APELACAO CIVEL 200251010140780 · Trata-se de apelação interposta pela COMPANHIA NACIONAL DE...

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IV - APELACAO CIVEL 2002.51.01.014078-0 Nº CNJ : 0014078-59.2002.4.02.5101 RELATOR : DESEMBARGADOR FEDERAL MARCUS ABRAHAM APELANTE : CIA/ NACIONAL DE ABASTECIMENTO - CONAB ADVOGADO : NEI CALDERON E OUTROS APELADO : CASA DE LEGUMES FLOR DO RECREIO ADVOGADO : JANE JACOB HORTA E OUTROS ORIGEM : DÉCIMA SEXTA VARA FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (200251010140780) RELATÓRIO Trata-se de apelação interposta pela COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO - CONAB (fls. 205/212), em face de sentença (fls. 199/202) do Juízo Federal da 16ª Vara/RJ que julgou parcialmente procedente o pedido inicial, para decretar a renovação do contrato de locação dos boxes nº 27 a 30, situados na Rua Voluntários da Pátria nº446, Botafogo, Rio de Janeiro (Hortomercado Humaitá). Casa de Legumes Flor do Recreio ajuizou ação renovatória em face da CONAB, objetivando, em síntese, a renovação do contrato de locação dos boxes nº 27 a 30, situados na Rua Voluntários da Pátria nº446, Botafogo (Hortomercado Humaitá), a contar de 1º de fevereiro de 2003 e com término em 31 de janeiro de 2008. O MM. Juiz a quo, em sua sentença, adotou o valor apresentado pela Parte Ré (ora Apelante), que indicou o novo valor locatício em R$ 1.558,40 (mil quinhentos e cinquenta e oito reais e quarenta centavos), valor este que foi aceito pela Autora (ora Apelada). Alega a Apelante, preliminarmente, haver perda de objeto da ação, 1

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IV - APELACAO CIVEL 2002.51.01.014078-0

Nº CNJ : 0014078-59.2002.4.02.5101RELATOR : DESEMBARGADOR FEDERAL MARCUS

ABRAHAMAPELANTE : CIA/ NACIONAL DE ABASTECIMENTO - CONABADVOGADO : NEI CALDERON E OUTROSAPELADO : CASA DE LEGUMES FLOR DO RECREIOADVOGADO : JANE JACOB HORTA E OUTROSORIGEM : DÉCIMA SEXTA VARA FEDERAL DO RIO DE

JANEIRO (200251010140780)

RELATÓRIO

Trata-se de apelação interposta pela COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO - CONAB (fls. 205/212), em face de sentença (fls. 199/202) do Juízo Federal da 16ª Vara/RJ que julgou parcialmente procedente o pedido inicial, para decretar a renovação do contrato de locação dos boxes nº 27 a 30, situados na Rua Voluntários da Pátria nº446, Botafogo, Rio de Janeiro (Hortomercado Humaitá).

Casa de Legumes Flor do Recreio ajuizou ação renovatória em face da CONAB, objetivando, em síntese, a renovação do contrato de locação dos boxes nº 27 a 30, situados na Rua Voluntários da Pátria nº446, Botafogo (Hortomercado Humaitá), a contar de 1º de fevereiro de 2003 e com término em 31 de janeiro de 2008.

O MM. Juiz a quo, em sua sentença, adotou o valor apresentado pela Parte Ré (ora Apelante), que indicou o novo valor locatício em R$ 1.558,40 (mil quinhentos e cinquenta e oito reais e quarenta centavos), valor este que foi aceito pela Autora (ora Apelada).

Alega a Apelante, preliminarmente, haver perda de objeto da ação,

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tendo em vista que o tempo decorrido entre o ajuizamento e o julgamento do presente feito é superior ao prazo de locação. Assevera ainda que “não há locação propriamente dita, e sim contrato administrativo, pois há características próprias não aceitas pelo direito privado” (fl. 207), alegando assim a matéria de ordem pública de que não é cabível o deferimento da renovatória de locação comercial em razão de que, por sua natureza de empresa pública, seus bens seriam públicos, devendo tais contratos ser regidos por normas de direito administrativo e não por normas de direito privado. Aduz ainda que o Apelado não faz prova de que exerce a mesma atividade há pelo menos três anos, requisito que seria exigido para renovação de locação comercial.

O recurso foi recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo (fl. 213).

Contrarrazões às fls. 217/222.

O Ministério Público Federal (fls. 227/230) opina pelo improvimento do recurso.

É o relatório. Peço dia para julgamento.

MARCUS ABRAHAMDesembargador Federal

Relator

VOTO

Conforme relatado, trata-se de apelação interposta pela COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO - CONAB (fls. 205/212), em face de sentença (fls. 199/202) do Juízo Federal da 16ª Vara/RJ que julgou parcialmente procedente o pedido inicial, para decretar a renovação do contrato de locação dos boxes nº 27 a 30, situados na Rua Voluntários da Pátria nº 446, Botafogo (Hortomercado Humaitá).

O MM. Juiz a quo, em sua sentença, adotou o valor apresentado pela Parte Ré (ora Apelante), que indicou o novo valor locatício em R$ 1.558,40 (mil quinhentos e cinquenta e oito reais e quarenta centavos), valor este que

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foi aceito pela Autora (ora Apelada).

Alega a Apelante, preliminarmente, haver perda de objeto da ação, tendo em vista que o tempo decorrido entre o ajuizamento e o julgamento do presente feito é superior ao prazo de locação. Assevera ainda que “não há locação propriamente dita, e sim contrato administrativo, pois há características próprias não aceitas pelo direito privado” (fl. 207), alegando assim a matéria de ordem pública de que não é cabível o deferimento da renovatória de locação comercial em razão de que, por sua natureza de empresa pública, seus bens seriam públicos, devendo tais contratos ser regidos por normas de direito administrativo e não por normas de direito privado. Aduz ainda que o Apelado não faz prova de que exerce a mesma atividade há pelo menos três anos, requisito que seria exigido para renovação de locação comercial.

Conheço do recurso porque presentes os pressupostos de admissibilidade.

Inicialmente, cumpre destacar que não há falar em perda de objeto quando se discute o valor arbitrado a título de aluguel, pois eventual procedência do recurso pode alterar a situação do valor final a ser adimplido a título de contraprestação.

Em sede de Apelação, alega a Recorrente matéria de ordem pública de que não é cabível o deferimento da renovatória de locação comercial em razão de que, por sua natureza de empresa pública prestadora de serviço público, seus bens também seriam públicos, e que o contrato de exploração de seus bens rege-se primordialmente pelas regras do direito administrativo, constituindo um contrato administrativo, não lhe sendo oponível a renovatória prevista no art. 51 da Lei 8.245/1991.

A consulta aos autos revela que a alegação de que o imóvel locado pela CONAB constitui bem público e de que o contrato de locação constituiria um contrato administrativo não foi formulada no juízo a quo, de modo que

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não foi apreciada no 1º. grau de jurisdição. Houve, na contestação, apenas requerimento para que o pedido de renovação fosse declarado improcedente, mas os fundamentos jurídicos foram diversos: em vez de alegar óbice à aplicação da Lei 8.245/1991 em razão da natureza pública do imóvel ou do contrato administrativo, o Réu contestou afirmando que o Autor não teria demonstrado o cumprimento dos requisitos previstos no art. 51 da Lei 8.245/1991 e que o valor proposto para renovação era indevido, não podendo ser inferior a R$ 1.558,40 (mil quinhentos e cinquenta e oito reais e quarenta centavos). Assim, ao que tudo indica, parece ter aceitado, em 1º. grau de jurisdição, sua submissão à Lei de Locações.

Apesar da inovação em sede recursal, que, em geral, é vedada, deve-se estar atento ao fato de que a violações apontadas em Apelação versam acerca de matéria de ordem pública, a qual inclusive seria cognoscível ex officio pelo juízo por força da profundidade do efeito devolutivo do recurso, também denominada efeito translativo do recurso, como lecionam MARINONI e ARENHART:

"Enumera-se ainda outro efeito dos recursos, chamado efeito translativo. Semelhante ao efeito devolutivo, esse efeito também diz respeito à cognição do tribunal sobre a causa. Todavia, ao contrário do efeito devolutivo - que depende de expressa manifestação da parte, já que somente se devolve ao conhecimento do tribunal a matéria impugnada, o efeito translativo se opera ainda que sem expressa manifestação de vontade do recorrente.O efeito translativo é ligado a matéria que compete ao Judiciário conhecer em qualquer tempo ou grau de jurisdição, ainda que sem ex pressa manifestação das partes, a exemplo das questões enumeradas no art. 301 do CPC (exceto seu inc. IX).Se esses temas devem ser examinados pelo juízo em qualquer tempo e grau de jurisdição, eles certamente poderão ser apreciados quando da análise do recurso. O tribunal é autorizado a conhecer esses temas de ordem pública, ainda que não tenham sido ventilados, seja no juízo a quo, seja nas razões de recurso. Tais temas, então, não se submetem ao efeito devolutivo, e podem ser conhecidos pelo tribunal sempre, em qualquer circunstância, bastando que tenha sido interposto recurso sobre alguma decisão da causa, e que esse recurso chegue a exame do juízo ad quem. "1

1 MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 561-

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Por isso, deve-se admitir os novos fundamentos jurídico propostos pela Apelante pela primeira vez perante este Tribunal (instância recursal ordinária) acerca da existência de bem público na lide, em razão tão-somente da natureza de ordem pública das questões. A jurisprudência do E. STJ, nestas hipóteses excepcionais, admite a invocação pela primeira vez, em sede de recurso, de matéria de ordem pública:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. EXAME FÍSICO. IMPOSSIBILIDADE MÉDICA. FORÇA MAIOR. REMARCAÇÃO DO TESTE. EFEITO TRANSLATIVO DO RECURSO ORDINÁRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. POSSIBILIDADE DE EXTINÇÃO. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO NÃO CONFIGURADA. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA NOVO JULGAMENTO.1. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que as instâncias ordinárias podem extinguir o processo sem resolução de mérito, conhecendo de ofício de matéria de ordem pública, capaz de gerar a rescindibilidade do julgado caso não detectada a tempo, em respeito ao efeito translativo dos recursos ordinários e ao princípio da economia processual.2. Hipótese em que a pretensão originária objetiva a declaração do direito à remarcação de teste físico em certame para ingresso nos quadros da Polícia Militar do Estado do Paraná como Soldado, em razão de impedimento médico, ocasionado por acidente ocorrido 9 (nove) dias antes da data prevista em edital.3. A tese de fundo, referente à possibilidade de remarcação do exame físico em concurso público por força maior, já foi objeto de apreciação nesta Corte, bem como no Supremo Tribunal Federal e, recentemente, tem-se firmado favoravelmente ao pleito, por não implicar em ofensa ao princípio da isonomia. Afasta-se, portanto, o fundamento da extinção do feito por impossibilidade jurídica do

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pedido.4. Recurso especial parcialmente provido, para que o Tribunal de origem promova novo julgamento do agravo de instrumento.(REsp 1293721/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/04/2013, DJe 10/04/2013)”

PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. COGNIÇÃO. PROFUNDIDADE. EFEITO TRANSLATIVO. AUSÊNCIA DE PRECLUSÃO.1. Os recorrentes ajuizaram demanda em que sustentam a inexistência de obrigação de pagamento de mensalidades do Colégio Militar Dom Pedro II - instituída pelo Decreto Distrital 21.298/2000 -, sob o fundamento de que se trata de instituição de ensino público, que, por isso, deve prestar o serviço de forma gratuita.2. Na apelação, os autores questionaram a constitucionalidade da cobrança e da Lei 2.323/1999, que criou a referida instituição. Tal tema não fora apreciado pelo Tribunal a quo, que entendeu que haveria descabida supressão de instância e afronta ao princípio recursal do tantum devolutum quantum apelatum.3. A inconstitucionalidade constitui matéria de ordem pública não sujeita à preclusão, de modo que pode ser invocada originalmente pelas partes em grau de apelação, conforme já decidiu a Primeira Seção do STJ (EAg 724.888/MG, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 22/6/2009).4. Não se pode confundir a extensão e a profundidade do efeito devolutivo do recurso em questão. Se, em razão daquela, a apelação devolve ao Tribunal o conhecimento da matéria impugnada (art. 515 do CPC), sob o segundo aspecto, todas os pontos suscitados e discutidos no processo, ainda que a sentença não os tenha julgado por inteiro, podem ser por ele apreciados (art. 515, § 1°, do CPC).5. Ao apresentar como causa de pedir fatos relacionados à cobrança indevida de mensalidades escolares, nada impede que a parte agregue, em grau de apelação, tese relativa à inconstitucionalidade de lei incidente sobre aqueles mesmos fatos.6. Recurso Especial parcialmente provido para determinar que o Tribunal a quo aprecie a questão constitucional devolvida na

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apelação.(REsp 1325838/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/09/2012, DJe 10/10/2012)

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. IPTU. ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE TRIBUTO INVOCADA ORIGINARIAMENTE NA APELAÇÃO DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. PRECLUSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. MATÉRIA DE COGNOSCÍVEL DE OFÍCIO.1. Embargos de divergência manejados com o escopo dirimir dissenso jurisprudencial acerca da não ocorrência de preclusão para se arguir inconstitucionalidade de tributo em sede de apelação ainda que tal matéria não tenha sido ventilada no processamento dos embargos à execução.2. As matérias de ordem pública não estão sujeitas à preclusão, motivo pelo qual podem ser originariamente arguidas e apreciadas em sede de apelação.3. A inconstitucionalidade de tributo inscrito na Dívida Ativa fulmina pressuposto de validade da correspondente execução fiscal e deve ser conhecida de ofício, nos termos do art. 267, § 3º, do CPC.4. Se é possível apreciar inconstitucionalidade de tributo em sede de exceção de pré-executividade (AgRg no Ag 1.086.746/RJ, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 19/3/2009; AgRg no Ag 1.051.126/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 12/2/2009; AgRg no Ag 888.176/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 18/6/2008; AgRg no REsp 600.986/RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 17/3/2008), não há razão para obstar o conhecimento dessa mesma matéria, de ofício, pelo Tribunal de apelação.5. Embargos de divergência providos.(EAg 724888/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/06/2009, DJe 22/06/2009)

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Em primeiro lugar, quanto à alegação da CONAB de que seus bens seriam públicos pelo simples fato de se tratar de empresa pública prestadora de serviço público, impende reconhecer que as empresas públicas ostentam personalidade jurídica de direito privado. Por isso, os bens que integram seu patrimônio constituem bens privados, e não públicos, de acordo com o art. 98 do Código Civil.2 O que se pode aceitar neste particular é que os bens de empresa pública são privados, em razão de sua personalidade privada, mas, quando estiverem afetados a finalidade pública, seguirão um regime similar àquele dos bens públicos em razão de sua afetação.

Ocorre que, nos autos, em momento algum a Apelante se desincumbiu do ônus de comprovar que o imóvel era público por ser de titularidade da União e de que a CONAB constituiria mera possuidora do mesmo. Tampouco foram trazidos aos autos quaisquer documentos, quer traslados de serventias extrajudiciais de Registro de Imóveis, quer certidões da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), atestando a propriedade da União sobre a área. E, ainda que um dia tais imóveis tenham sido integrantes do patrimônio da União, se foram transferidos para o patrimônio da CONAB, cessaram, por estes atos translatícios de domínio, de ser bens públicos, passando a bens privados. Isto em razão de que o direito brasileiro elegeu o mero critério subjetivo como parâmetro para determinar a natureza pública ou privada de um bem (se pertencente a pessoa jurídica de direito público, será público; se pertencente a pessoa jurídica de direito privado, será privado).

Assim, bens de pessoas jurídicas de direito privado afetados a interesse público (por exemplo, prestação de serviços públicos) não cessam de ter intrínseca natureza de bens privados: apenas se lhes aplica o efeito do regime de direito público enquanto estiverem destinados ao fim público. Da perspectiva estática, conservam sua natureza privada. Em perspectiva dinâmica, são tratados como se bens públicos fossem, se e enquanto afetados. Mas nem por isso perdem sua natureza de bens privados; tanto é assim que, caso o bem privado da empresa pública não esteja mais afetado ao atendimento de um interesse público, poderá ser excutido judicialmente para atender aos credores da estatal. Ao revés, caso se tratasse de bem público propriamente dito (pertencente a pessoa jurídica de direito público), independentemente de afetação ou não a um fim público, tal não seria possível, em razão da impenhorabilidade a que está submetido todo bem

2 Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.

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pertencente a pessoas jurídicas de direito público pelo simples fato de sê-lo (neste caso, a pessoa jurídica de direito público pagaria pelo regime de precatórios e não pela execução de bem integrante de seu patrimônio). Neste particular, afirma ALEXANDRE ARAGÃO:

"Em nossa opinião, os bens das entidades privadas da Administração Indireta são bens privados, o que não impede, contudo, que, se estiverem afetados ao serviço público, sofram, a exemplo dos bens afetados das concessionárias particulares de serviços públicos, algumas limitações quanto à sua disponibilidade e penhorabilidade. Mas, fora dessas hipóteses, os bens das estatais são regidos pelas normas de direito privado, observados os princípios e regras republicanos por serem entidades controladas pelo Estado (ex.: os imóveis de estatais não podem ser alienados livremente, sem um processo seletivo público)."3

A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) configura empresa pública federal (portanto, pessoa jurídica de direito privado) que, nos termos do art. 19, parágrafo único, da Lei 8.029/1990 (que autorizou sua instituição), apresenta como objetivos básicos:

"Art. 19 - Parágrafo único. Constituem-se em objetivos básicos da Companhia Nacional de Abastecimento:

a) garantir ao pequeno e médio produtor os preços mínimos e armazenagem para guarda e conservação de seus produtos;b) suprir carências alimentares em áreas desassistidas ou não suficientemente atendidas pela iniciativa privada;c) fomentar o consumo dos produtos básicos e necessários à dieta alimentar das populações carentes;d) formar estoques reguladores e estratégicos objetivando absorver excedentes e corrigir desequilíbrios decorrentes de manobras especulativas;

3 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 472.

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e) (Vetado).f) participar da formulação de política agrícola; eg) fomentar, através de intercâmbio com universidades, centros de pesquisas e organismos internacionais, a formação e aperfeiçoamento de pessoal especializado em atividades relativas ao setor de abastecimento.h) assistir, mediante a doação de alimentos disponíveis em seus estoques, às comunidades e famílias atingidas por desastres naturais em Municípios em situação de emergência ou estado de calamidade pública reconhecidos pelo Poder Executivo federal, na forma do regulamento. (Incluído pela Lei nº 12.716, de 2012)".

Seu Estatuto Social foi aprovado por meio do Decreto nº 4.514/2002, o qual detalha, em seus arts. 5º a 8º, o objeto social da Companhia:

“Art. 5o A CONAB tem por finalidade executar a Política Agrícola, no segmento do abastecimento alimentar, a Política de Garantia de Preços Mínimos e fornecer subsídios ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, na formulação, no acompanhamento das referidas políticas e na fixação dos volumes mínimos dos estoques reguladores e estratégicos.

Art. 6o A CONAB tem por objetivos:I - planejar, normatizar e executar a Política de Garantia de Preços Mínimos do Governo Federal;II - implementar a execução de outros instrumentos de sustentação de preços agropecuários;III - executar as políticas públicas federais referentes à armazenagem da produção agropecuária;IV - coordenar ou executar as políticas oficiais de formação, armazenagem, remoção e escoamento dos estoques reguladores e estratégicos de produtos agropecuários;V - encarregar-se da execução das políticas do Governo Federal, nas áreas de abastecimento e regulação da oferta de produtos agropecuários, no mercado interno;VI - desenvolver ações no âmbito do comércio exterior, consoante diretrizes baixadas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e observado o Decreto no 3.981, de 24 de outubro de 2001, dispõe sobre a CAMEX - Câmara de Comércio Exterior, do Conselho de Governo, e dá outras providências;

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VII - participar da formulação da política agrícola; eVIII - exercer outras atividades, compatíveis com seus fins, que lhe sejam atribuídas ou delegadas pelo Poder Executivo.

Art. 7o Para a consecução de seus objetivos, a CONAB poderá:I - comprar, vender, permutar, promover a estocagem e o transporte de produtos de origem agropecuária, atuando, se necessário, como companhia de armazéns gerais;II - executar operações de comércio exterior, nos mercados físico e futuro, de produtos de origem agropecuária;III - participar dos programas sociais do Governo Federal que guardem conformidade com as suas competências;IV - firmar convênios, acordos e contratos, inclusive para financiamento e para gestão de estoques agropecuários de propriedade do Governo Federal, com entidades de direito público ou privado;V - efetuar operações financeiras com estabelecimentos de crédito, inclusive mediante garantia do Tesouro Nacional, observada a legislação em vigor;VI - aceitar, emitir e endossar títulos;VII - receber garantias de caução, fiança, aval, penhor e hipoteca;VIII - aceitar doações e dar destinação a elas, de acordo com os objetivos da Companhia;IX - promover a análise e o acompanhamento do agronegócio brasileiro, incluindo oferta e demanda, preços internos e externos de produtos agropecuários e insumos agrícolas, previsão de safras e custos de produção;X - promover a formação, o aperfeiçoamento e a especialização de pessoal, em atividades relativas aos objetivos da Companhia, explicitados no art. 6o; eXI - prestar, mediante remuneração, apoio técnico e administrativo ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e a outros órgãos e entidades públicos, na execução das ações decorrentes dos mandamentos legais e regulamentares da legislação agrícola e

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do preceito institucional de organizar o abastecimento alimentar.Art. 8o A CONAB exercerá suas atividades-fim na forma da legislação pertinente.”

A partir da leitura dos dispositivos acima, percebe-se que a CONAB apresenta natureza híbrida de suas atividades. Em alguns de seus objetivos sociais, claramente presta serviços públicos essenciais em caráter não concorrencial, tais como suprir carências alimentares em áreas desassistidas ou não suficientemente atendidas pela iniciativa privada e assistir, mediante a doação de alimentos disponíveis em seus estoques, às comunidades e famílias atingidas por desastres naturais em Municípios em situação de emergência ou estado de calamidade pública reconhecidos pelo Poder Executivo federal (art. 19, alíneas “b”, e “h” da Lei n. 8.029/1990). Em outras, concorre livremente com particulares, como nas atividades de comprar, vender, permutar, promover a estocagem e o transporte de produtos de origem agropecuária, atuando, se necessário, como companhia de armazéns gerais, na execução de operações de comércio exterior, nos mercados físico e futuro, de produtos de origem agropecuária e ao receber garantias de caução, fiança, aval, penhor e hipoteca (art. 7º, inc. I, II e VII do Decreto nº 4.514/2002).

Obviamente, quando estiver atuando em regime de livre concorrência, não poderá ter estendidas a seu favor as prerrogativas próprias da Fazenda Pública, como já decidiu este TRF-2 acerca da própria CONAB:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONAB. EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO. DESCABIMENTO DE EQUIPARAÇÃO À FAZENDA PÚBLICA. INAPLICABILIDADE DO REGIME DE PRECATÓRIOS. IMPROVIMENTO DO RECURSO. 1. Cuida-se de agravo de instrumento interposto pela "Companhia Nacional de Abastecimento" ("CONAB") contra decisão interlocutória, que, após deflagrar a fase de execução de sentença de acordo com o rito do "Cumprimento da sentença" ( art. 475-J e seguintes do CPC), indeferiu o pedido da agravante de determinar que a presente execução siga o rito procedimental especial da "Execução contra a Fazenda Pública" e do sistema de precatórios (arts. 730 e 731 do CPC c/c art. 100 da CF/88). Destarte, a controvérsia centra-se em saber se o fato de a CONAB ser uma empresa

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pública prestadora de serviço público já é (ou não) suficiente para dar tratamento equiparado à Fazenda Pública, viabilizando a qualificação de seus bens como "bens públicos", o que, pela característica da impenhorabilidade dos bens públicos, impõe a observância do regime de precatórios (arts. 730 e 731 do CPC c/c art. 100 da CF/88). 2. Nos termos do art. 98 do Código Civil de 2002, os bens públicos são, apenas, aqueles do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno. Por interpretação a contrario sensu, conclui-se que os bens pertencentes às pessoas físicas e às pessoas jurídicas de direito privado, como é o caso da empresa pública ora agravante, são compostos de bens particulares. Destarte, uma vez que o patrimônio da agravante é composto apenas por bens particulares (e não por bens públicos), afasta-se a tese da sua impenhorabilidade. 3. Não é o simples fato de a empresa pública, ou a sociedade de economia mista, serem prestadoras de serviço público que, por si só, já teriam o tratamento de Fazenda Pública, com a conseqüente submissão ao regime jurídico de direito público, inclusive, no que toca às execuções judiais. Tal equiparação ocorre, tão-somente, quando a empresa pública ou a sociedade de economia mista prestam serviço público, ou sob o regime de monopólio, ou sob o regime de "serviço público essencial" com a submissão dos princípios da modicidade e da continuidade do serviço público, eis que, nestes casos, há a ausência natural da livre concorrência, motivo pelo qual não se justifica a aplicação do regime jurídico de direito privado do art. 173, §1º, inciso II, da CF/88. São, pois, hipóteses excepcionais e que admitem tal interpretação flexibilizada, não diante da pura prestação do serviço público, mas sim pelas peculiaridades de monopólio, de modicidade e de essencialidade no serviço público prestado pela empresa pública ou pela sociedade de economia mista. Precedente do STF citado. 4. In casu, da leitura do art. 7º do estatuto social da CONAB (Anexo do Decreto n.º 4.514 de 13/12/2002), depreende-se que a atividade da agravante, não

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obstante seja de prestação do serviço público, qualifica-se como atividade econômica típica do setor privado. Daí é que, é inaplicável a sua equiparação à Fazenda Pública, o que, então, impede à CONAB a extensão das prerrogativas e dos privilégios processuais, incluindo-se inaplicabilidade do rito de execução especial dos precatórios, na forma dos art. 730 e 731 do CPC c/c art. 100 da CF/88. Precedentes de outros Tribunais Regionais Federais citados. 5. Agravo de instrumento conhecido e improvido."(TRF-2. AG 201202010166875. Rel. Des. Fed. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA. 6a. Turma Especializada. Julgamento em: 27/02/2013. Publicação em: 07/03/2013).

O que entendo indevido é classificá-la, a priori, como somente prestadora de serviço público essencial ou somente exploradora de atividade econômica em livre concorrência, pois isto não corresponde à realidade das multifacetadas atividades que a legislação lhe cometeu, devendo o órgão julgador, no caso concreto, averiguar se a atividade submetida à apreciação judicial qualifica-se, por um lado, como serviço público essencial ou atividade econômica em caráter de monopólio (com preponderância das normas de direito público), ou, por outro, como atividade econômica em regime de concorrência livre (com preponderância das normas de direito privado), como ensina JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO:

"As sociedades de economia mista e as empresa públicas, como se tem observado até o momento, exibem dois aspectos inerentes à sua condição jurídica: de um lado, são pessoas jurídicas de direito privado e, de outro, são pessoas sob o controle do Estado. Esses dois aspectos demonstram, nitidamente, que nem estão sujeitas inteiramente ao regime de direito privado, nem inteiramente ao de direito público. Na verdade, pode dizer-se, como fazem alguns estudiosos, que seu regime tem certa natureza híbrida, já que sofrem o influxo de normas de direito privado em alguns setores de sua atuação e de normas de direito público em outros desses setores. E nem poderia ser de outra forma, quando se analisa seu revestimento jurídico de direito privado e sua ligação com o Estado.Torna-se necessário, todavia, verificar tais aspectos de sua atuação. Quando se trata do aspecto relativo ao exercício em si de atividade econômica, predominam as normas de direito privado, o

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que se ajusta bem à condição dessas entidades como instrumentos do Estado-empresário. É comum, portanto, a incidência de normas de Direito Civil ou de Direito Empresarial(atualmente constituindo capítulo específico daquele), reguladoras que são das relações econômicas de direito privado. Aliás, essa é que deve ser a regra geral, o que se confirma pelo art, 173, §1º, II, da CF, que é peremptório ao estabelecer sua sujeição ao regime próprio das empresas privadas quanto a direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias. Em outras palavras, não devem ter privilégios que as beneficiem, sem serem estendidas às empresas privadas, pois que isso provocaria desequilíbrio no setor econômico em que ambas as categorias atuam. Veda-se ao estado-empresário a obtenção de vantagens que também não possam usufruir as empresas da iniciativa privada. Inexistem, pois, privilégios materiais e processuais, como os atribuídos as autarquias. O STJ consagrou tal diretriz, editando súmula em que, no caso da responsabilidade civil, equipara o prazo de prestação da pretensão indenizatória contra Sociedade de Economia Mista ao prazo fixado para as entidades do setor privado, diferentemente do que ocorre com as pessoas públicas, favorecidas com a prescrição qüinqüenal. Embora se referindo a sociedade de economia mista, a orientação se estende normalmente às empresas públicas, também, como aquelas, pessoas governamentais de direito privado, conforme já pacificado em outras sumulas de Tribunais Superiores."4

O caso ora sob exame versa sobre a locação de imóveis da CONAB a particulares para que estes realizem a venda de hortifrutigranjeiros. Veja-se que, nos termos do art. 6º, inc. V, do Decreto nº 4.514/2002, a CONAB é a encarregada de executar as políticas do Governo Federal nas áreas de abastecimento e regulação da oferta de produtos agropecuários no mercado interno. A relação deste dispositivo com o caso ora em exame deve-se ao

4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 458-459.

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fato de que, historicamente, os Hortomercados do Humaitá e do Leblon, localizados em pontos nobres da cidade do Rio de Janeiro, foram instalados na década de 1970 como parte de uma política pública de abastecimento para grandes centros urbanos, sendo tais locais administrados pela extinta COBAL - Companhia Brasileira de Alimentos (empresa pública federal antecessora da CONAB). A Lei nº 8.029/1990, em seu art. 19, inc. II5, autorizou o Poder Executivo a promover a fusão da Companhia de Financiamento da Produção (CFP), da Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL) e da Companhia Brasileira de Armazenamento (CIBRAZEM), que passariam a constituir a atual Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), vinculada ao Ministério da Agricultura e Reforma Agrária. Foi na qualidade de sucessora legalmente estabelecida da COBAL que a CONAB incorporou a seu patrimônio tais Hortomercados.

Por isso, até hoje estes espaços são popularmente conhecidos como "COBAL do Humaitá" e "COBAL do Leblon", numa referência à extinta empresa pública federal que os administrava. A criação de tais espaços e sua inserção nesta política pública de abastecimento são explicitadas pelos urbanistas RICARDO FERREIRA LOPES e LÉLIA MENDES DE VASCONCELLOS em artigo específico sobre o Hortomercado do Humaitá:

"O SURGIMENTO DA COBAL As intervenções promovidas no Brasil pelas políticas públicas de abastecimento foram respostas às profundas mudanças na base econômica e na estrutura urbana observadas a partir da década de 1960 (VILELA, 2006). A Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL) foi criada em 1962 visando atender ao crescimento da população, cada vez mais presente nos centros urbanos (REVISTA GÔNDOLA, mai. 2006). A precariedade e dispersão dos mercados tradicionais, incapazes de atender eficientemente à classe média urbana em expansão, fizeram com que alguns equipamentos fossem implantados como centrais de abastecimento e postos de varejo. O objetivo principal destes equipamentos era estabelecer alternativas para intervenção do governo no abastecimento. As principais expectativas eram a

5 Art. 19. É o Poder Executivo autorizado a promover: (Renumerado do art 16 pela Lei nº 8.154, de 1990)I - (Revogado pela Lei 9.472 de 1997)II - a fusão da Companhia de Financiamento da Produção, da Companhia Brasileira de Alimentos, e da Companhia Brasileira de Armazenamento, que passarão a constituir a Companhia Nacional de Abastecimento, vinculada ao Ministério da Agricultura e Reforma Agrária. (Redação dada pela Lei nº 8.344, de 1991)

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redução dos custos de comercialização e, consequentemente, dos preços dos alimentos aos consumidores (VILELA, Op. cit.). No início da década de 1970, uma das iniciativas da COBAL foi implantar os hortomercados, que se destinavam ao comércio varejista de hortifrutigranjeiros, a partir de uma concepção moderna de padronização dos espaços de vendas. Esta concepção consistiu em concentrar os vendedores em um único espaço coberto, visando a melhoria das condições de higiene e a redução das perdas de alimentos perecíveis. As unidades foram planejadas como modelo para áreas urbanas de renda média e alta (Instituto Brasileiro de Administração Municipal, IBAM, 1982). Com esta concepção, o Hortomercado Humaitá (Fig. 2) foi o primeiro das quatro unidades implantadas na cidade do Rio de Janeiro, seguidos pelas unidades do Leblon, Méier e Campinho, sendo as duas primeiras localizadas na Zona Sul e as outras duas na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro."6

Os mesmo autores registram a paulatina mudança de destinação destes espaços, que passaram a não mais servir apenas para o comércio de hortifrutigranjeiros dentro da política nacional de abastecimento de grandes centros urbanos, então cometida à COBAL (antecessora da CONAB). A partir da década de 1990, bares e restaurantes começaram a se instalar nestas áreas (tanto da COBAL Humaitá como da COBAL Leblon), transformando-as também em polos gastronômicos relevantes para a vida cultural da cidade do Rio de Janeiro:

"No início o hortomercado COBAL vendia hortifrutigranjeiros. Uma publicação da época relata este cotidiano:

'Antes de mais nada, o colorido, o cheiro, a delícia de passar pelos stands fartos em cenouras, morangos, laranjas,

6 LOPES, Ricardo Ferreira; VASCONCELLOS, Lélia Mendes de. Hortomercados Cobal - Rio de Janeiro: tomba-se a forma ou preserva-se o significado? Disponível em: <http://www.docomomo.org.br/seminario%208%20pdfs/112.pdf > Acesso em: 04.05.2013. p. 7.

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abacates, melões, abacaxis, couves, bananas, espinafres, repolhos, abóboras, maracujás, tomates, peras, goiabas, melancias, maçãs, tangerinas, uvas e caquis, afora os queijos, carnes, peixes, frangos, ovos e plantas. Ir à Cobal dá prazer. Ou irritação, porque nas horas de rush, como às 5h da tarde de um sábado, fica intransitável. O nome correto é Ceasa-Cobal, mas vingou Cobal, tout court. Funciona há 9 anos, área de 10 mil 800m2, é o maior hortomercado em volume comercial do Brasil [...] entre hortaliças, frutas, aves, ovos e carnes. Há ainda a loja de sucos, os stands de flores, as ofertas do dia. [...] A semana na Cobal começa à meia-noite de terça-feira [e termina] às duas da tarde de domingo [...]. Até hoje o gerente não conseguiu saber quantas pessoas a freqüentam, mas até turistas, dos mais requintados [...] fazem da ida à Cobal um must” (JORNAL DO BRASIL, 14 set. 1980).

Por volta dos anos 1970, outra iniciativa apresentada pela COBAL foi a formação de uma rede de supermercados, cujas algumas lojas foram incorporaradas aos hortomercados. No entanto, a estratégia da rede se limitou à prática de preços reduzidos, sem investimentos em outros atrativos mercadológicos, o que ocasionou a perda de clientes para as novas redes de supermercados e, por fim, o seu fechamento no final da década de 1980 (VILELA, 2006).

Este fato possibilitou, na década de 1990, o início do processo de transformação funcional dos postos da COBAL. Com a desativação do supermercado do órgão, incorporado à área dos boxes de hortifruti do Hortomercado Humaitá, surgem anos mais tarde, novos estabelecimentos, tais como bares e restaurantes.

'Até o fim dos anos [19]80, um amplo mercado ocupava a área onde hoje funcionam restaurantes da Cobal do Humaitá. A mudança começou em 1992 e um ano depois foram abertos os primeiros bares no local, que logo virou um dos ‘points’ preferidos dos cariocas” (O GLOBO, 09 mai. 2002).

As novas funções transformaram o espaço em um novo local de

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encontro, lugar de atividades múltiplas com novos usos e opções aos seus frequentadores:

“Frutas, legumes, verduras e peixe são encontrados em qualquer feira. Mas não é qualquer lugar que une todos esses artigos com o prazer de comer pizza e beber chopp, alugar filmes, comprar roupas, desfrutar de culinárias como japonesa e árabe ou até mesmo pagar contas. Essas são algumas das mil faces encontradas na Cobal [do Humaitá]” (KAMNITZER e HENRIQUES, 2007)

De simples hortomercado, a COBAL do Humaitá se tornou pólo gastronômico. Além dos usuários da região e da cidade, o mesmo passou atrair turistas de outras cidades do país e do mundo, caracterizando-a como um dos atrativos locais. [...] A COBAL se configurou como ponto de referência do bairro do Humaitá e, no imaginário, atribuem-se a ela novos significados. A sigla perdeu seu significado de mercado público institucional da extinta Companhia Brasileira de Alimentos para se tornar um nome próprio de um local de diversidades (gastronomia, boemia e cultura)."7

Esta breve digressão histórica é relevante para o deslinde da causa, pois demonstra que o uso atual de tais Hortomercados mescla, ao mesmo tempo, atividades finalísticas da atual CONAB, contempladas em seu objeto social, com atividades totalmente estranhas às finalidades para que a CONAB (e, antes dela, a COBAL) foi instituída. Pode-se dizer que, atualmente, apenas a atividade de oferta de locais para que pequenos e médios produtores possam escoar a sua produção em bairros de classe média e média alta, ao mesmo tempo abastecendo tais classes sociais com estes produtos alimentícios, configura objeto social da CONAB, nos termos do 6º, inc. V, do Decreto nº 4.514/2002. As demais atividades de lazer e gastronômicas, como bares e restaurantes, certamente não guardam qualquer relação com o objeto social

7 Ibidem. p. 11-12.

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da empresa pública.

Portanto, a meu ver, a locação de imóveis para que particulares (pequenos e médios distribuidores de produtos agrícolas) vendam hortifrutigranjeiros claramente insere-se nas atividades-fim da CONAB. Resta agora saber se esta situação se enquadra em regime de preponderância do direito público de prestação de serviço público essencial ou de exploração monopolística de atividade econômica ou se a hipótese se adequa à exploração de atividade econômica em livre concorrência com predomínio do direito privado.

A meu sentir, não é possível sustentar que haja, na espécie, monopólio ou serviço público essencial na exploração da compra e venda de produtos alimentícios. Ao contrário, usualmente a compra e venda de gêneros alimentícios é atividade submetida ao regime de livre concorrência, especialmente quando se trata de Hortomercados localizados nas áreas de Botafogo e Leblon da cidade do Rio de Janeiro, bairros estes amplamente servidos por mercados privados que também comercializam os mesmos gêneros alimentícios (hortifrutigranjeiros). Portanto, deve preponderar o regime privado nestas avenças que, além de constituírem atividade-fim da CONAB, são exercidas em livre concorrência. A situação, obviamente, é bastante diversa daquela em que a CONAB, em área carente e desprovida de mercados privados, realiza doação de víveres à população local.

Assentados estes pontos, surge agora uma questão de índole constitucional, indiretamente posta pelo recurso da CONAB ao requerer que seus contratos não sejam submetidos à Lei de Locações, mas a um regime de direito administrativo, por se tratar de empresa pública: caso se aplique à CONAB o regime administrativo, afastando-se a Lei de Locações, estaria tal empresa obrigada a licitar o acesso a tais espaços como exige o regime do direito público para as empresas estatais?

Em regra, o imperativo da licitação decorre de expressa imposição constitucional (art. 22, XXVII8, art. 37, caput e inc. XXI9 e art. 173, § 1º,

8 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).9 Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

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inc. III10) e legal (art. 1º, parágrafo único11 e art. 2º, caput12 da Lei n. 8.666/1993), obrigando todas as empresas estatais, independentemente da natureza das atividades por elas realizadas, a se submeter a algum tipo de regime licitatório. Esta a regra geral, que admite apenas as exceções de dispensa de licitação previstas em lei ou as situações de inexigibilidade de licitação, por ser esta inviável. Não à toa, o E. STJ já decidiu que o dever de licitar incidente sobre pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Indireta (como a CONAB) decorre da própria Lei Maior:

ADMINISTRATIVO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. SERVIÇOS ADVOCATÍCIOSNÃO SINGULARES. ATIVIDADE MEIO. LICITAÇÃO. OBRIGATORIEDADE. 1. O disposto no art. 121 da Lei 8.666/93 não exclui os contratos firmados antes da sua vigência por sociedades de economia mista, da obrigatoriedade de serem precedidos de procedimento licitatório, o que já ocorria na vigência do Decreto-Lei nº 2.300/86. 2. A obrigatoriedade de observar o regime de licitações decorre do disposto no art. 37, XXI, da Constituição Federal, e, antes mesmo do advento da Lei 8.666/93, as sociedades de economia mista já estavam subordinadas ao dever de licitar. 3.

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.10 Art. 173 - § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;11 Lei 8.666/1993 - Art. 1o Esta Lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei, além dos órgãos da administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.12 Art. 2o As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.

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Malgrado sejam regidas pelo direito privado, as sociedades de economia mista, ainda que explorem atividade econômica, integram a administração pública estando jungidas aos princípios norteadores da atuação do Poder Público, notadamente a impessoalidade e a moralidade. 4. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 80061 PR 1995/0060916-9, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 24/08/2004, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 11/10/2004 p. 244)

Por outro lado, a doutrina indica que é possível abrir uma exceção para que as empresas estatais exploradoras de atividade econômica em regime de livre iniciativa não submetam suas atividades-fim à licitação (mas não as atividades-meio), sob pena de prejudicar tais empresas estatais ao inviabilizar a concorrência em termos de livre mercado. A situação, em verdade, constitui uma hipótese de inexigibilidade de licitação, por ser esta inviável. A inviabilidade da licitação decorre de que a exploração de atividades econômicas em livre concorrência pelas estatais exige delas um dinamismo próprio do mercado, sem o quê haveria um desequilíbrio com as concorrentes privadas que não se submetem à licitação, como asseveram RUY DE JESUS MARÇAL CARNEIRO e SARA DINARDI MACHADO:

"A licitação é definida como procedimento administrativo, de caráter vinculado, que visa a estabelecer uma disputa entre os administrados interessados em contratar com a Administração Pública, de forma a travar o negócio mais favorável ao interesse público, assim respeitado o princípio da vantajosidade, bem como o da isonomia entre os participantes (JUSTEN FILHO, 2004, p. 12). Tal procedimento administrativo, segundo o Art. 37 da Constituição Federal, possui caráter obrigatório a todos os sujeitos da Administração Pública, tanto direta quanto indireta, enquanto antecedente necessário ao estabelecimento de suas relações jurídicas de cunho econômico, ou seja, contratos administrativos.Nessa dinâmica, o certame licitatório pode ser entendido como expressão clara do regime jurídico de direito público, imbuído no interesse público preliminarmente, e nos princípios constantes do regime jurídico administrativo. Entretanto, enquanto expressão de caráter público, fundada nos princípios que tal condição lhe atribui, a licitação adquire aspectos de formalismo, de rigor inclusive exacerbado, o que conota a morosidade do certame como um todo. Esses característicos são

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decorrência natural da imensa gama de pressupostos a serem preenchidos pelos procedimentos administrativos, de modo a satisfazer e respeitar seu regime jurídico, o administrativo.Assim, diante dessa visão formal e morosa do procedimento licitatório, gera-se um conflito: a incompatibilidade entre tal procedimento e a exploração da atividade econômica pelas empresas estatais, em especial, sob forma de competição, uma vez que, fazendo parte da Administração Pública, tais entes, segundo o Art. 37 citado, têm o dever de observá-lo, entretanto, sua atividade, a econômica, é dependente de tamanha dinamicidade, que, se aplicado tal certame, com seus aspectos morosos, impediria seu sucesso no setor econômico, enquanto sujeito atuante em iguais condições com os particulares. Especificando ainda mais a matéria, conclui-se que haverá a incompatibilidade entre a licitação, enquanto expressão do regime jurídico de direito público, e as atividades fim imediatamente exercidas por tais entes, incompatibilidade esta que não se demonstra quando do exercício das atividades-meio. [...]Chega-se ao paradigma de conciliar tal antagonismos, permitindo a regência por normas de direito público de atividades de caráter eminentemente privado. Um meio de legal de conciliar tal conflito é encontrado na própria lei de licitações (lei. 8.666/1993), com a aplicação do instituto da inexigibilidade. Tal instrumento é de caráter excepcional, sendo cabível nas hipóteses em que há a impossibilidade de aplicação do certame licitatório, diante da extrema inviabilidade de competição, aspecto esse essencial ao procedimento aqui ressaltado. Este instituto tem previsão no Art. 25 da lei de licitações, e é utilizado em situações em que a licitação, enquanto instrumento para a consecução do interesse público, passa a feri-lo, tornando-se inútil, ou mesmo desvantajosa sua aplicação."13

13 CARNEIRO, Ruy de Jesus Marçal; MACHADO, Sara Dinardi. A obrigatoriedade da licitação para empresas estatais exploradoras da atividade econômica sob forma de participação. Revista de Direito Público, Londrina, v. 1, n. 1, p. 3-12, jan./abr. 2006

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No mesmo sentido, o esclarecedor ensinamento de MARÇAL JUSTEN FILHO:

"A obrigatoriedade da licitação poderia inviabilizar o desempenho de certas atividades. Assim, imagine-se impor a uma distribuidora de combustíveis, controlada pelo Estado, o dever de realizar licitação para ‘alienar combustível’. A venda de combustíveis é o núcleo da atuação dessa empresa estatal. Subordinar essa contratação a uma prévia licitação corresponderia a impedir a atuação empresarial no mercado.Do mesmo modo, uma instituição financeira não está obrigada a licitar contratos de conta corrente bancária. Mas será diferente a situação quando a contratação não estiver abrangida no âmbito do objeto desenvolvido no mercado, em competição com outros agentes, em igualdade de condições. Assim, a construção da sede administrativa de entidade da Administração indireta comporta plena aplicação do regime licitacional, precisamente porque não há vínculo com a atividade de mercado que constitui o núcleo de sua atuação.A distinção foi consagrada na doutrina e encampada em decisão do Tribunal de Contas da União, tal como se evidencia do texto do Acórdão n° 121/1998 (rel. Min. Iram Saraiva). Examinou-se, naquela oportunidade, a contratação de transporte de combustíveis líquidos pela Petrobras Distribuidora S.A. Concluiu-se no sentido de ser cabível a ‘contratação direta de bens, serviços e produtos atinentes à atividade-fim da BR, ou seja, aqueles decorrentes de procedimentos usuais de mercado em que atua e indispensáveis ao desenvolvimento de sua atividade normal (...)’. A decisão do TCU acolheu, por isso, o entendimento de caracterizar-se hipótese de dispensa de licitação para as atividades-fim desempenhadas pelas entidades administrativas que exercitam atividade econômica. Somente as atividades-meio exigiriam a prévia licitação. A única e pequena ressalva que se poderia fazer ao entendimento envolve a qualificação da hipótese. Afigura-se que melhor seria enquadrar a situação no âmbito da inexigibilidade de licitação.Na conclusão, o TCU asseverou que ‘em confronto com o disposto no artigo 173 da CF/88 (...) o artigo 37 apenas estabelece uma regra geral, que não é absoluta, pois encontra exceção exatamente na disciplina jurídica constitucionalmente estabelecida

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para as empresas estatais exploradoras da atividade econômica, as quais devem atuar em regime de competição, ao lado dos particulares, em relação aos quais não pode ter nem privilégios nem desvantagens, salvo aqueles decorrentes dos fins sociais que determinam sua criação’.O fundamental reside em que a decisão reconheceu a possibilidade de contratação direta nas hipóteses de mecanismos de mercado incompatíveis com a licitação, demandando rapidez e informalidade para o êxito empresarial. A submissão dessas contratações a licitação acarretaria a inferioridade da entidade administrativa perante competidores no mercado. Passaria a ter preços mais elevados e perderia a clientela. Não poderia aproveitar vantagens que descobrisse no mercado, eis que a contratação não seria realizada segundo os mesmos procedimentos característicos da atividade mercantil.A distinção entre atividade-meio e atividade-fim, que se difundiu especialmente a partir da jurisprudência trabalhista, configura uma árdua questão e tende a conduzir a resultados frustrantes. Afinal, uma mesma atividade pode ser qualificada como ‘fim’ ou como ‘meio’, dependendo do parâmetro de comparação. Portanto, deve-se adotar enorme cautela com a utilização dessa conceituação. A diferença entre atividade-fim e atividade-meio está na vinculação do contrato com o objeto cujo desenvolvimento constitui a razão de ser da entidade. A atividade-fim é aquela para a qual se vocaciona a sociedade de economia mista ou empresa pública. Considera-se todo o restante como atividade-meio.Nem sempre é simples a diferenciação, eis que inúmeras contratações se referem indiretamente à atividade-fim. Assim, a aquisição de insumo necessário à produção de um derivado ou manufaturado enquadra-se na atividade-fim. Mas a construção de uma fábrica não estaria albergada na mesma categoria, comportando submissão ao procedimento licitatório.O tema voltou a ser objeto de considerações do TCU, posteriormente. Tratou-se de questionamento sobre contratação

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realizada pelo Banco do Brasil. No voto do Min. Guilherme Palmeira, ficou consignado que ‘exigir do Banco do Brasil - nas condições postas de estar atuando em um mercado concorrencial, sob o jugo do principia da eficiência - a realização de licitação para contratar seguro de penhor rural nas operações de financiamento rural iria de encontro às próprias deliberações desta Corte em que foram excepcionadas da incidência da Lei n° 8.666/1993 aquelas operações incluídas nas atividades finalísticas das empresas. Nos termos já decididos, até que seja editada a norma legal de que trata o art. 173, § 1o, da Constituição Federal, as estatais deverão observar os ditames da Lei n° 8.666/1993 e de seu próprio regulamento, podendo utilizar-se da situação de inexigibilidade quando da contratação de serviços que constituam sua atividade-fim.’ (Acórdão n° 624/2003, Plenário)."14

Portanto, a exceção ao mandamento constitucional da licitação refere-se às atividades-fim de empresas estatais que atuam em regime de concorrência com os demais particulares, não a atividades-meio, uma vez que tais empresas estão sim obrigadas a licitar nestas hipóteses (e.g., se a CEF desejar construir uma nova sede, situação esta que não compreende sua atividade-fim, deverá realizar licitação para escolher o realizador da obra).

Assim, em relação ao espaço físico dos Hortomercados do Humaitá e Leblon, creio que se deva aplicar um sistema dúplice. Em relação à disponibilização de imóveis de propriedade da CONAB (bens privados) para venda de hortifrutigranjeiros, situação que se relaciona diretamente com a atividade-fim da CONAB, a exigência constitucional da licitação pode ser dispensada, nos termos do acima explanado, aplicando-se então o regime de direito privado previsto na Lei de Locações (Lei n. 8.245/1991). Contudo, em relação a imóveis aplicados a outras finalidades, como bares e restaurantes, que não encontram guarida em qualquer política pública de abastecimento nem se relacionam com os fins da CONAB, a licitação para o uso do espaço se impõe.

Ora, se a CONAB não foi instituída como empresa pública que tem por objeto a exploração do mercado imobiliário locatício, a mera exploração do patrimônio da Apelante, com o objetivo de gerar receitas para si mediante aluguel a privados para implantação de bares e restaurantes, por não constar

14 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012. p. 29-30.

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de sua atividade-fim, impõe o dever de licitar.

A conclusão de submissão dos contratos de locação em Hortomercados da CONAB ao imperativo da licitação, para o caso das atividades-meio, é reforçada pelo fato de que a própria CONAB, no ano de 2010, por meio do Processo CONAB/SUREG/RJ Nº 21.202000015/2009-18, delegou a permissionário o uso de bens de sua propriedade (o controle e a manutenção dos estacionamentos existentes nos Hortomercados Humaitá e Leblon), de conformidade com propostas apresentadas por licitantes habilitadas a concorrência, sendo vencedora a empresa MINAS PARK APARECIDA ESTACIONAMENTOS LTDA, cf. publicação do Diário Oficial da União de 11 de janeiro de 2010 – Seção 3, fl. 4.

Precisamente pelo fato de que a exploração comercial de estacionamentos não é atividade-fim da CONAB, esta viu-se obrigada, para exploração econômica por privado, a licitar o espaço do estacionamento que é parte integrante do mesmo imóvel em que se localiza o box de venda de hortifrutigranjeiros cuja renovação locatícia agora se pretende (Hortomercado do Humaitá).

Ao revés, quando o aluguel é forma de concretizar seus objetivos sociais (caso da disponibilização de espaço para distribuidores de hortifrutigranjeiros), a licitação não é exigível. Observe-se que minha afirmação é de que a licitação não é exigível apenas nos casos em que: 1) a locação cumpre os fins da CONAB; 2) estes fins relacionam-se a atividade econômica explorada em regime de livre concorrência. Ausente qualquer um desses pressupostos, a licitação será obrigatória. Por exemplo, a cessão do uso do estacionamento dos Hortomercados do Humaitá e Leblon teve de ser licitada precisamente pelo fato de que cumpre apenas um dos pressupostos, qual seja, a atividade econômica explorada em regime de livre concorrência. Contudo, não atende ao outro pressuposto, a saber, não é atividade finalística da CONAB explorar a renda de estacionamentos.

O que não cabe, até mesmo por violar a boa-fé em seu sentido objetivo

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("teoria dos atos próprios" - nemo potest venire contra factum proprium), é que a CONAB dispense regularmente a licitação no caso de realização de atividade finalística, contrate com base na Lei de Locações e depois não queira se submeter a seus ditames no momento de renová-lo. E é precisamente isto que pretende a CONAB em sede de Apelação, pois os presentes autos versam especificamente não sobre bares e restaurantes, mas acerca da locação comercial de uma distribuidora de hortifrutigranjeiros de pequeno porte, como demonstram as cópias dos atos constitutivos juntadas aos autos (fls. 16-18).

Advirta-se que a solução seria outra se a dispensa à licitação fosse irregular por veicular locação comercial para exercício de atividade-meio de mera geração de renda (como o aluguel a bares e restaurantes) e não atividade-fim. Neste caso, por expressa obrigação constitucional, não poderia prosperar a assinatura de um contrato de locação sem que fosse submetido anteriormente à licitação.

Superada a questão de direito sobre a possibilidade de assinatura e renovação de contratos de locação regidos pela Lei de Locações para exercício de atividade-fim da CONAB, passo por fim à análise das demais questões colocadas em sede recursal.

Quanto ao pedido, por parte da Apelada, de reconhecimento de litigância de má-fé da CONAB, por entender o recurso da empresa pública como meramente protelatório, não é de ser acolhido, pois, como demonstrado ao longo do voto, a matéria está longe de ser simplista, sendo possível a qualquer das partes, sem abuso ou má-fé, sustentar as teses jurídicas que entende devidas para proteger seus interesses, cabendo então ao Judiciário decidir qual delas regerá o caso concreto.

Em relação à alegação da CONAB de que a Apelada não teria feito prova de que exerce efetivamente a mesma atividade há pelo menos três anos, requisito legal que seria exigido para renovação de locação comercial, vê-se pela bem lançada sentença que não deve prosperar tal argumento, pois a Apelada provou, às fls. 12 e 19, bem como pelo laudo de fls. 147/155, que efetivamente exercia a atividade de venda de hortifrutigranjeiros.

Quanto à alegação da CONAB, em Apelação, requerendo novo critério de reajuste do valor da locação firmado pelo d. juízo a quo como contraprestação devida pelo uso do imóvel, não pode prosperar. É que a ora

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Apelante afirmou em contestação à petição inicial (fl. 51) que o aluguel a vigorar não poderia ser inferior a R$ 1.558,40 (mil quinhentos e cinquenta e oito reais e quarenta centavos). A Apelada veio aos autos manifestar que aceitava o reajuste nestes termos, razão por que este foi o exato valor determinado pela sentença objurgada. Desta forma, pelo princípio da eventualidade ou da preclusão, cada faculdade processual deve ser exercitada dentro da fase adequada, sob pena de se perder a oportunidade de praticar o ato respectivo. Portanto, se a Apelante (CONAB) afirmou à fl. 51 que aceitaria aluguel não inferior a R$ 1.558,40 (mil quinhentos e cinquenta e oito reais e quarenta centavos), proposta esta que foi aceita pela Apelada (Distribuidora de Alimentos) e fixada pela sentença, não cabe agora manifestar-se sobre novo valor que seria o correto para a fixação do aluguel, mostrando-se inoportuna e descabida qualquer insurgência a este respeito em fase de recurso (afinal, a fixação de valores em renovatória locatícia não é matéria de ordem pública cognoscível ex officio pelo juízo recursal).

Por todo o exposto, nego provimento ao recurso.

É como voto.

MARCUS ABRAHAMDesembargador Federal

Relator

EMENTA

ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CÍVEL. LOCAÇÃO COMERCIAL. HORTOMERCADO DO HUMAITÁ ("COBAL HUMAITÁ"). CONAB. EMPRESA PÚBLICA FEDERAL. PERSONALIDADE JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO. NATUREZA PRIVADA DOS BENS DA CONAB. INOVAÇÃO EM SEDE RECURSAL QUE VEICULA MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. POSSIBILIDADE. EFEITO TRANSLATIVO DO RECURSO. AÇÃO RENOVATÓRIA LOCATÍCIA. LEI 8.245/1991 (LEI

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DE LOCAÇÕES). BEM PRIVADO DA CONAB LOCADO PARA EXECUÇÃO DE ATIVIDADE-FIM. REGIME DE LIVRE CONCORRÊNCIA. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. POSSIBILIDADE DA AÇÃO RENOVATÓRIA DE LOCAÇÃO. 1. Sentença que julgou parcialmente procedente o pedido inicial, para decretar a renovação do contrato de locação dos boxes nº 27 a 30, situados na Rua Voluntários da Pátria nº 446, Botafogo, Rio de Janeiro (Hortomercado Humaitá).2. A Recorrente alega matéria de ordem pública de que não é cabível o deferimento da renovatória de locação comercial em razão de que, por sua natureza de empresa pública prestadora de serviço público, seus bens seriam públicos, e que o contrato de exploração de seus bens rege-se primordialmente pelas regras do direito administrativo, não lhe sendo oponível a renovatória prevista no art. 51 da Lei 8.245/1991. 3. A consulta aos autos revela que a alegação de que o imóvel locado pela CONAB constitui bem público e de que o contrato de locação constituiria um contrato administrativo não foi formulada no juízo a quo, de modo que não foi apreciada no 1º. grau de jurisdição. 4. Apesar da inovação em sede recursal, que, em geral, é vedada, deve-se estar atento ao fato de que algumas das violações apontadas em Apelação versam acerca de matéria de ordem pública, a qual inclusive seria cognoscível ex officio pelo juízo por força da profundidade do efeito devolutivo do recurso, também denominada efeito translativo do recurso. Precedentes do STJ: REsp 1293721/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/04/2013, DJe 10/04/2013 ; REsp 1325838/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/09/2012, DJe 10/10/2012 ; EAg 724888/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/06/2009, DJe 22/06/2009.5. Quanto à alegação da CONAB de que seus bens seriam públicos pelo simples fato de se tratar de empresa pública prestadora de serviço público, impende reconhecer que as empresas públicas ostentam personalidade jurídica de direito privado. Por isso, os bens que integram seu patrimônio constituem bens privados, e não públicos, de acordo com o art. 98 do Código Civil. Em momento algum a CONAB demonstrou nos autos que o imóvel era público por ser de titularidade da União e que a CONAB constituiria mera possuidora do mesmo. 6. A CONAB apresenta natureza híbrida de suas atividades. Em alguns de seus objetivos sociais, claramente presta serviços públicos essenciais em caráter não concorrencial, tais como suprir carências alimentares em áreas

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desassistidas ou não suficientemente atendidas pela iniciativa privada e assistir, mediante a doação de alimentos disponíveis em seus estoques, às comunidades e famílias atingidas por desastres naturais em Municípios em situação de emergência ou estado de calamidade pública reconhecidos pelo Poder Executivo federal (art. 19, alíneas “b”, e “h” da Lei n. 8.029/1990). Em outras, concorre livremente com particulares, como nas atividades de comprar, vender, permutar, promover a estocagem e o transporte de produtos de origem agropecuária, atuando, se necessário, como companhia de armazéns gerais, na execução de operações de comércio exterior, nos mercados físico e futuro, de produtos de origem agropecuária e ao receber garantias de caução, fiança, aval, penhor e hipoteca (art. 7º, inc. I, II e VII do Decreto nº 4.514/2002).7. O caso ora sob exame versa sobre a locação de imóveis da CONAB a particulares para que estes realizem a venda de hortifrutigranjeiros. Veja-se que, nos termos do art. 6º, inc. V, do Decreto nº 4.514/2002, a CONAB é a encarregada de executar as políticas do Governo Federal nas áreas de abastecimento e regulação da oferta de produtos agropecuários no mercado interno. 8. Historicamente, os Hortomercados do Humaitá e do Leblon, localizados em pontos nobres da cidade do Rio de Janeiro, foram instalados na década de 1970 como parte de uma política pública de abastecimento para grandes centros urbanos, sendo tais locais administrados pela extinta COBAL - Companhia Brasileira de Alimentos (empresa pública federal antecessora da CONAB). A Lei nº 8.029/1990, em seu art. 19, inc. II, autorizou o Poder Executivo a promover a fusão da Companhia de Financiamento da Produção (CFP), da Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL) e da Companhia Brasileira de Armazenamento (CIBRAZEM), que passariam a constituir a atual Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), vinculada ao Ministério da Agricultura e Reforma Agrária. Foi na qualidade de sucessora legalmente estabelecida da COBAL que a CONAB incorporou a seu patrimônio tais Hortomercados.9. O uso atual de tais Hortomercados mescla, ao mesmo tempo, atividades finalísticas da atual CONAB, contempladas em seu objeto social, com atividades totalmente estranhas às finalidades para que a CONAB (e, antes

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dela, a COBAL) foi instituída. Atualmente, apenas a atividade de oferta de locais para que pequenos e médios produtores possam escoar a sua produção em bairros de classe média e média alta, ao mesmo tempo abastecendo tais classes sociais com estes produtos alimentícios, configura objeto social da CONAB, nos termos do 6º, inc. V, do Decreto nº 4.514/2002. As demais atividades de lazer e gastronômicas, como bares e restaurantes, não guardam qualquer relação com o objeto social da empresa pública.10. A locação de imóveis para que particulares (pequenos e médios distribuidores de produtos agrícolas) vendam hortifrutigranjeiros claramente insere-se nas atividades-fim da CONAB. Tampouco há, na espécie, monopólio ou serviço público essencial na exploração da compra e venda de produtos alimentícios. Ao contrário, usualmente a compra e venda de gêneros alimentícios é atividade submetida ao regime de livre concorrência. Deve preponderar o regime privado nestas avenças que, além de constituirem atividade-fim da CONAB, são exercidas em livre concorrência. A situação é diversa daquela em que a CONAB, em área carente e desprovida de mercados privados, realiza doação de víveres à população local.11. É possível abrir exceção para que as empresas estatais exploradoras de atividade econômica em regime de livre iniciativa não submetam suas atividades-fim à licitação (mas não as atividades-meio), sob pena de prejudicar tais empresas estatais ao inviabilizar a concorrência em termos de livre mercado. A situação constitui uma hipótese de inexigibilidade de licitação.12. Em relação ao espaço físico dos Hortomercados do Humaitá e Leblon, deve-se aplicar um sistema dúplice. Em relação à disponibilização de imóveis de propriedade da CONAB (bens privados) para venda de hortifrutigranjeiros (atividade econômica explorada em livre concorrência), situação que se relaciona diretamente com a atividade-fim da CONAB, a exigência constitucional da licitação pode ser dispensada, aplicando-se o regime de direito privado previsto na Lei de Locações (Lei n. 8.245/1991). Contudo, em relação a imóveis aplicados a outras finalidades, como bares e restaurantes, que não encontram guarida em qualquer política pública de abastecimento nem se relacionam com os fins da CONAB, a licitação para o uso do espaço se impõe.13. Quando o aluguel é forma de concretizar seus objetivos sociais (caso da disponibilização de espaço para distribuidores de hortifrutigranjeiros), a licitação não é exigível. Observe-se que a licitação não é exigível apenas nos casos em que: 1) a locação cumpre os fins da CONAB; 2) estes fins relacionam-se a atividade econômica explorada em regime de livre

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concorrência. Ausente qualquer um desses pressupostos, a licitação será obrigatória.14. A conclusão de que contratos não relacionados à atividade-fim da CONAB devem ser licitados é reforçada pelo fato de que a própria CONAB, no ano de 2010, por meio do Processo CONAB/SUREG/RJ Nº 21.202000015/2009-18, delegou a permissionário o uso de bens de sua propriedade (o controle e a manutenção dos estacionamentos existentes nos Hortomercados Humaitá e Leblon), de conformidade com propostas apresentadas por licitantes habilitadas a concorrência, cf. publicação do Diário Oficial da União de 11 de janeiro de 2010 – Seção 3, fl. 4. A exploração de estacionamentos não constitui atividade-fim da CONAB, razão pela qual teve de licitar ao conceder o espaço a terceiros para exploração.15. Quanto à alegação da CONAB, em Apelação, requerendo novo critério de reajuste do valor da locação firmado pelo d. juízo a quo como contraprestação devida pelo uso do imóvel, não pode prosperar. É que a ora Apelante afirmou em contestação à petição inicial (fl. 51) que o aluguel a vigorar não poderia ser inferior a R$ 1.558,40 (mil quinhentos e cinquenta e oito reais e quarenta centavos). A Apelada veio aos autos manifestar que aceitava o reajuste nestes termos, razão por que este foi o exato valor determinado pela sentença objurgada. Desta forma, pelo princípio da eventualidade ou da preclusão, cada faculdade processual deve ser exercitada dentro da fase adequada, sob pena de se perder a oportunidade de praticar o ato respectivo. Portanto, se a Apelante (CONAB) afirmou à fl. 51 que aceitaria aluguel não inferior a R$ 1.558,40 (mil quinhentos e cinquenta e oito reais e quarenta centavos), proposta esta que foi aceita pela Apelada (Distribuidora de Alimentos) e fixada pela sentença, não cabe agora manifestar-se sobre novo valor que seria o correto para a fixação do aluguel, mostrando-se inoportuna e descabida qualquer insurgência a este respeito em fase de recurso (afinal, a fixação de valores em renovatória locatícia não é matéria de ordem pública cognoscível ex officio pelo juízo recursal).16. Apelação desprovida.

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ACÓRDÃO

Vistos e relatados os presentes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Quinta Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2a Região, por unanimidade, negar provimento ao recurso, na forma do Relatório e do Voto, que ficam fazendo parte do presente julgado.

Rio de Janeiro, (data do julgamento)

MARCUS ABRAHAMDesembargador Federal

Relator