Apenas de Passagem

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Apenas de Passagem é um e-book de Paulo Kellerman e Tina Azinheiro

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Deus estava, uma vez mais, aborrecido.

E para se distrair um pouco, decidiu fazer uma pequena viagem pelo mundo, reencontrar-se com a sua criação; acompanhado pelo chefe dos serviços administrativos do céu, de quem desejava obter esclarecimentos pragmá-ticos sobre o que calhasse perguntar, desceu à terra e caminhou entre os homens; tentando espairecer.

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DEUS (apontando a mulher que caminha lentamente na rua, à nossa frente): Que trans-porta ela naquele saco, sabes?

EU (olhando-o com curiosidade, perguntando-me se estará mesmo interessado em sa-ber): Os seus sonhos.

(Continuamos a avançar, em silêncio. A mulher parece ter alguma dificuldade em sus-tentar o peso do saco que transporta às costas; mas ninguém se aproxima para a ajudar, ninguém a olha sequer.)

DEUS (olhando o saco): Não percebo. Que queres dizer com isso?

(Apetece-me sorrir; mas não o faço.)

EU (num tom sério, pedagógico; talvez um pouco condescendente): É uma tradição an-tiga que existe nalgumas aldeias desta parte do país; quando aprendem a escrever, as crianças são encorajadas a registar em pedaços de papel aquilo que mais desejam, aquilo com que sonham. (Pausa breve.) Aquilo que esperam do futuro.

DEUS (interrompendo, ligeiramente agastado): Para quê?

EU (encolhendo os ombros, num tom algo displicente): Quem sabe, talvez apenas para exercitarem a escrita. Mas há crianças que vão crescendo e mantêm o hábito. (Incapaz de contrariar o tom provocatório.) Talvez apenas para que com a passagem do tempo e a dureza da vida não esqueçam aquilo que é importante. O que as motiva a viver.

DEUS (agastado): As pessoas não vivem apenas para concretizar os seus sonhos, as suas fantasias.

EU (num tom desinteressado): Talvez não. Por isso é que para muitas pessoas vai bastan-do sonhar; vão simplesmente acumulando sonhos, esquecendo-se ou desinteressando-se de os concretizar. (Pausa breve.) Basta a possibilidade.

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DEUS (após uma hesitação, apontando a mulher que se afasta lentamente): Como ela?

EU (encolhendo os ombros): Há pessoas que acreditam que aquilo que possuem de mais precioso nas suas vidas são os sonhos que foram acumulando, tudo aquilo que ambiciona-ram e desejaram para si mas não alcançaram. (Observando a marcha da mulher.) E ainda persiste a tradição de oferecer os sonhos de toda uma vida, simbolicamente guardados em pedaços de papel, ao primeiro neto que nasce na família.

DEUS (ligeiramente comovido): Uma espécie de herança, de passagem de testemunho.

EU (num tom sério, quase solene): Aquilo que de mais precioso possuem. A possibilidade de uma vida melhor.

(Ficamos a ver a mulher afastar-se, arrastando-se com esforço. Quando acaba de cruzar a praça, imobiliza-se durante um momento, talvez para se orientar.)

DEUS (impressionado): E acumulou todos estes sonhos? (Abanando a cabeça, ligeiramen-te triste.) Quilos e quilos de sonhos.

(Observamos a mulher, atentos e respeitosos, certos de que em breve seguirá pela tra-vessa que conduz à maternidade, onde o recém-nascido a aguardará. Mas quando final-mente retoma a caminhada, a mulher avança na direcção do mercado, onde entra sem hesitação. Deus olha-me, confuso e interrogador; e quase se indigna, quando depara com o meu sorriso e percebe a sua ironia. Quando se descobre enganado.)

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DEUS (admirado): Um manequim?

EU (sorrindo, sem tentar disfarçar a tristeza): Sim. Daqueles muito antigos, sem cabeça nem braços, sem elegância, sem dignidade.

DEUS (curioso): E que fizeste com ele?

EU (nostálgico): Coloquei-o ao fundo do quarto, junto da janela; como se fosse uma plan-ta frágil que precisasse de luz e de brisa, da ilusão de liberdade.

DEUS (insistente): Mas para que querias um manequim no quarto?

EU (simultaneamente enfático e sonhador): Para me acordar.

DEUS (desconcertado): Não percebo.

EU (pensativo, um pouco hesitante): Sentia-me acessório e irrelevante, dispensável. (Pausa breve.) As pessoas passavam por mim como se eu fosse invisível, como se não existisse; ou existisse mas não tivesse qualquer substância, qualquer interesse; como se fosse apenas parte do cenário, uma peculiar e inexplicável agregação de átomos, sem objectivo nem utilidade.

DEUS (num murmúrio): Um manequim.

EU (distante e abstraído, entregue à recordação): Todos os dias, antes de adormecer, olhava o perfil do manequim recortado pela frágil escuridão vinda da rua e tentava sentir o que imaginava que todas as pessoas sentiam em relação a mim. (Pausa breve.) E logo depois, de manhã, quando acordava, lá estava ele, imutável e discreto, um pouco som-brio, irrelevante e deslocado.

DEUS (algo condescendente): Indiferente.

EU (ignorando-o): Olhava o manequim enquanto me vestia, lento e abstraído, e pergun-tava a mim próprio: que poderei fazer hoje para que os outros não me vejam como um

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manequim, parte do cenário? Ou melhor: para que me vejam, simplesmente? Que posso fazer para que a minha vida não seja estática e redundante, como a existência deste manequim?

(Permanecemos em silêncio, sentados na esplanada quase vazia. Do outro lado da rua, uma mulher de olhar indiferente e gestos cansados continua a despir metodicamente os manequins em exibição numa montra; as peças de roupa vão-se amontoando no chão, desordenadas e irrelevantes, enquanto a nudez artificial dos manequins é exposta.)

EU (abstraindo-me dos manequins e incapaz de desviar o olhar da funcionária da loja que os vai despindo): Foi numa dessas manhãs, olhando o manequim silencioso, que comecei a desconfiar que talvez todas as vidas fossem redundantes e estáticas. (Pausa breve.) Todas e não apenas a minha.

(Aguardo o seu comentário, que pressinto; que desejo: apetece-me ser confrontado. Discutir. Mas ele ignora-me.)

EU (subitamente incomodado; arrependido de ter cedido à volúpia da confissão; mas in-capaz de me conter): Pressenti, também, que talvez apenas varie o grau de empenho de cada um em fingir que não é assim. Percebi que não interessa que a vida seja interessante ou não, basta que pareça interessante.

(Sorrio, tentando disfarçar o incómodo. Ele permanece em silêncio, pensativo. Ou será que nem está a ouvir-me?)

EU (num tom forçadamente aligeirado): Somos todos manequins, afinal. O que muda é a roupa que cada um usa; o disfarce. (Pausa breve.) Camadas e camadas de subterfúgio mas, lá no fundo, permanece apenas madeira descolorida e grosseira, quase, quase apo-drecida.

(A funcionária da loja desapareceu, levando consigo toda a roupa; apenas os manequins permanecem na montra, extáticos e um pouco obscenos. Há pessoas a passar pelo pas-seio, apressadas e melancólicas, tristes; mas nenhuma delas olha os manequins.)

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DEUS (entusiasmado): Parecem felizes, não achas?

(Encolho os ombros, não querendo comprometer-me com uma opinião; desinteressado em incentivar o diálogo. Continuamos a olhar os três jovens irmãos que na varanda de sua casa compõem um quadro familiar harmonioso e nostálgico; talvez feliz.)

DEUS (incapaz de não falar, de não se comover): Repara como se sentem confortáveis na presença uns dos outros. Em silêncio, acompanhando-se e entendendo-se. Sem segredos nem animosidades, serenos.

(Uma das raparigas olha-nos e sorri, como se agradecesse a nossa atenção; a irmã pros-segue serenamente o seu trabalho de costura, perante o olhar atento do irmão; também eles sorriem, de modo quase imperceptível, timidamente. Comum a todos, a delicadeza e a naturalidade dos sorrisos; como se fosse esse o seu estado habitual, permanente.)

DEUS (apreciativamente): Em harmonia.

EU (penitenciando-me por não resistir a contrariá-lo): Mas nem sempre a aparente har-monia entre pessoas que vivem juntas significa intimidade.

DEUS (surpreendido e desagradado): Que queres dizer?

(Ouvimos distintamente o ruído da máquina de costura, monocórdico e evocador, po-ético. Os sorrisos, ténues e subtis, quase apenas insinuados, mantêm-se lânguidos e infinitos. Parece tudo tão idílico que, por momentos, interrogo-me se não estaremos a assistir a uma ingénua encenação.)

EU (encolhendo os ombros e desviando o olhar dos jovens): Nada, estava só a divagar. (Arrependido de ter falado.) Não queria ser injusto.

DEUS (à beira da indignação): Injusto, como?

(O silêncio envolve-nos, desconfortável e opressivo, apenas interrompido pelo ocasional

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matraquear da máquina de costura.)

EU (contrariado, forçando-me a falar; mas, de certa forma, aliviado por o fazer): Des-confio que muitas vezes a harmonia familiar não resulta propriamente do conhecimento e respeito mútuo, da partilha e da intimidade, do apreço recíproco. Do amor.

DEUS (um pouco exasperado mas atento, curioso com a minha perspectiva): Mas isso é uma contradição. De onde provém a harmonia, nesse caso?

EU (num tom hesitante, quase envergonhado): Do desinteresse.

(O silêncio é, agora, mais desconfortável, incómodo. A máquina cessou momentanea-mente o seu zumbido, apenas se ouve o crepitar distante e fantasmagórico dos insectos, lá para os lados do rio. Os jovens permanecem imóveis e expectantes, como se tivessem escutado o nosso diálogo e aguardassem com interesse a sua conclusão; mas ainda unidos no seu sorriso familiar e abrangente.)

EU (sentindo o seu desagrado): Suponho que é mais fácil desinteressarmo-nos do outro, não investir demasiado, não gastar tempo e empenho e atenção em percebê-lo. (Hesita-ção.) Mesmo que o amemos. (Pausa breve.) E havendo um desconhecimento consciente de quem nos está próximo, é fácil que se instale um aparente estado de harmonia por-que, afinal, não há nenhum motivo para que existam desentendimentos, incompreen-sões, indícios de conflito. Simplesmente porque o outro não nos interessa o suficiente. (Pausa breve.) Alimentar um estado de desarmonia dá trabalho, exige esforço. (Sorrindo, sem ironia.) Cansa.

(Encolho os ombros e olho a varanda, onde os irmãos permanecem como antes, imutá-veis e invulneráveis; de repente, e pela primeira vez, pergunto-me se serão realmente irmãos.)

DEUS (desgastado, algo sobranceiro; mas num tom triste, derrotado): Essa análise é atroz. De um cinismo intolerável.

(E também ele espreita o trio da varanda; com um olhar interrogador, parece-me.)

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(Caminhávamos sem pressa por uma rua quase deserta quando reparámos numa velha senhora sentada num canto de sombra, indiferente ao mundo; talvez a tivéssemos igno-rado se, como todos os velhos com que nos cruzáramos antes, o seu rosto denunciasse cansaço e desesperança, apatia, um princípio de ressentimento. Contudo, havia na sua postura, no seu olhar, no seu sorriso, uma inesperada serenidade, talvez nostálgica, ou esperançosa, uma confortável tranquilidade que nos impressionou e intrigou, que nos cativou. Reduzimos um pouco o passo mas prosseguimos a marcha, espreitando-a.)

DEUS (intrigado): Por que motivo sorri ela?

EU (surpreendido): Mas por que não haveria de sorrir?

DEUS (confuso, talvez um pouco envergonhado): Não sei, achei curioso. Não é frequente encontrar um velho a sorrir assim. Com confiança e desprendimento. (Hesitando.) Talvez porque o seu tempo esteja a chegar ao fim, não é? Não terá muitos motivos para sorrir.

(Caminhamos em silêncio, concentrados nos nossos pensamentos; por fim, contornamos a esquina e entramos numa rua mais movimentada. Há crianças a correr desordenada-mente, gritando ou rindo; cães estendidos na rua, adormecidos.)

EU (encolhendo os ombros): Mas talvez seja precisamente por isso que sorria.

DEUS (surpreendido, um pouco agastado): Porque está perto do fim? Da morte?

EU (olhando-o com curiosidade mas sem desafio): Sim, porque está a morrer. E sabe que está a morrer. (Sentindo o seu incómodo.) Sabe que precisa de aproveitar o tempo que ainda tem, sabe que depois de morrer já não poderá sorrir.

DEUS (correspondendo ao meu olhar, perscrutando-me o rosto com desconfiança; um pouco irritado): Aproveitar o tempo?

EU (num tom quase condescendente): Sim, acumular sorrisos para que depois os possa saborear tranquilamente, lá na escuridão do caixão. (Abano a cabeça, enfadado; ou pro-

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vocatório?) Afinal, para que servem os sorrisos se não para recordar?

(Deus olha em redor, onde várias crianças continuam a correr sem aparente objectivo; sorrindo, a maioria delas. Encolhe os ombros e parece desinteressar-se da conversa, do que eu possa dizer.)

EU (indiferente à sua indiferença): Talvez sejam uma forma de consolidar os sentimen-tos; de os exteriorizar, atribuindo-lhes uma forma concreta e visível, uma existência. Uma memória.

(Deus continua a olhar as crianças durante alguns instantes; depois, encara-me.)

DEUS (num tom sério e atento): Sorrir é uma forma de guardar memórias? (Sorri.) É isso que estás a dizer?

(Encolho os ombros, não respondo. Depois, correspondo ao seu sorriso.)

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(O autocarro imobiliza-se inesperadamente, algures a meio da subida da montanha. Es-preitamos, tentando perceber o que motivou a paragem. A porta abre com ruído, dando passagem a um miúdo que pára em frente do motorista e lhe entrega algumas moedas; depois, surge uma rapariga, carregando um bebé. Desfilam silenciosamente perante o olhar indiferente do motorista e sentam-se no primeiro banco disponível. A porta é fe-chada, provocando um eco metálico e lúgubre, pessimista; depois, o autocarro retoma o percurso. Durante um breve momento, sinto uma súbita e inesperada sensação de de-samparo e de claustrofobia, de isolamento em relação ao mundo. De privação.)

DEUS (num murmúrio, aproximando-se ligeiramente de mim): Viste os miúdos que en-traram?

(Encolho os ombros, desinteressado: não dos miúdos mas do diálogo iminente.)

DEUS (insistente, baixando ainda mais a voz): Achas que são órfãos?

EU (desconfortável com a sua proximidade): De certeza que são.

DEUS (num tom pesaroso): Os rostos impressionaram-me. Tão sérios, tão tristes.

EU (num tom neutro, descomprometido): Vazios.

DEUS (acenando a cabeça com vigor): Isso. Vazios; sem esperança. E os olhares opacos, sem brilho. Viste? (Desvia o olhar das cabeças dos miúdos, que lá mais à frente vão ba-lançando ao ritmo dos solavancos do autocarro.) É revoltante encontrar isso em crianças. Esta completa e ignóbil falta de fé no futuro.

(O motorista espirra, inesperadamente; e os miúdos encolhem-se um pouco, talvez as-sustados. A rapariga segreda qualquer coisa no ouvido do bebé, que permanece calmo e alheado.)

DEUS (indignado, sibilando as palavras): Pouco mais do que crianças e já sem futuro. (Controlando-se.) Que terá acontecido aos pais?

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EU (hesitante e desviando o olhar para a janela, espreitando a secura da montanha): Suspeito que a tristeza deles não se deva ao facto de serem órfãos.

DEUS (surpreendido): Como podes dizer uma coisa dessas?

EU (encolhendo os ombros; a rapariga continua a segredar qualquer coisa ao bebé, en-quanto lhe acaricia as costas com gestos simultaneamente automáticos e ternos; volto a olhar para a montanha que passa lá fora, majestosa e imutável): Quase que aposto que a sua tristeza é anterior à orfandade.

DEUS (interrompendo): Anterior? Anterior como?

EU (olhando o céu azul e sentindo-me desamparado por, mais uma vez, ser forçado a admitir a irrelevância da sua beleza): Sim. Ficarem órfãos apenas confirmou algo que já tinham antevisto antes. Transformou a premonição em certeza.

DEUS (irritado): Não percebo onde queres chegar.

EU (num tom falsamente distanciado): O que os magoa e desampara, o que lhes tira o brilho do olhar, não é sentirem que não têm futuro, como disseste. (Hesitação.) O que os magoa e desampara é terem percebido como será o seu futuro. Terem percebido que já viveram tudo e que agora lhes restará repetir. Terem percebido que não haverá novidade nem surpresa.

DEUS (após um silêncio desconfortável): Não aceito isso. (Indignado.) Não posso aceitar.

EU (sorrindo, com tristeza, sem desafio): Então, que vais fazer? (Pausa breve.) Que podes fazer? (Olhando-o, por fim.) Que podem eles fazerem?

(Agora é ele que olha a montanha, o céu azul. Fecho os olhos, sentindo vontade de ador-mecer enquanto o autocarro avança ruidosamente, sem pressa. De repente, o motorista espirra; e desta vez não são apenas as crianças que se encolhem um pouco.)

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EU (sorrindo): Estão a trocar os animais.

DEUS (curioso): A fazer negócio?

EU (observando os dois idosos que permanecem silenciosos, olhando em direcções di-ferentes; como se nem estivessem juntos): Não. A trocar, simplesmente. O que trazia a ovelha branca fica com a ovelha preta e vice-versa.

DEUS (estranhando o meu esclarecimento): Mas para quê?

(Estamos a atravessar lentamente o mercado, envolvidos por uma neblina de cheiros indistinguíveis; passamos por homens de rostos solenes, indiferentes à nossa existên-cia, que caminham lentamente e fixam o horizonte sem esperança ou receio, como se há muito tivessem desistido de esperar algo. Ele pára repentinamente, olhando os dois idosos.)

EU (parando junto dele; num tom ligeiramente agastado, quase condescendente): Por-que já o fazem há anos. No próximo mês voltarão a trocá-los. (Moderando o tom.) Prova-velmente já nem se lembram de quem era o dono original de cada um dos animais.

DEUS (interessado): E que ganham em estarem sempre a trocar de animal?

EU (baixando o volume da voz, não sei porquê; num tom respeitoso, quase solene): É um compromisso. Uma forma de manterem uma relação.

(Um dos idosos começa a afastar-se, sem trocar qualquer palavra com o outro idoso; uma das ovelhas segue-o.)

DEUS (observando o idoso que se afasta, indiferente a quem o rodeia): Uma relação?

EU (olhando o idoso que permaneceu, igualmente alheado): Sim, algo que os aproxima. Um vínculo que os une.

DEUS (olhando, subitamente irritado): Isso é absurdo.

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EU (enfrentando o seu olhar; um pouco desafiador): Absurdo? Porquê?

(O idoso já desapareceu, caminhando lentamente pela estrada.)

DEUS (tentado controlar a irritação): Para que serve uma relação assim? Qual é a gratifi-cação, onde está o interesse? Repara, nem falaram. Estiveram para ali em silêncio, com os olhares rígidos e apagados, de mãos nos bolsos, a respirar devagarinho. (Tom agasta-do.) Como se cada um deles estivesse desconfortável com a presença do outro; ou pior: indiferente, como se preferisse estar sozinho.

(Ambos olhamos o idoso que permaneceu no meio da multidão do mercado, alheado e indiferente, só; a ovelha afasta-se ligeiramente e ele olha-a, sem revelar qualquer es-pécie de emoção; depois, inesperadamente, começa a segui-la.)

EU (num tom apático): Talvez cada um deles prefira estar sozinho.

DEUS (momentaneamente exasperado): Então para que forçam esse rito de trocar os animais? (Baixando a voz e trespassando-me com o seu olhar perscrutador.) Para quê procurar um pretexto que justifique o encontro, force a relação?

EU (desviando o olhar, incomodado): Não sei. Suponho que as pessoas se habituam a tudo, de tal forma que deixam de considerar a possibilidade de mudança. (Reparo que estamos há imenso tempo imóveis, olhando os idosos que já não se encontram no local para onde ainda olhamos; começo a caminhar, seguido por ele.) Sei lá. É como em muitos casamentos. As pessoas ficam demasiado apáticas para forçar um divórcio, de tão habitu-adas que estão a que as coisas sejam como são.

(Caminhamos lentamente, pela mesma estrada por onde se afastou o primeiro idoso. Permanecemos em silêncio durante muito tempo.)

DEUS (pensativo): Gostava de regressar aqui no próximo dia de mercado. Para ver em que estado está esta metáfora de casamento, passado um mês. (E sorri, deixando-me confuso: não sei se está a ser irónico ou não.)

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DEUS (interrompendo um longo silêncio): Não vimos esta rapariga, antes?

EU (indiferente): É possível.

DEUS (pensativo): Sim, acho que era ela. Lá para os lados da praia.

(A vasilha colocada na fonte enche lentamente, perante o olhar paciente da rapariga; a tarde avança silenciosa e apática, como se o tempo tivesse subitamente percebido que não há grande interesse em continuar a avançar e hesitasse, ponderando preguiçosamen-te a possibilidade de suspender o seu monótono tiquetaque.)

DEUS (hesitante): Penso que era mesmo ela. Não te lembras? Logo de manhã.

(A rapariga pega na vasilha e afasta-se da fonte, caminhando com passos lentos e con-formados. Olhamo-la em silêncio, talvez sem verdadeiro interesse; sabendo que dentro de momentos chegará uma nova distracção.)

DEUS (surpreendendo-me com a sua insistência): Mas para que precisa ela de tanta água, afinal?

EU (contendo um suspiro; tom agastado): Talvez pertença a uma família pobre que não tem água canalizada. Ou tenha um irmãozinho que gosta de brincar numa piscinazita qualquer. (Pausa breve.) Talvez exista algures uma plantação secreta de orquídeas selva-gens que precisem de ser regadas.

(Deus olha-me, espantado com a minha inesperada hostilidade.)

EU (tentando moderar a irritação, que a mim próprio me surpreendeu): Ou quem sabe se não será descendente da lendária família dos vigilantes do mar.

DEUS (curioso): Que família é essa?

EU (algo condescendente): É uma lenda que se conta nalguns países. Que havia desde o início do mundo uma família responsável pela vigilância do mar.

DEUS (desconfiado): Nunca ouvi falar. Vigilância para quê? Por causa dos pescadores?

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EU: Não. (Tentando não sorrir.) Para que o mar nunca seque.

DEUS (súbita e genuinamente interessado): A sério?

EU: A sério. (Tom pedagógico, como se falasse com uma criança.) Tinham como função pegar em pequenas quantidades de água doce e atirá-la ao mar, em momentos definidos e regulares. Acreditavam que se não cumprissem essa função, a harmonia e o equilíbrio entre os elementos seria perturbado e os oceanos começariam lentamente a secar.

DEUS (desagradado, inesperadamente brusco): Que ingenuidade.

EU (surpreendido com a sua irritação): Talvez. Mas a tradição sempre foi levada muito a sério. Houve pessoas que passaram todas as suas vidas a transportar água para o mar. Hora após hora, dia após dia. Até morrerem e serem substituídas.

DEUS (verdadeiramente impressionado): Que horror.

EU (irritado): Horror? Porquê?

DEUS (quase exasperado): Porquê? Porque eram vidas desperdiçadas. Vidas consumidas numa rotina frustrante e inconsequente, na ilusão de alcançar objectivos irreais e fan-tasiosos.

(Olhamos ainda a fonte, onde a água continua monotonamente a correr. Nenhuma pessoa se aproximou.)

EU (num tom algo mordaz, que me embaraça um pouco mas a que não resisto): Mas não é o que acontece com toda a gente?

DEUS (olhando-me sem qualquer antagonismo, verdadeiramente interessado na minha opinião): Que queres dizer?

EU (tom melancólico, quase triste): Vidas consumidas por rotinas frustrantes. Não são todas? Há algum objectivo de vida que não seja irreal e fantasioso? (Pausa breve.) Qual é a diferença entre passar os dias a tentar encher o mar com baldes de água ou. Sei lá. (Hesito, pensativo.) Passar os dias a tentar encher uma conta bancária, por exemplo. Há verdadeira diferença? Será que existem objectivos de vida mais legítimos que outros?

(Deus olha-me, pensativo; parece reflectir. Pergunto-me se estará envergonhado.)

EU (num tom um pouco presunçoso): Independentemente do que se faça, está-se sim-plesmente a ocupar o tempo, a preenchê-lo; a disfarçar o medo, a distrair a consciência. (Pergunto-me porque motivo andarei eu a ficar tão pomposo; tão irritante.) Tudo serve, afinal, para não repararmos que o tempo vai passando, está a esgotar-se; não é? E uma forma simples de tentar ser feliz é acreditar que se é útil.

(Permanecemos em silêncio, talvez à espera que a rapariga regresse.)

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(Estamos há algum tempo no átrio de um velho palácio transformado em museu. Poucas pessoas passeiam pelas diversas galerias, fazendo-o sem grande entusiasmo e arrastando atrás de si um halo de silêncio e reverência, de desconforto; os dois vigilantes olham-nos disfarçadamente, talvez esperançosos que a nossa presença despolete algum comporta-mento inesperado que distraia a monotonia das suas tardes. Já não me lembro por que motivo viemos.)

DEUS (num tom baixo, quase murmurado): Já reparaste naquela mulher?

EU (distraído, sem olhar em redor): Qual?

DEUS (apontando com o olhar): Aquela.

(No átrio momentaneamente deserto uma mulher surge e caminha com passos lentos e incertos; parece distraída e distante.)

EU (disfarçando a curiosidade): Que tem?

DEUS (sem desviar o olhar da mulher, que parece procurar algo ou alguém): Ainda não parou de andar aí às voltas, de um lado para o outro. (Olhamo-la, curiosos.) Que achas que procura?

EU (pensativo): Não faço ideia.

DEUS (após um longo silêncio; num tom convidativo e aprazível): Mas imagina. Faz uma sugestão. Inventa.

(A mulher sobe vagarosamente uma das escadarias e deixamos de a ver; ficamos a olhar para o local onde desapareceu, com esperança que regresse.)

EU (após um longo silêncio): Suponho que esteja à procura de si própria.

(Sorri, talvez agradado com o inesperada da minha sugestão ou com o simples facto de eu aceitar o seu desafio.)

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DEUS (curioso): De si própria?

EU (num tom algo sonhador): Sim, talvez se tente reencontrar. Talvez não goste da pes-soa em que se transformou, da pessoa em que a vida a forçou a tornar-se; talvez gos-tasse de mudar, de ser diferente; de ser algo que já foi. (Hesito, receando que a minha especulação pareça petulante, desapropriada; contudo, o seu silêncio incentiva-me a prosseguir.) Mas talvez a vida a tenha modificado tanto que receie não se reconhecer, caso realmente se reencontre consigo mesma.

(Deus olha-me e sorri.)

DEUS (varrendo o átrio com o olhar, procurando-a): Mas porque viria para aqui? Porquê este local para procurar o seu passado? Para se procurar.

EU (seguindo o seu olhar; perguntando-me quem estará mais ansioso em revê-la): Porque quando era criança, o seu pai segredava-lhe que era uma princesa. E ela acreditava, pois era o seu pai quem o dizia.

DEUS (sorrindo): E agora voltou a acreditar.

EU (suspirando, repentinamente cansado da conversa): É isso que procura. A possibilida-de de voltar a ser especial. A crença de que ainda é especial.

(Permanecemos em silêncio, expectantes e talvez um pouco deprimidos.)

DEUS (murmurando para si próprio): Uma mulher à procura da sua infância, deambulan-do por um palácio onde viveram princesas de verdade, princesas iguais às que ela própria acreditou ser.

(De súbito, a mulher regressa; antes de a vermos, ouvimo-la: fala ao telemóvel. Dis-cute com alguém, num tom desagradável e intempestivo; desce as escadas e atravessa o átrio, sempre acompanhada pelo ruído da sua própria voz. Olhamo-la, pesarosos e envergonhados; os vigilantes espreitam-na, perguntando-se se deverão intervir. Por fim, a mulher desliga o telemóvel e abandona o edifício; ainda ouvimos o eco da sua voz ir-ritada durante alguns instantes.)

EU (tom pesaroso e desanimado): A verdade é que já não há verdadeiras princesas.

(Sorrimos, sentindo-nos tristes.)

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(Permanecemos há algum tempo num café, entretidos a olhar quem nos rodeia. Algumas mesas estão ocupadas por pessoas que conversam em voz baixa, sem se olharem; ainda não se ouviu um riso desde que chegámos. Mesmo no meio do café, um velho instalou-se confortavelmente a ler, completamente abstraído. Os dois funcionários permanecem na entrada do café, invejando quem passa lá fora.)

DEUS (apontando o velho): Já reparaste como permanece ali completamente impertur-bável e indiferente ao que o rodeia? Que estará a ler?

EU (num tom indiferente mas que poderá parecer provocador): Talvez nem esteja a ler nada.

DEUS (irritado): Então não vês como está concentrado no livro?

EU (tom misterioso): Está a olhar para o livro; isso não significa que esteja a ler.

DEUS (tom irónico, quase corrosivo): Achas que está apenas a olhar para as letras?

EU (enfático): Acho.

DEUS (irritado): Mas porquê?

EU (num tom cálido): Porque não sabe ler.

DEUS (surpreendido): Não sabe ler?

EU (indiferente): Não.

DEUS (curioso): Então por que motivo passou a manhã no meio deste café, a fingir que lê?

EU (sorrindo ligeiramente): Para recordar.

DEUS (interessado mas algo incrédulo): Recordar? Que queres dizer com isso? Recordar o quê?

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EU (tom monocórdico e agastado; como se me custasse revelar o segredo do velho): Está a regressar ao seu passado, a revivê-lo. A reencontrar-se consigo mesmo, quando era criança.

DEUS (impertinente): Fingindo que lê?

EU (tom defensivo): Não precisa de ler porque recorda as frases, uma a uma; está sim-plesmente a revivê-las, ouvindo-as ecoar na sua mente. Escutando-as na voz da sua mãe. (Após uma hesitação, baixando a voz.) Porque esse era um dos livros que ela lhe lia, quando ele era menino.

DEUS (depois de um longo silêncio, desviando finalmente o olhar do velho): Está a re-cordar a mãe?

EU (num tom quase solene, que me irrita um pouco): A despedir-se, talvez. Ou a com-pletar o ciclo da sua vida, regressando ao princípio. Deixando-se transformar impercep-tivelmente em criança, na criança que foi. (Permanecemos em silêncio, envolvidos pelo burburinho do café.) Antes ouvia a voz da mãe e fingia que ele próprio lia, para se sentir adulto; agora escuta o murmúrio distante da mãe e finge que lê, para se sentir durante um fugaz momento a criança que foi.

DEUS (num tom ternurento, que nos embaraça): Não é um velho que ali está, é isso que queres dizer?

Eu (baixando a voz): É uma criança disfarçada de velho. Uma criança que viveu tanto tempo disfarçada de adulto que conquistou o direito de voltar a ser criança.

(O velho permanece completamente alheado ao que o rodeia, concentrado no livro que segura nas mãos; mas os seus olhos, quase fechados e protegidos pelos óculos, parecem não se mover. Espreitamo-lo, atentos e curiosos, reparando que ele parece esquecido da necessidade de mudar a página.)

DEUS (incapaz de não olhar o velho): Mas por que motivo está aqui, no meio deste café? Porque não se refugia em casa, num local secreto e íntimo, privado?

EU (um pouco brusco): Porque deseja estar só. (Num tom mais conciliador.) E onde nos sentimos verdadeiramente sós? Quando estamos no meio da multidão, quando estamos rodeados de pessoas que não reparam em nós, não se interessam por nós, que não per-cebem que existimos.

(DEUS espreita-me, apreensivo e perscrutador; mas ignoro-o, decidindo não responder ao seu olhar interrogativo.)

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DEUS (num tom apreensivo): Em que estará a pensar aquela criança?

EU (olhando fugazmente): Não sei. No que pensam todas as crianças, talvez.

DEUS (tom insistente): Mas em que pensam todas as crianças?

EU (distraído): Em chocolate.

DEUS (indignado): Olha a expressão dela. Parece-te que está a pensar em chocolate?

(Não respondo, aguardando que a sua irritação se dissipe.)

DEUS (ainda olhando a criança): Em que pensavas quando eras criança?

EU (tom neutro, descomprometido): Em aventuras e descobertas. Em crescer e ser gran-de. Em heroísmos e riquezas. (Hesitando mas incapaz de resistir.) Em chocolate.

(No outro lado da rua, a menina continua a olhar-nos, séria e imperturbável. Desafiante? Talvez não. Apenas curiosa; interessada. E desconforta-me a sua expressão adulta – pre-maturamente adulta.)

DEUS (olhando-me): Qual foi o teu primeiro pensamento mau?

EU (confuso): Mau?

DEUS (obstinado): Sim. Quando pensaste pela primeira vez em morte, por exemplo?

EU (tom defensivo): Sei lá. Não me lembro.

DEUS (pensativo, olhando de novo a criança): Porque é nesse dia que se deixa de se ser criança, não é? Quando se percebe que existe morte.

(A mãe da criança espreita-a, atenta e protectora; e sorri, orgulhosa; tranquila; feliz.)

EU (olhando a criança com atenção, levemente intrigado pela aura de mistério que a sua expressão revela): Achas que ela ainda é criança? (Num tom mais baixo, hesitante): Ou

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já saberá da morte?

(Deus não responde; contempla pensativamente a criança, que corresponde ao seu olhar; ambos se estudam, curiosos e atentos.)

EU (encolhendo os ombros, como se fosse possível esquecer o olhar enigmático e pers-crutador da criança): Talvez não.

(A tarde escurece lentamente, inundando a rua de tranquilidade; apenas os pássaros, esvoaçando ruidosamente no cimo das árvores, perturbam o estranho estado de ador-mecimento que parece ter invadido a rua, a cidade, o mundo. Mantemo-nos imóveis e atentos, à espera que a passagem do tempo traga alguma novidade.)

DEUS (pensativo): Que estará ela a pensar de mim?

(De repente levanta-se e começa a atravessar a rua deserta, caminhando na direcção da criança; suponho que lhe vá perguntar.)

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(Os actores despendem-se do público, agradecendo os seus aplausos não muito entusias-mados.)

DEUS (pensativo, olhando o palco como se esperasse que os actores regressassem): Como será retirar a máscara e ficar nu? Desprotegido.

EU (distraído): Máscara?

DEUS (num tom entusiasmado): Sim. Retirar a maquilhagem e eliminar todos os artifícios, desligar a personalidade, a existência, que se viveu nas últimas duas horas; e regressar. Apagar tudo e regressar ao conhecido, ao habitual. Ao normal.

EU (um pouco impressionado com o seu tom apaixonado): Estás a falar dos actores? De entrarem e saírem nas personagens?

DEUS (ignorando-me, como se reflectisse): Como conseguem? Experimentam uma vida nova, que lhes é estranha, uma vida emprestada, com tal vigor, tal entrega, tal abnega-ção e depois. (Hesita, confuso.) Estão ali durante duas horas, a viver aquela existência, sendo aquela existência, até que alguém acende as luzes, alguém começa a aplaudir, e tudo é suspenso. (Quase comovido.) Não é esquisito?

EU (um pouco desconcertado): Não.

DEUS (surpreendido): Não?

EU (hesitante): É apenas o aperfeiçoamento de algo que todos fazemos, dia após dia após dia.

DEUS (interrompendo um longo período de silêncio): Todos somos actores, é isso queres dizer?

(Quase todos os espectadores se retiraram, conferindo uma dimensão quase lúgubre à sala de espectáculos; os actores estarão nos camarins, talvez rindo alto, aliviados.)

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EU (enfático): Claro. Porquê o espanto? Todos colocamos e retiramos máscaras, a cada instante. (Hesito, sem saber onde me conduzirá o discurso.) Máscaras sobre máscaras, sobrepostas de tal modo que deixamos de perceber que as usamos. (Começo a tossir, depois percebo que estou a fingir, a inventar uma distracção, a forçar um subterfúgio.) Os actores apenas têm o despudor de o fazer assumidamente, em horários pré-definidos e cobrando bilhete; serão menos hipócritas, talvez.

(Ouve-se uma explosão de gargalhadas, distante; depois, silêncio.)

EU (num tom subitamente indiferente): O teatro não é representação, como se diz; é confissão e confrontação. O que os actores estão a dizer é: vejam como fingimos bem, gostam? Pois olhem que é o que todos vocês fazem, permanentemente; estamos a imitar-vos, simplesmente. (Tom amargo, que me entristece.) Por isso é que as pessoas gostam de ir ao teatro, não é? (Aguardo um segundo por uma resposta que não virá.) Porque, secreta e pudicamente, estão a olhar-se ao espelho.

(Deus ergue-se, inesperadamente; caminha entre as cadeiras vazias, sem pressa.)

EU (seguindo-o, falando para as suas costas): No início dos tempos, todos éramos idên-ticos, monotonamente semelhantes; sonhos e dores e segredos e ilusões e receios e fantasias e paixões: tudo muito idêntico. (Aumenta a velocidade, como se fugisse; ou será impressão minha?) E foi da necessidade de experimentar a diferença e o desvio, a especulação, que surgiu o teatro; uma espécie de espaço de fingimento, de diversão; tes-tar a diferença, saboreá-la através do outro. Colocar momentaneamente uma máscara e experimentar o desconhecido, o inédito, o proibido. (Sorrio, não sei porquê.) Tornou-se voluptuoso, aditivo; e as máscaras foram ficando por mais tempo, transformando-se numa necessidade.

(Descemos a enorme escadaria e permanecemos na rua; algumas pessoas conversam e fumam, indiferentes à nossa presença.)

EU (tom bem-disposto, convincente): Tudo é máscara e maquilhagem, tudo é teatro. Miragem e alucinação, subterfúgio, encenação. Fingimento. (Suspiro.) Enfim, necessi-dade de ser único e original, relevante, mais que uma mera repetição, uma previsibi-lidade. Obsessão da unicidade. (Forço um riso, que me sai mal.) Se retirássemos todas as máscaras que usamos, uma após outra, nem nos reconheceríamos como humanos, perceberíamo-nos como uma espécie de entidades exóticas e unidimensionais e apáticas, monótonas, irrelevantes.

DEUS (num tom triste): Fazes-me o favor de te calares?

(Estão a apagar as luzes do teatro; afastamo-nos em silêncio, enquanto me pergunto onde estarão os actores.)

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(Permanecemos há imenso tempo sentados na paragem mas ainda ninguém se aproxi-mou, nenhum autocarro passou; mantemo-nos em silêncio, observando desinteressada-mente os carros que vão passando. Por vezes, espreitamos a adolescente que trabalha num lojinha do outro lado da rua ou o idoso que lê o jornal, à janela do seu salão de cabeleireiro.)

DEUS (referindo-se ao cabeleireiro): Mas que faz ele ali todo este tempo, sem se me-xer?

EU (desinteressado): Espera.

DEUS (pensativo): Eu sei. O que me intriga é perceber o que poderá ainda esperar da vida uma pessoa com setenta anos, ou mais.

EU (distante): Talvez seja essa a idade ideal para começar a esperar.

DEUS (irritado): Que queres dizer?

EU (indiferente): Se pensarmos bem, todos esperamos a mesma coisa. Excluindo dis-tracções e entretenimentos, excluindo tudo aquilo que nos preenche os dias e atrofia os pensamentos.

DEUS (lúgubre): A morte.

EU (ignorando-o): Podermos não a esperar de forma consciente, de forma activa, mas a sua inevitabilidade está sempre presente. (Pausa breve.) Apesar de irmos alimentando a esperança que tarde em chegar, que se distraia.

DEUS (tom solene, um pouco irritante): Mas sabemos que não deixará de vir. Mais tarde ou mais cedo.

(Do lado de lá da rua, a adolescente continua a falar ao telemóvel, num tom jovial e alegre. O cabeleireiro continua a olhar o jornal, paciente e alheado.)

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EU (encolhendo os ombros): Virá, acaba sempre por vir. (Concentrando-me no riso da adolescente.) Mas se conseguirmos abstrairmo-nos da inevitabilidade da sua chegada durante a maior parte dos dias, se permitirmos que a nossa vida nos entretenha, nos absorva, nos aliene, poderemos alcançar a felicidade de apenas darmos por nós a pensar verdadeiramente na morte quando for altura disso. Quando não há verdadeiramente mais nada em que pensar.

DEUS (sorrindo, contrariado): Na velhice. (Após uma longa pausa.) Achas que é disso que ele está à espera? Da morte.

EU (displicente): Certamente. (Pausa breve.) Ou de um milagre, quem sabe.

(Permanecemos muito tempo em silêncio, sentindo a tensão crescer entre nós.)

DEUS (sem me olhar, num tom ligeiramente agressivo): Poderá estar, simplesmente, à espera de encontrar no jornal algo que lhe proporcione um sorriso. (Hesita.) Ou à espe-ra de um cliente, de um amigo que queira tagarelar, de um fornecedor de champôs. À espera que sopre uma brisa ou que haja um acidente aqui no meio da rua, um acidente em que ninguém se aleije mas que distraia, que apresse a passagem dos segundos. (Nova hesitação.) Ou que abrande o seu avanço, sei lá; desde que se consiga perceber que os segundos estão mesmo a passar, desde que se consiga senti-los. (Suspira, cansado.) À espera que o mundo acabe sem aviso, dissolvido numa nuvem de poeira. Ou à espera que chova, que as nuvens se dissipem e o céu fique azul. À espera da hora de almoço. À espera que a moça da loja ao lado lhe pergunte pela saúde. À espera que alguém respon-da ao anúncio de procura de ajudante. À espera que a senhora da empresa de limpeza volte a trazer aquela bata curta, tão curta. À espera que os rins se aguentem melhor que ontem. À espera que venha o homem da lotaria e lhe traga sorte. (Hesita, uma última vez; e decide calar-se.)

(Estranho a sua expansividade agressiva mas decido não reagir; pergunto-me se terá per-cebido que está a dar-me razão. Deixo que o silêncio nos tranquilize e serene enquanto espreito uma vez mais o idoso no momento exacto em que ele volta uma página do jor-nal, languidamente. Sem pressa, sem nenhuma pressa.)

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(A mulher caminha à nossa frente, com passos lentos mas firmes, confiantes; por vezes, olha em redor, fugazmente, para aqui e para ali; mas na maior parte do tempo mantém o olhar no chão, como se estudasse o caminho a percorrer, como se temesse algo inde-finido.)

DEUS (tentando disfarçar a impaciência): Mas por que a estamos a seguir?

EU (misterioso; ou apenas irritante?): Porque poderemos sempre aprender alguma coisa observando as pessoas.

(Deus encolhe os ombros e olha à sua volta, agastado; por todo o lado há pessoas que vão caminhando ou pedalando, silenciosas e sisudas; cabisbaixas, por vezes.)

DEUS (após um longo silêncio): Todas estas pessoas parecem tão tristes.

EU (displicente): Pois parecem.

(Continuamos a caminhar durante algum tempo, misturados na multidão; depois, a rua vai-se tornando menos movimentada, quando a confusão do mercado fica para trás, e os passos da mulher parecem mais lentos, mais hesitantes. De súbito, pára e pousa o cesto das compras no chão; mantém-se imóvel durante vários segundos, apática e serena, contemplando o vazio. Depois, sem aviso, ergue o cesto e recomeça a caminhada mas voltando para trás, repetindo o caminho que acabara de percorrer. Passa por nós sem nos olhar.)

DEUS (vendo-a afastar-se): Esqueceu-se de alguma coisa?

(Sorrio mas não respondo.)

DEUS (irritado): Qual é a piada? (Suponho que comece a ficar verdadeiramente agastado com a minha insolência. Mas que poderá fazer? Que importa?) Disse algum disparate?

(Sigo a mulher, em silêncio; ele, após uma breve hesitação, acompanha-me.)

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EU (tom conciliador): Repara como ela caminha.

DEUS (desinteressado): Que tem de especial?

EU (insistente): Repara. Olha para as outras mulheres por quem passamos e tenta perce-ber as diferenças.

(E ele olha.)

DEUS (pouco convicto): Parece mais descontraída. Mais serena.

EU (olhando-a com atenção): Sim. Mais tranquila. (Hesito.) Mas também um pouco insi-nuante, um pouco provocadora. Não achas?

DEUS (finalmente interessado, olhando a mulher com curiosidade): Talvez. (Pensativo.) Mas porquê?

EU (contendo o sorriso, a presunção): Porque não está apenas a caminhar. (Após um si-lêncio.) Está a desfilar.

DEUS (surpreendido): Desfilar?

EU (acenando a cabeça, subitamente melancólico): É o que ela está a fazer. A desfilar. (Sorrio, não sei porquê.) E continuará, para cima e para baixo e para cima, até lá para o fim da manhã.

DEUS (curioso): Mas para quê?

EU (quase arrogante): Não é óbvio? (Disfarçando um suspiro.) Para ser vista.

DEUS (intrigado): Vista? Não percebo. Porque é vaidosa? Porque se julga especial?

EU (tom triste): Pelo contrário. Julga-se banal, banalíssima. Por isso é que insiste nestes passeios, para cima e para baixo, até ser vista. Até que alguém repare.

(A mulher suspende a marcha e nós imitamo-la; permanecemos parados no meio da rua, entre rostos desinteressados.)

DEUS (pensativo): Até que alguém repare. (Olhando a mulher com respeito; ou com co-miseração?) E a veja, verdadeiramente. E a aprecie e a cobice e a deseje. (Triste? Sim, triste.) Alguém que se interesse.

(A mulher recomeça a caminhada, avançando na nossa direcção, passando por nós, afas-tando-se.)

DEUS (tomando a iniciativa de a seguir): Está à procura de um marido. É isso que queres dizer, não é?

EU (vagamente irritado; porquê?): Um marido? Sim, talvez. Alguém que seja companhia,

alguém que queira partilhar a sua solidão, alguém que distraia e disfarce o vazio. (Ten-tando não parecer demasiado irónico.) Suponho que seja para isso que costumam servir os maridos.

DEUS (ignorando a provocação): Mas repara, de todas estas pessoas é a que parece me-nos triste. É a única que quase sorri. Notaste? Por vezes, parece que está quase, quase a sorrir.

EU (peremptório): Porque é a única que talvez ainda tenha esperança.

DEUS (atento): Em quê?

EU (num tom mais baixo, mais hesitante): Esperança, apenas. É quanto basta, para muita gente. Ter esperança.

(A mulher prossegue a sua marcha, afastando-se ligeiramente de nós; aumentou a velo-cidade ou nós é que estamos a ficar para trás?)

DEUS (impaciente): Volto a perguntar. Por que a estamos a seguir?

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(O homem está sentado num dos troncos, numa postura descontraída. Como se assim estivesse desde sempre, como se assim pretendesse continuar indefinidamente.)

DEUS (desinteressado): Que tem de especial?

EU (sem retirar os olhos do homem): Repara no que faz, sempre que se aproxima al-guém.

(Ambos o espiamos; uma mulher aproxima-se e passa, apática e distante.)

EU (entusiasmado): Viste?

DEUS (algo agastado): Não. O quê? De que falas?

EU (paciente, talvez um pouco sobranceiro): O sorriso.

DEUS (após uma breve hesitação): Sim, sorri sempre que alguém se aproxima.

EU (excitado): Pois sorri. Mas ninguém repara nele; ninguém vê os sorrisos.

DEUS (olhando o homem com mais atenção, mais interesse): E apesar disso, sorri.

(Mais alguém que se aproxima; ambos nos preparamos para apreciar o novo sorriso do homem, expectantes.)

EU (pensativo): Porque sorrirá?

DEUS (num tom sonhador, que me surpreende): Talvez porque não consiga evitar fazê-lo.

EU (após uma longa pausa): Mas não faz sentido.

DEUS (sorrindo, com tristeza): Sentido? (Olha-me, com curiosidade; penso que irá dizer algo mas percebo a sua hesitação, a sua desistência. Mantém-se em silêncio durante muito tempo, contemplando o horizonte. Depois acrescenta, num tom displicente; ou

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provocatório?) Talvez seja essa a sua função.

EU (admirado): Sorrir?

DEUS (num tom introspectivo, como se falasse consigo próprio): Sim, sorrir sempre. (He-sita. Embaraçado?) Até que alguém precise desse sorriso.

EU (curioso): Mas que faria esse alguém com o sorriso?

DEUS (olhando-me): Que faria? Corresponder-lhe-ia. (Sorri.) É para isso que servem os sorrisos, para que alguém sorria de volta.

EU (incapaz de sorrir, de inventar um sorriso, de fingi-lo): Ou talvez a motivação seja outra.

(Permanecemos em silêncio; gostaria de corresponder ao seu sorriso mas não consigo fazê-lo.)

DEUS (perscrutador, ignorando o meu momentâneo e despropositado agastamento): Qual?

EU (num tom fantasista): Talvez sorria simplesmente à espera que alguém lhe pergunte por que motivo está a sorrir.

DEUS (surpreendido; verdadeiramente curioso na minha resposta): E que responderia, se alguém perguntasse?

EU (olhando o homem e reparando como a sua expressão é apática e impassível quando não está a sorrir): Não faço ideia. Talvez algo banal, talvez algo genial. Talvez nada.

(Ambos olhamos o homem, estranhando que ninguém se aproxime há algum tempo, que ninguém venha e lhe proporcione uma oportunidade de sorriso.)

DEUS (surpreendendo-me): E se experimentássemos perguntar-lhe?

(Muito tempo depois, sou eu o primeiro a levantar-me.)

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DEUS (vendo-a afastar-se; num tom quase segredado): Parece triste.

EU (desatento): Talvez seja uma mulher triste.

DEUS (insistente): Porquê?

EU (sobranceiro): Porque terá uma vida triste? Não há vida que não seja triste.

DEUS (pensativo): Sim, é verdade. Mas todas as pessoas se recusam a aceitar isso. Todas acreditam que a vida do outro é mais feliz ou menos triste. (Hesita, confuso; esquecen-do-se do tom segredado.) Todas cobiçam uma vida alheia; qualquer uma, desde que seja diferente da que têm.

EU (surpreendido com a sua aparente desolação): Diferente não significa melhor.

DEUS (observando os movimentos lentos e apáticos da mulher, lá longe): Não, significa apenas uma oportunidade. Uma possibilidade.

(Não respondo, desinteressado da conversa; ou receoso?)

DEUS (ainda olhando a mulher): Repara nesta mulher. Passou a sua vida aqui na monta-nha, evoluindo muito lentamente dentro da família, e depois na comunidade.

EU (interrompendo, subitamente irritado): Evoluindo, não; envelhecendo. Passando pe-los anos. Contando-os, um após outro. Ou evitando contá-los, na esperança que assim não passem, não estejam a passar. (Tentando disfarçar a irritação.) Os horizontes, nesta montanha, não têm limites; mas, ainda assim, a montanha é uma prisão.

DEUS (após uma pausa, decidindo ignorar a minha intervenção): Agora que os anos pas-saram, vinte ou trinta ou quarenta, está no topo da hierarquia, é a cozinheira principal da aldeia. Tem uma posição respeitada, cobiçada. Uma vida apreciada, que ninguém se atreverá a considerar pobre ou fútil ou triste.

(Olhamos a mulher, de roda do enorme caldeirão; repetindo gestos imemoriais, os mes-

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mos que tem repetido ao longo dos últimos vinte ou trinta ou quarenta anos.)

EU (tentando não parecer demasiado agressivo): Ninguém. Excepto ela.

(Olha-me, com uma expressão ofendida.)

EU (num tom mais comedido): Em que pensará, enquanto repete as receitas milenares? (Depois de uma breve hesitação.) Pensará nas dores do braço direito, que nunca cessam? Ou nos disparates de um dos filhos, que a entristecem e envergonham? Na qualidade da última remessa de sal que recebeu? (Provocador.) Ou numa vida alternativa?

DEUS (incapaz de desviar o olhar da mulher, ainda junto do caldeirão): Achas? Será que alguma vez desejou outra vida? Ser outra mulher?

EU (num tom falsamente conciliador): Tu não desejarias, no lugar dela?

DEUS (magoado? Não, penso que não): Mas que vida? Que tipo de mulher?

(Não sei o que responder; afinal, para quê dizer seja o que for?)

DEUS (melancólico): Que faria ela numa cidade, por exemplo? Que faria numa rua movi-mentada, empurrada por pessoas apressadas e agressivas, pessoas com pressa? Ou numa loja de roupa? Que faria esta mulher dentro de uma loja de roupa? Dentro do provador de uma loja de roupa, olhando-se ao espelho? Que pensaria?

EU (tentando reter a ironia e fracassando): Pensaria o mesmo que qualquer outra mulher. Que usando roupa nova, a vida certamente parecerá um pouquinho melhor.

(Sorri, com alguma arrogância; como se acabasse de comprovar a minha obtusidade, a minha insensibilidade; ou a irrelevância da minha presença, da minha companhia?)

DEUS (pensativo, como se devaneasse inofensivamente): Ou sentiria saudades das suas receitas? Do cheiro da montanha e da previsibilidade dos dias? (Sorri.) Da irrelevância dos espelhos?

(Olhamos a mulher, silenciosa e imperturbável, eficiente e abstraída; robótica.)

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DEUS (algo indignado): Porque não nos convida a entrar?

EU (cauteloso): Por timidez, certamente. Ou por pudor.

DEUS (surpreendido): Pudor?

EU (num tom sentencioso): Sim, por reserva; convidar-nos a entrar para o interior da sua casa seria como convidar-nos a tocar o seu corpo. (Improvisando um pouco.) Mas também por precaução; porque, afinal, estamos apenas de passagem e não tem nenhuma razão para nos desejar mal.

DEUS (estranhando): Desejar mal? Que queres dizer com isso?

EU (hesitante): Refiro-me a uma superstição, apenas.

DEUS (curioso): Que superstição?

EU (de novo num tom sentencioso): Aqui, as casas são praticamente centenárias; vão pas-sando de geração em geração, dentro da família. E os seus habitantes acreditam que, de certa forma, são as casas onde vivem, que herdam, que determinam a vida de cada um.

DEUS (incisivo): Isso é ridículo.

EU (defensivo): Sim, talvez seja. (Olho em redor, estudando as casas pobres mas firmes sob a luz do sol.) Da mesma forma que será redutor acreditar que uma existência vivida de acordo com determinados preceitos, obedecendo a determinadas premissas inquestio-náveis e imutáveis, conduzirá à obtenção de um prémio extraordinário e eterno, a uma recompensa indescritível. (Num tom hipocritamente cândido.) Não será uma afronta à li-berdade individual a submissão de todas as opções quotidianas a uma qualquer crença?

DEUS (um pouco escandalizado): Mas estás a questionar o âmago da religião, da minha…

EU (interrompendo, enfático): Eu sei.

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(Permanecemos calados, atentos ao silêncio, às nuances da luz, à pulsação da nossa ani-mosidade. À procura de uma saída.)

EU (olhando a mulher, que se aproxima): A sua casa é o que, de certa forma, a define enquanto pessoa. (Num tom professoral e especulativo.) Talvez considere a sua vida mi-serável e por isso nos queira proteger, não nos expondo ao que ela julga ser o epicentro desse infortúnio; ou talvez julgue a sua vida notável e a queira proteger de nós, não nos dando possibilidade de a contaminar.

DEUS (também olhando a mulher, como se a receasse; num tom baixo, quase indignado): Mas como pode a simples entrada numa casa condicionar seja o que for? (Incrédulo, qua-se desorientado.) É inconcebível.

(A mulher está agora junto de nós; olhamo-la, expectantes e ligeiramente indignados com a sua intromissão. Sorri – o primeiro sorriso que lhe vemos – e pergunta se a que-remos acompanhar. Acenamos que sim, surpreendidos. Seguimo-la, escutando os seus pedidos de desculpa por nos fazer esperar e os seus agradecimentos pela honra que lhe concedemos ao entrar na sua humilde casa.)

DEUS (segredando, num tom irónico): Convidar-nos a entrar para o interior da sua casa seria como convidar-nos a tocar o seu corpo. (E ri, com gosto; e desprezo? Talvez.)

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(Permanecem em silêncio há algum tempo, ambas distantes e indiferentes à presença da outra; a menina parece apreensiva enquanto a sua avó sorri.)

DEUS (abanando a cabeça, num tom quase segredado): Estranho, não é?

EU (distraído): O quê?

DEUS (olhando alternadamente a criança e a idosa): Parece que houve uma inversão dos estados de espírito.

EU (desinteressado): Não percebo.

DEUS (tom pensativo): A senhora sorri com uma alegria sincera, como se estivesse infini-tamente feliz; e a menina parece preocupada, o seu rosto expressa uma apreensão que me parece prematura. Percebes? Seria mais natural que a menina sorrisse e a senhora estivesse triste.

EU (satisfeito por o poder contrariar): Não sei, talvez compreenda os seus estados de espírito. (Tom provocatório.) Até suspeito que ambas estejam a pensar em algo similar, que a raiz da felicidade e da apreensão seja idêntica.

DEUS (surpreendido): A sério? Referes-te a quê?

EU (após uma pausa): À previsibilidade. Ambas pensam no que as espera, no que têm pela frente.

DEUS (satisfeito): Estás a dar-me razão; se assim fosse, estariam mesmo com as emoções trocadas.

EU (pouco convicto): Porquê?

DEUS (sentindo-se seguro): Ora, se a velha estiver a pensar no futuro… Que poderá reser-var-lhe o futuro, se não a morte? Como poderá sorrir, ao pensar nisso?

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EU (num tom neutro): E a menina tem toda a sua vida pela frente, portanto só poderá sorrir. É essa a tua teoria?

DEUS (subitamente apreensivo): Mais ou menos.

EU (tom ostensivo): Pois eu acho que será um pouco diferente. Talvez a velha sorria por-que está aliviada, expectante; um pouco ansiosa, até.

DEUS (curioso): Ansiosa com quê?

EU (sentindo-me algo pomposo): Com a morte. Sabe que a sua vida estará a terminar e sente-se pronta para enfrentar o que se seguir; e seja o que for que venha, uma coisa é certa: será algo diferente. Haverá uma mudança, definitivamente; e é isso que a faz sorrir. (Pausa breve.) A perspectiva de, finalmente, poder experimentar algo novo, algo inédito, algo inesperado e imprevisível.

DEUS (embaraçado? Penso que sim): E a menina?

EU (sentindo-me como um mestre que se dirige ao seu aprendiz; e gostando): Poderá estar apreensiva porque já tem idade para perceber o que a vida lhe trará.

DEUS (forçando-se a perguntar): O quê?

EU (concluindo a minha lição): Uma repetição da vida da avó. Sente a inevitabilidade de uma condenação a uma certa vida, a uma certa repetição. (Pausa breve.) Como se as vidas fossem escassas e a avó se preparasse para lhe entregar a sua. E é isso que a deixa triste: a sensação que viverá uma vida usada.

DEUS (pensativo, falando para si): Até que, um dia, se descubra velha e sorria perante a perspectiva de mudança, que o fim da sua vida forçosamente lhe proporcionará.

(E sorri, triste; correspondo ao seu sorriso.)

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DEUS (espantado): Parece que estão a venerar a criança.

EU (tom cansado): Pois parece.

(Continuamos a olhar, curiosos. A mulher aproxima-se da criança, oferecendo-lhe algo; a idosa mantém-se prostrada e silenciosa, expectante.)

DEUS (quase incrédulo): Como se achassem que o menino é sagrado.

EU (quase entusiasmado): Não é o menino que elas consideram sagrado mas o que ele representa.

DEUS (intrigado): Que queres dizer? É apenas um menino.

EU (subitamente agastado): Precisamente: um menino. Que simboliza futuro.

DEUS (curioso): Futuro?

EU (tentando suavizar o tom): Sim, futuro. Vida pela frente. Possibilidades. Mistério.

(As duas mulheres continuam na margem do lago, sob a luz enigmática do início do dia; o menino afastou-se um pouco, sob os seus olhares atentos.)

DEUS (triste): Então, de certa forma, invejam-no.

EU (percebendo a sua decepção): Talvez; mas uma inveja ingénua e inofensiva; benigna. (Sorrindo.) Ou seja: veneração.

(Ele corresponde ao sorriso; mas percebo que é um sorriso forçado. Agrada-me que se esforce.)

EU (condescendente): De certa forma, procuram uma espécie de felicidade por aproxi-mação.

DEUS (irritado): Por aproximação? Que significa isso?

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EU (tentando não parecer ridículo): Por contágio. Felicidade por contágio.

DEUS (sorrindo): Estás a brincar?

EU (permanecendo sério): Não. Claro que não. (Sentindo-me ridículo.) Quando uma pes-soa não consegue ser feliz apenas por si mesma, essa impossibilidade de auto-suficiência pode ser superada de uma forma muito simples, muito eficaz.

DEUS (fingindo-se incrédulo; mas curioso): Como?

EU (num tom solene): Estando próximo de pessoas felizes, ir aproveitando da sua felici-dade, permitindo que ela contagie. (Pausa breve, desconfortável.) Talvez seja isso que elas pretendem, aproveitar da felicidade natural e inexplicável da criança; e por isso a veneram: porque precisam dela.

(Olhamos o menino, caminhando tranquilamente na terra, despreocupado e sonhador; depois, olhamos as mulheres: e reparamos que conversam distraidamente, esquecidas da criança; momentaneamente saciadas? Permanecemos em silêncio, embaraçados; ambos desejando a companhia de um qualquer foco de felicidade que pudéssemos aproveitar e tornar um pouco nosso; só um pouco.)

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(Permanecemos há algum tempo sentados num pequeno banco, junto da estrada e debai-xo de uma árvore escanzelada; olhamos os carros que passam ocasionalmente, devagar, e tentamos espreitar os rostos das pessoas que se protegem no seu interior, invejando-as por terem onde ir, por terem de onde vir; por terem quem as aguarde, quem lamente a sua partida.)

DEUS (expectante): Repara, quase nem se mexe.

(Mantemo-nos no nosso posto há algum tempo, atraídos pelo comportamento de uma jovem de expressão impenetrável; não misteriosa ou enigmática, apenas impenetrável. Passou num passo hesitante e entrou no banco de trás de um carro estacionado mesmo à nossa frente; pouco depois, um homem idoso aproximou-se arrastando com esforço duas enormes malas, que colocou no porta-bagagem do mesmo carro; regressou ao interior da casa de onde ambos tinham saído, deixando a jovem sozinha, inclinada no banco e olhando, imperturbável e serena, pela janela do automóvel.)

DEUS (sem desviar o olhar): Consegues perceber se está feliz ou triste? Ansiosa ou assus-tada? (Baixando a voz.) Parece que tem uma expressão neutra, não achas?

(O homem regressa e entra no carro, pondo-o em funcionamento; pouco depois, arran-ca. Espiamos a rapariga, reparando que não se mexe enquanto o carro se afasta: rosto apoiado na mão e olhos imóveis, olhando; fixando algo que fica para trás, talvez para sempre.)

DEUS (muito depois do carro ter desaparecido no horizonte): Talvez parta para algum sítio distante e tema o que por lá encontrará, tema a incerteza do futuro. (Olhando o pedaço de vazio onde, antes, estivera o carro.) Talvez esteja assustada e o vazio que o seu rosto espelha seja, afinal, pânico; daqueles pânicos que bloqueiam as emoções, que esvaziam.

EU (num som sonhador, que me embaraça ligeiramente): Ou poderá ser o oposto.

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DEUS (curioso): O oposto?

EU (irritado): Sim. Alívio.

(Olha-me, em silêncio e sem impaciência; aguardando.)

EU (de novo tranquilo, quase sereno): Alívio por finalmente partir, por ter a oportunidade de recomeçar noutro sítio qualquer.

DEUS (espantado): Recomeçar o quê?

EU (sonhador): Qualquer coisa. Recomeçar, simplesmente. Sentir a volúpia de ter a pos-sibilidade de experimentar algo novo, algo inesperado.

DEUS (intrigado): Então, porquê olhar para trás, fixando o que fica, o que passou? Porquê não olhar em frente?

EU (sorrindo, com tristeza; mas sorrindo porquê?): Para se certificar de que o passado não a persegue, que fica mesmo para trás. Que o passado não se sinta tentado a persistir em estar presente, ser presente.

(Não o olho mas gosto de imaginar que esteja a acenar com a cabeça, concordando. Con-tinuamos a olhar os carros que passam ocasionalmente, devagar, e tentamos espreitar os rostos das pessoas que se protegem no seu interior, invejando-as por terem onde ir, por terem de onde vir; por terem quem as aguarde, quem lamente a sua partida. Suponho que estejamos a aguardar o regresso do homem, para lhe perguntar se a rapariga ficou bem, lá no seu novo presente, longe do passado.)

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DEUS (num tom amigável, apanhando-me de surpresa): Fala-me um pouco de ti.

EU (inseguro): De mim?

DEUS (encorajador): Sim, de ti. De como eras quando vivias entre os homens. (Hesitando brevemente.) Da tua vida.

(Estamos no campo, perto de um pequeno rio quase seco e rodeado de arbustos algo sinistros; há muito não nos cruzamos com ninguém, apesar de na distância se ver um aglomerado de casas com as suas chaminés fumegantes. Não sei por que motivo estamos aqui.)

EU (tentando ganhar tempo): Já nem me lembro.

(Senta-se num pequeno rochedo, em frente do ribeiro; sou obrigado a acompanhá-lo, não sei bem porquê. Olho um grupo de rãs que se mantém imóveis.)

DEUS (tentando forçar uma boa-disposição postiça, que me parece esconder algum ner-vosismo): Claro que te lembras. De certeza que te lembras do que fazias, por exemplo; das profissões que tiveste.

EU (sem desviar o olhar das rãs): Fiz algumas coisas, sim. (Num tom mais baixo.) Devo ter feito.

DEUS (incentivando-me, verdadeiramente interessado em saber; mas porquê?): E qual a tua preferida?

EU (num tom envergonhado): Acho que gostei de ser bailarino.

DEUS (espantado): Bailarino? Foste bailarino?

EU (incapaz de não sorrir, perante as súbitas recordações): Durante uns anitos, enquanto o corpo deixou.

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(Ouve-se o som nostálgico de um sino, anunciando a passagem de mais uma hora. Perma-necemos em silêncio, olhando as rãs; mas por que motivo não se mexem?)

DEUS (curioso, tentando disfarçar a surpresa.) Como aconteceu seres bailarino?

EU (evocando o passado com inesperada saudade): Suponho que sempre me senti fascina-do pelo movimento dos corpos; pela graciosidade e pela elegância, pela sensualidade do movimento dos corpos. (Calo-me, embaraçado; ele não reage, limitando-se a aguardar.) Cresci numa aldeia, como aquela que se vê lá ao fundo, e lembro-me de passar horas a observar os trabalhadores do campo, fascinado pelos seus movimentos e gestos, pela forma pragmática, complexamente simples, como executavam as tarefas, desenvolvendo acções mecanicamente aperfeiçoadas ao longo dos séculos, eficientes e belas. (Sinto-me hipnotizado, não percebo porque estou a confidenciar-me deste modo; não percebo porque prossigo.) As ceifeiras, por exemplo. Fascinava-me a magia dos seus movimentos, movendo o centeio com leveza e eficácia e sincronismo, obedecendo a uma coreografia intuída. (Estarei a sorrir?) Sempre desejei isso para mim: que a acção do meu corpo fosse apreciada. Que o seu movimento tivesse utilidade. (Tom mais baixo.) Utilidade estética.

(Algumas das rãs já não se encontram visíveis mas não me lembro de as ter visto desa-parecer; o que lhes terá acontecido, onde estarão? Como lá chegaram? E para quê? Subi-tamente, sinto-me deprimido e desinteressado, apático. Deus percebe a minha mudança de espírito e respeita o meu silêncio, acompanhando-o. O tempo passa – passa mesmo porque ouvimos o sino tocar.)

DEUS (com cumplicidade): Está sempre a passar. Sempre.

EU (sem surpresa nem desagrado, por descobrir surpreendidos os meus pensamentos): Sempre a passar.

(De repente, uma das rãs que permaneceu começa a coaxar; como se, de repente, a nos-sa presença deixasse de ter importância; ou talvez já nem estejamos aqui. Talvez nunca tenhamos estado?)

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