APELAÇÃO CÍVEL Nº  · Web viewMuitas vezes, há o fetiche do operador do direito com a...

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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 04/06/2019 CJUD O CONTRATO DE SEGURO Padronização (...) – fala inaudível ou ininteligível ... – fala incompleta ou interrompida Projeto Horizontes do Conhecimento O CONTRATO DE SEGURO: PERSPECTIVAS NO DIREITO BRASILEIRO E NO DIREITO COMPARADO Painel 1, 04-06-2019: Nova Lei de Seguros: Projeto de Lei n. 29-2017 DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK Bom dia a todos. É uma satisfação, em nome do Centro de Estudos do Tribunal de Justiça, acolher o público tão interessado, os estudiosos e principalmente os palestrantes, que dão um brilho especial a este Seminário O Contrato de Seguro: Perspectivas no Direito Brasileiro e Comparado. Vamos ser breves aqui na abertura. Eu vou desde logo convidar os painelistas, Dr. Ernesto Tzirulnik... Eu perguntei qual a origem, o Dr. Ernesto disse que é ucraniano, mas não está em conflito com a Rússia, não é? O Dr. Bruno Miragem já está aqui, e o Dr. Ney Wiedemann eu convido, que é o coordenador de fato. Eu sou o coordenador de direito, mas quem fez tudo... Eu agradeço desde já. Vou começar pelo nosso da casa. O Des. Ney é Desembargador aqui desde 2008. Atua na 6ª Câmara Cível, que julga Seguros também. É especializado no julgamento de processos 1

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APELAÇÃO CÍVEL Nº

04/06/2019

CJUD

O CONTRATO DE SEGURO

Padronização

(...) – fala inaudível ou ininteligível

... – fala incompleta ou interrompida

Projeto Horizontes do Conhecimento

O CONTRATO DE SEGURO:

PERSPECTIVAS NO DIREITO BRASILEIRO E NO DIREITO COMPARADO

Painel 1, 04-06-2019:

Nova Lei de Seguros: Projeto de Lei n. 29-2017

DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK – Bom dia a todos. É uma satisfação, em nome do Centro de Estudos do Tribunal de Justiça, acolher o público tão interessado, os estudiosos e principalmente os palestrantes, que dão um brilho especial a este Seminário O Contrato de Seguro: Perspectivas no Direito Brasileiro e Comparado. Vamos ser breves aqui na abertura.

Eu vou desde logo convidar os painelistas, Dr. Ernesto Tzirulnik... Eu perguntei qual a origem, o Dr. Ernesto disse que é ucraniano, mas não está em conflito com a Rússia, não é? O Dr. Bruno Miragem já está aqui, e o Dr. Ney Wiedemann eu convido, que é o coordenador de fato. Eu sou o coordenador de direito, mas quem fez tudo... Eu agradeço desde já.

Vou começar pelo nosso da casa. O Des. Ney é Desembargador aqui desde 2008. Atua na 6ª Câmara Cível, que julga Seguros também. É especializado no julgamento de processos envolvendo Direito de Seguros; Magistrado desde 1989; graduado pela UFRGS, com mestrado pela Fundação Getúlio Vargas do Rio; professor em cursos de pós-graduação em Direito e em cursos da Escola da Ajuris e da Escola Judicial do Rio Grande do Sul.

O Dr. Bruno Miragem é doutor em Direito pela UFRGS; mestre em Direito também pela UFRGS; professor adjunto da Faculdade de Direito da mesma universidade nos cursos de graduação e pós-graduação; advogado e parecerista. Já foi Procurador-Geral do Município.

O Dr. Ernesto Tzirulnik é advogado em São Paulo; graduado pela PUC-SP; doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da USP; Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Direito do Seguro; coordenador da comissão de juristas e técnicos que elaborou os projetos de lei de contrato de seguro apresentados na Câmara dos Deputados e do Senado – hoje o Projeto de Lei da Câmara n. 29/2017 –; fundador do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; autor de diversos livros sobre contrato de seguro.

Saúdo a todos e passo a palavra desde logo ao Dr. Ernesto.

DR. ERNESTO TZIRULNIK – Muito obrigado, bom dia a todos. É realmente uma felicidade para mim estar de novo em Porto Alegre. Porto Alegre é a cidade que mais debate o Projeto de Lei de Contrato de Seguro neste País, sem sombra de dúvida. Nós estivemos discutindo com a Ajuris já em São Paulo antes, quando o projeto ainda era uma minuta, e era um evento a que comparecia a Ajuris e a Escola Paulista da Magistratura. O Rubén Stiglitz foi para lá falar sobre o capítulo do Código Civil brasileiro a respeito do contrato de seguro, e havia uma missão de Desembargadores gaúchos e paulistas para estimular o debate, apresentar casuística e transformar aquilo em uma experiência mais viva. Nós nunca registramos uma falta da Ajuris. Registramos um sem-número de faltas do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, enfim, mandava mensagens dizendo que acompanharia o Relator. Então, a Ajuris está nesta história desde o ano 2000.

Eu tenho uma responsabilidade muito grande, porque estou sentado ao lado do Des. Umberto, que é uma mistura de bom vinho com boa comida. Ele é Guaspari, que é o melhor vinho de São Paulo, e ele é Sudbrack, uma das melhores chefs do Brasil no Rio de Janeiro. Então, imagina a responsabilidade que, só por aí, já tenho.

Eu queria cumprimentar o Prof. Bruno Miragem, que tem sido um dos maiores divulgadores e debatedores do Projeto de Lei de Contrato de Seguro. Também saúdo o Des. Ney Wiedemann Neto, que vocês todos conhecem. É sem sombra de dúvida o mais mobilizado dos Desembargadores brasileiros em torno do contrato de seguro. Ele está em todos os eventos, participa de tudo, discute e, não sem razão, tem a sua produtiva atuação como Juiz de Tribunal, Desembargador, aqui no Rio Grande do Sul. Eu queria agradecer também à Luiza Petersen, que fez parte deste convite. Finalmente, saúdo a Prof.ª María Fabiana Compiani; a Prof.ª Andrea Signorino, que é da minha segunda pátria; o Prof. Felipe Aguirre, da Argentina, que eu acho que ainda não está aqui, mas estará conosco, e finalmente o Prof. Pablo Medina, que veio do México e vai estar, eu creio, amanhã com vocês.

O tema é o Projeto de Lei de Contrato de Seguro, em termos de perspectivas e direito comparado. Embora muitos aqui já conheçam bem o projeto, porque eu os reconheço das atividades anteriores, eu vou falar um pouco sobre o projeto e, como não estão aqui os peruanos, eu vou pincelar um pouco da lei peruana, que é uma lei recente, assim como a lei uruguaia, de 2018, a Lei Especial de Contrato de Seguro, mas vou falar um pouco sobre o projeto dentro desse cenário de prospectivas.

Em primeiro lugar, o projeto é fruto de uma cooperação entre juristas, gente da área do Direito do Seguro. Eu; o Dr. Paulo Piza, que vai estar com vocês na próxima palestra; o Flávio Queiroz Cavalcanti, que já faleceu, do Pernambuco; Werter Faria, que foi Desembargador aqui e que tem o melhor texto sobre apólice de seguro no Direito brasileiro; o Athos Carneiro, que também já se foi; o Ovídio Baptista da Silva, que também já se foi – nós estamos perdendo gente de muita importância ao longo do processo – e a Judith Martins-Costa participamos desde o início. Não só eles, o Prof. Voltaire Marensi também está presente nas nossas atividades desde o princípio, com a ideia de formular um texto que pudesse representar avanço na dogmática brasileira sobre o contrato de seguro. Na produção desse texto, nós procuramos, desde o princípio, contar com alguns cooperadores. Eu vou mencionar apenas alguns que atuaram ou no nascimento, ou logo em seguida, ou depois de algum estágio, porque é um projeto que já tem uma vida de 15 anos, praticamente, então houve tempo de haver uma série de filtros e cortes, e muita gente contribuiu. Além dos gaúchos que estavam na origem, para falar dos estrangeiros, Rubén Stiglitz, da Argentina; Pablo Medina, do México; os Professores José Carlos Moitinho de Almeida, João Calvão da Silva e Maria Inês de Oliveira Martins, de Portugal; os italianos Luigi Farenga, Alberto Monti, Aurelio Donato Candian; os franceses Hubert Groutel, Luc Maillot e, mais recentemente, a Prof.ª Anne Pélissier. Quer dizer, existe um sem-número de pessoas que... Na Espanha, enfim... Foi muito profícuo o projeto. É um projeto que foi muito discutido em programas de pós-graduação. Talvez o mais participativo, o que mais vezes esteve no Brasil e o que mais contribuições mandou tenha sido o Prof. José María Muñoz Paredes, catedrático de Oviedo.

Então, é um projeto que nasceu com um diálogo com o mercado segurador, em uma época até que eu vejo... Um senhor fundamentalista lá atrás participou bastante, o Márcio Malfatti, quando estava no Sindicato das Seguradoras de São Paulo. Depois, o projeto tomou uma cara de que era um projeto contra o mercado segurador e ele passou a sofrer alguns problemas de enfrentamento. De forma que é um projeto que nasce no IBDS, nasce na discussão com o mercado, mas em um determinado momento o então Presidente da Federação Nacional das Seguradoras, a então Fenaseg, disse: “Olha, o Código Civil é muito novo,” – o que nós não achávamos – “e o projeto vai ter que nascer dentro do sistema segurador,” – que é o que considerava mais adequado – “e nós não vamos apoiar. Nós vamos confrontar”. Então, ele nasce com um confronto com as entidades de liderança dos seguradores e dos corretores de seguros, a Federação Nacional dos Corretores de Seguros, que sempre quis que a palavra “agente” jamais aparecesse na lei, porque o único intermediário ou interveniente que poderia aparecer era o corretor de seguros, ao mesmo tempo em que não queria que aparecesse a formação do prêmio, ou a estrutura do prêmio, ou a composição do prêmio, para que não fossem de divulgação fácil os comissionamentos, que nós bem conhecemos aqui no Brasil como são, às vezes, tão avantajados.

Ele começa com essa característica. Quem o apoia são pessoas individualmente. Então, no mercado segurador, (...), o Wady Cury, o Paulo Marraccini, mas individualmente; as lideranças, não. Ele ganha o apoio desde o início do Brasil com... e do Idec, um órgão de representação de consumidores. Depois, ele ganha o apoio da FIESP e ganha o apoio da CNI, Confederação Nacional das Indústrias. Finalmente, em 2015, depois de muitas batalhas, de muitos outros números de projetos de lei que vieram para ressuscitar o projeto de 2004, aparecem no cenário, de uma forma bastante proativa, a Confederação Nacional das Seguradoras, a CNseg, e a Federação Nacional dos Corretores de Seguros, a Fenacor. Com base no pacto que veio a ser celebrado com essas duas, que eram as duas entidades que ofereciam conflito ao projeto, nós conseguimos rapidamente que o projeto se transformasse em projeto de lei da Câmara, que é o 29-2017, que está aí na tela.

O tempo é muito pouco para falar sobre o projeto, o projeto tem muita coisa, mas eu gostaria, em primeiro lugar, de ressaltar que é um projeto que tem qualidade reconhecida internacionalmente. Quem for à exposição de motivos da lei portuguesa vai encontrar menção aqui a apenas dois projetos de lei, foram utilizados para a produção de um novo regime jurídico do contrato de seguro de Portugal de 2007 e são eles: o projeto alemão, que já virou lei, e o Projeto n. 3.555/2004, que é o projeto brasileiro. Foi um projeto muito discutido. Na Universidade de Buenos Aires, o Prof. Felipe Aguirre fez por dois anos cursos específicos sobre o Projeto de Lei de Contrato de Seguro, e muitos autores latino-americanos e europeus escreveram a respeito desse projeto. Na agenda brasileira, ele ficou muito contido, eu diria, mas fora dela ele prosperou mais do que por aqui.

Finalmente, também em 2017, nós tivemos o comparecimento, com apoio e um discurso muito enfático, da Comissão de Direito do Seguro e Resseguro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Hoje o projeto está na CCJ, na Comissão de Justiça e Cidadania do Senado Federal. O Relator é o Senador Rodrigo Pacheco, de Minas Gerais. Eu acredito que deva receber o projeto parecer realmente favorável muito rapidamente, nas próximas semanas.

Princípios Fundantes. Um dos princípios fundantes, um dos focos com que se elaboraram as regras desse projeto é considerar o seguro como um contrato sujeito ao sistema de direito obrigacional e trazer unicidade de linguagem. É interessante notar que as primeiras críticas havidas ao projeto quase que sistematicamente diziam que o projeto fala uma língua diferente da língua do mercado segurador, mas essa era uma intenção do projeto. Ele queria falar a língua do Direito Privado. Então, para não criar categorias com outras denominações, ele usa de propósito a palavra “estipulante” para ser aquele que estipula, e não só o estipulante do seguro grupal de vida e acidentes pessoais. Ele procura trazer uma unidade de linguagem e uma unidade de disciplina. Ele também traz a unidade dogmática, o mesmo regime para todos os seguros.

Eu acho que é de 2012 a lei peruana, não é? Em 2012... E esta é uma crítica que se faz muito ao projeto: ele é um projeto de lei de contrato de seguro para todos os seguros, ele só ressalva o seguro saúde. Seguros de grandes riscos, seguros de massa, todos têm o mesmo regime. Se nós formos verificar as legislações que existem em qualquer continente, vai ser praticamente impossível encontrar regimes distintos. O que fazem as leis é, em determinados casos, para determinados efeitos, estabelecer parâmetros um pouco distintos – “seguros de valores até determinado... vai ter uma trava aqui”; “seguros de vida têm uma trava aqui”, “no regime do agravamento de risco, vai ser diferente” –, mas nunca tratar os seguros, os microsseguros e os megasseguros como coisas distintas. Tem que ter uma unidade de disciplina. Isso o projeto fez também. O do Peru vem em 2012 e diz o seguinte: “Art. 1º - A presente lei se aplica a todas as classes de seguro e tem caráter imperativo, salvo que admita expressamente o contrário na própria lei. Não obstante, entender-se-ão válidas as estipulações contratuais que sejam mais beneficiosas para o segurado”. É o mesmo que nós dizemos no Projeto de Lei de 2004. Seu art. 9º prevê que o contrato de seguro se aplicará a todos os negócios securitários, em suas distintas modalidades, sendo de incidência exclusiva quando forem contratos de seguro celebrados por seguradora autorizada a operar no Brasil; quando o segurado ou proponente tiver residência ou domicílio no País; quando no Brasil situarem-se os bens sobre os quais recaírem os interesses garantidos ou sempre que os interesses garantidos recaírem sobre os bens considerados relevantes para o desenvolvimento da infraestrutura brasileira.

Então, só por aí se pode ver que o projeto procura ser, como a lei peruana, uma norma cogente que se aplica a todas as classes de seguro e ele dá uma certa atenção especial para a questão da superação do subdesenvolvimento. Ele fala: “O Brasil é um país diferente dos demais. O Brasil não é um país que tenha grande cultura sobre o contrato de resseguro, o Brasil não é um país que tenha grande cultura sobre o contrato de seguro”. O contrato de seguro ficou fora da agenda jurídica por muitos anos. O Brasil não tem operações amadurecidas, ainda mais quando ele passa por 70 anos de monopólio de resseguro, e o monopólio de resseguro formulava tanto o conteúdo das garantias quanto as liquidações, até mesmo dos sinistros. A regulação e liquidação do sinistro era competência do IRB. O sistema era um sistema tutelar maravilhoso, porque todos os riscos deveriam ser aceitos pelo IRB, exceto os que contrariassem a segurança nacional e os que contrariassem a possibilidade técnica de asseguramento em si mesmo, ou seja, isso não é passivo de asseguramento.

De repente, muda, quebra o regime do monopólio, sem lei de contrato contemporânea, com poucas regras. O mercado se desorganiza, começam a existir seminários e seminários de um assunto chamado riscos declináveis, ou seja, o apetite dos resseguradores estrangeiros e dos resseguradores locais não era o mesmo apetite de resseguro de que o Brasil precisava e com o qual estava acostumado, então a questão das colocações já começou a ficar difícil. O padrão dos clausulados mudou, quer dizer, talvez para muitos aqui falar em propriedade tangível seja uma coisa muito íntima, mas nós falávamos coisas no Direito Civil, direito das coisas, não é direito da propriedade tangível. Essa expressão veio da experiência anglo-saxã, estabelecendo-se nas apólices brasileiras. De repente, os interesses sobre os bens, que é o que se garantia... E com isso se garante muito mais do que apenas danos físicos às coisas. A perda da utilidade da coisa, por exemplo, é uma lesão magnífica ao interesse sobre a coisa, mas não é um dano físico necessariamente. Então, nós perdíamos conteúdos e, ao mesmo tempo, nós importávamos expressões, linguajares que não se coadunam com o nosso direito privado, com o nosso direito obrigacional também.

Um outro ponto: hoje, nós temos uma medida provisória que saiu recentemente, a da liberdade econômica. Eu não conheço a opinião dos senhores, mas a minha é a pior possível. Lá se fala agora em contratos empresariais. Contratos empresariais teriam um regime distinto. Nesse projeto não há contratos empresariais nesse conceito de contratos empresariais que está tentando se colocar naquela medida provisória. Todo contrato de seguro é um contrato de adesão. Ninguém dos que participaram das diversas comissões jamais teve qualquer dúvida a respeito disso. Eu sei que existem autores que falam em contrato semiadesão. No seguro não existe isso. Hoje, depois da abertura de mercado, então, os padrões vêm de fora. Nós temos seguros de obras de infraestrutura brasileira que mencionam testemunhas da Rainha na apólice, na abertura da apólice, que têm a marca d’água lá embaixo: Civil Law Latin-American Country. É assim que as coisas acontecem. Muitas vezes – hoje a coisa mais comum é isto; se for falar em grandes riscos, então, não há uma exceção sequer – as seguradoras trazem o clausulado que os resseguradores lhes determinam. Senão, elas não têm resseguro. Então, falar que a megaempresa não seguradora, segurada, tem igualdade na formação da apólice de seguro é um absurdo. Não tem igualdade na formação, não é ela que emite, não assina o documento. O documento vem depois, inclusive, do início de vigência. Bom, então todas essas questões foram atentadas.

Ainda com o seguro como instrumento de desenvolvimento, o projeto brasileiro prevê, nos arts. 1º e 2º, que o importante dos efeitos, não só normativos, como também didáticos... que a atividade seguradora será exercida de modo que se viabilizem (I) os objetivos da República; (II) os fins da ordem econômica e (III) a plena capacidade do mercado interno, nos termos dos arts. 3º, 170 e 219 da Constituição Federal, para mostrar que contrato de seguro não é uma coisa que está apartada do sistema jurídico brasileiro como um todo, integrando-se na atividade seguradora, além dos contratos de seguro, também os contratos necessários à sua plena viabilidade, como o resseguro e a retrocessão.

Há pontos em que resseguro e retrocessão são fundamentais para o funcionamento do seguro, e não é possível o legislador ignorar isso. Seguro como direito humano até. Em uma sociedade plena de riscos, aqueles que conseguem se assegurar ganham uma nota de cidadania. As empresas, nem se diga. Elas são excluídas dos seus mercados se não conseguem, mas as pessoas também, qualquer pessoa. Existe lá uma regra que diz o seguinte: “Os critérios comerciais e técnicos de subscrição ou aceitação de riscos devem promover a solidariedade e o desenvolvimento econômico-social, sendo vedadas políticas técnicas e comerciais conducentes à discriminação social ou prejudiciais à livre iniciativa empresarial”. É o art. 52, no seu § 5º.

Proteção dos consumidores. A proteção dos consumidores se dá não só fazendo referência à concorrência de incidência do Código de Defesa do Consumidor, como também por meio de regras específicas. Eu vou dar o exemplo do art. 95, que diz o seguinte: “Na hipótese de sinistro parcial...” A famosa cláusula de rateio. A cláusula de rateio, Desembargador, é uma cláusula que surpreende todo o mundo. O sujeito fez o seguro do prédio dele por um milhão, pegou fogo, queimou tudo, ele vai lá, a seguradora fala: “Olha, você só tem 200 mil”. Ele fala: “Isso é um absurdo”. Não entra na cabeça, a pessoa não espera. “É porque a declaração do valor do interesse no momento da contratação do seguro foi inferior ao real valor. Você declarou 20% lá no início, quando contratou o seguro, então você vai receber 20% agora.” Porém, isso não é conversado, não é tratado. Isso causou muita surpresa, a ponto de o Supremo Tribunal Federal, há décadas, haver considerado nula a cláusula de rateio.

Depois, no Código de 2002, que na realidade foi escrito lá pelos anos 50, 60, veio a regra em que o mercado segurador tinha conseguido colocar no Código Civil um instrumento de pacificação: “Vale a cláusula de rateio”. Foi uma conquista. Engraçado, porque, naquele momento, o rateio já não existia mais em quase todas as operações de seguro brasileiras. Nós tínhamos aprendido que a cláusula de rateio era uma cláusula polêmica, no mínimo, e nós passamos a desenvolver seguros sem rateio. Deixávamos o rateio para os grandes seguros industriais, para coisas muito especiais. Mas a pequena empresa, a média empresa, as pessoas físicas conviviam com cláusulas sem rateio. Quando veio o Código, voltou a ter o rateio como princípio na regra recente. O mercado voltou a operar o rateio e voltou a ter o problema do conflito. Então, o que faz o projeto? Ele vai dizer: “Na hipótese de sinistro parcial, o valor da indenização devida não será objeto de rateio em razão de seguro contratado por valor inferior ao do interesse, salvo disposição em contrário. §1º Quando expressamente pactuado o rateio, a seguradora exemplificará na apólice a fórmula para cálculo da indenização”. Ou seja, tem que ser negociado especificamente e tem que mostrar o que aquilo vai gerar no momento do sinistro, para que a pessoa compreenda bem: “Olha, vai receber 200. Não vai receber 500, nem 300, nem 450, nem 1 milhão”. “§2º A aplicação do rateio em razão de infrasseguro superveniente, ou seja, quando o valor do interesse se tornar maior, ao longo da execução do contrato de seguro, durante a vigência do contrato de seguro, será limitado aos casos em que for expressamente afastado na apólice o regime de ajustamento final de prêmio, e o aumento do valor do interesse lesado decorrer de ato voluntário do segurado.”

Então, duas coisas: se o valor do interesse descola do valor do bem ao longo da vigência do contrato, primeiro, tem que estar previsto na apólice que poderá gerar um efeito. Não poderá ser apólice que tem um regime de ajustamento final de prêmio, porque muitas apólices têm uma cláusula dizendo que no final se apuram os prêmios devidos durante a vigência, se houver alguma distorção. Então, não faz sentido. (...) vai se apurar o prêmio devido. Se houve um descolamento do valor do interesse, então que faça esse cálculo e mantenha o contrato sempre válido. E mais, que esse aumento do valor do interesse tenha sido um ato voluntário do segurado, ou seja, o segurado quis fazer benfeitorias ou quis mudar a destinação do uso do bem e, por isso, ele vai ter que sofrer o rateio.

Transparência é um outro ponto do projeto. Um dos pontos mais problemáticos nos negócios, especialmente nos negócios de massa, é a transparência. Eu sempre elogio muito o Rio Grande do Sul, mas agora vou fazer uma crítica. Eu era professor na Faculdade de Direito da Getúlio Vargas e fui chamado para dar um prêmio para uma seguradora, que ganhou um concurso de sinistralidade. Lembra, Paulo? A sinistralidade dessa seguradora era zero. Ela operava aqui no Sul créditos consignados. Só aposentados velhinhos celebravam aquele seguro. Não tinha cobrança continuada de comissão, era uma vez só. Não existiam as palavras prêmio, seguro, capital segurado e apólice. Assim, ninguém sabia o que era aquilo, e a sinistralidade dela foi zero, então ela estava sendo prestigiada pela excelente gestão de sinistralidade. Aí você ia ver a composição daquele seguro, o que tinha de atravessadores era uma coisa incrível. A seguradora, mesmo se fosse pagar indenização, ia ter prejuízo, porque tinha muita comissão perdida no meio do caminho.

Então, o que faz o nosso projeto? Fazemos uma invasão pelo direito privado ao direito... Porque vai dizer o art. 56: “A sociedade seguradora é obrigada a entregar ao contratante, no prazo de 20 dias contados da aceitação, documento probatório do contrato, de que constarão os seguintes elementos: o número de registro no órgão fiscalizador competente do procedimento administrativo, em que se encontra o modelo do contrato e as notas técnicas e atuariais correspondentes”. Não é aprovar, mas tem que ter um depósito disso junto à Administração Pública, então logo a Administração Pública vai ser obrigada a recepcionar. “O nome, a qualificação e o domicílio de todos os intermediários do negócio.” Todo o mundo que participou da intermediação. Depois, eu diria que esta foi a regra mais discutida do projeto até hoje, “o valor, o parcelamento” – e estava – “e a composição do prêmio”. Para haver o acordo e sair o projeto de lei da Câmara, alterou-se para “e a estrutura do prêmio”. Os interlocutores disseram: “Depois nós brigamos para discutir o que é estrutura, e estrutura não é composição, e assim por diante”.

Enfim, há seguros de bancos no Brasil em que – todos sabem – chega a 60, 70, 80%, às vezes, o custo comercial. A seguradora, todo o sistema, vive com 20% disso. Depois, quando dá desequilíbrio, vai ter que tirar do bolso dos segurados. Ninguém vai voltar para trás, recuperando comissão. Isso, por exemplo, no projeto peruano, não chegou a tanto. Ele chegou apenas a propor que sejam destacados o prêmio líquido e os tributos, mas comissão não, e estava no projeto original.

Sobre seguro como instrumento de liberdade, eu teria muitas coisas para falar para vocês, mas não vai dar tempo. Seguro não pode ser uma camisa de força nem para as pessoas, nem para as empresas. Todos nós sabemos que inovação, que desenvolvimento tecnológico, que desenvolvimento empresarial dependem de iniciativas, com a criação de novas regras da arte, às vezes contrárias às próprias normas técnicas. Existe um livro muito interessante de uma autora francesa chamada Anne Penneau, que é Règles de l'art et normes techniques. Ela mostra que existe um primado da regra da arte sobre as normas técnicas, porque estas são mais estáticas, elas demoraram para virar normas e quando o desenvolvimento já chegou com coisas novas.

No Brasil, virou o lugar mais comum do mundo se falar em agravamento de risco. Além do não asseguramento de novas tecnologias, que às vezes está explícito nas apólices, também tudo virou agravamento de risco, toda conduta. Ora, assim nós não vamos para frente. Eu não vou me estender mais, porque meu tempo já está esgotado, só vou contar uma rápida história de uma Desembargadora do meu Estado, que, em um colóquio como este... Ela tinha doutorado em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Ela disse o seguinte: “Olha, Dr. Ernesto, eu tenho o meu carro. Eu dirijo o meu carro no Jardins. Eu moro no Jardins, meu clube é no Jardins, as lojas que eu frequento são no Jardins, as minhas amigas todas moram no Jardins. Jardins é um lugar bacana de São Paulo. Se um dia, por qualquer razão, tiver que visitar, excepcionalmente, a minha empregada, que mora na periferia, e eu resolver adotar o comportamento insano de ir com o meu carro, é natural que eu tenha que avisar a seguradora”. Imagina como essa mulher, ao contratar seguro... É que ela nunca ia visitar a empregada, mas, se ela um dia tomasse isso como hábito, ela teria sempre perdido a sua cobertura ou então estaria a se comunicar com a seguradora quase que diariamente: “Olha, hoje, eu estou indo a uma festa lá no Centro de São Paulo. O Centro de São Paulo começou a ser recuperado, então vou a uma festa lá no Centro de São Paulo”.

Enfim, o projeto vai ter muitas regras para dar liberdade em vários sentidos, seja na regulação do sinistro, trazer transparência, aí dá mais liberdade, seja na apresentação do risco, na formação do contrato, no regime de declarações, que, por exemplo, vai condicionar a aceitação, e o regime de declarações vai estar vinculado aos questionários que lhe forem feitos. Ele tem que informar tudo que for relevante, mas observando os questionários que lhe forem feitos pela seguradora.

É um projeto que nós acreditamos que já passou por muitos filtros. É claro que nós, que estamos na origem, gostávamos dele mais lá para trás – não bem no início, no meio do caminho – do que hoje, mas, comparando com os diplomas em geral, ainda considero um projeto de vanguarda, um projeto moderno, um projeto com soluções justas, um projeto que leva em conta situações absurdas como a que vivemos hoje.

Vocês todos conhecem os dois grandes acidentes de Brumadinho e de Mariana. Vocês sabem quanto já foi pago em indenizações, quanto já saiu do mercado segurador, ainda que para medidas de salvamento, em razão dessas duas catástrofes? Nem um centavo. Zero. Algo de errado existe aí. Quando nós formulamos as nossas apólices (...) dizendo que, se a acusação for de dolo, não terá cobertura... Temos aqui representantes do Ministério Público. Quem vai perder a chance de fazer a acusação de cometimento de ato doloso em primeiro lugar? Se não for doloso, foi culposo. É uma técnica. Então, praticamente, as pessoas não terão cobertura nunca, jamais. As preocupações que estão por detrás do projeto são essas, e nos seguros de massa, nem se diga. Não se discute mais se o prêmio foi pago ou não foi pago, tem que haver notificação para constituir em mora o segurado. O segurado que está hoje na rua sofrendo um acidente tem o mesmo direito que aquele que foi até o STJ para receber esse direito, em termos definitivo, dizendo que, como não foi notificado da mora no pagamento do prêmio, não houve a suspensão da cobertura. Essas conquistas que o Judiciário conseguiu desenvolver no Brasil em torno do contrato de seguro foram transformadas ali em regras, sempre com um pequeno plus, algo a mais, para que a lei também não chegasse como uma camisa muito justa e não permitisse o desenvolvimento das operações.

Muito obrigado. Peço perdão por me exceder.

DR. BRUNO MIRAGEM – Muito obrigado. Bom dia a todos. É uma satisfação estarmos neste evento. Cumpre, neste início, agradecer a parceria, a possibilidade, a abertura do nosso Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por intermédio do seu Centro de Estudos – Des. Umberto, Des. Ney Wiedemann –, pela oportunidade de fazermos este evento nesta parceria tão frutífera com a nossa Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o nosso Núcleo de Estudos em Direito e Sistema Financeiro, Direito Bancário de Seguros e do Mercado de Capitais. Há algum tempo já estamos fazendo um esforço para trazer a atenção da universidade, da academia e da nossa Faculdade de Direito aos temas pertinentes ao nosso Núcleo de Estudos, dentre os quais o contrato de seguro, dada a importância do contrato de seguro, da atividade securitária, assim como das outras atividades em que se insere o sistema financeiro e que contrastam com a pouca atenção desses temas na academia brasileira.

Pouco se estuda sobre o Direito dos Seguros, pouco se estuda sobre o Direito Bancário, pouco se estuda sobre o Direito do Mercado de Capitais nas Faculdades de Direito, em que pese a importância óbvia e cada vez maior dessas atividades, seja no sistema econômico, seja na vida cotidiana das pessoas. Em relação ao contrato de seguro, mais ainda. Eu sempre recordo disso quando temos uma disciplina na Faculdade de Direito que não é para os alunos do Direito, é para os alunos das Ciências Atuariais e da Contabilidade, chamada Legislação de Seguros, que eu ministro há alguns anos com a parceria da Dr.ª Luiza Petersen e também nossa doutoranda, que estará conosco amanhã. Fora essa disciplina, os estudantes de Direito – eu sempre digo – estudam o contrato de seguro possivelmente, com muito lucro, em uma aula, na disciplina de Contratos em Espécie. Com muito lucro, em uma aula, porque por vezes o tipo contrato de seguro já é dado em conjunto com outro tipo contratual para a sequência da disciplina. Daí a importância de estimularmos encontros como este. Essa reflexão tem sido a nossa preocupação ao longo dos anos. Na oportunidade deste evento, especialmente, há a possibilidade de discutirmos sobre o futuro do contrato de seguro. O futuro do contrato de seguro – nós temos firmado esta convicção já há algum tempo – está indiscutivelmente atrelado ao projeto de lei que nós trouxemos à discussão nesta manhã.

Nesse projeto, vale ressaltar a importância, a liderança do Dr. Ernesto Tzirulnik, a quem eu tive o prazer de conhecer há alguns anos e que me ligou, sobretudo, além de amizades comuns, o entusiasmo com esse texto. Na verdade, ele é um texto de evolução do Direito, que nos faz refletir – nesta brevíssima introdução, eu gostaria de fazer este registro – sobre o próprio papel da legislação nos tempos de hoje.

Hoje temos, talvez até por legislações equivocadas que tivemos e que temos, um certo temor da legislação. O que de mais atual, contemporâneo, que se vê em discursos aqui e acolá é justamente a ideia de fugir da legislação, fugir da lei, fugir muitas vezes do Poder Judiciário. Por quê? Porque demora, porque é formal. As críticas se somam. Que, portanto, nós temos que ter mais flexibilidade, nós temos que ter mais velocidade, nós temos que ter mais agilidade, como se fossem valores necessariamente contraditórios, e não são. No nosso sistema de Direito, o Dr. Ernesto pontuou isso no princípio, civil law, no Direito Continental, a lei é a garantia da segurança jurídica. Não há garantia de segurança jurídica fora da lei. Essa ideia em relação ao contrato de seguro não é uma novidade brasileira. Ao contrário. Se nós formos fazer o exame em todos os sistemas jurídicos que nós utilizamos para comparar, no mundo, sejam de países mais desenvolvidos, sejam de países em estágio de desenvolvimento semelhante ao do Brasil e até menos desenvolvidos que o Brasil, praticamente todos eles têm uma legislação de contrato de seguros, mesmo países cuja tradição, muitas vezes, não é a tradição de direito de legislar. Vale dizer, talvez aqui um exemplo mais óbvio, o do Reino Unido, que não é um país de tradição de direito legislado, mas que, em matéria de seguros, inclusive um dos berços do contrato de seguro e da atividade securitária, há uma lei de contrato de seguro. Isso tem uma razão de ser, isso tem um porquê. É porque justamente, em primeiro lugar, um contrato de seguro tem algumas características, obviamente, do seu tipo, outros tipos contratuais também o terão, mas que o que faz diferente de outros tipos contratuais tradicionais.

Em primeiro lugar, vou dizer o óbvio, especialmente pregando aqui a convertidos, muitos: a própria multiplicidade das posições contratuais. A ideia de que há sempre dois polos contratantes e dois interesses, que, em um primeiro momento, nós estudávamos mais as experiências contrapostas, que hoje se vê, não são mais contrapostas... Não. Em um contrato de seguro temos, várias posições. Nós temos o tomador de seguro, nós temos o segurador, nós temos o beneficiário, nós temos eventualmente o estipulante, temos terceiros, que poderão ter interesse. Isso leva a que a reflexão mais profunda sobre contrato de seguro em qualquer lugar do mundo – me refiro aqui especialmente ao Direito alemão, pelo qual tenho especial carinho – sempre perceba – e é um pouco o que o Dr. Ernesto comentou quando falou em interesse público, em ordem pública – a ideia de que o contrato de seguro tem duas grandes dimensões ou, como dizem os alemães, duas grandes funções: uma função individual, que é óbvia, de garantir o interesse do titular do interesse, e uma função geral, comunitária, ou seja, como um instrumento de prevenção de riscos de um benefício econômico dessa prevenção de risco a toda a sociedade, ao sistema econômico como tal.

Há um autor alemão que eu gosto muito, que é o (...). Ele usa justamente essa ideia da oposição e complementação entre a função individual do seguro e a função geral do seguro. Se quiséssemos aqui falar... O Dr. Ernesto também trouxe a notícia da medida provisória. Esta expressão hoje não está muito em voga nos legisladores atuais, mas, se quiséssemos falar de uma função social do contrato de seguro, que é da nossa tradição jurídica a noção de função social, (...) uma função social do contrato de seguro, que é justamente esse benefício à comunidade e esse benefício a terceiros. Essa visão é que vamos construindo no sistema brasileiro de uma forma muito particular. Vale dizer que nós temos, por razões óbvias... Nossa tradição jurídica nos faz bastante devedores do Direito português, que teve uma tradição desde o século XVI, XVII, especialmente, de uma participação direta do Estado nas contratações de seguro em geral – A Casa dos Seguros Portuguesa, a primeira Casa dos Seguros, a segunda Casa dos Seguros –, na intermediação estatal.

Na legislação brasileira, já no Brasil independente, o nosso tipo contratual de seguros nasce – sabemos todos – com o seguro marítimo no Código Comercial de 50 e depois no Código Beviláqua. Porém, o Código Beviláqua, na verdade, se inspira fortemente também em um projeto um pouquinho anterior, de 1893, do Coelho Rodrigues, que, por sua vez, veio a trazer a inspiração dele no Código Civil do cantão de Zurique, também do séc. XIX. Entre o projeto original de Beviláqua, 99, passando pelas críticas ao projeto, projeto revisto e o texto do Código Civil de 1916, objeto de diversas críticas... Críticas às vezes mais preciosistas, outras críticas mais, digamos assim, razoáveis, mas razoáveis aos olhos de hoje, não aos olhos da época, referência que o Dr. Ernesto também colocou: ninguém faz seguro pensando necessariamente em não falhar. Justamente as pessoas fazem seguro porque as pessoas falham. À época, no Código de 1916, havia lá – todos os que trabalhavam à época lembram – a ideia de que não se fazia seguro para cobertura de atos ilícitos. Aí nós tínhamos aquele desafio interpretativo: ato ilícito é o ato ilícito doloso e o culposo. Então aqui, na verdade, quando se diz que não se faz seguro sobre atos ilícitos, eram os atos ilícitos dolosos, naturalmente. A própria ideia do dolo, da intencionalidade... É um tema que até hoje desafia os intérpretes e os tribunais: o que é a intenção de agravar o risco, o que é a intenção de promover o sinistro. Essa discussão naturalmente não se esgota na lei, mas a lei pode ajudar e muito.

Há uma percepção de que legislar de menos muitas vezes também gera insegurança, porque legislar de menos, especialmente em um contrato como o contrato de seguro, tratando ele, como é o caso, como um tipo contratual dentre outros tantos, faz com que as vicissitudes, os detalhes, os aspectos característicos desse tipo contratual não sejam, muitas vezes, enfrentados pela legislação, sob a suposta expectativa de que a regulação administrativa possa fazê-lo, ou ainda de que as partes possam fazê-lo. Eles não vão fazer, pelo menos não vão fazer em uma linguagem comum – de novo, como disse o Dr. Ernesto –, em uma linguagem técnica, em uma terminologia que seja própria do Direito brasileiro, da nossa tradição.

Aqui há outro elemento importante: o entusiasmo com a hiperinformação – esse acesso à informação do mundo todo, esse acesso a obras jurídicas, a pensamentos jurídicos do mundo todo – nos faz, muitas vezes, importar soluções, importar conceitos, importar até instrumentos contratuais com as suas expressões, mas que sejam expressões pelo menos divorciadas da nossa tradição jurídica. Faz com que nós tenhamos mais problemas do que soluções. Em um primeiro momento, até pode ter um certo charme você invocar o Direito estrangeiro, você invocar expressões, você ter um esforço até dogmático de explicar como esses conceitos, esses institutos vêm para o Direito brasileiro. Mas, do ponto de vista prático, da sua utilidade pelo intérprete e pelos tribunais, é mais esforço e com um risco de insegurança maior, porque naturalmente nós todos somos falhos, somos humanos, e cada um vai ter a sua interpretação de acordo com a sua escola de pensamento, com as obras que leu, com o pensamento que lhe sustenta. Então, a lei ainda é o grande ponto de encontro do nosso sistema jurídico brasileiro. No caso do contrato de seguro, uma lei especial, como o mundo todo tem.

O projeto de lei que discutimos aqui, cujos aspectos fundamentais o Dr. Ernesto introduziu, tem algumas características que só por elas já mereceria a nossa aprovação, sem prejuízo de se pontuar alguns aperfeiçoamentos aqui ou acolá, alguma interpretação.

Para todos nós, aqueles que trabalham mais com contrato de seguro, aqueles que estudam contrato de seguro, aqueles que já ouviram sobre o contrato de seguro, ainda que não em uma atuação permanente, uma das primeiras ideias sobre contrato de seguro que vem é justamente que no contrato de seguro vige a boa-fé, aquela ideia de boa-fé. Se quisermos aprofundar, são contratos de máxima boa-fé, naquela classificação mais tradicional. O que significa isso, do ponto de vista prático? A boa-fé dos contratos de máxima boa-fé do contrato de seguro, nós sempre dizemos, já se dizia isso muito antes de nós cogitarmos, seja no Direito brasileiro, seja no Direito estrangeiro, da boa-fé objetiva. Contrato de seguro como contrato de máxima boa-fé ainda é, na sua origem, a velha boa-fé romana: não faltar à verdade; não ocultar intenções; não agir intencionalmente no sentido de frustrar o contrato, de obter uma vantagem indevida.

Com a transição... E não é uma transição de significado, é uma transição de sentido, uma transição de compreensão, mesmo, da relação contratual como um todo e que vai afetar o contrato de seguro, que é feita pela boa-fé objetiva, no nosso caso brasileiro, fenômeno absolutamente datado. Estamos falando aqui dos anos 60 para cá e na jurisprudência do final dos anos 80 para cá, muito, inclusive – sempre é preciso referir e homenagear – fruto de julgados deste Tribunal. O início desta conversa na jurisprudência brasileira é fruto da reflexão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Mas essa transição de significado muitas vezes não é bem compreendida, seja pelo intérprete, seja por quem vai examinar textos legais e vai examinar muitas vezes a expressão boa-fé como se sempre tivesse sido aquela boa-fé objetiva, ao contrário, (...) ela continua sendo a boa-fé subjetiva. Não. Historicamente, os contratos de máxima boa-fé eram, lá no princípio, boa-fé declaração, boa-fé falta de má intenção, boa-fé de veracidade. Vem em uma transição que é própria do Direito das Obrigações, contratos em geral, vem para o contrato de seguro e nos exige: “Não, agora boa-fé é boa-fé objetiva”.

O que significa boa-fé objetiva? “Ah, são deveres.” Aquela fórmula que todo o mundo conhece e repete, que tem quase de ouvido: “São deveres que se constroem a partir dos princípios, que não precisam estar expressos no contrato, não precisam estar expressos na lei. São deveres de lealdade, cooperação, respeito às expectativas legítimas da outra parte”. Porém, essa noção de boa-fé não existe concretamente, efetivamente, se eu não tenho nas relações contratuais uma outra visão, que é a visão justamente dessa estrutura da relação contratual como – quero usar uma expressão nossa que é também uma expressão alemã, trazida muito por influência do Rio Grande do Sul – a obrigação como processo.

O que é a obrigação como processo? É uma obrigação que justamente toma a ideia, no caso do contrato, mesmo antes de ele ter sido celebrado, nas tratativas, na ideia da troca de informações, na construção das expectativas, no comportamento concludente antes da celebração do contrato, nas informações que são dadas antes da celebração do contrato. Passa por uma fase de execução que, no contrato de seguro, é decisiva. Boa parte dos exemplos que deu o Dr. Ernesto e tantos outros que nós conhecemos muitas vezes é um problema de contratação, mas é sobretudo também um problema de execução do contrato.

O contrato de seguro é celebrado, sabemos todos, com o desejo genuíno de todos os contratantes de que não seja necessário executar a garantia, que não ocorra o sinistro. Porém, uma vez ocorrendo o sinistro, exemplos – como ele deu – de sinistralidade zero demonstram justamente a frustração da própria razão de ser do contrato, tecnicamente – poderíamos dizer – da própria causa do contrato. Garantia não há, porque, se não há sinistralidade, das duas uma: ou o risco não existe, que não é o caso especificamente deste exemplo, ou há dificuldades inerentes na execução do contrato para o cumprimento da garantia, para a execução da garantia, para a satisfação do interesse legítimo do segurado nessas situações.

Dito isso, o que faz o projeto? Como eu disse no início, este talvez é o seu mérito fundamental: ele procedimentaliza. Até agora, se nós formos pensar, o que nós temos de procedimento? Alguma regra muito específica do Código Civil de 2002, que mesmo assim não fala em prazo, diz: “tão logo saiba” – aquelas expressões mais abertas –, “assim que”. No projeto, há a construção de procedimentos. Esse é um aspecto fundamental, porque dá segurança. Quem informa o que, quando informa, como informa: isso é decisivo. É decisivo para todas as partes: para o segurado, para o segurador. Dá segurança a todos.

Sobre a ideia de que a fase pré-contratual é fundamental no contrato de seguro, como todos nós repetimos – é quase um mantra para quem trata do contrato de seguro –, ele é um contrato mais complexo do que os outros, mais difícil, tem elementos novos. Então, nesse tipo de contrato, sempre vai existir de um lado um expert, que é o segurador, que exerce essa atividade profissionalmente, com a sua expertise, com a sua inteligência, com o seu preparo técnico; de outro lado, não necessariamente um expert. Quem deve prestar as informações? Quem deve perguntar, como disse, o regime de declaração de risco, que é um dos méritos do contrato de seguro? Quem deve perguntar é quem sabe as perguntas certas a serem feitas: o segurador. E quem deve responder – e aí, se não responder, ou se falsear a resposta, ou se omitir informações... – é o tomador do seguro.

Esse procedimento tem em vista justamente a ideia de preservação do interesse legítimo dos contratantes. Isso é boa-fé também. É um procedimento que – outro mérito do projeto – consagra entendimentos que a jurisprudência brasileira já consagrou há muito tempo. Um exemplo que foi dado aqui: a questão da mora do prêmio. A jurisprudência brasileira já consagrou o seu entendimento há, seguramente, mais de uma década. Não vou arriscar no detalhe do precedente do STJ, mas seguramente há mais de uma década. Pois volta e meia não estão nos Tribunais ainda as mesmas discussões sobre esse tema? Será que isso é um problema necessariamente do contrato em si? Ou muitas vezes é: “Olha, como não há lei e como a jurisprudência não está vinculando, eu vou lá e vou” – perdão pela expressão mais popular – “empurrar com a barriga. Não vou pagar a indenização e vou deixar a ver quantos vão ingressar em juízo, quantos não vão. Aqueles que ingressarem em juízo vão levar tanto tempo para receber a decisão definitiva”?

Com isso, eu, de alguma maneira, não estou aqui homenageando a segurança jurídica. Ao contrário, estou me servindo da insegurança, questões que estão consagradas. Qual a melhor estratégia se não trazer essas questões já consagradas – e essa da mora do prêmio é uma delas – para a lei? Definindo um procedimento. E definindo um procedimento também, na hipótese de mora, para a resolução do contrato – ou rescisão, na expressão do projeto –, para a resolução por inadimplemento, porque também, é óbvio, não há que considerar que o segurado que não pague o prêmio permaneça com o seguro. Óbvio que não, mas tem haver um procedimento com segurança para que o sujeito, em primeiro lugar, tenha a possibilidade de purgar a mora, se for o caso, e, se não purgar a mora, a resolução do contrato, como qualquer outro contrato, mas um procedimento que dê – de novo – segurança, que dê previsibilidade.

Outro aspecto fundamental do projeto, que também tem a ver com procedimento, com nós procedimentalizarmos a boa-fé, é a questão pertinente à regulação do sinistro. Talvez seja um dos grandes pontos desse projeto, porque a rigor, se eu falar, por exemplo, com uma pessoa que não seja iniciada na área de seguros – que nunca tenha visto seguros, que vá se apropriar da matéria de seguros a partir da legislação do Código Civil – e referir a ela sobre a regulação do sinistro, a resposta que virá pode ser a mais diversa possível. Regulação do sinistro, que regulação é essa? Qual é a norma da SUSEP que trata do tema? Não. Regulação de sinistro como um momento típico da execução do contrato de seguro, que tem a ver justamente com a identificação do evento, a subjunção desse evento ao sinistro contratado, e a própria ideia de liquidação desse sinistro, quanto custa, qual foi o dano, qual será a indenização. É o momento típico do contrato de seguro, mas que não está na legislação. E porque não está na legislação, não raras vezes é onde nós temos, do ponto de vista dos litígios estabelecidos em matéria securitária, os maiores litígios. Uma vez que não está na legislação, há alguma coisa em matéria regulatória, obviamente as condutas das partes, que devem ser de acordo com a boa-fé e em que deve haver cooperação e lealdade entre as partes... Mas, concretamente, qual é essa cooperação? Qual é esse comportamento? O que eu preciso fazer para agir com cooperação, com lealdade? Esses elementos não estão postos. Porque não estão postos, vão ser discutidos onde? No Judiciário, na Arbitragem, onde vai se discutir se agiu ou não corretamente, de boa-fé – “ah, mas eu informei”; “não informei”; “informei a tempo”; “não foi a tempo”; “informei com todos os elementos que eu tinha conhecimento”.

Há regras no projeto que, em alguma medida, alguns poderão considerar até um pouco óbvias, mas, por serem óbvias, têm que estar na lei. Os documentos – aquela regra de que eu gosto muito, já conversei com o Dr. Ernesto sobre ela – relativos à regulação do sinistro são documentos comuns às partes. Essa é uma regra... Seria óbvio se eu dissesse que a execução do contrato é cooperação. “Olha, o documento a que você tem acesso para verificar se vai ou não cumprir, pagar a indenização, é o mesmo documento a que eu tenho que ter acesso para verificar se as suas razões estão corretas ou não.” Isso está na lei. Mais uma vez, eu digo: procedimento, transparência – como disse o Dr. Ernesto –, documentos comuns, a própria ideia – voltando um pouquinho na formação do contrato, que é um tema difícil... Difícil do ponto de vista prático, não do ponto de vista jurídico, com o perdão daqueles que entendem o contrário, mas o próprio papel do corretor de seguros. Perdoe-me também quem já me ouviu falar sobre isso dezenas de vezes, mas às vezes temos que falar dezenas de vezes. “O corretor de seguros, na legislação do corretor de seguros, é um representante do segurado em relação ao segurador.” Nos contratos de massa, nós sabemos que não é assim. Nos contratos de massa, um corretor de seguros é um membro da cadeia de fornecimento. Ele está ganhando com aquilo. Então nós continuarmos: “Ah, mas a legislação diz isso...” Não, mas não pode. A legislação de 64 pode dizer isso, mas o mundo mudou, a estrutura desses negócios mudou, e esse corretor tem, sim, uma responsabilidade perante o seu segurado, seja em relação... não está no nosso projeto, e o Dr. Ernesto antecipou, até de negociação política.

As legislações avançadas do mundo todo, naquele Código Francês enorme sobre seguros, na lei alemã, na lei italiana, o corretor não faz só a intermediação. Ele faz aconselhamento também. Aí eu posso dizer que, se ele faz aconselhamento, ele está mais ao lado. “Olha, não faça esse seguro, faça aquele.” “Olha, o seu interesse está mais bem contemplado dessa forma, não daquela.” “Tem as características tais ou quais’”. Ele não faz só aquela intermediação tradicional de dizer quais são as coberturas, o valor do prêmio proporcional, o que entra, o que não entra, mas não é aconselhamento propriamente dito. É modernizarmos a própria relação securitária com esse intermediário, o corretor de seguros, e não simplesmente continuar dizendo que ele é o representante do segurado.

A mesma coisa, uma regra interessantíssima do projeto relativamente ao estipulante... Aqui é o estipulante no seguro de grupo propriamente dito, não um estipulante em gênero, como disse o Dr. Ernesto. É justamente dizer assim: “Ah, o estipulante” – todos nós sabemos, isto é dito, está lá no decreto que regula o Sistema Nacional de Seguros Privados, isto é uma obviedade – “é representante dos segurados perante o segurador”. Não há dúvida sobre isso. Agora, também é preciso dizer que essa representação é uma representação – e aí é mérito do projeto – que também se dá no plano processual. Não adianta eu ser representante para comunicar, para receber comunicado, para intermediar comunicações, e, do ponto de vista processual, não poder representar. O projeto deixa isso absolutamente claro, absolutamente expresso.

Da mesma forma, sobre o sinistro, do ponto de vista conceitual, há também aqui uma ideia de conceituar, definir o sinistro, o que é o evento sinistro. Isso é relevante também em matéria – vai ser discutido aqui – do agravamento intencional do risco. Há o agravamento intencional do risco e há a realização dolosa do sinistro. Não são necessariamente a mesma coisa. São tratados rigorosamente pela jurisprudência, muitas vezes, e pela doutrina, muitas vezes – a doutrina menos até –, como a mesma coisa, e não são. E nos vieram aquelas discussões intermináveis sobre os comportamentos, que são justamente essa ideia do princípio da liberdade de que falava o Dr. Ernesto. Olha, a ideia é você fazer um seguro especialmente atentando à garantia de riscos predeterminados, de riscos ordinários, (...) de relações, mas não em uma ideia de autocontenção absoluta da vida, porque tudo pode ser caracterizado como agravamento intencional. Essas definições técnicas do projeto auxiliam também no sentido de nós aperfeiçoarmos, e aperfeiçoarmos não do ponto de vista apenas de segurança jurídica, mas sobretudo do próprio mercado.

Eu não poderia me furtar de fazer, ao final, uma analogia – talvez seja a melhor expressão – entre o que esse projeto traz em matéria de contrato de seguros e o que nós tivemos, por exemplo, com o Código de Defesa do Consumidor, quando editado no Brasil. Àquele tempo se dizia: “Nenhuma empresa do Brasil vai sobreviver ao Código de Defesa do Consumidor”. Era o discurso corrente. O que se viu na realidade da vida? Que a lei também é um fator de promoção de uma maior eficiência do mercado, porque deveres que são deveres óbvios, muitas vezes, como eu disse, mas que são deveres que, por não estarem na legislação e, portanto, não contarem com sansões jurídicas próprias, não são necessariamente introduzidos no procedimento das empresas. E porque não são introduzidos nos procedimentos das empresas, obviamente aquelas empresas não vão adotá-las espontaneamente, sob um problema até de concorrência. Se eu tenho custos na introdução de certos procedimentos, e os meus concorrentes não têm esses mesmos custos, porque não lhes são exigidos, se eu os adotar, eu vou ter um custo a mais e vou ter um problema concorrencial. Se vem a lei e define um padrão, define uma régua elevada – para usar a expressão que hoje está muito animada também – de deveres, de procedimentos, e isso vale para todos, isso indiscutivelmente caracteriza... E o Código do Consumidor demonstrou isto, dentre outras legislações. Estou tratando do Consumidor porque estou puxando a brasa para a minha sardinha. Então, entre outras legislações, nós estamos elevando a própria eficiência, a qualidade do mercado. Em termos de concorrência, também, permitindo que os bons, aqueles que se adaptam, aqueles que querem muitas vezes trazer a sua expertise no sentido de oferecer melhores serviços e melhores produtos possam também se servir da legislação para não serem punidos, muitas vezes, por uma concorrência desleal daqueles que não cumprem padrões de qualidade na sua prestação.

Dito isso, eu gostaria mais uma vez de agradecer ao Tribunal; de cumprimentar os amigos estrangeiros que estão aqui conosco, que se dispuseram a palestrar nestes dois dias; de cumprimentar muito especialmente o nosso Dr. Marco Aurélio, que se irmanou na organização deste evento, e a nossa Dr.ª Luiza, que não está agora, por razões bastante importantes, mas que também foi a grande artífice deste nosso encontro. O Rafael, que é o esposo da Luiza, pode levar a ela os nossos cumprimentos por esta oportunidade. Agradeço mais uma vez, Desembargador, e cumprimento a todos pelo evento.

DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK – Antes de passar a palavra ao Des. Ney, queria me penitenciar por não ter referido na abertura a participação da UFRGS. Desde que assumi o Centro de Estudos, substituindo o Des. Ney, sempre me preocupei em fazer atividades, particularmente com a UFRGS, que é a nossa melhor Faculdade de Direito aqui no Rio Grande do Sul.

DES. NEY WIEDEMANN NETO – Bom dia a todos. Vou procurar ser breve em razão do calendário do evento. Em seguida temos o intervalo do coffee break e o segundo painel da manhã.

Eu quero saudar o Des. Umberto e o Dr. Bruno Miragem, que coordenam este evento, nesta parceria entre o Centro de Estudos e a UFRGS. Agradeço especialmente ao Des. Umberto por todo o apoio que tem dado para que os eventos aqui se realizem, na parte operacional também, como o Prof. Bruno destacou. Ademais, elogio o Dr. Marco Aurélio Mello Moreira, que foi um artífice para que o evento acontecesse, contando com palestrantes da Argentina, do Uruguai, do México, do centro do País.

Como debatedor, eu tinha pensado em fazer uma intervenção sobre um aspecto, mas o Prof. Bruno esgotou. Eu ia fazer uma provocação, um questionamento sobre: será que realmente nós precisamos de uma lei de seguros? Não que eu não acredite que nós precisemos, mas seria uma provocação, porque o Poder Judiciário até hoje se saiu muito bem – acredito eu – sem a lei. Nós usamos o Código Civil; o Código de Defesa do Consumidor; aquele decreto de 76; os atos regulatórios da SUSEP; resoluções; circulares da SUSEP, que às vezes não são muito consultadas, mas existem, estão ali à disposição, e o contrato, principalmente, que é lei entre as partes. Então, eu ia fazer esta provocação inicial: fomos tão bem até agora, será que realmente precisamos da lei? Mas acho que o Prof. Bruno convenceu a todos, foi muito claro do ponto de vista de que a lei é bem-vinda.

Eu me preocupo um pouco porque, no Brasil, às vezes a lei se descola do texto positivado e adquire uma vida própria, até pela interpretação que lhe emprestam os tribunais – até mesmo o STJ. Eu sou um magistrado que julga processos envolvendo contrato de seguros. Até creio que nós não nos descolamos muito da interpretação literal da lei no caso do contrato de seguros, mas tenho uma experiência na Lei n. 11.101, que é a Lei de Falência e Recuperação Judicial, especialmente na parte da recuperação judicial. Hoje, na construção da jurisprudência interpretando a Lei n. 11.101, nós temos muitas decisões que são o oposto. Nós temos decisões contra legem até do STJ sobre essa questão. Então, na questão da segurança jurídica, da proteção do consumidor, do insuficiente, eu me preocupo um pouco, porque, mesmo com lei, as coisas continuam inseguras no Brasil.

Isso tem sido destacado como um fator preocupante com relação aos nossos parceiros estrangeiros, os investidores internacionais, até nessa questão que eu falei da Lei de Recuperação Judicial. Nós precisamos às vezes do capital estrangeiro para alavancar o empreendedorismo, a atividade empresária no Brasil. Isso é um fator de inibição, de preocupação. Mesmo tendo uma boa lei, às vezes não se pode acreditar que o que está escrito nela é o que se pratica.

Espero que todos os artigos que se apresentaram neste projeto, que parece tão bom e que agora encontrou um ponto de equilíbrio... Até me parece, Prof. Ernesto, que um dos motivos pelos quais não se tornou lei até hoje é que estava desequilibrada a balança dos interesses do fornecedor e do consumidor, do segurado e do mercado segurador. Os conflitos e a força política às vezes inibem que essas questões se realizem. Como o senhor até mencionou em um outro evento em que nós estávamos juntos na OAB, parece que agora nós estamos chegando ao ponto de equilíbrio.

Como a minha provocação sobre a questão – se precisamos de uma lei – o Prof. Bruno esgotou, eu faria apenas ao Prof. Ernesto, até como uma contribuição ao debate, dois pequenos questionamentos da pesquisa que fiz sobre aqueles que escreveram analisando a lei e seus pontos fracos, questões mais frágeis que poderiam ser mais bem apresentadas. Eu pincei, Prof. Ernesto, só duas.

A primeira é sobre a prescrição. Há várias hipóteses no art. 124, mas vou pontuar só para o segurado: “Prescreve em um ano, contado o prazo da ciência do fato gerador, a pretensão do segurado para exigir a indenização” – aí o final diz – “após a recepção da recusa expressa e motivada da seguradora”. Então, algumas pessoas que fizeram críticas e que publicaram artigos analisando a lei ficaram confusas. Afinal, prescreve em um ano a contar da data do sinistro, ou somente o termo inicial começa a contar da recusa expressa e motivada da seguradora, determinando, então, claro, a obrigatoriedade da fase administrativa, que se procure primeiro a seguradora... Mas e se a pessoa procurar a seguradora vários anos depois do sinistro? Alguns pontos ficaram um pouco confusos.

O outro questionamento que faço é sobre a arbitragem. O Brasil é signatário da Convenção de Nova Iorque, uma interpretação bastante ampla e participativa da arbitragem. Mas aqui, no final da lei, coloca-se que a competência da Justiça brasileira é absoluta e que a seguradora, a resseguradora, para a arbitragem... Tem que haver tudo no Brasil. O foro é no domicílio do Brasil. Portanto, a arbitragem só pode ser feita do Brasil e com a lei brasileira. Alguns críticos disseram que isso é muito restritivo e que colide com a Convenção de Nova Iorque, de que o Brasil é signatário.

Essa é a minha contribuição de debatedor. Eu devolvo a palavra e agradeço.

DR. ERNESTO TZIRULNIK – Muito obrigado, Des. Ney. São dois pontos bastante nevrálgicos. Poderia ter caprichado menos.

Com relação à prescrição, hoje nós dizemos que o que prescreve é a pretensão. Quando surge a pretensão? Quando o direito é violado. É o sistema do nosso Código Civil. Nasce a pretensão quando há a violação do direito. Será que, na técnica jurídica, seria possível falar em sinistro como violação de direito? Choveu, alagou. Isso é uma violação de direito? Se for, contra quem nós exerceríamos a pretensão? Contra São Pedro? Se a pretensão nasce com a violação de direito, a pretensão indenizatória fundada no contrato de seguro nasce com a violação do direito. Qual é a violação do direito? É a apresentação de uma negativa por parte da seguradora. Aí fica muito claro.

Hoje nós temos dois regimes convivendo, que não combinam: o regime do Código anterior, que gerou aquela súmula da suspensão da cobertura, e o regime do novo Código, que exige a violação do direito para que surja a pretensão. Esse é um primeiro ponto. O que diz a norma? Que tem que haver a violação do direito, ou seja, a seguradora tem que negar. Ela tem que fazer essa violação do direito para nascer a pretensão de forma clara e inequívoca. Até porque o projeto também vai dizer que ela não pode inovar posteriormente o argumento para recusar a indenização. Se a seguradora encontrou um determinado argumento para recusar o direito pretendido pelo segurado, ela deve se armar com aquele argumento. Ela não pode depois, quando o segurado vai a juízo, falar: “O real motivo da minha negativa é outro”. Não pode, a menos que surjam fatos novos. Surgiu fato novo, tomou conhecimento de um novo fato – não é o fato ser novo, mas o conhecimento pela seguradora ser posterior –, então ela pode trazer esse novo argumento.

Agora, como isso casa com um sistema segurador que também não pode ficar eternamente à mercê? Acho que o sistema se protege. Vou dizer como. Em primeiro lugar, existem provisões que os seguradores fazem, as chamadas IBNRs. Elas vêm do inglês Incurred But Not Reported. São aqueles fatos em que a seguradora não tem conhecimento se aconteceram ou não. Um bom regime de fiscalização da solvência do sistema segurador tem que levar isso em conta, tem que fazer com que as seguradoras tenham algumas provisões para o desconhecido. Se isso for bem feito, ajuda. E tem que ser bem feito. Afinal, seguro não é só colocar no banco um gerente e dizer que ele é um preposto, ficar com 60% ou 70% da comissão no sistema e liberar 20% ou 30% para estar sujeito aos ônus da atividade seguradora. Seguro é muito mais do que isso. Então, se a técnica seguradora for respeitada no exercício da empresa seguradora, se as autoridades cuidarem disso, já existe aí um primeiro ponto.

A outra coisa é: (1) O segurado, ao tomar conhecimento do sinistro, tem que comunicar. Aí nós fizemos um regime. O projeto está todo com dois regimes. Houve culpa ou houve dolo? Se ele não comunicou por dolo, ele não tem direito à indenização. O fundamento é outro, não é a prescrição. (2) Se ele agiu com culpa, e a demora trouxe prejuízo de verdade para o segurador, então esse prejuízo para o segurador manda o projeto descontar. Aquilo que você causou de prejuízo para o segurador você vai receber a menos quando o segurador for cumprir a obrigação dele. Com esses contrapesos se resolve, na origem, o projeto, que estaria desbalanceado. Eu até acho que não. Eu acho que ele estava muito mais pró-segurador lá para trás do que ficou no final. Por acaso, mas acho.

Existia uma regra de decadência. Nós debatemos com a CNseg e com a Fenacor artigo por artigo. Eu me lembro que eles tinham acho que 88, 89 artigos que eles glosavam 100%. Depois, nós terminamos com 8 artigos modificados apenas. Não é que bem negociado, é que realmente existia um preconceito. As pessoas olhavam com uma outra visão: “Eu quero que diga que em espécie é em gênero”. Nós falamos: “Olha, em espécie, no Direito, é uma coisa; em gênero é outra”. “Ah, mas no mercado não se usa.” “O mercado vai ter que aprender a falar o Direito, não o Direito aprender a falar o mercado.” Foi tirado. Quem propôs tirar a regra da decadência foi a CNseg, que achou que realmente a mão era muito pesada. Nós concordamos, porque achávamos, e levamos essa preocupação. Falamos: “Acho que aqui nós fizemos uma coisa que virou um monstro”. Tiramos. Então, acho que o sistema controla isso. Você pode negar pelo dolo, você pode reduzir a prestação pela culpa, no caso de não informação.

A outra questão é a da arbitragem. Uma das características do projeto é ter raiz. Ele foi escrito por pessoas que viviam o mercado segurador. O Paulo vive há 25 anos; eu, há uns 37, 36 – enfim, é muito tempo –; o Flávio Queiroz, também. Assim, cada um dos que cooperou tinha uma experiência que brotava do chão e que tinha suas perplexidades. Por exemplo, o nosso projeto diz que, se o interesse segurável for possível no momento da celebração do contrato, o contrato é válido. A lei peruana de 2012 veio nesse mesmo sentido. Fala se for actual o contingente. A do Uruguai, não. Na do Uruguai, tem que existir o interesse no momento da contratação. Acho que a solução mais acertada é a solução peruana, a solução do projeto brasileiro. Por quê? Eu posso contratar o seguro de dano direto – de incêndio, por exemplo – a mercadorias que estarão dentro do depósito que eu empreendo, em prédio meu. Eu faço seguro do incêndio garantindo o prédio e garantindo o conteúdo, que será conteúdo de terceiros. Esses terceiros podem sequer existir ainda. Podem ser sociedades que serão constituídas na semana que vem, que irão começar a produzir daqui a 90 dias e que, então, terão as suas mercadorias para lá depositar. Esse interesse era possível. Então, o projeto volta sempre para o Código Civil. O Código Civil diz que é válido o negócio jurídico cujo objeto for possível, e é nulo o que for impossível. Faz esse diálogo.

Na arbitragem não será diferente, de forma alguma. Entendo que o projeto prestigia a arbitragem, porque prevê a arbitragem. Que cuidados o projeto toma? Eu venho de um seminário em Portugal, em que eu ouvia várias críticas de operadores do Direito português ao regime jurídico deles, porque diz o seguinte: “a menos que a apólice preveja de forma diferente”. Eles reclamaram que as apólices são instrumentos de poder tão grandes como o Legislativo, porque o Legislativo traz um regime, mas as apólices podem excepcionar o regime. A arbitragem tem esse risco. Nós temos uma lei para resolver as questões de conflitos de contratos de seguro. Essa lei tem que incidir. Agora, quando eu a fizer incidir por meio de arbitragem, eu tenho que tomar cuidado para não deixar que Direito outro incida; senão, o caso que for para arbitragem naturalmente sairá, porque o mercado vai querer assim, para práticas outras, para critérios outros – legislações, o que quer que seja. Nós queremos que incida. O regime tem que ser implantado. Essas é uma das razões. A segunda é que tem que divulgar. Não pode haver aquela confidencialidade absoluta e absurda, que está em extinção no planeta, mas aqui ainda é dogma. Tem que divulgar qual foi o conflito e qual foi a solução, para que a experiência jurídica não se perca. Isso está previsto no projeto.

Depois, há a questão da jurisdição. O projeto adotou a orientação de que contratos de seguro, como disse o Prof. Bruno Miragem, repercutem para a sociedade como um todo. Mesmo os grandes contratos de seguro... Vamos imaginar o contrato de construção de Itaipu Binacional. Há riscos de engenharia, riscos operacionais. Ele está garantindo uma pluralidade de segurados, que vai desde o grande empreiteiro, desde o dono da obra – a União Federal Brasileira e o Estado do Paraguai – até eletricistas locais que prestam serviços. Como pode cláusula de arbitragem remeter esses caras para culturas, leis e, pior, sede de arbitragem no Exterior? Londres? Onde se discute hoje Brumadinho? Onde se discute hoje Mariana? Só para dar os dois últimos exemplos mais trágicos. Discute-se em Miami, a portas fechadas. Ninguém sabe o que está acontecendo. A sociedade não sabe. Por que não aqui? Tem que ser aqui. É importante, o Brasil precisa. O Brasil não pode abrir mão de desenvolver sua cultura jurídica sobre contrato de seguro e sobre contrato de resseguro. É o sonho dos estrangeiros.

Eu li um autor de 1910... Eu já não recordo o nome, mas está em Seguro de Riscos de Engenharia e Instrumentos do Desenvolvimento, que foi minha tese de doutoramento. Dizia que o que mais almejam os resseguradores é ter regras próprias e sedes próprias. Quando clientes meus, empresários brasileiros, falam que lhes foi proposto fazer uma arbitragem lá na (...), eu não gosto, eu não quero. É muito mercado ressegurador inglês e europeu. Então, é natural que as pessoas que estarão ali sejam muito mais próximas da cultura, tenham a boca torta para fazer... Como nós. Quantas vezes não temos? Suicídio é outro exemplo do projeto, seguro de vida. Eu era um grande contratante de seguro de vida, eu paguei prêmio de seguro de vida a minha vida inteira. Chegou um dia em que decidi não mais pagar. Eu não sou um abstêmio. Eu adoro tomar um vinho, comemorar. Nós comemoramos quando ganhamos e lamentamos quando perdemos com um copo de vinho no almoço e outro no jantar. Eu corria o risco de estar dirigindo, morrer, e falarem que eu estava embriagado – porque o grau de embriaguez é uma coisinha de nada –: “Não tem cobertura de seguro de vida”. O projeto foi ver. Na raiz, isso é um problema. Eu não contratava mais seguro, parei de contratar. É preciso que se resolva isso. O que fazem os outros países? Há países que dizem que não há agravamento de risco em contrato de seguro de vida. Essa foi a nossa opção. Vamos deixar esse seguro “morreu, pagou”.

Com relação à arbitragem, eu ouço muito criticarem. Mas, quando existe, já no STJ, um seguro de responsabilidade civil automobilística, que depende de apuração de culpa e em que a apuração de culpa é nuclear, há ação direta da vítima contra o segurador apenas exigindo o litisconsórcio passivo do segurado, quem diz que não vai evoluir a nossa jurisprudência para se tocar que, nos seguros de responsabilidade civil em geral, há ação direta e, se a responsabilidade for objetiva, não precisa nem do litisconsórcio passivo, porque não tem que discutir a culpa de ninguém?

O projeto leva em conta isso. Eu não posso colocar a arbitragem lá fora ou com regras desconhecidas quando há vítimas; terceiros prejudicados, com pretensões; quando há eletricistas, dois irmãos lá de Jirau; quando há centenas de subcontratados... o pintor e todo o mundo que trabalha em uma obra, que é muito mais do que aqueles dois grandes figurantes – o dono da obra e o empreiteiro principal –, com interesses. Eu não posso mandar os dois eletricistas lá de Jirau irem para a Inglaterra, para Miami, para Nova Iorque, para Zurique, enfim.

DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK – Queria só responder que concordo com a sua última posição, mas que a jurisprudência, pelo menos do nosso Tribunal, tem flexibilizado muito essa cláusula da embriaguez, que perde o seguro. Inclusive, eu participei de uma decisão sobre um rapaz que estaria sob efeito de maconha. Considerou-se que a maconha permanece no organismo por vários dias e que não dá para ter uma postura, digamos, positivista, no sentido de reconhecer. Existe a necessidade da relação de causalidade, que não basta estar embriagado. Isso o senhor reconhece?

DR. ERNESTO TZIRULNIK – Sem sombra de dúvida. Existe esse tempero, mas o problema é pior. Quantos aqui já tiveram ou conhecem alguém que já teve depressão? Pode falar em nome de terceiros, levanta a mão.

Alguns estão escondendo o jogo, mas a maioria já viu. Quem tem que tomar antidepressivo vai estar em uma situação, muitas vezes, muito pior do que a nossa, da taça de vinho. Não pode fumar a boa erva, não pode beber o bom vinho, também não pode tomar nenhum remediozinho para diminuir a dor profunda que está sentindo.

O seguro não pode servir para transformar a sociedade em algo que ela não é. Ele tem que atender às necessidades, porque os acidentes vão acontecer, as vítimas vão estar aí.

DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK – Agradeço a todos. Teremos um coffee break.

Painel 2, 04-06-2019:

Resseguro no Projeto de Lei n. 29-2017

DR. CESAR SANTOLIM – Bom dia a todos. Peço que se acomodem para que possamos dar início ao nosso segundo painel. Convido de imediato a integrar a mesa o nosso palestrante, o Prof. Paulo Piza, e os debatedores, a Dr.ª Ana Rita Petraroli e o Dr. Geraldo Nogueira da Gama, para que integrem, juntamente comigo, a presidência do painel número 2, intitulado Resseguro no Projeto de Lei n. 29-2017.

Os meus agradecimentos, em meu nome pessoal e em nome do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFRGS, que tenho a honra de coordenar, ao palestrante e aos debatedores. Cumprimento também os organizadores do evento. Tive oportunidade de acompanhar um trecho do primeiro painel e pude ver a qualidade – o que, aliás, era de se esperar – dos trabalhos já apresentados.

Eu me sinto na incômoda posição de, estando na presidência da mesa, considerado o adiantado da hora, ter que fazer um pedido um tanto deselegante aos componentes deste painel, para que, na medida do possível, reduzam um pouco os tempos que originariamente foram designados a cada um. Nesse sentido, peço ao palestrante e aos debatedores que abreviem suas intervenções, tudo com o propósito de, já que este painel deveria se iniciar às 10h45min e está se iniciando às 11h45min, com uma hora de atraso, não impactar nosso primeiro painel da tarde. Minha preocupação também é no sentido de permitir que, pelo menos no início da tarde, o horário seja retomado. Mais uma vez agradeço a todos.

Destaco que o nosso palestrante, Dr. Paulo Piza, é advogado, sócio do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia. É formado pela Faculdade da USP, onde também obteve suas titulações de mestre e doutor. Concluiu MBA em Risco Financeiro e Atuarial na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, também na USP. É sócio-fundador e 1º Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro. Lecionou Direito Civil, Direito Internacional Privado e Direito do Comércio Internacional na Universidade Mackenzie, em São Paulo. Atualmente, restringiu sua atuação docente à Fundação da Escola Nacional de Seguros. É autor de diversos ensaios, artigos e da consagrada obra O Contrato de Resseguro, que – eu não sabia – está em segunda edição, em breve lançamento. Muito bom para todos.

Os nossos debatedores também são amplamente conhecidos do público na área. A Dr.ª Ana Rita Petraroli é advogada formada pela PUC-SP, especialista na área securitária pela FGV-SP, árbitra, especialista em Responsabilidade Civil e Contratos do Código de Defesa do Consumidor pela PUC. É especialista também em Direito Penal pela PUC-SP e em Direito Digital; Diretora e catedrática da Academia Nacional de Seguros e Previdência; sócia-fundadora da empresa conceito FraudEnemyGroup®, especializada no combate à fraude em seguros, e sócia de diversas instituições internacionais na área.

O nosso também debatedor Dr. Geraldo Nogueira da Gama é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS e em Ciências Contábeis pela UFRGS, com pós-graduação em diversas instituições – FGV, Harvard University, Georgia University –, além de palestrante na área de Seguros. Foi Vice-Diretor da Universidade Ritter dos Reis, Vice-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Ritter dos Reis e professor de Direito Civil dessa mesma instituição e da PUC-RS, onde, inclusive, temo que tenhamos sido colegas em um longínquo ano de 1990, por aí.

Agradecendo, mais uma vez, e destacando a presença de tão significativas figuras, passo a palavra de imediato ao nosso palestrante, Dr. Paulo Piza.

DR. PAULO PIZA – Bom dia a todos. Eu gostaria de agradecer, na presença do presidente da mesa, o convite formulado para estar aqui com vocês e dividir algumas sugestões e algumas informações que me parecem importantes a respeito do tema do resseguro no Projeto de Lei da Câmara n. 29-2017. Eu trouxe aqui umas apresentações de que vou me dispensar para que possamos avançar mais rapidamente sobre a matéria.

O primeiro ponto que sempre gosto de ressaltar quando falamos em resseguro é que as palavras têm algo de demiúrgico. A palavra resseguro é uma delas. O prefixo “re” sempre dá ideia de que estaríamos falando em um segundo seguro, ou que o resseguro cobriria o mesmo risco que o contrato de seguro cobre ou a mesma área de risco, se preferirem, o que não é verdade.

Como já se esclareceu no âmbito da técnica e da doutrina jurídica, o resseguro é um contrato que dá uma proteção ao segurador. Prefiro, inclusive, não falar nem mesmo em seguro do segurador, mas falar em uma proteção do segurador, porque há por detrás dessa discussão todo aquele debate acerca da natureza ou da qualificação jurídica do negócio ressecuritário, se se trata de um seguro de dano, de um subtipo de seguro de dano, ou não. Essa discussão tem que ser encaminhada atentando-se para a função econômico-social do negócio de resseguro. O contrato de resseguro é um contrato que tem por escopo a estabilização técnica e financeira das sociedades seguradoras.

Como todos sabem, a seguradora, o contrato de seguro apoia-se na mutualidade. Nós poderíamos dizer, por exemplo, que, com base em estudos estatísticos e na história pregressa, de cada mil edifícios na Cidade de Porto Alegre, três vão se incendiar no próximo ano. Poderíamos, inclusive, antecipar o valor total dessas perdas. Sobre esses cálculos estatísticos e atuariais, influem diversos fatores. São os chamados desvios e desequilíbrios atuariais, que fazem que essa matemática, em tese, perfeita não seja tão perfeita assim.

Esses fatores são caracterizados, especialmente pela doutrina alemã quando ela fala como o ressegurador vê o risco da seguradora, a partir de quatro aspectos. O primeiro aspecto que se ressalta é a chamada flutuação aleatória. Podemos estabelecer que, no próximo ano, vão se incendiar três edifícios; que, nos próximos dois anos, vão se incendiar seis edifícios, e assim por diante. Mas pode acontecer de, no próximo ano, não se incendiarem apenas três edifícios, mas se incendiarem seis edifícios, nove edifícios, doze edifícios. Os valores que a seguradora terá recolhido a título de prêmios para cobrir essa sinistralidade, em tese, não serão suficientes, porque ela ainda não veio a recolher o prêmio referente àqueles sinistros que ocorreriam em outras vigências futuras. Então, um dos riscos, por assim dizer, que o ressegurador corre é o risco de flutuação aleatória.

Outro risco que o ressegurador corre é o chamado risco de erro ou risco de mudança, inclusive mudança na interpretação jurisprudencial das apólices de seguros. Um exemplo claro é o que sucedia com as apólices de responsabilidade civil antes da Constituição de 1988, em que não se podia, ao mesmo tempo, determinar uma indenização por danos materiais e danos morais. A partir da Constituição de 1988, isso passou a ser possível. Esse é um fator, é um exemplo apenas, apto a gerar um desequilíbrio nas contas do segurador, por assim dizer.

Um terceiro risco que o ressegurador corre é o chamado risco de catástrofe. Temos que entender catástrofe em sentido técnico. Não é necessariamente um furacão, um grande evento, mas é todo evento suscetível de fazer dispararem diversos sinistros no âmbito de diferentes apólices. A queda de uma aeronave, por exemplo, vai suscitar o seguro de casco da aeronave, de pessoas da tripulação, dos diversos passageiros, dos imóveis ou veículos atingidos pelos destroços e assim por diante. Então, um só evento dispara várias apólices. Imaginem que todas essas apólices estejam em uma só seguradora – para caricaturar um pouco a questão. Esses fatores fazem que toda aquela previsão atuarial, estatística, saia de cena, não se confirme. Ou seja, a seguradora, se não se proteger, corre o risco de quebrar. É o chamado, na técnica, risco de ruína do segurador.

É exatamente o risco de ruína da seguradora que o ressegurador cobre. Depois vamos dizer de que maneira ele cobre esse risco de ruína. Antes eu quero apenas salientar o seguinte, especialmente as doutrinas espanhola e latino-americana dizem que o ressegurador cobre o risco de um indébito patrimonial da seguradora, quer dizer, de a seguradora não ter capacidade de responder por suas reponsabilidades.

Particularmente, entendo que é um pouco mais do que isso, ou um pouco menos, dependendo do ponto de vista. Vou me explicar melhor. O ressegurador tem um determinado patrimônio que dá lastro a suas operações. Com base no resultado semestral, no seu balanço semestral, existem cálculos que determinam qual é o limite operacional de um ressegurador, ou seja, quanto ele pode assumir de responsabilidades em uma determinada carteira de seguros. A partir do cálculo desse limite operacional se estabelece o chamado limite técnico, ou seja, quanto o ressegurador pode responder sozinho, autonomamente, por um risco isolado.

Esse limite técnico determina a capacidade de retenção da seguradora por risco. Se ela assumir sozinha um risco de expressão superior a esse limite técnico, ela está correndo o risco quebrar o sistema. Quando ela não tem capacidade de assumir um risco sozinha, ela tem que distribuir, como se diz na técnica, esse risco, por meio do cosseguro ou fundamentalmente por meio do resseguro.

Agora, uma seguradora pode decidir diminuir, por exemplo, o seu limite técnico. Vamos ilustrar. Uma seguradora de incêndio tem um limite técnico de cinco milhões de reais. Então, ela pode assumir sozinha qualquer risco cuja importância assegurada seja equivalente a cinco milhões de reais. Mas ela pode, por uma decisão dela, seguradora, trabalhar não com cinco milhões de reais, mas trabalhar com três milhões de reais. Por quê? Porque ela quer se assegurar mais nessa carteira e quer empregar os recursos que ela disponibiliza em outra área, em outros riscos, em outras modalidades, em outros ramos. Então, na realidade, não é propriamente um indébito patrimonial, é o risco de ela operar abaixo de um determinado nível patrimonial que ela decidiu operar. Isso são filigranas.

Tudo isso para mostrar o seguinte, embora às vezes se fale resseguro incêndio, resseguro responsabilidade civil, isso não existe. O ressegurador não cobre o risco de incêndio que a seguradora cobre. Ele cobre a seguradora, capacitando-a para assumir responsabilidades superiores a seu limite de retenção. Perante o segurado, como isso é uma regra já conhecida de todos e objeto de lei hoje, também isso está presente no Projeto de Lei, a seguradora responde isoladamente. Ainda que se trate de um grande risco em que ela tenha uma retenção de 1% ou menos, ela responde em 100%, porque só ela se compromete perante o segurado. O ressegurador e a seguradora mantêm uma relação diversa dessa, independente e autônoma. O ressegurador está protegendo a seguradora da incapacidade dela de cumprir os seus compromissos ou de operar abaixo de determinado nível patrimonial.

Outra confusão que muitas vezes se verifica decorre do fato de as pessoas pensarem no resseguro como sendo o chamado resseguro facultativo, ou resseguro individual, ou resseguro autônomo. Ou seja, o resseguro que é contratado tendo em vista a sujeição da segurada a responder, por exemplo, por um grande risco. Isso é pontual na indústria. A maior parte dos contratos de resseguro, ou a maior parte da proteção da seguradora, se dá por meio dos chamados tratados de resseguros ou contratos gerais de resseguro. A expressão “tratado de resseguro” é uma expressão que está adotada na prática. Todo o mundo fala em tratado de resseguro, mas essa expressão “tratado” vem do inglês treaty. É uma tradução (...) do inglês treaty, no sentido de algo foi tratado, foi contratado.

O tratado de resseguro é um contrato geral de resseguros que usualmente cobre uma carteira da seguradora, por exemplo, a carteira incêndio. O ressegurador já se compromete a proteger a seguradora de eventual exposição para além da sua capacidade de responder por todos os sinistros ou todas as responsabilidades que ela assume no âmbito de uma determinada carteira. Todos os negócios, todas as operações de seguros dessa carteira que a seguradora for realizando estão automaticamente incluídos, estão automaticamente sob a abrangência dessa proteção que o ressegurador dá à seguradora.

Os tratados de resseguro estabelecem uns limites. A exposição da seguradora estará abrangida por esse tratado de resseguro, desde que os negócios, as operações de seguro que ela celebra, tenham uma determinada importância segurada. Se ela tiver uma importância segurada superior a essa, não está automaticamente incluída nesse tratado. Essa operação, digamos assim, excepcional, poderá vir a ser incluída nesse tratado de resseguro,