AO ENTERRAR OS QUADROS, A IDEIA É QUE A NATUREZA … · Ao longo do ano de 2004, ela percorreu...

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40 REVISTA DOMINGO 41 REVISTA DOMINGO AO ENTERRAR OS QUADROS, A IDEIA É QUE A NATUREZA SEJA COAUTORA DAS OBRAS ARTE C R I S T I N A OITICICA “Estou aqui na margem do Rio Negro. Hoje é dia 10 de abril de 2004. O que eu senti quando entrei na Amazônia, na floresta, é que a floresta é impenetrável. Você tem que realmente ter uma permissão, não só física como uma foice na mão ou uma faca que vai cortando para entrar. A natureza aqui é muito forte. Ela é muito concentrada, tanto visualmente como auditivamente, está viva. Muita viva.” O texto acima demonstra a emoção da artista plástica carioca Christina Oiticica diante da majestosa natureza da Floresta Ama- zônica. Ao longo do ano de 2004, ela percorreu recantos afastados, atravessou rios e florestas com o objetivo de estabelecer uma singular interação de sua arte com a terra. Em sua viagem, a artista enterrou 20 obras em locais de difícil acesso para, aproximadamente um ano depois, retirá-las, atestando o quanto a natureza interferiu em suas pinturas. Em 2010, finalmente, a coleção Amazônia será mostrada em conjunto. Local: o centenário Hotel Diplomat, em Estocolmo, Suécia, com o apoio da Casa Brasil e do Jornal do Brasil. Para quem não se lembra, foi no Diplomat que, em 2008, a Casa Brasil e o JB realizaram a exposição 50 Years of Bossa Nova, repetindo o sucesso do evento ocorrido um pouco antes na sede das Nações Unidas, em Nova York. O hotel, localizado numa das mais valorizadas ruas da Escandinávia, a Strandvägän, é conhecido por ter recebido grandes personalidades da cultura como o bailarino Rudolf Nureyev e o papa da Pop Art, Andy Warhol. Sintonia com a preservação Casada há 30 anos com o escritor Paulo Coelho, um dos brasileiros mais conhecidos no mundo, Christina tem luz própria e se notabilizou como uma das principais repre- sentantes da chamada environmental art no mundo. Desde o início da década, a artista tem percorrido localidades ao redor do planeta enterrando (e desenterrando) telas nos leitos de rios, no solo das florestas, colocando os quadros dentro de árvores. Para Christina, uma artista com uma larga bagagem de viagens a lugares místicos em todo o planeta, a passagem pela Amazônia a surpreendeu. Nas últimas décadas, a preservação da região tornou-se um dos principais temas da agenda internacional. Não sem motivo. O equilíbrio do clima no mundo é, de certo modo, dependente da preservação da floresta para que o aquecimento global torne o planeta cada vez mais quente e inóspito. Além disso, sua imensa biodiversidade está muito longe de ser desvendada. A arte de Christina é sintonizada com esta preocupação. A artista traz para suas criações todo o poder dos quatro elementos da natureza – água, terra, fogo e ar –, refletido nas 16 telas que serão expostas em Estocolmo. É, portanto, uma oportunidade de apresentar a Amazônia para o mundo sob um prisma menos convencional: obras de arte nas quais a própria floresta é coautora. O relato da viagem pelos rios da Amazônia foi repleto de momentos especiais, por vezes, mágicos. Christina começou a enterrar suas pinturas na localidade de Bethânia, Amazonas. “Ali aconteceu o primeiro estágio do meu contato com a Amazônia, num lugar onde não havia tanta floresta assim. Eu pus os quadros, colocando entre eles folhas de plantas diferentes, para ver como seria esta influência da vegetação”, descreve. A aparente facilidade era uma ilusão. Quando os quadros foram recolhidos na localidade, em 2005, as dificuldades foram imensas. O terreno havia sofrido muitas alterações e enchentes. Em sua busca pelo “feminino”, em meio a seu percurso pelos rios da selva, a artista viu uma simbologia mística por trás das formas de uma árvore. “Eu a vi, imensa, belíssima e ela tinha três mamas. Ou seja, tudo a ver com as coisas que eu trabalho: os signos, os seios, a alimentação, a loba. Foi aí que eu coloquei um quadro nesta árvore. Ele ficou lá um ano. Era um quadro com o portal do nascimento de Vênus, o Portal de Gaia”. Energia da Imaculada Conceição Christina revela que, em sua concepção de arte, a energia da natureza tem uma importância maior do que a estética. “A intenção não é só a da aparência estética do trabalho, embora seja muito importante. Mas é a importância da energia que aquele material pega, a energia da floresta, a parte invisível. É a pura energia da Imaculada Conceição, sabe? A mãe”. Um momento surpreendente da viagem foi quando Christina encontrou as índias Katukinas, no Acre. “Lá, eu pintei junto com as mulheres da tribo, mulheres que se dedicam à arte tribal. Os símbolos indígenas são totalmente geométricos, mas eu não tinha tanto essa consciência, então, por exemplo: elas só queriam pintar na parte em branco para não interferir no meu trabalho; elas não faziam linhas curvas, elas me viram fazendo e começaram a imitar, mas era uma dificuldade muito grande para elas. Acabavam só trabalhando com linhas retas. Foi muito interessante. Elas riam quando eu pintava formas curvas como a lua ou um coração, era muito engraçado. Teve também uma índia que começou a amamentar o filho, foi uma cena muito bonita”. Dos 10 dias que passou em sua expedição na Floresta Amazônica, o momento em que a artista entrou na reserva da tribo indígena Katukinas foi especial. Foi ali, dentro da reserva, que a artista deixou dois quadros para a natureza trabalhar, um pequeno fazia parte da série Bocas e um grande cujo tema era o “Amor no universo”, uma tela de fundo azul que representava a junção de alguns símbolos femininos como corações e rosas – tema recorrente de Oiticica – com o universo, o sagrado. Além de estar num solo muito fértil e rico, o momento do enterro ganhou ainda uma energia e uma benção especial, a do pajé da tribo. Ainda neste mesmo dia, a artista fez uma série de quadros em conjunto com as índias da tribo que chamou de “Voz das Mulheres Katukinas”. As índias katukinas pintam sobre obras de Christina. Abaixo, as obras da série ‘A voz das mulheres katukinas’ e ‘Boca 2’ (no centro). O Hotel Diplomat abriu, em 28 de novembro de 2008, a exposição ‘50 Years of Bossa Nova’ e, por último, a pintura ‘Portal de Gaia’, no dia em que foi retirada na floresta D

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40 R E V I S T A D O M I N G O 41R E V I S T A D O M I N G O

AO ENTERRAR OS QUADROS,A IDEIA É QUE A NATUREZA SEJACOAUTORA DAS OBRAS

A R T E C R I S T I N A O I T I C I C A

“Estou aqui na margem do Rio Negro. Hoje é dia 10 de abril de2004. O que eu senti quando entrei na Amazônia, na floresta, é quea floresta é impenetrável. Você tem que realmente ter uma permissão,não só física como uma foice na mão ou uma faca que vai cortandopara entrar. A natureza aqui é muito forte. Ela é muito concentrada,tanto visualmente como auditivamente, está viva. Muita viva.”

O texto acima demonstra a emoção da artista plástica cariocaChristina Oiticica diante da majestosa natureza da Floresta Ama-zônica. Ao longo do ano de 2004, ela percorreu recantos afastados,atravessou rios e florestas com o objetivo de estabelecer uma singularinteração de sua arte com a terra. Em sua viagem, a artista enterrou20 obras em locais de difícil acesso para, aproximadamente um anodepois, retirá-las, atestando o quanto a natureza interferiu em suaspinturas.

Em 2010, finalmente, a coleção Amazônia será mostrada emconjunto. Local: o centenário Hotel Diplomat, em Estocolmo, Suécia,com o apoio da Casa Brasil e do Jornal do Brasil. Para quem não selembra, foi no Diplomat que, em 2008, a Casa Brasil e o JBrealizaram a exposição 50 Years of Bossa Nova, repetindo o sucessodo evento ocorrido um pouco antes na sede das Nações Unidas, emNova York. O hotel, localizado numa das mais valorizadas ruas daEscandinávia, a Strandvägän, é conhecido por ter recebido grandespersonalidades da cultura como o bailarino Rudolf Nureyev e o papada Pop Art, Andy Warhol.

Sintonia com a preservaçãoCasada há 30 anos com o escritor Paulo Coelho, um dos

brasileiros mais conhecidos no mundo, Christina tem luzprópria e se notabilizou como uma das principais repre-sentantes da chamada environmental art no mundo. Desde oinício da década, a artista tem percorrido localidades ao redordo planeta enterrando (e desenterrando) telas nos leitos de rios,no solo das florestas, colocando os quadros dentro de árvores.Para Christina, uma artista com uma larga bagagem de viagensa lugares místicos em todo o planeta, a passagem pelaAmazônia a surpreendeu.

Nas últimas décadas, a preservação da região tornou-se umdos principais temas da agenda internacional. Não sem motivo. Oequilíbrio do clima no mundo é, de certo modo, dependente dapreservação da floresta para que o aquecimento global torne oplaneta cada vez mais quente e inóspito. Além disso, sua imensabiodiversidade está muito longe de ser desvendada. A arte deChristina é sintonizada com esta preocupação.

A artista traz para suas criações todo o poder dos quatroelementos da natureza – água, terra, fogo e ar –, refletido nas 16telas que serão expostas em Estocolmo. É, portanto, umaoportunidade de apresentar a Amazônia para o mundo sob um

prisma menos convencional: obras de arte nas quais a própriafloresta é coautora.

O relato da viagem pelos rios da Amazônia foi repleto demomentos especiais, por vezes, mágicos. Christina começou aenterrar suas pinturas na localidade de Bethânia, Amazonas. “Aliaconteceu o primeiro estágio do meu contato com a Amazônia,num lugar onde não havia tanta floresta assim. Eu pus os quadros,colocando entre eles folhas de plantas diferentes, para ver comoseria esta influência da vegetação”, descreve.

A aparente facilidade era uma ilusão. Quando os quadrosforam recolhidos na localidade, em 2005, as dificuldades foramimensas. O terreno havia sofrido muitas alterações e enchentes.Em sua busca pelo “feminino”, em meio a seu percurso pelos riosda selva, a artista viu uma simbologia mística por trás das formasde uma árvore. “Eu a vi, imensa, belíssima e ela tinha trêsmamas. Ou seja, tudo a ver com as coisas que eu trabalho: ossignos, os seios, a alimentação, a loba. Foi aí que eu coloquei umquadro nesta árvore. Ele ficou lá um ano. Era um quadro com oportal do nascimento de Vênus, o Portal de Gaia”.

Energia da Imaculada ConceiçãoChristina revela que, em sua concepção de arte, a energia da

natureza tem uma importância maior do que a estética. “Aintenção não é só a da aparência estética do trabalho, embora sejamuito importante. Mas é a importância da energia que aquelematerial pega, a energia da floresta, a parte invisível. É a puraenergia da Imaculada Conceição, sabe? A mãe”.

Um momento surpreendente da viagem foi quando Christinaencontrou as índias Katukinas, no Acre. “Lá, eu pintei junto comas mulheres da tribo, mulheres que se dedicam à arte tribal. Ossímbolos indígenas são totalmente geométricos, mas eu não tinhatanto essa consciência, então, por exemplo: elas só queriampintar na parte em branco para não interferir no meu trabalho;elas não faziam linhas curvas, elas me viram fazendo ecomeçaram a imitar, mas era uma dificuldade muito grande paraelas. Acabavam só trabalhando com linhas retas. Foi muitointeressante. Elas riam quando eu pintava formas curvas como alua ou um coração, era muito engraçado. Teve também uma índiaque começou a amamentar o filho, foi uma cena muito bonita”.

Dos 10 dias que passou em sua expedição na FlorestaAmazônica, o momento em que a artista entrou na reserva da triboindígena Katukinas foi especial. Foi ali, dentro da reserva, que aartista deixou dois quadros para a natureza trabalhar, umpequeno fazia parte da série Bocas e um grande cujo tema era o“Amor no universo”, uma tela de fundo azul que representava ajunção de alguns símbolos femininos como corações e rosas –tema recorrente de Oiticica – com o universo, o sagrado.

Além de estar num solo muito fértil e rico, o momento doenterro ganhou ainda uma energia e uma benção especial, a dopajé da tribo. Ainda neste mesmo dia, a artista fez uma série dequadros em conjunto com as índias da tribo que chamou de “Vozdas Mulheres Katukinas”.

As índias katukinas pintam sobre obras de Christina.Abaixo, as obras da série ‘A voz das mulhereskatukinas’ e ‘Boca 2’ (no centro). O Hotel Diplomatabriu, em 28 de novembro de 2008, a exposição ‘50Years of Bossa Nova’ e, por último, a pintura ‘Portalde Gaia’, no dia em que foi retirada na floresta

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