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1. Introdução.2. Relações de trabalho.

3. Condições socia is.

-•••••'WV')O Maria Thereza Venuzo*....,C '"Licenciada em Ciências Sociais pela USP.

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R. Adm. Emp., Rio de Janeiro,

o aparecimento de A oaaaceira de José Américade Almeida, em 1928, marca o reinício do roman-ce social do Nordeste, numa aparente continui-dade da temática do Romance do Norte. FranklinTávora, Manoel de Oliveira Paiva e outros escri-tores menores já tinham, entre 1880 e 1900, pu-blicado obras que levantam problemas do canga-ço, do latifúndio, etc. No entanto, as análises agorasão mais complexas; não contém apenas elemen-tos exóticos, mas procuram analisai' a sociedadecomo um todo ou parte desta sociedade. O mun-do do cacau (Jorge Amado), ou do açúcar (JoséLins do Rêgo) , ou da migração rural (AmandoFontes), etc., aparecem analisados com um ca-ráter intencional.

Memória e ficção surgem como traços domi-nantes desta expressão: a visão de um Jorge Ama-do ou de um José Lins do Rêgo reproduz, namaior parte das vezes, suas vivências passadas.O segundo deles confessà na sua autobiografia -Meus verdes anos - a ligação entre memória eliteratura, o que nos leva a verificar a importân-cia e o sentido de sua experiência. Tanto o Cicloda cana-de-açúcar, como seus outros romances doNordeste, são praticamente retratos fiéis de umarealidade, vista através da sua sensibilidade lite-rária e humana.

Sabemos que para uma utilização válida daobra literária como conhecimento da realidade éessencial que á estrutura da obra tenha seu sigonificado próprio e relação com uma realidade so-cial concreta.

A obra pode então ser reconduzida à realidade,e explicada pelos compromissos que tem com oexterior,

Em sua obra do Ciclo da cana-de-açúcar, Josépressão de uma visão do mundo coincide com omeio em que o escritor esteve em contato irne-diato durante uma parte considerável de sua vida.

Em sua obra do Ciclo da cana-de-açúcar, JoséLins do Rêgo retrata um universo concreto de se-res e de coisas. A partir da sua maneira de ver esentir este universo, ele encontrou a forma ade-quada para criar e expressar esse mesmo universo.Sua criação literária coincide com ° conjunto doprocesso e da evolução histórica brasileira, namedida em que coloca os problemas mais geraisda época: o latifúndio, as relações de trabalho,as relações sociais na estrutura agrária do açúcar.

Não pretendemos mostrar neste trabalho oaspecto literário ou autobiográfico da obra doparaibano José Lins do Rego, mas as relações detrabalho e as condições sociais de existência nos

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Classes rurais e nordeste uma visão de José Lins do Rêgo

engenhos de açúcar, tal como são descritas emsua obra.

Aproveitamos a reprodução que o autor faz deambientes e de indivíduos, homens determinadospelas circunstâncias exteriores, notadamente peloambiente em que vivem,e adaptados ao pequenomundo do engenho, que é sua realidade imediata.

Deixamos de lado, propositadamente, duasobras que se encontram intrinsecamente ligadasao assunto - Fogo morto (1943) e Meus verdesanos (1956) - porque achamos que seus primei-ros romances levantam com muita clareza os ele-mentos essenciais que objetivam nossa análise.Assim, utilizamo-nos somente dos romances doCiclo da cana-de-açúcar, isto é, Menino de enge-nho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934), Mo-leque Ricardo (1935) e Usina (1936).

Esses livros descrevem um processo de produ-ção geral do Nordeste, isto é, a cultura do açú-car. A ação situa-se numa época em que a antigapropriedade do engenho vai deixando de existir,sendo gradativamente superada pelo sistema mo-derno da usina. A trama passa-se especificamentena Paraíba e Pernambuco, entre fins do séculoXIX e início da década de 20. A localização dosproblemas no espaço e no tempo permite-nos umavisão mais real do seu mundo. Porém, como pre-tendemos somente analisar uma parte do meiorural - o engenho - deixamos de lado todas asquestões referentes à usina e também à proble-mática urbana que se desenrola em Cabedelo eno Recife.

Após a Abolição da Escravatura, na grande la-voura canavieira do Nordeste, o sistema de pro-priedade e suas formas de exploração passam porum período que se caracteriza pela coexistênciade formas antigas e modernas de produção. Istoacontece devido à lentidão do processo de supe-ração dos antigos engenhos. Durante muito tem-po, o engenho apresenta condições para resistira uma forma moderna de economia.

Em pleno século XX, encontramos ainda o en-126 genho como um pequeno mundo isolado, conser-

vando traços de economia independente, sua tec-nologia é suas formas de remuneração do tra-balho.

As outras culturas do engenho, de expressãolocal e de valor econômico mínimo existem parafazer predominar o sistema de exploração dagrande mão-de-obra ocupada com a produção açu-careira, a mais lucrativa de todas as formas agrí-colas existentes. A concentração de grande massade trabalhadores numa unidade produtora criaum sistema típico de organização agrária.

Forma-se um tipo de exploração rural sepa-rado da grande lavoura. O senhor de engenho

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cedendo aos seus servidores o direito de se esta-belecerem e explorarem uma parte inaproveitada.de seu domínio, exige em troca a prestação deserviços. Desenvolvem-se, então, relações entre oproprietário e os trabalhadores sem terra, emdecorrência do sistema de exploração da terra edas condições do meio natural.

Do tipo de organização da lavoura e do traba-lho deriva toda a estrutura do engenho: a dis-posição das categorias sociais de sua população,isto é, o conjunto das relações sociais.

Delimitado o nosso campo, vejamos- os proble-mas como se apresentam. Para isto, achamos ne-cessário mostrar, antes de mais nada, a proble-mática geográfica: numa sociedade agrícola, arelação com o meio natural é fundamental. Mes-mo que o homem possa agir contra a natureza,modificando certos elementos naturais - irriga-ção, destruição de matas, etc. - sua vida é re-gulada pelas estações e pelas condições geográfi-cas gerais. Daí, nossa necessidade de localizaçãodo fenômeno estudado e o levantamento destedado inicial e fundamental.

A ação passa-se no vale do rio Paraíba do Nor-te e o fator geográfico aparece representado aí,em toda sua complexidade. Aparecem descritosacidentes geográficos típicos, representados nolatifúndio de José Paulino. Esses elementos so-mados dão-nos uma visão conjunta do fenômeno.

O "Santa Rosa", nome do latifúndio de JoséPaulino, é o resultado da compra de algumaspropriedades "hipotecadas aos judeus da Paraí-ba". Pela sua extensão torna-se uma das maioresbenfeitorias da zona. Sua sede e suas atividadesaçucareiras localizam-se no vale, enquanto outrostipos de atividades se desenvolvem no agreste.Suas terras estendem-se por léguas e léguas denorte a sul. "Tudo o que tinha era para comprarterras e mais terras. Herdara o Santa Rosa pe-queno, e fizera dele um reino, rompendo seuslimites pela compra de propriedades anexas.Acompanhava o Paraíba com as várzeas exten--sas e entrava de caatinga adentro. Ia encontraras divisas de Pernambuco, nos tabuleiros da Pe-dra de Fogo. Tinha mais de três léguas de estre-ma a estrema. E não contente de seu engenho,possuía mais oito, comprados com os lucros dacana e do algodão."?

Temos, pois, no latifúndio de José Paulino, duaszonas distintas: a várzea e o agreste. Como sa-bemos, na Paraíba existe uma interligação entreessas zonas, devido ao problema da formação geo-lógica.

Na Paraíba e no Rio Grande do Norte, "a matapropriamente dita é restrita às várzeas dos riosque desaguam no Atlântico, enquanto nas en-

costas e nos interflúvios plenos que separam asbacias fluviais, dominam as associações vegetaissemelhantes, e chamadas localmente de tabulei-ros",«

Essa caracterização determina atividades agrí-colas e humanas diversas. Ao problema do soloprecisamos acrescentar o 'do clima e o da água.O clima apresenta duas estações distintas: a daschuvas e a das secas. A delimitação baseada nes-tes aspectos exteriores é que caracteriza clima-ticamente a região. O inverno, isto é, a épocadas precipitações pluviais é o momento do pre-paro da terra, do plantio, da germinação; a épocadas secas, isto é, o verão, é o momento da colhei-ta, do fabrico do açúcar, etc. José Lins do Rêgodescreve a natureza como fenômeno telúrico, on-de fecundidadeda terra e existência humana apa-recem interligadas: "a chuva chegava com pin-gos de furar o chão, e chovia dia e noite sem pa-rar. As primeiras chuvas do ano faziam uma fes-ta no engenho. O tempo armava-se com nuvenspesadas, fazia um calor medonho. ( ... ) O meuavô ficava pelo alpendre a contemplar o céu, ba-tendo com a vara de [ueá pelas calçadas. Era suagrande alegria: a bátega d'água amolecendo obarro duro dos partidos, a enverdecer a folhaamarela das canas novas. Nas primeiras panca-das do inverno, os cabras deixavam o eito paratomar uma bicada na destilação.Vinhamgritandode contentes, numa alegría estrepitosa de bichos.Mas isto somente nas primeiras chuvas".3

A constância das chuvas pode ser quebrada àsvezes por uma grande estiagem. No verão, o riofica seco, apresentando apenas alguns poços noseu leito para vencer esta estiagem. Ficaram namemória dos personagens secas famosas como ade 1877.Por sua vez, as enchentes excessivasnãosão constantes, mas algumas também ficaram nahistória pela destruição que .acarretaram.

A base geográfíca condiciona todas as formasde cultura material, mas elas só podem ser com-preendidas como resultado de um processo his-tórico anterior, que se desenvolvedesde a épocacolonial. O que interessa a José Lins do Rêgo,n? entanto, não é o passado, mas sua condiçãopresente.

A determinante geográfica continua a ser pre-ponderante quando o autor descreve o aprovei-tamento do solo pelo homem: várzea e tabuleirosexigem diversificação das culturas. Como disse-mos anteriormente, o, Santa Rosa de José Pau-lino engloba essas duas áreas e a complexidadede tarefas torna seu latifúndio um exemplo. Oplantio do milho, do algodão e o pastoreio apare-cem como atividades secundârias, enquanto quea cana é o produto fundamental.

A cana ocupa as melhores terras e absorve amaiorparte das atividades humanas. Mais exi-gente em relação ao solo, ela requer umidade epor isso é cultivada nas várzeas e terrenos maisférteis. O cultivo da cana na várzea também fa-cilita o transporte do produto para os locais damoagem.

Por sua vez, os roçados de algodão de JoséPaulino eram plantados na caatinga, longe dacasa-grande. "Cem sacos de lã arrancava dali,milhares de alqueires de milho, e carros e maiscarros de jerimuns vinham para os porcos.:'-

2. Relações de trabalho

A diversificaçãoagrícola explica relações de pro-dução específicas: a cana, que é planta perma-nente, exige concentração de trabalho e técnicamais aperfeiçoada; as culturas dos tabuleiros -algodão e milho - que têm a duração de meses,permitem um sistema de trabalho mais simples.

Plantada em junho ou julho, a cana precisade várías limpas anuais. No tempo da limpa, emcada partido trabalhavam mais ou menos 80 ho-mens, comandados por um feitor, que .de cacetena mão, ficava "reparando no serviço deles".Eram doze horas de trabalho pesado. Só para-vam às 10 horas da manhã, para almoçar fari-nha seca com bacalhau e carne-de-ceará assadacom farofa.

Esses homens - os trabalhadores de eito -são em parte ex-escravos.Têm a obrigatoriedadede trabalhar três dias por semana para José Pau-lino, ganhando 1200 réis por dia. Nos demaisdias podem trabalhar para si próprios, plantandomandioca, jerimuns, batata-doce, etc. Essas la-vouras são feitas nas terras férteis das vazantes'do rio. Geralmente são as mulheres que traba-lham nos roçados, enquanto os homens descan-sam do trabalho no eito.

A situação é bem pior em outras fazendas daredondeza. Na propriedade do Sr. Lourenço, ir-mão de José Paulino - Gameleira - localizadanas terras mais pobres da caatinga, os trabalhardores de eito não têm regalias pessoais e nenhu-ma plantação para uso próprio, vivendo somentede suas díárías,

Na colheita da cana, o engenho começa a pro-duzir açúcar. A "botada", isto é, a época da sa-fra, é o momento de festas, produção e dinheiro.Nessa época, José Paulino não descansa: "mon-tava a cavalo para ver o corte, gritava para oscarreiros, para o maquinista, mandava recadospara o mestre-de-açúcar, para os caldeireiros.( ... ) No outro dia, quando o engenho apitasseàs três horas da madrugada, ele estaria lá. Erao primeiro que chegava. E à noite só deixava o

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serviço quando batiam a última têmpera".6

O processo de fabricação de açúcar é muito.rudimentar e assemelha-se à experiência do pas-sado, o que explica a pouca produtividade e amá qualidade do produto. "Ficava a fábrica bemperto da casa-grande. Um enorme edifício de te-lhado baixo, com quatro biqueiras e um bueirobranco, a boca cortada em diagonal. ( ... ) Vol-tei-me inteiro para a máquina, para as duas bo-las giratórias do regulador. Depois comecei a veros picadeiros atulhados de feixes de cana, o pes-soal da casa de caldeiras. Tio Juca começou ame. mostrar como se fazia o açúcar. O MestreCândido com uma cuia de água de cal deitandonas tachas e as tachas fervendo, o cocho com ocaldo frio e uma fumaça cheirosa entrando pelaboca da gente. [Na casa de purgar] dois homenslevavam caçambas com mel batido para as for-mas estendidas em.andaimes com furos. Ali man-dava o purgador, um preto, com as mãos metidasem lama suja que cobria a boca das formas. Meutio explicava como aquele barro preto fazia oaçúcar branco. E os tanques de mel-de-furo comsapos ressequidos por cima de uma borra ama-rela, me deixaram uma impressão de nojo.?"Comovemos, José Lins do Rêgo apresenta todosos elementos humanos da estrutura agrícola doaçúcar: trabalhadores de eito e feitnressão res-ponsáveis pelo sistema de plantio, limpa e 'corte;cambiteiros e carreiras transportam a cana parao engenho. Depoistemos o maquinista, o mestre-de-açúcar e os caldeireiros, que são trabalhado-res especializados, encarregados do fabrico doaçúcar.

Diferente do processo da cana são as ativida-des no agreste. Como já dissemos, nesta área asformas de trabalho são mais simples porque aspossibilidadesde seu solo são mais limitadas. Alise cultivam produtos que, pelo seu valor menor,estão entregues a intermediários, como os forei-ros e meeiros. Estes trabalham com toda a fa-mília nos seus roçados. Não têm obrigação de dartrês dias por semana no eito. Os foreiros pagamo foro anualmente e vivem de seus roçados defava ou de algodão, plantados no agreste. No en-tanto, são. obrigados a vender no engenho o quecolhem. Caso contrário, o senhor ameaça soltaro gado nas suas plantações. Já os meeiros plan.•tam cana às suas próprias custas, e se compro-metem a dar metade da produção ao senhor deengenho na moagem. Utilizam a terra e a má-quina do engenho; o senhor despende apenas coma mão-de-obra para o fabrico do açúcar.

3. Condições SociaisEncon~amos nos dois .tipos de cultura - várzea

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e agreste - uma divisão social nítida entre tra-balhadores e proprietários: o senhor e seus de-pendentes aparecem como elementos principaisdo processo agrícola. Os trabalhadores de eitonão estão no mesmo nível dos operários especia-lizados, dos meeiros e foreiros. Seus salários econdições de vida são inferiores. Entretanto, adependência em relação ao sistema de proprieda-de identifica os trabalhadores de eito com as ou-tras categorias. Apesar da capacidade técníca ede condições de trabalho distintas de cada umdeles resultarem em regalias diferentes, a condi-ção comum a todos é a de subordinação ao se-nhor. Daí podermos dizer que existem escalas di-ferentes entre essas categorias, que são somentequantitativas e nunca qualitativas.

A condição de' vida dos trabalhadores de eitoestá socialmente determinada pela sua condiçãode trabalho, inferior a de todas as outras cate-gorias: "Nós, os da casa-grande, estávamos alireunidos no mesmo medo, com aquela pobre gen-te do eito. E com eles bebemoso mesmo café comaçúcar bruto e comemos a mesma batata-doce dovelho Amâncio. E almoçamos com ele a boa car-ne-de-ceará com farofa. A noite dormimos emcama de vara. A chuva pingava dentro de casapor não sei quantas goteiras. E o cheiro horríveldos chiqueiros de porcos pertinho da gente. ( ... )Era tudo isto o que de melhor o pobre do velhoAmâncio tinha para nos oferecer: esta sua des-graçada e fedorenta miséria de pâría.!"

Como resquício do passado, uma parte dos tra-balhadores de eito, constituída por ex-escravos,mora na senzala; esta continua a existir pegada àcasa-grande, mesmo depois da Abolição, "com assuas negras parindo, as boas amas-de-leite e osbons cabras do eito".8

A posição inferior dos trabalhadores de eitotorna-se também evidente pelo tratamento queos rendeiros e meeiros dispensam a essa gente.'Nas épocas em que os trabalhos de limpa e plan-tio requerem maior número de braços, os rendei-ros e meeiros vêm'ajudar no eito: "desciam desuas ordens para este contato ombro a ombrocom os párías"," Prestam esse serviço a José Pau-lino e não aceitam nenhum pagamento por ele,por considerarem indigno o trabalho no eito.

Entretanto, os trabalhadores de eito "pareciamfelizes de qualquer forma, muito submissos emuito contentes com o seu destino, ( ... ) nãolevantavam os braços para .Imprecar, não se re-voltavam. Eram uns cordeiros".10

José Lins do Rêgo apresenta-nos estes traba-lhadores como elementos passivos e acomodadosdiante do'meio em que vivem. Eles não reagem,sua atitude é de completa índíferença, Aqueles

que têm suas lavouras vestem-se "com as arro-bas de algodão que o roçado lhes dava. SE:lP:~ºchegasse, os trapos de brim e de chita passavamde um ano para outro. As filhas se casavam. Ma-tavam galinha no dia da festa. Era uma de me-nos nas costas. E se não quisessem casar podiamse amigar, que era a mesma coísa".»

A prostituição apresenta-se como meio de as-censão social: é "um elemento de progresso porali".1:2As mulheres que são seduzidas pelo senhordo engenho melhoram a vida da família toda. Opai deixa de·trabalhar no eito, e não precisa pa-gar foro para ter roçado. A família passa a rece-ber açúcar e outros gêneros do engenho, de graça.

A prostituição aparece, assim, como uma so-lução temporária e limitada que não disfarça arealidade. A parca remuneração de trabalho apa-rece como a constante de suas vidas. Só lhes épossível garantir as condições mínimas para suasobrevivência.

Temos ainda outra forma de trabalho, o do-.méstico. Este é realizado na casa-grande pelasex-escravas e tem todas as características do tra-balho servil. A função delas ainda é a mesma:cozinhar, cuidar de crianças, parir os filhos. De-pois da Abolição, elas não quiseram deixar o San-ta Rosa. Trabalham de graça e José Paulino dá-lhes de comer e vestir. As filhas e netas das ne-gras também vão continuando na servidão "coma mesma passividade de bons animais domésti-COS".13

José Lins do Rêgo apresenta-nos somente umtípo que não se conforma com a miséria e a baixacondição social. Trata-se do moleque Ricardo, quevai buscar ascensão social fora do mundo rural.O moleque Ricardo se. afasta da fazenda, masvolta anos mais tarde para trabalhar como cai-xeiro no barracão do engenho.

Já os operários especializados, isto é, os mes-tres-de-ofício, têm algumas regalias no Santa Ro-sa. Fazem suas refeições na casa-grande, senta-dos à mesa com o senhor e a família, comendoa mesma comida. No entanto, não participamdas conversas da casa, visto que também são pes-soas humildes.

Como vimos, os rendeiros e meeiros não estãovinculados definitivamente à terra e o problemada dependência ao senhor de engenho subsiste.O reflexo social da dependência aparece nas re-lações entre aqueles e este: o senhor não é sóaquele que tem e cede suas terras a rendeiros emeeiros mas também o que dá conselhos, é juiz,toma decisões superiores que devem ser obede-cidas. A tarde, depois do jantar, José Paulinosentava-se "numa cadeira perto do grande bancode madeira do alpendre para dar as suas audiên-

cias públicas aos moradores. Era gente que vinhapedir ou enredar. Chegavam sempre de chapéu namão com um 'Deus guarde a Vossa Senhoria'.Queriam terras para botar roçado, lugar para fa-

. zer casas, remédios para os meninos, carta paradeixar gente no hospital. Alguns vinham fazerqueixa dos vizinhos. (",) Muitos vinham arran-jar carros do engenho para fazer mudanças, ealguns dar conta de suas meações com o senhor

. ou pagar o foro do ano. A todos o meu avô iadando uma resposta ou passando uma descom-postura, mas cedendo sempre no que eles pe-díam".>

No Santa Rosa há um meeiro que conseguejuntar algum dinheiro e estender suas lavouras,o que constitui uma exceção. Geralmente não hádiferenças sensíveis entre as condições materiaisdos trabalhadores de eito e as dos meeiros e fo-reiros. Estes, porém, recebem melhor tratamento,têm formas de trabalho mais livres, e uma certaindependência de atitudes. Embora recebam vi-sita da gente da casa-grande, esse contato maisíntimo não significa relações de igual para igual,o que não os impede de se sentirem privilegiados.

Descrito o sistema de subordinação, podemosagora estudar a vida e o comportamento dos se-nhores de engenho.

José Paulino é o grande latifundiário da vár-zea do Paraíba, mas apesar de sua riqueza, levauma vida modesta. Não tem "luxo nenhum. Acasa-grande só tinha tamanho. Tudo muito pobre:nem uma cadeira bonita, a cama onde dormia erade couro, dura como de frade". Para ele, "hou-vesse comida com fartura - era o que basta-va".» "O velho Zé Paulino, tão sem vaidade paraas outras coisas, amava o luxo da bacharelice.( , •• ) j Percebia-se-lhe a contrariedade em nãover o filho Juca feito juiz de direito ou procura-

. do para defender no júri."16O mesmo não se dá com o Coronel Lula, seu

primo, que gosta de ostentar sua riqueza. A casa-grande de seu engenho é a melhor casa. de mo-rada da ribeira do Paraíba- Tem água encanada 129na horta e banheiro para os .criados.

José Paulino também não se interessa pela po-lítica: "Depois entravam na conversa de política.O meu avô não concorria na palestra. (",) Oque mais o interessava eram os bons invernos, oseu açúcar na casa de purgar, o seu gado gordo,os seus partidos. Quando lhe vinham perguntarpela política ele mudava de conversa. Estava como.seu partido por hábito." Ao contrário de outrossenhores de engenho, "não tinha cabras para pro-teger, nem medo de ficar por baixo. O governocomo terror, como encosto para tomar terra dospequenos, governo Que lhe desse soldados para

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guarda-costas, deste governo ele nunca precisou.A sua consciência limpa deixava-o dormir sosse-gado, sem receio de diligências em suas terras".""O velho José Paulino governava os seus engenhoscom o coração. ( ... ) Os senhores de engenhoiam até às armas, nas disputas. Brigavam pelosseus partidos, profanavam os templos de Deus,arrombando urnas e queimando atas, ( ... ) iamna frente com os seus negros. Mas o velho JoséPaulino não era homem para tais coisas. Ele eratemido mais pela sua bondade. Não havia cora-gem que levantasse a voz para aquela mansa au-toridade de chefe. Não tinha adversários na suacomarca. Os seus inimigos eram mais de sua fa-mília do que dele. Herdara-os com o SantaRosa."18

Já o Dr. Lourenço - irmão de José Paulino- é o tipo do grande senhor de engenho: "eraoutra coisa. Tinha gênio, como se dizia dos ho-mens fortes, de coraçã,pduro. E por isto foi aque-le político, manobrando com dois municípios. Acasa se enchia de sujeitos que chegavam paratratar de eleições".19

Á situação de riqueza e poder, José Lins doRêgo acrescenta um retrato do comportamentoe dos valores dos senhores de engenho, que apa-rece no seu relacionamento íntimo, quando "aosdomingos, a mesa da casa-grande se enchia desenhores de engenho, de parentes, de correligio-nários. ( ... ) Uns contavam grandezas, negóciosde vento em popa. Outros choravam de fazer pe-na. Não faziam nada, não podiam nem pagar aoscorrespondentes. E eram sempre estes os maisprósperos. Fora da presença do chefe (Dr, Lou-renço) , pareciam meninos em recreio, bulindouns com os outros. Queixavam-se sempre dos tra-balhadores. Nisto estavam de acordo, em reco-nhecer nos seus cabras qualidades péssimas.Eram para eles uma gente ruim, preguiçosa, tra-paceira, que só prestava mesmo no relho. Passá-vamos os domingos num instante com as visi-tas. Vinham em outros dias, mas para negócios,ou para pedír favores, tachas emprestadas, tubospara caldeira, sementes de cana" .rlO

Porém, grande número de senhores de enge-.nho estão em completa decadência. O CoronelLula de Holanda, vizinho de José Paulino, já estáde "fogo morto". Seu engenho parou de produ-zir h_ muito tempo: "Ao lado da prosperidade eda riqueza do meu avô, eu vira ruir, até no pres-tígio de sua autoridade, aquele simpático velhi-nho que era o Coronel Lula de Holanda, com oseu Santa Fé caindo aos pedaços. ( ... ) Nãoplantava um pé de cana e não pedia um tostãoemprestado a ninguém."'21"O meu avô olhavapara o seu vizinho com certo respeito. ( ... ) En-

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quanto ele crescia, o outro se atrasava naquelamiséria que arrastou por mais de 70 anos. A prin-cípio, o engenho de besta ainda quebrava unsfeixes de cana. Fazia uns cem pães. Depois, derapara vender verduras, macaxeira em molhos,p~ra o Pilar. Andava de carro, até que os cava-los morreram't.w

A análise que nos propusemos a fazer terminaaqui. Propositadamente, deixamos de estudar ou-tros elementos que aparecem no Ciclo e que estãointrinsecamente ligados ao nosso tema: os pro-blemas da usina e a problemática urbana. JoséLins do Rêgo nos dá esses elementos, apesar determos nos restringido ao mundo rural. A razãoé de objetivo, pois achamos que o mundo do en-genho descrito pelo escritor apresenta-se' comtraços de autonomia, o que nos permite estudá-loisoladamente. .

Queremos acentuar no entanto, que autonomiasignifica aqui um processo' que contém elemen-tos .distintos, daí podemos delineá-los indepen-dentemente. A distinção não nos leva a dizer queo fenômeno do engenho rural não tenha ligaçõescom os dois outros processos, isto é, o da indus-trialização' do açúcar (usina) e o da urbanização.

Porém, a autonomia do engenho demonstra-nos a persistência de um processo anterior, ain-da naquele momento. Como sabemos, as formasde trabalho descritas pelo romancista vêm doBrasil Colônia; no século XIX, o sistema de pro-dução e o sistema de relações de trabalho prati-camente não se modificam. A técnica modernade tratamento do açúcar - usina - é introdu-zida lentamente nos fins do Império e começo daRepública: porém, ela supera o sistema arcaicodo bangüê somente na década de 30. Assim, nomomento em que José Lins do Rêgo retrata omundo do Nordeste - 1901-1925 - os dois sis-temas persistem um ao lado do outro. Daí o au-tor descrever-nos um processo, com traços colo-niais em pleno século XX.

A análise do bangüê permite-nos distinguiressa permanência de elementos do passado: asformas predominantes do trabalho, semelhantesàs da época da escravidão; a produção de açúcarque utiliza a mesma técnica dos séculos anterio-res. Por sua vez, a persistência implica formasmais simplificadas, que permitem a continuidadedo regime de autonomia. do engenho. Como nopassado, o latifúndio tem condições próprias desobrevivência. Trabalhadores braçais e técnicosvivem em função da produção local e, o únicoelemento que liga o latifúndio produtivo - ban-güê - com o exterior, é' a comercialização doaçúcar. José Paulino só sai de suas terras umavez por ano,' na época da venda de sua safra. Por

outro lado, o latifúndio é auto-suficiente na pro-dução para sua subsistência, dependendo somen-te de alguns produtos industrializados.

Essa problemática de autonomia é que nos per-mitiu um estudo do fenômeno do engenho. Utili-zamo-nos fartamente da documentação apresen-tada por José Lins do Rêgo, pois os seus roman-ces retratam admiravelmente um mundo em tran-sição, onde coexistem passado e presente, apesarde alguns elementos já terem começado a di-luir-se.

Para uma complementação dos estudos, teria-mos necessariamente de nos utilizar de outrasfontes históricas em geral. A soma desses estu-dos dar-nos-ia uma visão mais rica da problemá-tica do Nordeste. O que não podemos esqueceré que a obra de José Lins do Rêgo por si mesma éfundamental para o conhecimento da realidadenordestina. _

1 Lins do Rêgo, José. Memno de engenho. Livraria JoséOlympio Editora, 1960. p. 55. (Romances reunidos eilustrados de José Lins do Rêgo.)2 Andrade, Manoel Correia de. A t67Ta e o homem tsoNCYrde8te. 2. ed. Editora Brasiliense, S.d..8 Lins do Rêgo, José. Menttso de engenho. cito p.81.4 Lins do Rêgo, José. Ba.n~. p. 253.5 Id. ibid. p. 252.

8 Lins do Rêgo, José. Menino de engenho. clt. p. 10.f Id, .íbíd. p. 22.

8 Id. ibid. p. 44.9 Id. ibid. p. 66.10 Id. ibid. p. 22.11 Lins do Rêgo, José. BOMgM, cit. p. 307.12 Id. ibid. p. 342.

13 Lins do Rêgo, José. Menitso de engenho. cit. p. 41.

u.Id. ibid. p. 44·5.15 Lins do Rêgo, José. Ba.ngü~.clt. p. 254.

.18 Lins do Rêgo, José. Doidit&ho. p. 171.17 Id. ibid. p. 112.18 Lins do Rêgo, José. Menitso de engenho. clt. p.SS.

·19 Lins do Rêgo, José. BafS.gM. cito p. 334-

20 Id-.ibid. p. ~.21 Lins do Rêgo, José.JfenÚlO de 8IlgeMo. clt. p. 56.22 Lins do Rêgo, José. BatlgM. clt. p. 368.

CONJUNTURAECONOMICA

FAZ ACOBERlURACOMPLETA

DOSNUMEROS

ECONOMIA----DO BRASIL

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