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Editor responsávelZeca Martins
Projeto gráfico e diagramaçãoJuliana Smeers
Controle editorialDéborah Oliveira
CapaZeca Martins
RevisãoBruna Beatriz Donnarumma
IlustraçõesAudifax Rios
Esta obra é uma publicação da
Editora Livronovo Ltda.
CNPJ 10.519.6466.0001-33
www.editoralivronovo.com.br
@ 2012, Águas de São Pedro, SP
Impresso no Brasil. Printed in Brazil
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP
C837vCosta, José Armando da
Ao apagar das luzes / José Armando da Costa. -- Águas de São Pedro: Livronovo, 2012.
286 p.ISBN 978-85-8068-091-1Inclui bibliografia
1. Regionalismo. 2. Contos regionais. 3.Contos - Ceará.I. Título.
CDD – B869.9
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser copiada ou reproduzida por qualquer meio impresso, eletrônico ou que venha a ser criado,
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À memória de meu pai Antônio Ponciano Nogueira da Costa — aracatiense maruim de vários costados —, cuja passagem por esta
vida chegou a poetizar o mais lindo canto de amor por sua terra e por sua
modesta gente. E como soube ele ser humilde para com os mais excluídos, e
ser resoluto diante dos mais fortes!... Mesmo ainda que sempre estivesse de
coração aberto para tudo, sem qualquer laivo de distinção. A sua alma, que
amava indiscriminadamente as pessoas, trazia sempre consigo um pequeno
contrapeso de reserva para acudir aos mais desvalidos e miseráveis. Partiu
daqui financeiramente diminuído, mas com a espiritualidade altamente
desenvolvida e regozijada, pois a sua contabilidade aqui na Terra teve como
lema o dividir para multiplicar e o diminuir para somar.
O seu nome deveria ter sido Desapego de Tudo da Costa!
Sumário
Apresentação............................................................................................9
Capítulo 1 - Tardios sopros democráticos .............................................13
Capítulo 2 - Surdez própria dos preguiçosos..........................................35
Capítulo 3 - Verdade nua e crua.............................................................51
Capítulo 4 - Pequenos respingos da noite de são bartolomeu................63
Capítulo 5 - Novelo de fio.....................................................................79
Capítulo 6 - Apagaram-se as luzes........................................................99
Capítulo 7 - Os loucos da praça...........................................................113
Capítulo 8 - Descabidos ressentimentos...............................................125
Capítulo 9 - Até quando seremos o que fomos....................................137
Capítulo 10 - Cicatrizes que se demoram a desbotar...........................163
Capítulo 11 - Cama de pau duro........................................................183
Capítulo 12 - Moça furada não entra.................................................193
Capítulo 13 - Fogo pagou...................................................................213
Capítulo 14 - Injusta retaliação do meio primaveril............................225
Capítulo 15 - Semelhanças por iguais safadezas.................................239
Capítulo 16 - Baitolice em pobre é sem-vergonhice...........................259
Bibliografia ......................................................................................... 277
ANEXOS
Anexo I – Carta póstuma ao amigo de infância Giló.............................. 31
Anexo II – Retalhos literários sobre a preguiça..................................... 44
Anexo III – Carta enviada a Edmundo.................................................. 61
Anexo IV – Carta ao amigo de infância Inocêncio Uchoa...................... 74
Anexo V – Carta de um irmão póstero a uma irmã póstuma................ 89
Anexo VI – Tópicos sobre a economia bandida................................... 106
Anexo VII – Carta encaminhada ao sobrinho Naldo........................... 120
Anexo VIII – Galeria de ilustres aracatienses (primeira parte)............ 129
Anexo IX – Galeria de ilustres aracatienses (segunda parte)................. 157
Anexo X – Músicas de velhos carnavais.............................................. 176
Anexo XI – Baião do Aracati e antes que me falem............................. 189
Anexo XII – Carta endereçada ao primo Luiz Nogueira da Costa......... 209
Anexo XIII – Músicas, passagens poéticas e texto sobre a rolinha fogo pagou ....218
Anexo XIV – Carta endereçada a José Facundo...................................... 229
Anexo XV – Carta dirigida a Bebeto Zaranza...................................... 254
Anexo XVI – Carta referindo o mito platônico da androginia.............. 267
Ao apagar das luzes 9
Apresentação
Tangenciando atuais e avançados aspectos de índole sociológica,
psicológica e antropológica, mergulho aqui na mais densa verve do meu
povo aracatiense que sempre soube viver em paz mesmo sob o jugo de his-
tóricas e instantâneas quadras de intransigência e crueldade sociais. Coisas
essas que parece haverem sido sufocadas e calcadas para trás sem qualquer
ressentimento. Tal acervo memorial — mesmo bem distanciado no tempo
— ainda retumba de modo bastante intenso nas cercanias da minha cons-
ciência, e, quiçá, inconsciência. Produzindo, a despeito do tempo que já vai
longe, tonalidades vivas que remexem com os mais belos sentimentos que
me ligaram de corpo e alma àquele sagrado chão do meu nascedouro. E
tudo isso sem que o veloz passadiço das coisas tenha sido o suficiente para
subtrair-me a noção de pertencimento à minha humilde gente.
Portanto, arrisco-me a pensar que o sentido e o significado dos temas
aqui tratados sejam capazes de revirar a alma das pessoas mais indiferentes
às raízes telúricas de si mesmo e dos seus conterrâneos.
O pano de fundo das temáticas que aqui se tangenciam tem como
10 José Armando da Costa
logradouro fundamental os hábitos aristocráticos e populares da então pe-
quena comunidade aracatiense dos idos das décadas de 40, 50 e 60 do
século passado. Quadra de convivência essa que se parecia embalar num
romantismo preconceituoso que, inobstante esta tisna meio negativa, não
prescindia — pelo menos de todo — da crença de que tais valores român-
ticos traziam alentada carga de humanização.
Com tonalidade um pouco hilária, registram-se aqui inteligentes
praxes políticas tentando dar consistência aos sopros democratizantes
oriundos das longínquas influências históricas das revoluções inglesa, ame-
ricana e francesa do século XVIII. Naquele recuado recanto do mundo, a
democracia — ainda na segunda metade do século XX — percutia com
tonalidades bem destoantes dos verdadeiros interesses da coletividade. Fi-
nalidade esta que, como é sabido e ressabido, constitui a única atalaia capaz
de assegurar o legítimo exercício do poder político.
Com o adjutório de pequenos contos que servem de norteamento
à narrativa deste livro, chega-se à conclusão que, mesmo assim, os seus
inocentes e incipientes arremedos de corrupção eleitoral já causavam, por
paradoxal antecipação, inveja aos atuais eleitores do Brasil. Posto que estes,
antes do amanhecer do dia, já acordavam naqueles idos assaltados em suas
esperanças, mesmo ainda bem antes de haver o sol despontado lá bem
longe no horizonte. E o desfalque só não lhes era maior porque as casas de
sua representação política, em nível nacional, apenas funcionavam durante
o dia.
Sem deixar de compreender as suas naturais condicionantes sócio-
históricas, destacam-se aqui vários preconceitos, estereótipos e estigmas
relacionados com perversas formas de discriminação racial, social e eco-
nômica que, naqueles idos, persistiam ali com certo furor. Aqui e acolá,
puxam-se com carinho as orelhas de certos católicos que não souberam,
Ao apagar das luzes 11
naqueles tempos mais obscuros da crença, poupar as suas cruéis intolerân-
cias religiosas contra as pessoas que, mesmo acreditando em Deus e no
Cristianismo, rezavam em outros catecismos.
Tais intransigências são tratadas como pequenos respingos da “Noi-
te de São Bartolomeu”. Matéria esta que constitui o objeto do Capítulo 4
deste livro.
Naquele recanto das minhas eternas saudades também aconteciam
coisas que, ao apagar das luzes, faziam amar em outro leito, abraçar outros
braços e gemer em outros colchões, e às vezes no próprio chão. Bem como
era também o momento para se chorar copiosamente as lancinantes perdas
do amor. Sem olvidar, contudo, as práticas de contrabando que, naquele
apagar de luzes, encontravam as suas melhores chances de escoamentos.
Estes, demandando à beira do rio Jaguaribe, passavam necessariamente
por um dos lados do quadrilátero da Praça da Coluna, onde residíamos e
víamos com os próprios olhos o ranger dos caminhões empreendendo o
trajeto ilícito.
Em todos os quadrantes do mundo, sabe-se que, tanto o rico-empo-
brecido quanto o pobre-enriquecido, se demoram a ser reconhecido como
pertencente a sua nova condição socioeconômica. Mas, ali na minha terra,
uma pessoa demora muito mais a deixar de ser o que já foi e passar a ser
realmente o que agora o é. Por muito mais tempo, o aracatiense arruinado
desfila com pose e passo de rico. Enquanto que o pobre, embora haja con-
quistado vultosa fortuna, persiste com a cara desenxabida de quem estar
sempre a pedir alguma coisa.
Enfocam-se, ainda, as paradoxais circunstâncias que — resultando
de modelos (arquétipos) sociais que vogaram ali até a década de 70 do
século passado — chegavam a proibir moças furadas de entrarem no mais
requintado clube social da cidade. Bem como se fazia crer, com o adjutório
de ardis políticos de vésperas de eleições, que as pessoas mais pobres dali
dormiam em cama de pau duro. Nesse entremeio de perplexidade e an-
tagonismos, destaca-se igualmente o caso de um honrado senhor que ali
venceu empurrando o pau a torto e a direito para todos os lados.
Muitas cicatrizes histórico-culturais são aqui dissecadas com o auxí-
lio de qualificados e oportunos excertos científicos e filosóficos. (Capítulo
15). No contexto desta obra não se nega o valor gnosiológico (de conhe-
cimento) do folclore, da poesia e da religião. Mesmo porque há asserções
poéticas e folclóricas que, diferentemente de muitas conjecturas científicas,
nunca foram desfeiteadas por novos saberes. E mais, no paralelismo de
comparação entre ciência e religião, já houve quem afirmasse — talvez
com base no genial magistério de Sigmund Freud — que as asserções
científicas são tão enganosas quanto os dogmas da religião.
Pelo menos até a década de 1960, predominava no meio das pessoas
mais humildes de Aracati o preconceito de que homossexualismo, tanto
masculino quanto feminino, constituía luxo somente acessível às pessoas
ricas da Rua Grande (logradouro mais nobre e aristocrático dali). A mi-
nha vizinha Julita Teixeira (de saudosa memória) jogava as cartas com o
colorido desse mesmo naipe: alimentava igual ideia preconcebida. De sua
poético-preconceituosa dicção foi cunhada esta frase: “Baitolice em pobre
é sem-vergonhice” (Capítulo 16). Vê-se, assim, que tal dizer é paradoxal-
mente preconceituoso, pois acha que “viadagem” é coisa de gente rica, e a
um só tempo tira do pobre o seu natural direito de ser homossexual.
Por estas e muitas outras razões, creio que valha a pena a leitura des-
te livro. Confira isso, caro leitor!
O autor
Ao apagar das luzes 13
CAPÍTULO 1
Tardios sopros democráticos
A teoria democrática do poder — concebida e gestada pelos pre-
cursores da Revolução Francesa, e que consagra o entendimento de que
o poder político vem do povo — demorou-se um pouco a entronizar-se
no Aracati. Mas isso não chegou de maneira alguma a constituir desonra
de largo porte para aquela brava gente, pois o predomínio de tal sopro
democratizante se demorou muito mais ainda a aportar nos arraiais de
outras paragens nordestinas. E em muito deles até nem chegou ainda. E,
por causa mesmo desse justificável retardo, a representação cidadã do ara-
catiense, pelo menos até as décadas 1940 e 1950, revelava algumas falhas
de legitimidade. O voto não tinha, naqueles idos já bem distantes, uma
base de escolha fundada na crença de que o eleitor estivesse escolhendo
os melhores candidatos para gerir os seus destinos políticos. E sim um
suporte fiduciário sustentado na amizade e na consideração entre eleitor e
candidato, reciprocamente.
Nas pregações aos seus amigos e fiéis eleitores — que ocorriam
quase que diariamente — vi, por muitas e muitas vezes, o velho Antô-
14 José Armando da Costa
nio Ponciano, meu pai, fazer explanações detalhadas de casos e histórias
cheias de rodeios, para afinal incutir na cabeça daqueles homens pouco
instruídos a importância da união partidária. Numa linguagem própria de
pessoas de poucas letras, mas inteligentes, dizia ele nessas ocasiões que,
se não houvesse a coesão de todos em torno dos objetivos do partido, não
haveria força política para promover a melhoria da comunidade. Lógico
que a agremiação partidária a que ele se referia era a velha, e hoje extinta,
União Democrática Nacional — UDN. E no final de tudo, concluía en-
faticamente esse semiletrado político: “Meus amigos, não esqueçam que
somente a união faz a força. E que varas juntas, ainda que sejam de pouca
grossura, nunca se quebram”. Esse velho senhor trazia a política no sangue.
Pois nada nesta vida despertava-lhe mais interesse que aquelas corriqueiras
questões políticas locais. Tanto isso é verdade que a minha mãe e os meus
irmãos mais velhos tentaram por várias vezes debalde demovê-lo da luta
partidária que se acirrava ainda mais nas proximidades dos dias de pleitos
naquele município. Ainda em criança, lembro-me de que ele, de certa feita,
resistindo os conselhos de sua família para largar a política, chegou quase
que lacrimejando a ponderar:
– Vocês me querem tirar a única alegria que eu tenho nesta vida?!
Depois disso, desse desabafo vindo lá do fundo de sua alma, nin-
guém mais teve coragem de tocar sobre esse assunto naquela casa. Mas,
afora tais cacoetes políticos, ele era a paz e a calma em pessoa. E com todo
o corpo, e muito mais ainda com a alma.
Pelo que pude perceber — ainda naqueles velhos tempos que se fo-
ram — havia nesse homem simples e amigo do ser humano, seus irmãos
(como ele mesmo se referia), algo que o fazia ser feliz com o sucesso até
mesmo dos seus adversários políticos. Já morando em Fortaleza, fui às ur-
nas talvez no dia 3 de outubro de 1962, e sufraguei para deputado estadual
Ao apagar das luzes 15
o candidato udenista Abelardo Costa Lima, e para deputado federal o can-
didato pelo PSD Ernesto Gurgel Valente. Pois ambos eram aracatienses,
e eu que estava um pouco distante da terrinha queria acalentar-me com o
sucesso dos meus importantes conterrâneos. Para o meu contentamento,
ambos foram eleitos folgadamente. Mas eu havia ficado com um peso na
consciência por sentir que houvesse nisso possivelmente uma traição par-
tidária ao meu pai, que, como já referido acima, integrava a UDN de corpo
e alma. Em minhas férias — retornando ao chão que mais se parece com
o aconchego do berço da nossa gente — fui me penitenciar junto a ele,
não só por uma questão de respeito reverencial, mas muito mais ainda por
razão de remorso. Queria eu tirar esse peso de minha consciência. Meio
sem jeito, dirigi-me a ele e perguntei-lhe:
– Papai, o que o senhor acha sobre a pessoa e o político Ernesto
Gurgel Valente? E ele respondeu-me nas buchas:
– Meu filho, ele é um homem muito bom, trabalhador e honrado. O
único defeito que ele tem é ser do PSD.
Em face de tal resposta, criei um pouquinho mais de coragem, e
confidenciei-lhe:
– Meu pai, não fique com raiva de mim, mas nessas últimas eleições
eu votei em Ernesto para deputado federal, e, além de mim, somente o
senhor está agora sabendo disso. Fiz mal?
Em resposta falou-me rápido e sinceramente:
– Também vou confidenciar-lhe a minha fraqueza, eu por muito
pouco deixei de votar nele. Na campanha eleitoral, eu quase cheguei a falar
com Abelardo sobre a possibilidade da UDN, em coligação, apoiar esse
conterrâneo. Mas o partido já havia antes se comprometido com outro
candidato de Fortaleza a deputado federal pela UDN. Acho que se não
tivesse havido tal acerto esse apoio teria sido bem possível. Pois entendo