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1 “Fui agredida. Dou início ou não ao processo?” A participação da mulher, vítima de violência doméstica, no sistema penal. Yasmin Oliveira Mercadante Pestana Acadêmica de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco. Universidade de São Paulo – USP Sumário: 1. Introdução – 2. Mulher: vítima da violência doméstica? – 3. O que diz a Vitimologia? – 4. O problema da participação da mulher vítima de violência doméstica: o momento de renúncia à representação. – 5. Razões para a renúncia à representação: o que afasta e o que aproxima as mulheres do direito penal. – 5.1. Resultado imediato da medida protetiva – 5.2. O “susto” no agressor ou o poder intimidatório do direito penal – 5.3. Não querer prejudicá-lo: o medo da detenção do agressor – 5.4. Vínculo com os filhos – 5.5. O medo das represálias – 5.6. Dependência econômica – 5.7. O próprio sistema penal – 6. Considerações finais Resumo: Este artigo tem como objetivo identificar os principais aspectos envolvidos na participação da mulher vítima de violência doméstica no sistema penal, por meio da Lei 11.340/06, a “Lei Maria da Penha”. Com este intuito, foi destacado um momento específico da participação da mulher, qual seja, a renúncia à representação nos crimes de lesão corporal leve. O artigo dedicou-se, especialmente, à percepção das mulheres que recorrem ao sistema penal. Palavras-chave: vítima – sistema penal – violência doméstica – Lei Maria da Penha – gênero. 1. Introdução A violência doméstica contra a mulher por muito tempo foi aceita pela sociedade como uma resposta natural aos conflitos conjugais. Para combater esta violência, que é expressão das relações de poderes desiguais entre mulheres e homens, somente em

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“Fui agredida. Dou início ou não ao processo?”

A participação da mulher, vítima de violência doméstica, no sistema penal.

Yasmin Oliveira Mercadante Pestana

Acadêmica de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco. Universidade de São Paulo – USP

Sumário: 1. Introdução – 2. Mulher: vítima da violência doméstica? – 3. O que diz a

Vitimologia? – 4. O problema da participação da mulher vítima de violência doméstica:

o momento de renúncia à representação. – 5. Razões para a renúncia à representação: o

que afasta e o que aproxima as mulheres do direito penal. – 5.1. Resultado imediato da

medida protetiva – 5.2. O “susto” no agressor ou o poder intimidatório do direito penal

– 5.3. Não querer prejudicá-lo: o medo da detenção do agressor – 5.4. Vínculo com os

filhos – 5.5. O medo das represálias – 5.6. Dependência econômica – 5.7. O próprio

sistema penal – 6. Considerações finais

Resumo: Este artigo tem como objetivo identificar os principais aspectos envolvidos na

participação da mulher vítima de violência doméstica no sistema penal, por meio da Lei

11.340/06, a “Lei Maria da Penha”. Com este intuito, foi destacado um momento

específico da participação da mulher, qual seja, a renúncia à representação nos crimes

de lesão corporal leve. O artigo dedicou-se, especialmente, à percepção das mulheres

que recorrem ao sistema penal.

Palavras-chave: vítima – sistema penal – violência doméstica – Lei Maria da Penha –

gênero.

1. Introdução

A violência doméstica contra a mulher por muito tempo foi aceita pela sociedade

como uma resposta natural aos conflitos conjugais. Para combater esta violência, que é

expressão das relações de poderes desiguais entre mulheres e homens, somente em

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2006, ao contrário de dezesseis países da América Latina, o Brasil criou uma legislação

específica sobre a violência doméstica, por força da pressão internacional1.

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), independentemente das críticas, ampliou

e fortaleceu o combate à violência doméstica contra mulher. Esta Lei fixou a violência

doméstica como uma questão de ordem pública2. Nesse sentido, ela é um marco na luta

contra a violência de gênero3 e uma conquista dos defensores dos direitos humanos e do

movimento feminista, em geral.

No entanto, esta visão não é consensual. Para a Professora Doutora em Direito

na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Vera Regina Pereira de Andrade,

uma das vozes dissonantes, tratar o problema da violência doméstica pela via penal leva

a duplicá-lo, porque o sistema penal em si é excludente e seletivo. Nas suas palavras: “(...) redimensionar um problema e reconstruí-lo como problema social não significa que o melhor meio de “responder a ele ou solucioná-lo seja convertê-lo, quase que automaticamente, em um problema penal (crime). Ao contrário, a conversão de um problema privado em problema social e deste em penal é uma trajetória de alto risco pois, regra geral, equivale a duplicá-lo; ou seja, submetê-lo a um processo que desencadeia mais violência e problemas do que aqueles que se propõe a resolver. (...) E isto porque se trata de um (sub)sistema de controle social seletivo e desigual (de homens e mulheres) e porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional que exerce sobre as vítimas” (ANDRADE, 1997, P.100-101)

Para Andrade, ao levar uma demanda ao âmbito penal, este a coloniza. Dito de

outra forma, levar as demandas das mulheres vítimas de violência doméstica à esfera

penal somente fará com que sofram uma vitimização secundária4.

É bem verdade que a mulher vítima de violência doméstica sofre com a

violência institucional do sistema de justiça penal. Também é verdade que muitas

mulheres não recorrem ao sistema penal para verem seus companheiros serem presos.

Na maioria das vezes, desejam que a violência cesse, que o agressor mude e não repita a

 1 “Foi em face da pressão sofrida por parte da OEA que o Brasil, finalmente, cumpriu as convenções e tratados internacionais do qual é signatário. Daí a referência constante da emenda contida na Lei Maria da Penha à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher”. (DIAS, 2008, p.14). 2 “Quase 82% da população brasileira considera a violência doméstica contra a mulher um grande problema da sociedade.” 07/12/2010 Brasileiros consideram violência doméstica um “problema de todos”. Disponível em <http://www.radioagencianp.com.br/9344-brasileiros-consideram-violencia-domestica-um%20-problema-de-todos> Acesso em 18.11.2010. Os dados da pesquisa do IPEA estão disponíveis em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/sips_genero2010.pdf>. Acesso em 18.11.2010. 3 Compreende-se a violência doméstica como uma das formas de violência de gênero. 4 “A vitimização secundária é um derivativo das relações existentes entre as vítimas primárias [diretamente atingidas pelo delito] e o Estado em face do aparato repressivo (polícia, burocratização do sistema, falta de sensibilidade dos operadores do direito envolvidos com alguns processos bastantes delicados, etc.)” (SHECARIA, 2008, p.59)

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agressão com outras mulheres. E nesse sentido, a resposta do direito penal parece ser

insuficiente.

Por outro lado, o que fazer quando leva um tapa do companheiro? “Não há

necessidade de ir até a delegacia, afinal, é apenas um tapa. (?)” Mas se essas agressões

virarem frequentes? (E precisamos esperar estas agressões virarem frequentes?) A quem

recorrer quando é agredida? Será que a reprovação social destas condutas bastaria para

erradicá-las? E como fazer para que estas condutas, efetivamente sejam rechaçadas por

homens e mulheres, quando ainda ouvimos que “mulher gosta de apanhar”? Uma

mulher é morta a cada quinze segundos vítima de violência doméstica no Brasil, o que

temos disponível para combater este número? Sem dúvida, somente a luta das mulheres,

nos mais diferentes frontes de batalha, transformará esta estrutura patriarcal que sustenta

as relações desiguais entre mulheres e homens. Não será somente por meio do direito

penal que eliminaremos a violência do gênero, porque ela está calcada nas bases

estruturais desta sociedade. No entanto, se o movimento de mulheres elegeu como um

instrumento de combate a Lei Maria Penha, o que ela realmente pode oferecer?

Ressalta-se que ter como uma das saídas disponíveis o direito penal não significa

automaticamente se alinhar com uma visão mais punitivista. Pelo contrário, significa se

alinhar a teoria do direito penal mínimo, já que esta defende que o direito penal deve se

ocupar dos problemas sociais fundamentais, duradouros e generalizados, como é o caso

da violência doméstica.

Desse modo, considerando, desde já, que a Lei Maria da Penha é um importante

instrumento na atual luta das mulheres por igualdade, este artigo tem como objetivo

investigar se realmente o sistema penal não pode responder as demandas que as

mulheres levam a ele.

Para tanto, pretende analisar a participação da vítima mulher, que sofreu

violência doméstica, no processo penal. Como se trata de um tema muito amplo foi

destacado um momento da participação da vítima nesses casos, qual seja, a audiência de

renúncia à representação, prevista no art. 16 da Lei 11.340 (Lei Maria da Penha). Foram

realizadas quatro entrevistas, no Fórum Criminal da Barra Funda, no Juizado de

Violência Doméstica e Familiar contra Mulher (JVDF), com mulheres que renunciaram

à representação, após serem atendidas pelo Núcleo Especializado de Promoção e Defesa

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lexo.

                                                           

da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública5. A partir de textos recolhidos sobre o

tema e das entrevistas realizadas, foi elaborado o presente artigo, que de forma alguma

esgota um tema tão comp

2. Mulher: vítima da violência doméstica?

Os debates em torno da violência doméstica muitas vezes trazem os

questionamentos: “mas o homem também não pode apanhar de mulher?”; “as mulheres

provocam as brigas, por que tratá-las como vítimas?” Faltam a estes questionamentos,

que muitas vezes surgem pelos profissionais do direito, uma perspectiva de gênero.

O gênero (SCOTT, s/d) deve servir como um instrumento de analise da

realidade. “É como se fosse uma lupa para que se possa enxergar a realidade das

relações sociais entre os sexos, seus conflitos e suas contradições” (TELLES, 2006,

p.53). Ele foi criado para enfrentar o determinismo biológico que naturaliza

características e funções atribuídas a homens e mulheres. Desse modo, “gênero é a

construção social do masculino e do feminino” (SAFFIOTI, 2004, p.45).

A categoria “gênero” refere-se à relação hierárquica e desigual entre homens e

mulheres, construída histórica e socialmente. Esta relação decorre e se mantém pela

divisão entre público e privado, entre trabalho produtivo e reprodutivo. Compreende-se,

assim, que existe uma divisão sexual do trabalho que opera por meio de dois princípios:

separação e hierarquização6. Pelo princípio da separação, atribui-se as mulheres os

trabalhos domésticos e de cuidados7, que apesar de responsáveis pela reprodução e

manutenção da força de trabalho, são social e economicamente desvalorizados

 5 Agradeço a toda equipe do NUDEM, principalmente a Defensora Thais Helena Costa Nader e a psicóloga Luciana Rocha de Sá, pelo apoio, inspiração e paciência. 6 “A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.).” (KERGOAT; HIRATA, 2007, p..599) 7 É óbvio que a sociedade mudou e as mulheres estão mais presentes no mercado de trabalho. No entanto, o trabalho doméstico continua sendo atribuído as mulheres como função natural que devem exercer. Dados recentes do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) comprovam que as mulheres são as que mais trabalham em casa, em 2009, as mulheres casadas com filhos dedicaram em média 30,3 horas para os fazeres domésticos, enquanto os homens nas mesma posição dispensaram somente 10,1 horas. Mulher chefe de família é a que trabalha mais, em casa e no emprego, diz Ipea Diponível em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/11/11/mulher-chefe-de-familia-e-a-que-trabalha-mais-em-casa-e-no-emprego-diz-ipea.jhtm. Acesso 22.11.2010 

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(hierarquização). Vale dizer que o trabalho doméstico é aquele repetitivo, rotineiro e

que na maioria das vezes só é percebido quando não realizado. Já os homens participam

do trabalho produtivo, exercido na esfera pública e que possui maior prestígio social.

Embora se verifique um crescimento significativo das mulheres no mercado de

trabalho, elas ainda permanecem alocadas nos setores de serviços e em posições

auxiliares, como secretárias, professoras do ensino infantil, enfermeiras, cabeleireiras,

pediatras, empregas domésticas, operadoras de telemarketing..., nas quais muitas vezes

realizam funções que são extensão do âmbito doméstico. Raramente estão presentes nos

cargos de chefia, os quais participam das tomadas de decisão. Também, conforme se

eleva na hierarquia dentro das carreiras, diminui a presença das mulheres. E, mesmo

cumprindo a mesma atividade que os homens, a remuneração das mulheres ainda é

inferior.

Muito embora tentem modernizar o casamento, a família exerce o papel de uma

das principais agências de controle informal sobre a mulher: “Núcleo primário de controle social informal, a família foi, durante o século XIX, um dos fatores da economia nacional, funcionando como uma pequena empresa em que todos os membros trabalhavam. Hoje, tendo desaparecido a empresa familiar, a autoridade do pai perde o fundamento econômico. Note-se que a autoridade apenas perde o fundamento, isto é, ela não deixa de existir. (...) As mulheres, destinatárias por excelência do controle social informal, se adaptam àquilo que delas se espera, sem que isso se sentido como uma forma de controle”. (BARREIRAS, 2008, p. 301-304)

Ainda se espera que a mulher seja uma esposa fiel e submissa, uma mãe

resignada que cuide do lar por amor à família. Esta determinação histórica do lugar das

mulheres na manutenção da vida e na reprodução biológica, que dá ênfase à

maternidade, delineou o espaço privado como espaço feminino. Neste espaço privado

vigora as relações instintivas, que muitas vezes naturalizam a violência doméstica, e um

conjunto de convenções rígidas que determinam qual deve ser a conduta da mulher. A

violência doméstica é a expressão mais salutar do poder disciplinador exercido pelo

homem no âmbito familiar. E ela ocorre de forma reiterada e generalizada,

independentemente de classe social.

Esta dicotomia entre espaço público e privado também serviu para que o Estado

não interviesse nas relações privadas, deixando para o direito penal a regulação das

relações no âmbito público, ou seja, o controle da massa dos trabalhadores. O controle

social informal sempre atuou mais sobre as mulheres, desde a restrição da mobilidade

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das mulheres, por exemplo, fixando um horário para chegar8, até o extremo da violência

doméstica.

Diante do exposto, retoma-se a necessidade desta perspectiva de gênero, ora

descrita, para a análise da vítima da violência doméstica, a fim de compreender que

existem muitos fatores que “prendem” as mulheres em relações violentas: econômicos,

culturais, sociais, psicológicos, afetivos... O mais determinante deles é a própria

estrutura patriarcal das relações sociais, que ainda coloca para a mulher solteira e sem

filhos o rótulo de fracassada, que desqualifica as mulheres por sua aparência, que

restringe a sexualidade feminina e mantém a desigualdade entre mulheres e homens no

mundo do trabalho, sobrecarregando as mulheres em casa, impedindo que ocupem

trabalhos ditos masculinos e atribuindo salários desiguais para mulheres que cumprem a

mesma função que os homens. É esta desigualdade presente na sociedade que permite

dar um tratamento especial às mulheres vítimas de violência doméstica e perceber que

esta violência não é individual, ela é generalizada, recorrente e geracional.

O tratamento da mulher pela Lei Maria da Penha não pretende reforçar aquela

idéia de “mulher indefesa” ou de “donzela em perigo”, mas reconhecer a desigualdade

de poderes presentes na relação conjugal. Assim, utilizar o termo “vítima” para se

referir à mulher que sofre violência doméstica, não é situá-la no papel de frágil, incapaz

e vulnerável, que muitas vezes lhe é imposto, mas reconhecer que ela está inserida em

uma relação, objetivamente, desigual. Mesmo assim existem estudiosas (os) que

criticam a polarização agressor-vítima (GREGORI, 1989), porque reduz a

complexidade do conflito. Por tal razão, surge a expressão “mulher em situação de

violência doméstica”, utilizada pela Lei Maria da Penha. A expressão “mulher em

situação de violência doméstica” também é a mais apropriada porque sugere a idéia de

uma situação transitória, passível de superação. No entanto, neste artigo, será utilizada a

expressão “vítima”, porque é o termo usual do direito penal para designar o sujeito

passivo da relação penal.

Além disso, a mulher vítima de violência doméstica extrapola o conceito de

vítima usual, já que ela sofre esta violência exatamente porque é mulher, porque dentro

das relações sociais ocupa um lugar de submissão. É uma vítima determinada pelo

 8 “También la mujer adulta, especialmente si está privada de independência económica, experimenta el control doméstico ejercido por el marido, y que adopta diferentes modalidades: la cicatería com el dinero, la restricción de las entradas y salidas, el control del tiempo libre, y tine su expresión extrema em los malos tratos y em las palizas.” (LARRAURI, 1994, p. 3.)

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gênero. Não é a bebida, não é o cansaço, não é o excesso de trabalho que justifica a

violência doméstica (afinal, esta violência não é dirigida a um desconhecido, como o

patrão) e, sim, as relações desiguais de gênero.

Outro aspecto que a diferencia do conceito de vítima “usual” é a relação íntima e

afetiva com o agressor. A distância entre vítima e o agente delitivo é imperiosa para

atribuir àquele a etiqueta de criminoso (SHECARIA, 2001). Conhecer demais sobre o

agente delitivo influencia a vítima, que pondera sobre acionar ou não o sistema penal.

Da mesma forma, a relação de intimidade e empatia face ao agressor, nos casos de

violência doméstica, age como um obstáculo para a intervenção penal, já que as

mulheres dimensionam e se preocupam com os efeitos gerados a partir dela. As

mulheres escancaram que o direito penal utiliza da distância social, de classe, para se

legitimar.

Por último, ressalta-se a necessidade de compreender o “ciclo da violência

doméstica”. Primeiro, vem os sintomas de ciúmes e as restrições à mulher, que vai

isolando-se. Depois as reclamações e criticas constantes, que atingem a auto-estima da

mulher. As discussões tornam-se recorrentes. Em seguida, vêm os gritos, empurrões,

tapas, ponta-pés, etc. Mas, logo depois, vem o pedido de desculpa, as lágrimas de

arrependimento e promessas. Passa-se para a fase da “lua-de-mel”. Tudo está indo bem

até a nova discussão, as humilhações, gritos... Por isso, fala-se que a violência

doméstica atua em um ciclo espiral e ascendente. Para tratar a mulher vítima de

violência doméstica é necessário saber em qual estágio deste ciclo ela se encontra.

A mulher vítima de violência doméstica, portanto, exige que os atores do

sistema penal percebam a violência doméstica inserida nas relações desiguais entre

mulheres e homens através de uma lente de gênero. Mais ainda, pressiona um giro na

lógica penal, deslocando o esquema prisão-criminoso, para proteção-vítima. Com isso,

traz novos desafios ao sistema penal, muitos deles já colocados em discussão, como a

busca por novas soluções aos conflitos marcados por violência, que não sejam o

encarceramento. A relação íntima entre vítima e agressor, também questiona a

neutralização do conflito pelo Estado-penal, renovando as propostas de encontros entre

vítima e deliquente. Nesse sentido, abre caminho para uma valorização da vítima.

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3. O que diz a Vitimologia?

A criminologia, desde seu surgimento, deu maior enfoque à figura do

delinquente, desprezando a vítima. Nos estudos sobre a vítima, é possível destacar três

momentos históricos: (i) a “idade de ouro” da vítima, caracterizada pela justiça privada

ou vingança; (ii) a neutralização do poder da vítima, momento em que o Estado toma

para si monopólio do uso da força, ou seja, invoca exclusivamente para si o exercício da

reação penal; (iii) e a revalorização do papel da vítima, que surge com as escolas

clássicas, ganhando mais força após a Segunda Guerra Mundial e consolidando um

ramo de estudo, a Vitimologia, após a década de 80 (SHECARIA, 2008; SIQUEIRA,

2002).

A crítica à expropriação do conflito das partes pelo Estado, ente estranho à

violação sofrida, foi de forma mais radical realizada pelos adeptos ao abolicionismo

penal (BOVINO, 2001), entre eles, Louk Houlsman e Nils Christie. O movimento

abolicionista concentra uma atenção especial ao estudo da vítima porque se propõe a

construir uma alternativa à política criminal. Segundo eles, é preciso devolver as

pessoas envolvidas no delito o domínio de seus próprios conflitos, proporcionando

encontros “cara-a-cara” entre vítima e agente delitivo.

A vítima, assim como o acusado, não é “ouvida” pelo Estado, ela não participa

da decisão, podendo ter seus interesses desconsiderados. De fato, não ter espaço para

falar é uma reclamação recorrente entre as vítimas de violência doméstica. E, há

tempos, as criticas dos abolicionistas já tratam desta dificuldade do sistema penal de

inserir as vítimas, dos delitos em geral, na solução do conflito9.

Para Zaffaroni a exclusão da vítima do processo penal é um verdadeiro confisco: “Desse modo, admite-se como progresso a omissão total da vítima (e a pior brutalidade estatal). A vítima desapareceu até hoje do modelo penal. No máximo é um objeto, mas não um sujeito dentro deste modelo, porque não é compatível com ele, que por definição é confiscatório do direito lesado pelo conflito.” (ZAFFARONI, 1995, P.30)

Mesmo com as limitações impostas pelo direito penal, Elena Larrauri aponta

para três ramos do estudo da vítima: pesquisas de vitimização, os direitos da vítima e a

 9 Em pesquisa recente sobre o papel da vítima no processo penal realizada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, aprovada no Edital Pensando o Direito (01/2009) da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, conclui-se que “Outro fator que parece ter relevância, em se tratando da satisfação da vítima, é a oportunidade que lhe é dada para exprimir sua versão do episódio e seus interesses. Metade das vítimas entrevistadas relatou insatisfação em relação ao tempo e ao espaço concedidos para sua fala [nos JECRIMs]” ( ALVAREZ, 2010, p. 264).

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assistência social e econômica às vítimas (LARRAURI,2001). A partir das pesquisas de

vitimização é percebida a relação das vítimas com o sistema penal, se estas recorrem ou

não ao aparato penal. Neste ponto, o movimento feminista sempre apontou para os

obstáculos de identificar os delitos ocorridos na esfera privada, já que as mulheres ficam

muitas vezes impedidas de denunciarem pela pressão dos cônjuges ou companheiros10.

Além disso, as mulheres possuem uma dificuldade para perceberem a agressão

que vivenciaram como uma violação de sua integridade física e/ou psicológica. Elas, em

decorrência da forma como foram socializadas, acabam considerando habitual

apanharem ou sofrem abusos nas relações conjugais e, mais habitual ainda, resolver

estas agressões dentro da relação11. O estudo da vítima de violência doméstica

compreende estes três ramos, o que significa dizer que ele deve analisar desde o

rompimento da mulher com a violência, quando ela reconhece que não precisa ficar

numa situação violenta, até o atendimento assistencial dessa mulher.

Nos últimos anos, houve um crescimento nestes estudos vitimológicos, o que

pode ser interpretado de duas formas: como um fervor punitivo, que instrumentaliza as

vítimas para um recrudescimento do sistema penal; ou uma busca por reelaborar os

conflitos, devolvendo à vítima a possibilidade de participar da solução do sofrimento

vivido.

É importante dizer que estas duas interpretações correspondem a visões

diferentes de movimentos vitimológicos. O primeiro, conhecido como movimento da lei

e da ordem, está relacionado à instrumentalização das vítimas e seus parentes pelo

Estado, que não conseguindo oferecer respostas efetivas às demandas sociais, provoca

uma sensação de insegurança e um clamor punitivo na sociedade, para que esta se baste

com um inchaço das leis penais – “populismo penal” 12. Já o segundo, aliando-se a

 10 “Se há destacado insistentemente por el movimento feminist que las encuestas de victimización acostumbran a concentrarse em las actividades realizadas em la ‘via pública’ y, com ello, minimizan los ‘delitos’ acontecidos em el área privada, que quedan sin contabilizar como delitos y que afectan particularmente a mujeres y menores de edad. Incluso debe hacerse constar las dificultades de recoger las respuestas de la mujer cuando el entrevistador está preguntando a la mujer acerca de la violência doméstica delante del marido” (LARRAURI, 2001, p. 289). 11 “Debe observarse que, em ocasiones, el comportamiento delictivo está tan integrado em nuestra experiencia cotidiana, que dificilmente se señala que há sido víctima de um delito (Walklate, 1989:34)” (LARRAURI, 2001, p. 290). 12 “Na recente legislação brasileira, também os perigos do populismo penal estão presentes. A legislação criminal da década de 90 do século XX – em especial a Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos) e suas edições posteriores – é o exemplo da instrumentalização da vítima em prol de uma política criminal de matriz neoconservadora, mais repressiva e não atenta às garantias fundamentais e aos direitos do acusados (TEXEIRA, 2009)”. (ALVAREZ, 2010, p.253).

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justiça restaurativa, possui uma preocupação real com a satisfação da vítima e busca

combater a despersonificação dos conflitos.

A Lei 9.099/1995, Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, é resultado

deste segundo movimento. Esta lei se estruturou em dois pressupostos: despenalização

de algumas condutas e economia processual. Para concretizá-los, foram criados novos

mecanismos de solução de conflitos, destinados aos crimes de menor potencial

ofensivo, aqueles cujas condutas tipificadas tenham pena máxima não superior a dois

anos – esta última interpretação foi estabelecida pela Lei 10.259/01 (Lei dos Juizados

Especiais Criminais Federais) – a saber, a composição civil, a transação penal e a

suspensão condicional do processo.

De fato, a Lei 9099/95 conseguiu levar à justiça penal, inúmeros casos que antes

não chegavam. No entanto, muitos estudiosos destacam uma banalização do direito

penal, e uma consequente perda de seu efeito intimidatório (OLIVEIRA, 1999, p.171).

Outros criticam os mecanismos introduzidos pela Lei 9099/95 porque entendem que

eles violam garantias constitucionais, como a presunção de inocência, já que são

realizados sem anterior investigação criminal e/ou sem a existência do devido processo

legal (CAMPOS, 2006).

Além das críticas acertadas dos garantistas penais, os JECRIMs também foram

severamente criticados pelas feministas e demais estudiosos e profissionais que

trabalham com a violência doméstica. Os formuladores dos JECRIMs não contavam

com a grande demanda dos casos de violência doméstica, pensaram em uma política

criminal inacabada, sem uma perspectiva de gênero. Aliás, neste aspecto, cumpre

ressaltar que a criminologia, assim como a política criminal, há tempos já incluem a

categoria classe e/ou etnia nas suas análises, demonstrando a seletividade do direito

penal às classes subalternas, que age reforçando as segregações sociais e étnicas.

Contudo, estas áreas de conhecimento ainda são resistentes para incluir a categoria

gênero em suas análises, pouco se fala de uma seletividade negativa do direito penal

quando se trata das mulheres. Mais ainda, o próprio direito penal assume um caráter

androcêntrico (BARATTA, 1999). Por esta ausência de uma perspectiva de gênero, não

se preocuparam que os JECRIMs pudessem se deparar, majoritariamente, com casos de

violência doméstica.

Os casos de violência doméstica chegaram aos JECRIMs porque se inseriam nos

crimes de menor potencial ofensivo. Contudo, qualificar os crimes pela pena cominada

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e não pelo bem jurídico tutelado, gerou uma incompreensão da natureza diferenciada da

violência doméstica (CAMPOS, 2006).

Os JECRIMs e os mecanismos criados com ele foram estruturados para tratar de

conflitos entre desconhecidos e pontuais (brigas de trânsito, discussões entre vizinhos).

Em contrapartida, a violência doméstica é cotidiana e generalizada, envolve relações

afetivas e íntimas, que criam obstáculos para o rompimento da violência, e atua em um

“ciclo em espiral ascendente que não tem mais limite” (DIAS, 2008, p.20). Mais ainda,

como já mencionado, as relações entre homens e mulheres são desiguais em nossa

sociedade, o que afasta a possibilidades de soluções consensuais, como a composição

civil – pelo menos da forma como são feitas nos JECRIMs. A transação penal também

não é um mecanismo à disposição, já que exclui a vítima, mais uma vez retirando o seu

direito de voz e, principalmente, nos casos de violência doméstica, retira a oportunidade

de reconhecer a gravidade do delito. “A reafirmação da violência na presença do juiz,

terceiro na cena processual, significa o conflito de sua real dimensão de gravidade,

realizando deslocamento simbólico capaz de inverter, momentaneamente, a assimetria

na relação conjugal” (CAMPOS, 2006, p. 415).

Por esta falta de preparo dos profissionais dos JECRIMs e pela própria falha na

sua formulação, os juízes respondiam ao problema da violência doméstica aplicando

reiteradamente e indiscriminadamente a pena de prestação pecuniária, mais

especificamente o cumprimento de cestas básicas13. A mulher não era ouvida na

audiência preliminar, era ridicularizada pelo agressor e este voltava fortalecido, sem

qualquer desaprovação pela agressão cometida.

De acordo com pesquisa recente sobre a participação da vítima no processo

penal realizada pelo IBCCrim, a satisfação das vítimas nos casos de violência

doméstica, diferente das vítimas observadas no JECRIMs que podem ser contempladas

por uma composição civil, está na efetiva proteção que alcançam, no constrangimento

dos agressores e na possível ajuda para romper com a violência (ALVAREZ, 2010). A

atuação dos JECRIMs, portanto, caminhava no sentido contrário a proposta feminista,

porque (re)privatizava o conflito.

Este tratamento desqualificado e descompromissado com as vítimas de violência

doméstica intensificou as exigências da criação de uma lei de tratamento especial às  

13 Esta é uma das principais razões que levou a Lei Maria da Penha, no art. 17, vedar “penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.”

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mulheres em situação de violência doméstica. Este é outro movimento vitimológico que

ganhou destaque na história recente do país, com a aprovação em agosto de 2006, da

Lei 11.340/06. O movimento feminista, há anos, vem lutando contra a violência

doméstica, dando maior enfoque na proteção da vítima, nas políticas públicas, na

mudança da cultura machista, na implementação de uma educação não sexista, etc. Ou

seja, não surge e não recorre ao sistema penal pelas mesmas razões que o movimento da

lei e da ordem.

Pelo contrário, a Lei Maria da Penha está centrada na proteção da vítima, o que

fica evidente pela previsão das medidas protetivas (art.18 ao art. 24); da assistência

judiciária (art. 27) e de uma equipe de atendimento multidisciplinar (art. 29); dos

serviços especializados de atendimento às vítimas (art.35); da assistência econômica

(art. 9º); do atendimento específico da autoridade policial nestes casos (art. 10 ao

art.12); da apreciação de causas cíveis e criminais no mesmo Juizado (art. 13 e art. 14).

Portanto, não tem sustentação teórica (nem prática) igualar o movimento feminista de

combate à violência doméstica ao movimento da lei e da ordem. Apesar de suas

reivindicações no campo penal guardarem uma proximidade temporal, o movimento

feminista busca o uso estratégico do direito penal para colocar fim a uma opressão, já o

movimento de lei e da ordem utiliza o direito penal para despistar a população das

raízes dos problemas sociais.

De todo modo, a discussão em torno da lei 9099/95 e da proteção da mulher em

situação de violência doméstica questiona uma política criminal de exclusão que

contrapõe o interesse da vítima ao do acusado. Também desmistifica a idéia de que a

satisfação da vítima se concretiza com a maior punição do autor do delito14. As pessoas

buscam a justiça penal não por um interesse retributivo, mas porque precisam registrar o

delito (por exemplo, para reclamar da agência de seguros), desejam uma reparação ou

uma proteção imediata, principalmente nos casos de violência doméstica (LARRAURI,

2001, p. 291).

 14 “En realidad, si algo destacan con práctica unanimidad los estúdios victimologicos, es que la victima es menos punitiva de lo que creen el resto de conciudadanos; y que la víctima en raras ocasiones desea um castigo cuando considera reparado el mal causado.” ( LARRAURI, 2001, p. 294.)

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4. O problema da participação da mulher vítima de violência doméstica: o

momento de renúncia à representação.

Os casos de violência doméstica, como já retratado, desaguaram nos JECRIMs,

em decorrência da Lei 9099/95. Dessa forma, excetuando os delitos de homicídio, lesão

corporal grave e abuso sexual, as demais condutas, que caracterizam o cotidiano de

lesões contra a mulher (por exemplo, as lesões corporais leves, ameaças, crimes contra a

honra) e que representam a maioria dos casos de violência doméstica, foram abarcadas

pelo novo procedimento (CAMPOS, 2006). A Lei Maria da Penha vem para dar um

tratamento especializado para estes crimes, a fim de garantir uma resposta adequada a

mulher, bem como romper com a naturalização da violência doméstica, a qual era

muitas vezes reproduzidas nos JECRIMs.

Nesse sentido, a Lei no art. 17 afasta a possibilidade de aplicação de pena

pecuniária ou substituição exclusivamente por multa. A violação à dignidade e

integridade da mulher não podem ter como resolução a aplicação de valores. Mais

ainda, a Lei 11.340/06, no art. 41, afasta expressamente a aplicação dos dispositivos da

Lei 9.099/95, independente da pena. Desse modo, ficam afastadas a composição civil, a

transação penal e a suspensão condicional do processo.

Mesmo com esta vedação expressa da Lei 9099/95, presente no referido art. 41,

a polêmica insiste nos crimes de lesão corporal leve e lesão culposa15. Para estes crimes,

o art. 88 da Lei 9099/95 estabelecia ação penal condicionada à representação, o que

gerou uma divergência jurisprudencial e doutrinária a respeito da natureza da ação penal

dos crimes de lesão corporal leve praticado contra mulher no âmbito doméstico.

Ocorre que o art. 16 da Lei 11.340/06 dispõe que “nas ações penais públicas

condicionadas à representação da ofendida de que se trata está Lei, só será admitida

renúncia16 à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com

 15 Além disso, para evitar que os crimes de lesão corporal leve e culposa qualificados pela violência doméstica (art. 129, §9º, do Código Penal) fossem levados aos JECRIMs ocorreu uma majoração da pena máxima, que passou de seis meses a um ano para de três meses a três anos. Esta majoração também ocorreu para redimensionar o problema da violência doméstica, que possui um potencial ofensivo crescente, que pode levar a mulher à morte, e pelo reconhecimento da vulnerabilidade da mulher, que é agredida em circunstâncias nas quais deveria se sentir segura.  16 Existe uma questão terminológica sobre o termo “renúncia”, se ele não deveria ser substituído por “retratação”. Entende-se que a renúncia refere-se à abdicação do ofendido ou representante legal do direito de promover ação penal privada (NUCCI, 2008). Assim, a renúncia somente existiria na inércia da vítima, sendo óbvio que isto deve ocorrer antes da denúncia. Por outro lado, o art. 102, CP, dispõe que a renúncia será irretratável após a denúncia. Estes apontamentos abrem duas hipóteses de audiências: a)

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o.

                                                                                                                                                                             

tal finalidade, antes do recebimento da denúncia”. O inciso I, do art. 12, também exige

que a autoridade policial tome a representação da ofendida a term

Apesar do debate no campo jurídico esbarrar na natureza da ação penal, a

questão de fundo é saber qual instrumento confere maior autonomia às mulheres e, ao

mesmo tempo, lhes garante segurança.

Aqueles que defendem a ação penal condicionada à representação afirmam que o

momento da renúncia, a audiência do art. 16, amplia a participação da vítima no

processo penal. De acordo com esta interpretação, as mulheres possuem discernimento

para escolher se devem ou não continuar o processo, já que vivenciaram a violência e

conhecem o agressor, são as mais indicadas a dizer se é necessário ou não a persecução

penal. Nesse sentido, não agiria para pressioná-las a desistir.17 Tal entendimento vem

sendo reafirmado pelo Superior Tribunal de Justiça.18

Para esta interpretação, a obrigatoriedade retira a liberdade da mulher, ferindo

seu direito de privacidade. Além disso, a renúncia realizada em audiência, perante um

juiz e a ouvida do Ministério Público, conforme o art.16, garante a manifestação livre da

mulher. Este posicionamento também afirma que não é possível obrigar as mulheres a

colaborarem com o processo penal, elas podem agir contra a elaboração de provas se

não desejarem mais a efetivação da persecução penal. Nesse sentido, a falta de indícios

da violência, o que é muito recorrente já que a violência doméstica ocorre entre portas

fechadas, exige uma confiança e colaboração da vítima. Caso contrário, assumindo a

ação penal pública incondicionada, os casos que antes terminavam por renúncia da

ofendida, teriam fim com incompreensíveis absolvições.19

 quando a vítima, ainda na delegacia, renuncia o direito da ação penal, o juiz deve chamar a audiência do art. 16 para ouvir a vítima e assegurar que não está sofrendo pressões; b) quando a vítima expressou sua vontade de representar criminalmente perante a autoridade policial, mas deseja desistir, o juiz a convoca para se retratar (também buscando a proteção da mulher). No Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher (JVDF), até 2010, aplicavam-se os dois “tipos” de audiências. Neste artigo, será utilizada o termo “renúncia”. 17 Parecer de Rafael Rocha Paiva Cruz, Defensor Público do Estado e Membro colaborador do NUDEM- Unidade São Vicente, presente no Boletim Informativo do NUDEM (Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher – Defensoria Pública do Estado) nº1. Disponível em <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/0/nudem-rgb.pdf> Acesso em 20.07.2010. 18 Habeas Corpus n.º 106805 – MS (2008/0109328-3) e Recurso Especial nº 1.097.042/DF 19 “Nuestro sistema da la siguiente respuesta contradictoria. Por un lado no admite que la mujer retire la denuncia, pues esto, se dice, supondría privatizar el conflicto y podría conllevar represalias mayores para la mujer. Pero, por otro lado, se procede a la absolución por falta de pruebas. Absolución de la cual además se culpabiliza a la mujer, pues se la presenta como la responsable, con su negativa a testificar, de esta absolución.( LARRAURI, 2008, p.125.)

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Outro argumento favorável a ação penal condicionada à representação defende

que a possibilidade de renunciar ou não a ação penal pode agir como um poder de

barganha face o agressor, invertendo os papéis de poder: “Certamente as chances de um acertamento do conflito entre as partes são muito maiores se a vítima tiver a faculdade de fazer uso, como instrumento de negociação, do direito de livrar o agressor do processo criminal”. (DIAS, 2008, p.120). “En la medida que algunas personas no entienden por qué la mujer decide, después de todo el trabajo realizado, retirar la denuncia, tienden a repetir esta historia como algo incomprensible, denigrando con ello a la mujer. Con este proceder desconocen que el proceso penal no es un objetivo en sí mismo y que la mujer lo usa como un medio más para conseguir cambiar su situación. En ocasiones su situación cambia con la sola amenaza del proceso y ello ya constituye de por sí una mejora, y no hay pues que sentirse frustrados.” (LARRAURI., 2008, p.97).

Do outro lado, existem operadores do direito, bem como a maior parte das

feministas, que defendem incontestavelmente a ação penal pública incondicionada.

Primeiramente, a reivindicação histórica do movimento feminista é o reconhecimento

da violência doméstica como uma questão de ordem pública, o que significa tirar a

mulher daquela situação isolada e de dominação do âmbito doméstica, para uma

compreensão de um problema social, que atinge muitas mulheres todos os dias.

Reiterado este ponto, admitir a ação condicionada à representação (re)privatiza o

conflito, a mulher se encontra novamente pressionada pela violência que sofreu, tendo

que ponderar entre seu sofrimento e a preservação da família, a qual tem a obrigação de

zelar.

Diante dessa pressão, a tendência é a mulher renunciar à representação. Ao

renunciar, mais uma vez a mulher pode não encontrar na justiça um verdadeiro apoio

para romper com a violência. Para evitar esta (re)vitimização, muitos juristas e muitas

feministas defendem20 que somente a ação penal incondicionada atende a real

vulnerabilidade em que as mulheres em situação de violência doméstica se encontram.

Este entendimento, recentemente tornou-se objeto da ADI-4424, proposta pelo

 20Flávio de Almeida Pontinha (Defensor Público do Estado e Membro colaborador do NUDEM- Regional Marília) em parecer do Boletim Informativo do NUDEM (Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher – Defensoria Pública do Estado) nº1. Disponível em <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/0/nudem-rgb.pdf>. Acesso em 20.07.2010. BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra mulher – Lei “Maria da Penha”: alguns comentários. ADV Advocacia Dinâmica, Seleções Jurídicas, n. 37, p. 1-9, dez. 2006. GONÇALVES, Ana Paula Schwelm; LIMA, Fauto Rodrigues de. A lesão corporal na violência doméstica: nova construção jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/8912>. Acesso em: 15 out. 2010 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Anotações críticas sobre a lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1146, 21 ago. 2006. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/8822>. Acesso em: 15 out. 2010.

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procurador-geral, Roberto Gurgel, defendendo-o como a única interpretação conforme

os preceitos constitucionais de dignidade humana e que segue a previsão de

interferência estatal no combate a violência doméstica (art. 226, §8º, CF).

Pesquisa recente, publicada no dia 07.12.2010, realizada pelo IPEA21 mostrou

que mais de 91% dos brasileiros são a favor que os casos de violência doméstica tenham

continuidade, mesmo se a mulher não apresente queixa22. O relatório da pesquisa, a

opinião favorável à ação incondicionada, só reforça o que estava na intencionalidade da

Lei 11.340/06, qual seja, tornar a violência doméstica um problema de todos, não uma

questão de “manifestação de vontade da vítima”.

Considerando estes dois posicionamentos e uma visão crítica do direito penal,

sabendo que muitas vezes ele atende mais a sua própria lógica do que aos interesses da

vítima, buscou investigar as razões que fazem as mulheres renunciarem a representação,

com o objetivo de entender qual é a melhor forma do Estado-penal interferir.

5. Razões para a renúncia à representação: o que afasta e o que aproxima as

mulheres do direito penal.

Neste capítulo reside o objetivo principal deste artigo: investigar as razões que

levam as mulheres a desistirem da ação penal, mais especificamente, renunciar a

representação. Para tanto, serão utilizados estudos que já se debruçaram sobre o tema e

uma curta experiência no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher

(JVDF) 23, na qual entrevistei quatro mulheres.

Durante o mês de julho de 2010, entrevistei quatro mulheres que compareceram

ao JVDF, instalado no Fórum Criminal da Barra Funda, para participarem da audiência

do art. 16 da Lei 11.340/06. Antes desta audiência, as mulheres são chamadas pelo

NUDEM para uma conversa com a psicóloga. Esta conversa não possui a intenção de

convencer a mulher a não renunciar, mas fortalecê-la, sanar dúvidas, perceber se não

 21  Sistema de Indicadores de Percepção Social, 2010, Igualdade de Gênero. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/sips_genero2010.pdf>. Acesso em: 25.11.2010. 22Para pesquisa, foi utilizada a expressão “queixa” porque é de fácil entendimento, mas ela se refere a queixa-crime e representação. 23 “O Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Fórum Central da Barra Funda, em São Paulo, foi criado pelo Provimento 1584/2008 do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça. Previsto no artigo 14 da lei 11.340/06, os custos do referido Juizado são arcados pelo Ministério da Justiça, por meio de parceria deste com o TJ/SP. De acordo com o provimento, trata-se de um anexo da 8ª Vara do Fórum Criminal.” (ALVAREZ,. 2010, p. 268.).

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está sofrendo pressões, enfim, orientá-la para uma escolha mais consciente. Apesar do

tempo limitado da conversa, este momento de reflexão e escuta é indispensável e pode

muitas vezes alterar a resolução do conflito24.

Após as conversas, as mulheres que decidiram pela renúncia eram encaminhadas

para a sala de audiência. Realizei as entrevistas25 após a audiência do art. 16.

Infelizmente, realizei poucas entrevistas e duraram em média vinte minutos. Todas as

vítimas sofreram os crimes de lesão corporal leve, mais ameaça e/ou calúnia e/ou

difamação. Assim, elencando as razões que levam as mulheres a desistirem da ação

penal, retratarei algumas passagens das entrevistas. No entanto, eram necessárias mais

entrevistas e mais tempo para observar a dinâmica do JVDF, o que pode ser

aprofundado em uma próxima pesquisa.

Vale ressaltar que identificar e estudar as razões pelas quais as mulheres

desistem da ação penal é relevante para pensar uma política criminal para a violência

doméstica. Também permite compreendermos melhor as idas e vindas da mulher ao

sistema penal, sem tratá-la como irracional, como alguém que não sabe o que quer

(LARRAURI, 2008). Nesse sentido, ajuda os profissionais da área a compreenderem o

que a mulher busca do Estado-penal, evitando a (re)vitimização (LARRAURI, 2008).

Por fim, entender tais razões, desafia os mecanismos do direito penal, os quais se

mostram insuficientes quando se trata de uma efetiva proteção à vítima.

5.1. Resultado imediato da medida protetiva

As medidas protetivas estão previstas nos arts. 18 a 24, da Lei 11.340/06, são

mecanismos inéditos que concretizam a intenção principal da Lei: proteger a mulher.

Entre as medidas mais procuradas estão: o afastamento do agressor do lar, proibição de

se aproximar da vítima ou familiares e a separação de corpos.

Uma das mulheres que entrevistei, chamada Rosa26 (53 anos), brigou com o

cônjuge porque ele não trabalhava. Segundo ela, a única discussão que tinham era em

decorrência do seu desemprego. Ela reclamava com ele, dizia que não agüentava mais.

 24 Não necessariamente levando a mulher a decidir por continuar a ação penal, mas ajudando a romper com o ciclo da violência doméstica. 25 A entrevista semi-estruturada com as mulheres apresenta as seguintes questões: a) como foi o atendimento na delegacia? O tratamento foi bom? Foi informada a respeito da representação?; b) por que resolveu fazer o boletim de ocorrência?; c) por que desistiu do processo?; d) acredita que mesmo desistindo do processo, valeu a pena ter procurado o sistema de Justiça? 26 Os nomes dados as mulheres entrevistadas são fictícios.

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E ele só sabia dizer “Calma, calma, eu vou arrumar um trabalho e vou embora, cuidar

da minha vida.” A situação foi ficando insustentável para Rosa, que não conseguia

mandá-lo embora e sentia explorada por ele. Pode-se dizer que se trata de um caso de

violência patrimonial (art. 7º, IV).

Na última discussão, antes de comparecer na delegacia, Rosa apanhou do seu

marido. Na delegacia manifestou interesse de fazer uso da medida protetiva de

afastamento do lar (art. 22, II), a qual foi cumprida. Rosa ficou satisfeita:

“Eles tiraram ele de lá... o que eu mais queria era que tirassem ele de lá. (...) Foi um

oficial de justiça e tirou ele de lá. (...) Mas agora ele ta cuidando da vida dele, ele

entendeu... se arrependeu muito do que ele fez. (...)

Consegui o que queria. A juíza, a primeira vez que vim aqui, ‘perguntou, a senhora

quer mesmo que tire ele de casa?’, eu disse: ‘eu quero’. ‘Quero que tire ele lá de dentro

da minha casa’. Tinha um advogado me defendendo... Aí o advogado me falou, “a

senhora quer mesmo que tire ele da sua casa?” Eu falei quero. A juíza disse: ‘No

mínimo, daqui cinco dias um oficial de justiça vai e tira ele’. E foi isso mesmo. Em 5

dias um oficial foi lá e tirou ele de lá.”

De acordo com relato, Rosa ficou satisfeita porque conseguiu o que mais queria:

tirá-lo de casa. Assim, quando questionada sobre o porquê estava renunciando,

respondeu: “Ele está cuidando da vida dele. Não me causou nenhum problema. E Deus

me livre guarde, mas se precisar eu volto de novo. Tranqüilo... Eu tenho coragem. (...)

Eu acho assim... que nem ele... que não está me dando problema... acho que pode

encerrar [o processo] não tem problema. Agora, se a pessoa tiver alguma dúvida e

tiver com medo, acho que deve continuar.”

Primeiro, cabe pontuar que para Rosa a medida de afastamento do lar foi

suficiente porque ela possui condições econômicas, inclusive é a proprietária da casa, e

não tem filhos com ele. Ocorre que a medida protetiva se encerra com a renúncia,

portanto, é falaciosa a de idéia que a mulher se manterá protegida27.

Por outro lado, acreditar que a medida protetiva pode ser suficiente para tratar da

violência doméstica retorna ao problema inicial, porque ela continua sem um

enfrentamento pelo Estado, sem receber uma dimensão de um problema social, afinal, o

Estado é o representante dos interesses sociais, nesta sociedade. Da mesma forma,

parece que o agressor não sofre uma reprovação social. Não que um mal se resolva com  

27 Nesse sentido, alguns defendem desvincular a medida protetiva do processo penal.

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a imposição de outro mal (como a pena privativa de liberdade), mas a violência

doméstica, naturalizada e generalizada na sociedade, não pode voltar a ser vista como

uma questão privada, o que significa aceitar que as mulheres tenham uma vida marcada

pela violência28.

A pesquisa do IBCCrim, já referida, também pode constatar que as medida

protetivas satisfazem as vítimas. “No que tange o grau de satisfação das vítimas com

relação aos resultados das audiências, a aplicação das medidas de proteção foi

determinante.” (ALVAREZ, 2010, p. 270).

As medidas protetivas também satisfazem as mulheres porque elas cumprem um

papel de intimidação, outra função que as mulheres buscam no sistema penal.

5.2. O “susto” no agressor ou o poder intimidatório do direito penal

As mulheres tendem a minimizar a violência que sofrem, não querem “revidar”,

mas apenas “assustar” os parceiros, por isso, apostam na utilização do efeito

intimidatório do direito penal. Também buscam este efeito intimidatório porque, muitas

vezes, não desejam a separação, querem que o companheiro pare de beber, que ele seja

mais carinhoso, que a violência cesse, etc. Esta busca do direito penal para mudar os

homens é presente nas falas das entrevistadas. Rosa afirma: “Ah, valeu a pena, porque

agora ele nunca mais vai fazer algo de errado não. Acho que para ele foi uma lição.

Espero que tenha sido.”

Fátima, 49 anos, foi violentada pelo filho e pelo marido e conta que já deve ter

renunciando cinco vezes. No boletim de ocorrência consta que o marido e o filho se

queixaram dela porque ela “não lhes prepara refeições rotineiras”. Quando questionada

sobre a importância de ter recorrido à delegacia, responde: “Foi importante. O delegado

chamou a atenção dele. (...) Eu acho que dessa vez foi diferente porque eles iam ser

presos em flagrante. Acho que pressiona sim. Esta semana ele chorou quando ele falou

que eu vinha aqui. Acho que faz diferença sim.”  

28 Certa vez, eu tive a oportunidade de conhecer um assentamento do MST (Movimento do Trabalhadores Sem-terra). O movimento resolve as questões envolvendo conflitos domésticos convocando uma assembléia, para avaliar as conseqüências dos fatos e tomar providências. A medida mais extrema pode ser banir o agressor do assentamento. Independentemente disto acontecer em todos os assentamentos ou naquele específico, a questão é: a violência doméstica é tratada como um problema de todos, público. Com isso, se estreitam os laços entre as pessoas, ninguém compadece ao saber que uma mulher está apanhando em casa, como nas grandes cidades. 

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Já no caso de Claúdia, 50 anos, o “susto” que quis dar no filho foi o principal

motivo que a levou à delegacia. Ela chegou um dia em casa, o filho estava bêbado e

agrediu-a, ou seja, para dar uma lição no filho buscou a delegacia. Segundo ela: “Serviu,

tanto para ele como para os amigos dele”29.

Marilda de Oliveira Lemos, em tese recente de pós-graduação sobre o

tratamento da violência doméstica nas delegacias defesa da mulher, também traz muitos

relatos de delegadas/os e escrivãos (ãs) que confirmam que as mulheres, muitas vezes,

só desejam que o homem receba uma “bronca”. Ela também questiona com ironia “há

excesso de respeito [a vontade da mulher] e uma falta de orientação?” (LEMOS, 2010,

P.122).

5.3. Não querer prejudicá-lo: o medo da detenção do agressor

Todas as entrevistadas também apontaram que um dos motivos da desistência

era não desejar prejudicar o agressor. Maria, 35 anos, apanhou do cônjuge por motivos

de ciúmes e o único motivo para renunciar foi não querer prejudicar o agressor. Rosa,

que ficou satisfeita com a medida protetiva, também não deseja prejudicar o réu:

“Porque... também ele ficando com nome na justiça é ruim. Já que ele não está dando

problema não vejo porque deixar... Se tivesse me ameaçando, qualquer coisa assim, eu

não tiraria não. Eu juro para você, que eu não tiraria. Mas ele não está fazendo nada.

Ele parou, está no canto dele. Agora, ele sabe que eu não quero nada com ele.”

Fátima, que apanhou do marido e do filho, não representou criminalmente, bem

como não permitiu a prisão em flagrante, porque o seu filho esta cursando faculdade e

não deseja prejudicá-lo:“Eu não deixei [prender em flagrante] porque meu filho esta

fazendo a faculdade dele, está para terminar. Eu pensei em tudo isso e eu não tive

coragem. (...) Sim, é para proteger meu filho. Senão ele não vai pegar nem o diploma

no fim do ano. Eu não quero ser a responsável dele estudar 4 anos e depois ele não

pegar o diploma. Ele se esforçou, muito para pagar. Eu não paguei. Eu não agüento

trabalhar mais. Eu to com vários problemas.” Claudia também deixou de representar

porque não queria prejudicar o agressor: “Eu tô desistindo porque mãe não prende

filho”.

 29 Vale ressalvar que o caso de Claúdia é uma exceção, ele foge dos casos recorrentes e generalizados que a Lei pretende resguardar.

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Estes relatos, bem como outras pesquisas, demonstram que a pena privativa de

liberdade não é a resposta que as mulheres, na maioria das vezes, buscam. Tal reflexão

será aprofundada a seguir.

5.4. Vínculo com os filhos

Nos relatos de Claudia e Fátima, retratados a cima, a proteção aos filhos aparece

como uma das razões para renunciarem ao processo. Nestes casos os filhos são os

agressores, mas existem situações em que a mulher mantém o relacionamento violento

para manter um suposto bem estar dos filhos. Por outro lado, algumas só rompem a

violência, quando ela atinge os filhos. De qualquer modo, os filhos possuem uma

centralidade na vida da mulher e muitas vezes passam a ser extensão do seu “eu”, ao

ponto de se excluírem. A mulher acaba decidindo por ela e pelos seus filhos.

Nesse sentido, a necessidade de representação vitimiza a mulher novamente, já

que ela não quer ser a responsável pela criminalização do pai de seus filhos.

5.5. O medo das represálias

As mulheres entrevistadas não demonstraram que o medo às represálias era uma

razão para a não representação. Mas, certamente, temeram represálias. As situações em

que o agressor ameaça as mulheres para que renunciem são freqüentes. Depois que a

vítima recorre ao judiciário, o agressor tentará dissuadi-la. São nestas situações que as

medidas protetivas assumem um papel de grande importância. Primeiro, tem um papel

simbólico de afirmar para o agressor que o direito está do lado da mulher. Depois, tem o

aspecto material, se o agressor descumprir a medida protetiva existe a possibilidade de

prisão preventiva.30 É óbvio que isto depende de um compromisso com a fiscalização

das medidas protetivas pelas agências de controle formal31.

5.6. Dependência econômica

 30 “Simbólica, porque permite confirmar a la mujer que ella tiene razón y que el sistema penal está de su lado. Instrumental, porque el agresor sabe que en caso de acercarse a la mujer ello será considerado un delito que permitirá su arresto inmediato por parte de la policía.” ( LARRAURI., 2008, p.105). 31 A morte da cabelereira Maria Islaine é um caso típico de falta de fiscalização. O ex-marido estava proibido de aproximar da ofendida, mas foi morta no próprio local de trabalho, em janeiro de 2010. 

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A única entrevistada que demonstrou dificuldade econômica foi Fátima, que

diz: “Se eu tivesse condições, se eu tivesse um trabalho, eu preferia ficar sozinha.” Ela

também relata que se vender a casa, não quer dar metade para ele. Sem dúvida, a

desigualdade econômica da mulher face ao homem é um obstáculo para romper com o

ciclo de violência, bem como levar adiante o processo criminal.

A intervenção do direito penal é limitada. Por isso, a Lei Maria da Penha prevê

políticas públicas para as mulheres vítimas de violência doméstica. É preciso articular o

sistema penal com as políticas públicas, por exemplo, apoios econômicos às mulheres.

Sem estas medidas, não é possível garantir a independência da mulher que sai de uma

relação de violência.

5.7. O próprio sistema penal

Apesar das mulheres entrevistadas não apresentarem reclamações sobre o

atendimento sobre a delegacia, o NUDEM ou a autoridade judicial, será que o próprio

funcionamento do sistema de justiça penal não afasta as mulheres?

Mesmo não havendo reclamações diretas das mulheres, identifica-se um

descompasso entre o que elas buscam e a resposta do direito penal, quando apontam

como um dos motivos para não efetuar a representação o medo de prejudicar o agressor.

Quando perguntei a Rosa se ela tinha medo do seu ex-marido ser preso, imediatamente,

ela respondeu: “Eu não, porque eu sabia que ele não tinha feito nada de grave para ser

preso. Eles fazem pressão, porque querem que a pessoa sai mesmo. Mas eu tinha

certeza, preso ele não ia. Magina, ele nem matou, num fez nada.”

Rosa não só não desejava que o ex-marido fosse preso, como também sabia que

ele não seria. Ela minimiza a violência que sofreu. A maior criminalização do autor, a

resposta mais fácil que o direito penal pode oferecer, não significa uma maior proteção

à vítima32.

Para a criminóloga Elena Larrauri, o direito penal não deve ser o único caminho

disponível para a solução da violência doméstica, já que ele conhece somente uma

forma de intervenção e cria rótulos para as mulheres que não a aceitam: irracional,

 32 “Por fim destaca-se que a pesquisa evidenciou que os interesses das vítimas nos diferentes contextos empíricos abordados não se confundem necessariamente com a punição daquele que cometeu o crime. Diferentemente, o que está em jogo é a superação do fato...” (ALVAREZ, 2010, P. 286). 

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provocadora, utilitarista... Larrauri acredita que a mulher pode resolver a situação de

violência por outros meios e, por isso, deseja desistir do processo. Ela cita exemplos de

situações nas quais as mulheres foram criminalizadas porque não colaboraram com a

persecução penal ou porque elas mesmas descumpriram medida protetiva, por exemplo,

indo visitar o agressor (LARRAURI, 2008).

Estes limites das respostas que o direito penal pode oferecer são pressionados

pelas demandas das mulheres. O mecanismo de neutralização da vítima não funciona

com as mulheres, porque elas desejam ser ouvidas e buscam a desaprovação da conduta

violenta do homem pelo Estado. Isto não quer dizer que a maior participação da vítima

seja uma questão exclusiva dos casos de violência doméstica. Contudo, a

particularidade dos conflitos domésticos, torna indispensável à participação da mulher

violentada, que ela relate a sua versão sobre os fatos. Até para que ela possa colaborar

com as medidas judiciais. E, mais ainda, para a mulher ver reconhecida a violência que

sofreu enquanto uma violação da sua dignidade.

Deste modo, para que o próprio direito penal não se torne um obstáculo para a

mulher, ela deve ser parte processual e ter assistência judiciária, como garante a Lei

Maria da Penha (art. 27 e 28). Na dinâmica do processo penal atual, se a vítima não se

constitui como parte, não tem conhecimento do processo. Embora o art. 2133, para

reverter tal prática, estabeleça que a ofendida deva ser notificada de todos os atos

relativos ao agressor.

O sistema penal pode ser mais um obstáculo para a mulher se ela não estiver

bem assessorada. Sem uma correta orientação, a mulher sentirá que foi inútil ter

recorrido ao judiciário, terá a sensação de impunidade e poderá não utilizar todos os

recursos possíveis. Por isso, o art. 28 da Lei 11.340/06 garante o acesso a Defensoria

Pública à mulher. Ocorre que não adianta ser qualquer orientação, é preciso que seja

especializada, como o NUDEM: “O grande diferencial do JVD em relação às varas criminais com competência para o processamento de casos de violência doméstica reside na prestação efetiva de assistência judiciária para a vítima que é oferecida gratuitamente pelo Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (NUDEM/DPESP), contando, pois, com profissionais especializados sobre o tema.” (ALVAREZ,. 2010, p. 272.)

 33 Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público.

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Outro aspecto presente no sistema penal que afasta as mulheres é a desconfiança

das suas declarações34, produto de uma visão machista. A violência doméstica,

principalmente envolvendo abuso sexual, ocorre “entre quatro paredes”, a palavra da

mulher acaba valendo contra a palavra do homem. O testemunho da mulher, como dito

acima, é elemento importante nesses casos. Acontece que existe uma tradicional

desconfiança dos profissionais das agências de controle às mulheres. Eles suspeitam que

as mulheres queiram obter vantagens ou procuram vingança, além de tentarem provar

que a mulher provocou a violência (“Por que estava de mini-saia?”). Olvida-se que o

sentimento de vingança não retira a veracidade dos fatos, muito menos justifica a

violência. Esta desconfiança (re)vitimiza a mulher, novamente.

Por fim, é preciso refletir se a obrigatoriedade do direito penal como solução do

conflito, valendo-se da ação penal pública incondicionada para todos os casos de

violência doméstica, é um impedimento ou não para as mulheres recorrem ao sistema

penal. Nesse sentido, não restam dúvidas que a mulher não deve ser criminalizada se

não desejar colaborar com o processo, isto distorceria totalmente o objetivo da Lei

Maria da Penha. Mas como o sistema penal compreende esta conduta ambígua? Os

profissionais no sistema penal não entenderão esta conduta enquanto não

compreenderem as idas e vindas do ciclo da violência doméstica, enquanto não

romperem com uma ideologia patriarcal. Não se deve subestimar a complexidade da

violência doméstica.

Também não adianta os casos que antes iam para “lista de renúncias”, serem

deslocados para a “lista de absolvições”. Para LARRAURI, quem melhor pode decidir

se o caso deve continuar ou não é o juiz: “A salvo de ulteriores reflexiones entiendo que es precisamente el juez, en base a un juicio individualizado, quien, ponderando la situación concreta y sin criminalizar a la mujer, debe poder optar por continuar el proceso con una condena previsible o por atender las demandas de la mujer e interrumpirlo. Si el juez ejerce la opción de no atender a las demandas de la mujer e interrumpir el proceso, ello no debería conllevar una absolución por falta de pruebas.” (LARRAURI, 2008, p. 124).

Esta proposta é insuficiente porque a mulher dependeria da arbitrariedade do juiz

para ter sua demanda acolhida ou não, e a tendência seria cair na situação de

banalização da violência doméstica, como ocorria nos JECRIMs. O enfoque deve ser na

 34 “É, pois, por motivos frívolos e absurdos que as leis não admitem em testemunho nem as mulheres, por causa de sua fraqueza, nem os condenados, porque estes morreram civilmente, nem as pessoas com nota de infâmia, porque, em todos esses casos, uma testemunha pode dizer a verdade quando não tem nenhum interesse de mentir.” (BECCARIA, 2003, pp. 31-32). 

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criação de um juizado especializado, na assistência judiciária qualificada, no

atendimento multidisciplinar e nas medidas de segurança para garantir que o direito

penal não seja um obstáculo para a mulher. Este tratamento especializado permite

atender as mulheres de acordo com suas demandas.

6. Considerações finais

A partir das poucas entrevistas realizadas e da pesquisa bibliográfica, nota-se

que as mulheres não buscam no sistema penal a pena privativa de liberdade do agressor.

Contudo, isto não quer dizer que a Lei Maria da Penha não está funcionando, nem que o

direito penal não possa ampliar as respostas que oferece. Dentre o conteúdo explorado

no artigo, é possível extrair três eixos para a conclusão: a) gênero; b) participação da

vítima; c) uso do direito penal.

a) Gênero

O desafio central, para combater a violência doméstica, é entender as relações de

gênero. É necessário romper com uma visão patriarcal e perceber que existem relações

desiguais de poder entre mulheres e homens. Por isso, romper com a violência

doméstica passa por romper com o lugar de submissão das mulheres. As inúmeras

razões que fazem as mulheres renunciarem, também são as razões que as mantém nas

relações violentas.

Além disso, relações afetivas e íntimas não conseguem ser rompidas tão

facilmente, existem sentimentos ambíguos, de raiva e esperança por mudança, ao

mesmo tempo. Compreender o ciclo da violência doméstica também é imprescindível

para não culpabilizar a mulher pela violência que sofreu, bem como não rotular de

irracional a mulher que vai visitar o agressor, descumprindo medida protetiva, ou que

paga fiança para ele.

A Lei Maria da Penha foi criada para proteger as mulheres em situação de

violência doméstica, portanto, os profissionais que trabalham com ela precisam saber o

que é e como funciona este tipo de violência, somente assim, estarão qualificados para

orientar a mulher e atender suas demandas.

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A proteção à mulher não quer dizer necessariamente retirada da sua autonomia,

ainda mais, se for acompanhada por uma ampliação na sua participação no processo

penal.

b) Participação da vítima

A mulher vítima de violência doméstica amplia os debates sobre participação da

vítima no sistema penal, traz à tona tudo o que os teóricos mais progressistas da

criminologia discutem: a desconsideração da vítima, a falta de escuta, o não

atendimento aos interesses da vítima, etc. No entanto, na maioria das vezes, eles

discutem sem uma perspectiva de gênero, sem considerar a violência doméstica como

um problema que deve ser enfrentado.

A Lei Maria da Penha possui instrumentos para assegurar esta maior

participação da vítima, como a garantia de assistência jurídica pública, também procura

aproximar os interesses das vítimas, por meio das medidas protetivas. A previsão para a

criação de um Juizado de Violência Doméstica e Familiar, com competência para

executar causas cíveis e criminais, também foi elaborada a partir de uma compreensão

do interesse das vítimas. Também o atendimento multidisciplinar é uma medida que

vem para suprir as necessidades da mulher vítima de violência doméstica.

A pesquisa do IBCCrim bem retrata que as mulheres conseguem participar mais

do processo quando estão assessoradas pelo NUDEM. Nas audiências conseguem ser

ouvidas, fortalecendo-as: “Algumas vítimas utilizaram o espaço da audiência – nas poucas vezes em que foi dada a oportunidade – para falarem aos agressores, o que não conseguiam em outro contexto. Um dos casos acompanhados pode ser citado como um exemplo: o marido, que estava preso por ter descumprido medida protetiva, chegou algemado à audiência de instrução. A vítima foi ouvida sem a presença do agressor e, após dar sua versão sobre o fato, pediu para falar ‘algumas coisas na frente dele [agressor]’”. (ALVAREZ, 2010, p. 267).

Também se verificou que abrir mais espaço às vítimas e atender aos seus

interesses não significa cair no populismo penal. Pelo contrário, muitas vezes, as

próprias vítimas temem a pena privativa de liberdade e os estigmas que o direito penal

podem gerar ao agressor.

c) Uso do direito penal

Apesar das garantias que a Lei 11.340 prevê às mulheres e dos exemplos

positivos da sua implementação, muitas vezes, a sua utilização pelo sistema penal não

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consegue retirar a mulher da violência. As mulheres acabam desistindo do processo

criminal, pelas diversas razões que foram apresentadas. No entanto, este “vai-e-vem”

das mulheres no sistema penal não deve servir como justificativa para fechar as portas

deste mecanismo.

A pena privativa de liberdade não é a resposta, na maioria das vezes, que as

mulheres buscam e, além disso, o próprio funcionamento do direito penal as afasta.

Sobre este aspecto deve-se pensar até que ponto a exigibilidade da representação não é

um obstáculo para as mulheres. Afinal, as mesmas razões que as impedem de

representar, também são as razões que as pressionam para não recorrer ao sistema penal.

Assim, cria-se uma segunda barreira para a mulher se ver livre da violência.

Em contrapartida, alguns afirmam, como Larrauri, que a ação pública

incondicionada pode limitar as possibilidades de solução do conflito, já que impõe a

persecução penal (LARRAURI, 2008). Nesse sentido, já que a Lei 11.340/06 assume

um viés mais protetivo à vítima, na hipótese de solução do conflito por outro meio, que

não o sistema penal, não era o caso de concordar com a desistência da ação penal?

Ressalta-se que resolver o conflito de outra maneira significa, obrigatoriamente,

privatizá-lo. Já que na atual sociedade, o Estado, por meio da sua face penal,

supostamente tutela valores e interesses comuns a todos. As mulheres, antes da Lei

Maria da Penha, recorriam ao sistema penal, como meio disponível para solução de

conflitos, mas sistematicamente eram humilhadas, devido à naturalização da violência

doméstica presente na sociedade e nas agências de controle formal. A Lei Maria da

Penha vem para afirmar para Estado-penal que ele possui responsabilidade no

enfrentamento da violência doméstica.

Tendo o Estado-penal esta responsabilidade deve encontrar a melhor resposta

para executá-la e não devolver à mulher, novamente, toda a pressão do conflito. De

forma positiva, as mulheres questionam, indiretamente, a resposta oferecida pelo

sistema penal (a pena privativa de liberdade), assim, obriga-o a oferecer outras respostas

às mulheres, levantando uma discussão sobre teoria da pena. Ademais, as mulheres

revelam que a resposta prisional somente é bem aceita dentro daquele paradigma usual

de crime, onde vítima e réu não se conhecem e possuem um abismo social que os

distanciam.

Parece também que abrir espaço para maior participação da vítima significa

privatizar o conflito, deixar para que as duas partes resolvam. Privatizando o conflito

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uma das partes ficará sobrecarregada (OLIVEIRA, 1999, p. 169). É necessário

compatibilizar a participação da vítima, garantindo espaços para que ela interaja, mas

sem abandonar o caráter público do conflito.

Por fim, é sabido que o sistema penal é seletivo e dirigido para manter o “status

quo”, mas pode ser utilizado taticamente para combater uma opressão. Sobre esta

questão, Zaffaroni, acertadamente, aponta: “Ninguém pode reprovar a vítima que use uma tática oriental muito antiga, isto é, a de valer-se do próprio poder do agressor para se defender, mas que sempre leve em conta que esse poder, seja qual for o uso que dele se faça, em última análise, não perde seu caráter estrutural de poder seletivo”. (ZAFFARONI, 1995, p.38)

A escolha pelo direito penal para o tratamento da violência doméstica é tática e

vem para garantir um instrumento de defesa das mulheres. Cabe, agora, o sistema penal

refletir sobre os desafios que possui para o enfrentamento desta violência, que é um

problema de todos.

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