres e de lazer, na deambulação pelo bairro ou pela
cidade”.
Nos diferentes momentos do período em que os grupos usam o espaço físico da
Academia, aquecimento, musculação e alongamento, identifiquei algumas diferenças no bate-
papo entre os sujeitos. No aquecimento, as conversas ocorrem num “clima receptivo”, no qual
os usuários se cumprimentam amigavelmente e os professores interagem amplamente com o
grupo. Essa interação funciona como uma espécie de abertura que o professor usa para o
acompanhamento posterior ao aquecimento, que ocorrerá na musculação. Nesse instante, as
conversas são intensificadas pelos sujeitos, e a aproximação amigável se torna ainda mais
visível/perceptível.
Durante o tempo em que o grupo ocupa a Academia, é notório o movimento realizado
pelos sujeitos na perspectiva de interação entre eles. O processo de sociabilidade caracteriza-
se, inclusive, quando, com satisfação em estar em um mesmo lugar e por opção, os sujeitos
exercem suas possibilidades de contato uns com os outros. Dessa forma, percebi a “sociação”
(CASTRO, 2003) como consequência da tranquila e satisfatória aproximação entre os
sujeitos.
Ao finalizar o tempo na musculação, é feito o alongamento, momento em que os
sujeitos trocam informações sobre como será o próximo dia da musculação e, posso dizer que
a “zuação” entre eles finaliza o encontro do grupo naquele dia.
Simmel nos remete a pensar o fator satisfação entre os sujeitos/indivíduos ao se
associarem, fator frequente na Academia Popular, ao compreendermos que os usuários
daquele lugar optam por frequentá-lo de modo a permanecerem na Academia, mesmo
havendo outras possibilidades de locais para a prática da musculação, valendo-se de
justificativas acerca das amizades/vínculos que “construíram” naquele espaço. De acordo com
Simmel, apud Castro (2003, p. 26-27),
Interesses e necessidades específicas certamente fazem com que os homens se unam
em associações econômicas, em irmandades de sangue, em sociedades religiosas,
em quadrilhas de bandidos. Além de seus conteúdos específicos, essas sociações
também se caracterizam, precisamente, por um sentimento entre seus membros, de
estarem sociados e pela satisfação derivada disso.
80
A sociabilidade identificada na Academia Popular corresponde, dentre outros fatores,
ao movimento de grupos que se associam e desassociam de acordo com os horários das aulas
de musculação. Há uma movimentação considerável de usuários durante a dinâmica
organizada pelas professoras da Academia, e mesmo havendo uma mistura e, consequente, a
rotatividade de usuários nos diferentes horários de musculação, é interessante frisar que, além
de amizades e/ou coleguismos já existentes, outras novas amizades e/ou coleguismos passam
a acontecer naquele lugar. Em Dayrell (2007, p. 1111), encontramos a sociabilidade e suas
nuances de relações possíveis:
A sociabilidade expressa uma dinâmica de relações, com as diferentes gradações que
definem aqueles que são os mais próximos („os amigos do peito‟) e aqueles mais
distantes (a „colegagem‟), bem como o movimento constante de aproximações e
afastamentos, numa mobilidade entre diferentes turmas ou galeras.
Identifiquei alguns limites entre essas relações, ocasionados pelas funções ocupadas
por cada um dos sujeitos no ambiente da Academia Popular: usuários e profissionais. Ainda
assim, há um estreito entrelaçamento nas relações estabelecidas por eles. Em relação aos
limites e ao entrelaçamento das relações, P2 nos relata seu posicionamento quanto a tais
questões:
[...] Quando eu coloquei o pé aqui dentro parece que eu não tenho problema mais!
Você nunca vai me ver aqui triste. Você nunca vai me ver aqui cabisbaixa. Eu posso
estar com o maior problema na minha casa, a fatura do meu cartão pode estar
vencendo e eu não tenho o dinheiro todo, com aquela preocupação toda, mas aqui os
alunos nunca vão saber de nada disso porque eu me desestresso aqui como eles.
Porque aqui é o lugar que eu venho, que eu converso, que eu brinco! Além de fazer
bem para eles faz bem para mim. Eu me resumo em uma [mulher] dentro da
Academia e uma [mulher] fora da Academia. Porque eu não sou extrovertida, como
eu sou aqui. Eu não sou assim no meu dia a dia. Sou até uma pessoa com fama de
ranzinza, por eu ser muito séria. Mas você sabe quando você chega em um lugar e
não consegue manter a seriedade? Sou eu dentro dessa Academia aqui. [...] Mas eu
sei separar também. Eu sou a professora aqui. Eu me coloco no meu lugar, eu tenho
minha postura de professora. Mas isso não me impede de me relacionar bem com os
meus alunos. Em momento algum! Se eu precisar tomar uma atitude mais enérgica
eu vou tomar. Mas se eu precisar de conversar com um aluno, bater papo, eu vou
bater papo também. Eu sei separar muito bem essa questão.
Foi de maneira curiosa que passei a perceber, em vários momentos, os sujeitos
questionando/percebendo a ausência de determinados indivíduos do horário da musculação. À
medida que me atentei para os sentimentos de falta que uns tinham por outros, pude perceber
também as relações sociais naquele lugar, baseadas na amizade e na convivência entre os
usuários do espaço.
81
Dayrell (2003) aponta determinadas características que levam a sociabilidade entre os
jovens a acontecer e, refletindo sobre as relações existentes na Academia, consigo fazer uma
articulação direta entre a afirmação do autor e a sociabilidade na Academia. Mesmo havendo
um público que varia em idade, sexo, gênero e gostos, ou seja, um público que não é somente
jovem, podemos pensar na sociabilidade desenvolvida, naquele lugar, de modo a corresponder
às palavras de Dayrell (2003, p. 1111), que nos afirma “[...] que a sociabilidade, para os
jovens, parece responder às suas necessidades de comunicação, de solidariedade, de
democracia, de autonomia, de trocas afetivas e, principalmente, de identidade”. Para realçar
tal situação, em entrevista, o usuário U2 falou sobre o que sentia em relação ao ambiente da
Academia e aos usuários e profissionais:
Bem, eu considero ali um ambiente, assim, muito fraterno! As pessoas, tanto os
funcionários quanto os usuários, assim, eles são bem receptivos, acolhedores. Então,
isso me faz me sentir muito bem ali malhando na Academia Popular.
Apelidos, piadas e histórias são essenciais para que essa aproximação ocorra entre os
sujeitos: “o pessoal são bom de papo, bom pra conversar, são brincalhão, certo? Isso é que é
bom!”, fala U5.
Algumas histórias, relatadas por eles e para eles, são intermináveis [principalmente
histórias relacionadas a experiências profissionais e hobbies]; algumas piadas são contadas
várias vezes e mesmo assim provocam sorrisos e gargalhadas dos usuários e profissionais. Em
entrevista, um usuário contou para mim que o apelido que ele tem e que “todos” conhecem foi
adquirido dentro da Academia:
Uma coisa que me marcou foi quando eu fui fazer um exercício, né?! Que o meu
braço era, era não, é torto e eu não conseguia fazer o movimento certo. Aí eu estava
conversando com a [Bia], a Bia era a professora quando você iniciou há 8 meses?
Há 8 meses era [...] e foi quando eu fui fazer o movimento do remador, aqui
[mostrou o braço e o movimento] meu braço fazia ao contrário, ela falou assim:”
Mutante, tá aí, mutante” Eu falei mutante com ela e ela como uma rapidez de um
raio: “Mutante, mutante, mutante”. Aí ficou, foi dessa forma que veio meu apelido.
Eu falei com ela: “Pô, eu pareço um mutante, né?” Porque eu não faço o movimento
certo, eu fazia ao contrário. E por isso que muitas vezes nos aparelhos eu não podia
fazer, é porque o meu músculo não tá acostumado, por exemplo, com o exercício
que eu ia fazer, fazia totalmente ao contrário. Dessa forma que veio meu apelido, foi
essa parte que ficou marcada.
A Academia pode ser compreendida como um lugar estruturado, à priori, para
intervenções de promoção de saúde baseadas, sobretudo, na prática da musculação, mas a
Academia acaba por corresponder, também, a um ambiente no qual os sujeitos passam a
82
buscar elementos que vão além da prática da musculação, elementos que superam, inclusive, a
busca pela estética corporal, sendo esta muitas vezes associada, diretamente, à prática desse
tipo de atividade física em academias particulares.
Durante a entrevista, questionado sobre os motivos que o levaram a praticar
musculação, o usuário U3 relatou-me que a prática da musculação em sua vida tem um
sentido que ultrapassa as questões da beleza: “musculação, no meu ver, é muito mais que isso,
musculação é a aproximação das pessoas, é o bem estar. Entendeu? Muito mais que isso”.
A opinião da professora P2 ilustra de forma expressiva como a questão da beleza pode
ser compreendida dentro da Academia Popular a partir dos objetivos que levam os sujeitos à
busca por aquele lugar. Nas palavras da professora P2:
Olha, a questão da beleza eu acho que o aluno que vem para a Academia Popular,
esse não é o principal objetivo dele. Embora esteja inserido no contexto. Mas não é
o principal objetivo da maioria dos alunos que frequentam a Academia Popular. O
objetivo de estar aqui é mais para socialização, tirar o estresse... Mas a beleza vem
como consequência disso. Porque alguns estão acima do peso, tem aquela coisa, e
nós como profissionais temos que orientar a respeito disso, a respeito de saúde.
Então isso está inserido no contexto, mas não é o principal foco do aluno. Eu encaro
dessa forma: aluno ele chega aqui, e começa a frequentar, e nós percebemos que ele
vem mais para conversar, para desestressar, para passar um tempo, ele não tem
aquela preocupação de pegar pesado. Alguns até têm, mas não são todos. Então tem
aquela questão que nós estávamos conversando de como é quando o aluno não
termina a série toda, se ele fica chateado, se não fica, e tem aluno que não fica: “Ah,
terminou professora? Tudo bem”. Guarda o material dele e vai alongar. Ele não está
interessado se ele terminou, se ele não terminou. O negócio dele é estar aqui!
O que percebi na Academia foi a prática da musculação funcionando como uma
“ponte” entre as possibilidades de relações, ou até de novas relações, que podem acontecer
entre os sujeitos. A confiança entre os sujeitos é encontrada, principalmente, quando as
conversas que ocorrem entre eles extrapolam questões referentes somente ao treino de
musculação.
Os profissionais, com certa frequência, são buscados por usuários para conversas mais
particulares de suas vidas: vida pessoal, profissional e financeira. Os professores da Academia
já se depararam com situações extra treino, no que se refere aos diálogos estabelecidos na
Academia. Nesse momento, podemos entender que a prática da musculação funcionou ou foi
usada como um artefato de aproximação e vínculo entre um sujeito e outro que, dessa forma,
encontrou possibilidades de desabafar alguns de seus problemas e/ou algumas de suas
inquietações. P1, em entrevista, evidenciou em suas falas a questão da confiança e dos
vínculos estabelecidos na Academia:
83
[...] a gente teve uma questão de marido, marido e mulher, mulher que estava
passando por separação. Uma coisa que a pessoa sentiu, no primeiro contato a
pessoa já foi se soltando, desabafo! Chegou, então, depois de um tempo a gente foi
conversando e foi vendo que já estava estabilizado. A questão do primeiro baque da
separação já estava sendo superada. [...] existe essa confiança pra falar. E muitas
outras questões que chegam: “ah professora eu tinha passado assim, eu tinha
passado assado”. Então isso vem muito desse clima! [...] porque quando você vê
numa academia diferente, dita tradicional, então geralmente a pessoa ta ali pro treino
e pro treino acabou. O vínculo muitas vezes não se estabelece, muitas vezes porque:
“ah eu to pagando então tenho que usar todo tempo que tenho”. Então muitas vezes,
por ser fechado! E essa questão de ser aberta aqui, da liberdade que se dá ao aluno, a
gente vê o contato de um aluno com outro. Esse convívio sendo alimentado, contato
sendo feito... Igual, aluna hoje falando que recebeu um whatsapp do aluno
convidando pro churrasco, mas ela estava trabalhando não deu pra ir. E ele vem
desse espaço aqui, foi feita a relação aqui. Namoro surgindo, a gente já viu isso aqui
sendo construído também, e muitas vezes a gente até ta de olho ali, muitas vezes a
gente da umas dicas também, a gente percebe alguma coisa.
A escolha por um lugar diferente dos corriqueiramente frequentados por ele, ou
mesmo a busca por um novo meio social, fez com que U3 buscasse a Academia quando, a seu
ver, precisou se afastar de “companhias erradas”. A Academia correspondeu a um lugar novo
que ofereceu a ele novas possibilidades de conhecer e conviver com pessoas que não faziam
parte de seu dia-a-dia. Um refúgio para U3!
[...] Mas não foi caso de eu chegar a experimentar, mas como eu vi... Pulando anos à
frente, que aquilo estava fazendo mal a minha saúde, tava prejudicando o que eu
fazia. Eu gosto de jogar futebol, de correr, essas coisas, e minha respiração estava
muito ofegante. Chegou uma vez que eu desmaiei no Tancredão11
, me lembro até
hoje! Eu tinha acabado de fumar e fui fazer exercício na barra, e foi muito puxado.
Não o exercício normal que a galera faz, são outros exercícios avançados. E ali
minha pressão caiu e eu sozinho ali não tinha ninguém pra me ajudar! Eu desmaiei,
simplesmente desmaiei, não sei quanto tempo eu fiquei. Só sei que quando eu
acordei, eu tava encostado no móvel, não tinha ninguém, graças a Deus –risos– e
aquilo ali foi um motivo pra mim, tipo assim, dar uma parada e falar: “cara você não
precisa disso!” Eu era modelo da Prefeitura de Vitória, eu fui modelo da Prefeitura
de Vitória, fiz alguns trabalhos aqui, fiz trabalhos no Rio de Janeiro na época da
minha adolescência, e eu vi que eu tava desperdiçando as coisas boas que a vida
tinha me oferecido, e justamente por estar com pessoas erradas e ter entrado pra
questão de usar maconha, só maconha também! E a Academia cara, quando eu vim
pra Academia, justamente aquele cara lá que eu falei bem assim: “a calma aê!” É o
[Antônio], eu vim pra Academia justamente através dele, ele sempre foi meu amigo
de infância e ele me chamou pra vir pra Academia, e a Academia foi um refúgio pra
mim fugir do meio das pessoas que eu andava, não eram pessoas assim do tráfico,
eram pessoas da alta sociedade, mas porém pessoas que usavam, pra mim parar de
usar eu tinha que me afastar um pouco dessas pessoas...
A escolha de U3 em frequentar a Academia, objetivando, dessa forma, novas
alternativas para suas relações sociais, inclusive relações que fossem estabelecidas fora do
11
Centro Esportivo Tancredo de Almeida Neves (Tancredão): complexo esportivo localizado no bairro Mário
Cypreste, este corresponde a um dos 12 bairros que fazem parte da Grande Santo Antônio.
84
ambiente do trabalho e, consequentemente, não obrigatórias, nos remete a Gomes (1993, p.
64) e a sua afirmação acerca da sociabilidade. Esta, para o autor, pode ser entendida como,
[...] um conjunto de formas de conviver com os pares, como um „domínio
intermediário‟ entre a família e a comunidade cívica obrigatória. As redes de
sociabilidade são entendidas assim como formando um „grupo permanente ou
temporário‟, qualquer que seja seu grau de institucionalização, no qual se escolha
participar.
Os usuários estabelecem entre si relações diferentes das que constituem,
necessariamente, suas vidas privadas, ou seja, as relações predominantemente familiares. A
prática da musculação funciona, para a maioria dos usuários, como um meio de buscar a
sociabilidade, e a Academia configura-se, conforme Magnani (2003, p. 116) nos fala, como
um dos possíveis lugares do “pedaço”:
Enquanto o pedaço apresenta um contorno nítido, suas bordas são fluidas e não
possuem uma delimitação territorial precisa. O termo na realidade designa aquele
espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma
sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais
densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas
pela sociedade.
Considerando a comunidade de Santo Antônio como o “pedaço” em questão,
localizamos a Academia Popular como sendo um dos lugares de sociabilidade do “pedaço”,
além das pracinhas, dos bares, das igrejas e das feiras livres. Ela é frequentada por sujeitos do
“pedaço” (maioria) e por sujeitos de “fora do pedaço”, mas que pertencem ao dia-a-dia das
dinâmicas correspondentes às relações sociais que nela se efetivam. Quanto à sociabilidade,
Magnani (2003, p. 117) nos fala sobre a ocorrência dela em bairros de periferia de grandes
centros urbanos, assim como a Grande Santo Antônio:
[...] a periferia de grandes centros urbanos não configura realidade contínua e
indiferenciada. Ao contrário, está repartida em espaços territorial e socialmente
definidos por regras, marcas e acontecimentos que os tornam densos de significação,
porque constitutivos de relações. Se se compara, por exemplo, este quadro, com o
que ocorre em bairros ocupados por outros segmentos sociais, pode-se avaliar a
importância que o „pedaço‟ representa para as camadas mais baixas. Diferentemente
daqueles setores – onde na maioria das vezes os vínculos que ampliam a
sociabilidade restrita da família nuclear não são os de vizinhança, mas os que se
estabelecem a partir de relações de profissionais – uma população sujeita a
oscilações do mercado de trabalho e a condições precárias de existência, é mais
dependente da rede formada por laços de parentesco, vizinhança e origem. Essa
malha de relações assegura o mínimo vital e cultural que assegura a sobrevivência, e
é no espaço regido por tais relações onde se desenvolve a vida associativa, desfruta-
se o lazer, trocam-se informações, pratica-se a devoção – onde se tece, enfim, a
trama do cotidiano.
85
Leite (2002, p. 127), a partir de seus estudos acerca da revitalização de espaços
urbanos e públicos no Estado de Pernambuco, nos fala sobre a possibilidade de significados
que os indivíduos podem dar aos lugares que frequentam. Pensar a Academia Popular também
é entendê-la como um lugar com significados característicos à utilização/interpretação que os
sujeitos fazem dele:
As pessoas que o frequentavam pareciam estar ali para „consumi-lo‟ como símbolo,
para trocar significados, mais, enfim, pelo o que aquele espaço significava. As
diferenças, que se codificavam em cada gesto, roupas e adereços, tornavam mais
fluidas as fronteiras simbólicas que separam as pessoas, permitindo interações
múltiplas.
A sociabilidade é, portanto, um elemento intenso de ou para utilização da Academia
Popular. Pensar a Academia como um lugar entendido e utilizado pelos sujeitos que a
frequentam é pensar num lugar a partir dos novos significados dados a ele e expressos na
vivência, para além da prática da musculação adotada pelos próprios sujeitos na Academia.
86
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante o processo etnográfico que vivi em minha pesquisa descobri, curiosamente,
uma nova forma de se fazer saúde, ou uma nova forma de se buscar saúde. Inicialmente, não
enxerguei na Academia Popular de Santo Antônio um ambiente com singularidades, ou
mesmo um ambiente característico da ou para a prática da musculação. Desconfiei! E, como
relatei no texto, “não conseguia „ver‟ a musculação ali”.
Ao presenciar muita “amizade, piada, apelidos, bate-papo e confraternizações” e
poucos ou nada de “suor, gritos, músculos, suplementos, roupas que „marcam‟ o corpo”, foi
então que “caiu a ficha”: “Preciso esquecer, nesse instante, que conheço outras academias, e
interpretar/refletir sobre qual prática corporal ou atividade física é realizada aqui. Essa prática
está localizada dentro das relações entre essas pessoas, será?! Eu preciso iniciar uma nova
jornada de olhares e percepções acerca desse lugar!” (Diário de Campo, 25 de fevereiro de
2014).
Assim consegui iniciar minhas primeiras páginas, consistentes, para estudar a
Academia e seus sujeitos. Não posso desconsiderar, para as anotações do diário de campo, o
momento no qual eu apenas passei a conhecer a história, a organização das atividades, os
nomes dos profissionais (refiro-me, também, aos funcionários da limpeza e segurança) e
outras características “duras” da Academia, mas considero como uma abertura para o caminho
da pesquisa o momento em que participei da primeira confraternização entre os profissionais
e, depois, das várias outras confraternizações que aconteceram naquele lugar, às quais estive
presente!
Ao me sentir inserida, o percurso referente às minhas percepções foi intenso. Com o
apoio dos professores, me aproximei dos usuários. Consegui conversar e passei a ter ideias,
preliminares, dos motivos que os faziam escolher malhar e permanecer na Academia. Dentre
os mais citados: “a estrutura „aberta‟, o vento „batendo‟ no rosto o tempo todo e a atenção das
professoras” (Diário de Campo, 14 de abril de 2014). Foi quando percebi, com mais clareza,
que o processo de promoção de saúde ali passava por vieses ligados não somente ao
movimento do corpo na prática da musculação, mas também ao modo como as professoras
faziam a Educação Física em suas mais variadas possibilidades de intervenção social. Neste
caso, intervenção na saúde!
Os cuidados que os professores oferecem aos usuários e a postura desses profissionais
naquele lugar embasam, a meu ver, as principais diferenças entre os ideais de promoção de
saúde em academias privadas de ginástica e musculação e aqueles da Academia Popular. Isso
87
porque atuar na perspectiva de acolhimentos e vínculos, como esses profissionais da
Academia fazem em suas intervenções, traz elementos relacionados a possibilidades de
mudanças acerca de fatores não tão óbvios, porém válidos, no processo de busca pela saúde.
Nesse contexto, se destacam as “tecnologias da saúde” e, entre elas, as “tecnologias-
leves”, que funcionam por meio, essencialmente, do “trabalho vivo em ato” dos profissionais
da área referida e são expressas a partir das relações do “encontro” entre os sujeitos,
profissional da saúde e usuários. Diante do aspecto “encontro”, a possiblidade do cuidado se
apresenta com maiores chances de, efetivamente, ocasionar uma intervenção mais próxima
das “necessidades” dos usuários. Entendemos, dessa forma, que
As tecnologias leves do trabalho vivo em ato na saúde são expressão de um processo
de relações intercessoras numa dimensão-chave: o encontro com o usuário e com
suas necessidades de expressão de si, de produção de um corpo para si (CECCIM;
BILIBIO, 2007, p. 55).
Na ocorrência dos vínculos entre os sujeitos na Academia, identifiquei que, a partir
desse “movimento”, a formação de um ambiente propício para a promoção da saúde tornou-se
um lugar característico dos aspectos da sociabilidade. Os apelidos, as piadas, a preocupação
com a falta do colega, dão à Academia Popular uma nova cara ou novo jeito de ou para o
usuário expressar e viver caminhos que o fazem buscar sua saúde. A sociabilidade, elemento
que requer atenção na dinâmica da Academia, nos mostra que a musculação pode funcionar
como ponte entre as relações dos diversos sujeitos no processo de promoção de saúde nesse
projeto. Dessa forma, não é a musculação, como “prática-fim”, a principal responsável pela
permanência dos usuários na Academia.
O processo metodológico de etnografia nos abre os olhos para as inúmeras
diversidades características do comportamento humano em sociedade. Ao voltar-me para as
questões que compunham a sociabilidade, especificamente na Academia, reduzi a minha
atenção para o que acontecia ou acontece fora daquele lugar na vida daqueles sujeitos. Logo,
compreender alguns “comos” e/ou “porquês” para a busca da saúde fica para um outro
momento de estudo em minha trajetória acadêmica. Diante disso, quero ressaltar que, nos
vários momentos em que ocorriam os diálogos abertos e as entrevistas, as justificativas
relacionadas ao horário em que os usuários frequentavam a Academia e aos motivos pelos
quais eles buscavam obter/manter sua saúde – com a prática da musculação – eram
relacionadas às suas funções profissionais e às suas escalas no trabalho.
88
Alguns usuários fazem exercícios específicos para o fortalecimento de determinadas
“áreas” do corpo que são, frequentemente, desgastadas pelo movimento excessivo e
concentrado no momento do trabalho: “O meu objetivo é, a princípio, ganhar resistência. Eu
[treino] com esse objetivo porque me ajuda no [trabalho] que eu pratico (U2)”; Alguns
usuários procuram se movimentar de algum jeito porque trabalham “sentados ou parados”:
[...] eu não pratico exercício pra ficar malhado, meu negócio é em prol da minha
saúde [...]. O meu trabalho como técnico em informática é sentado, entendeu? É
mais parado... Sentado... Não caminho, entendeu? Então, isso me prejudica muito
(U5).
Outros veem na prática da musculação (ou seria na sociabilidade que ele, o usuário,
encontrou ali?) uma maneira de não pensar no trabalho. Dentre tantas falas, vejo a vida
regrada e definida a partir do trabalho que o homem desenvolve em seu dia-a-dia. Aprofundar
essa (s) questão (ões) seria uma forma de conhecer como, de fato, os processos de promoção
da saúde estão ou são influenciados pelos papéis necessários ou dados ao homem durante todo
o processo de sua vida, que, aparentemente, pode estar voltada para o mundo do trabalho.
A partir desse estudo vivenciei, intensamente, a possibilidade de compreender ou até
de visualizar com mais clareza o que afirma Lunardi (1999, p. 27), a partir de Dejours e
Caponi, acerca da saúde:
[...] a saúde das pessoas deve ser encarada como „um assunto
ligado às próprias pessoas‟ (Dejours, 1986, p. 8), „alheia a qualquer padronização e a
qualquer determinação fixa e pré-estabelecida‟ (Caponi, 1997, p. 2), de modo a
impedir diferentes interpretações e legitimações, a priori, de controle e governo dos
outros.
Dessa forma, como eu poderia “articular” as questões do trabalho com a sociabilidade
que encontrei na Academia? Sobre quais “pontos” essas questões se (des) encontram? E quais
as consequências desses (des) encontros na e para a saúde do homem e, consequentemente,
em sua vida?
Finalizo esse estudo com mais curiosidades do que certezas. Acredito, no entanto, que
o caminho que nós, profissionais da saúde, podemos buscar corresponde às
novas/diferentes/variadas formas de cuidar de nossos corpos, de nossas saúdes e de nossos
alunos. Sob a perspectiva do cuidado, portanto, a atividade física torna-se um meio, deixando
de ser o fim para e na intervenção nos mais variados processos de promoção de saúde.
89
REFERÊNCIAS
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92
ANEXOS
Figura 18: Academia Popular de São Pedro
Diário de Campo
Figura 19: Praça Dom João Batista, São Pedro, na qual se localiza a Academia Popular de São Pedro
Diário de Campo
93
Figura 20: Academia Popular de Maruípe
Diário de Campo
Figura 21: Parque Municipal Horto de Maruípe, no qual se localiza a Academia Popular de Maruípe
Fonte: https://ssl.panoramio.com/photo/38973113, acessado em 25/11/2014.
94
ROTEIRO PARA A ENTREVISTA DOS USUÁRIOS DA ACADEMIA POPULAR
. Caracterização do sujeito (informações gerais);
. Nome, idade e profissão;
- O sujeito e o espaço da Academia Popular:
. Quanto tempo você frequenta a Academia? Qual é a frequência? Já frequentou outra
academia? Por quanto tempo?
. Em qual horário você vem para a academia? Por quê?
. Você frequenta esta academia com qual objetivo? Quais atividades você realiza aqui?
. Por que a busca pelo espaço da Academia? Você faz outras atividades físicas fora daqui?
Quais?
. Qual é a importância do espaço? (existe alguma importância?)
. Qual é a relação com o espaço da Academia? (usuários/amigos e profissionais); E com o
SOE?
. Você considera que ela lhe proporciona os meios adequados (tanto equipamentos como
acompanhamento adequado) para que você possa atingir seus objetivos?
. Como se sente no espaço da Academia?
. Do que você mais gosta aqui? E do que menos gosta?
. O que poderia ser feito para melhorar o espaço?
. Qual era sua expectativa em relação ao espaço da Academia Popular? (havia?) Está sendo
correspondida?
. Algum episódio marcante aconteceu na Academia que você gostaria de falar?
- O sujeito, a saúde e a prática corporal:
. O que é saúde?
. O que é qualidade de vida?
. Por que a prática de atividade física?
. Existe algum “sentimento” de responsabilidade em relação aos cuidados para com a saúde?
. Relação prática corporal e saúde > comentários!
95
. Você tem cuidados especiais com sua alimentação?
. Você utiliza suplementos alimentares?
. Você compra roupas específicas para frequentar a Academia?
. Qual a imagem corporal você tem de si
. Existe a busca para obter informações/conhecimentos acerca de cuidados para com a saúde?
E em relação ao corpo? Quais?
ROTEIRO PARA A ENTREVISTA DOS PROFESSORES DA ACADEMIA POPULAR
Um diálogo sobre...
. A Academia Popular e a comunidade de Santo Antônio (serviços, buscas e atitudes dos
professores);
. A Academia Popular e o SOE: parceria? Como acontece?
. O funcionamento da Academia Popular;
. As secretarias da Prefeitura Municipal de Vitória: como trabalham na Academia Popular e
no SOE?
. A estrutura da Academia Popular (espelhos, materiais, localização etc.);
. Informações aos usuários: possíveis ações das professoras da Academia Popular diante das
questões relacionadas ao bem-estar, à qualidade de vida. Quais tipos de intervenção fazem
para com os usuários?
. Relação prática corporal e saúde;
. O projeto das Academias Populares e a ação das professoras: divergências e convergências;
. O que é saúde?
. O que é qualidade de vida?
. E a saúde da professora? E a qualidade de vida da professora?
. Formação continuada: necessidades e buscas;
. Quais saberes são mobilizados pelas professoras? Quais conhecimentos são necessários às
professoras para suas intervenções?
. A questão do belo, da beleza estética corporal no ambiente da Academia Popular.