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REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS abril | maio | junho 2010 | v. 75 — n. 2 — ano XXVIII 235 Aplicação das astreintes no âmbito dos Tribunais de Contas Reuder Rodrigues Madureira de Almeida Bacharel em direito pela Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Pós-graduado em Direito Público pela Universida- de Cândido Mendes (Ucam). Técnico de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Membro da Comissão de Jurisprudência e Súmula do TCEMG. 1 Introdução O presente trabalho tem por objetivo tecer algumas considerações acerca da aplicabilidade do instituto das astreintes no âmbito dos Tribunais de Contas, como ferramenta destinada a conferir maior efetividade às decisões, tendo em vista as valiosas competências afetas às Cortes de Contas, a fim de consolidá-lo como órgão proeminente na defesa do erário e, consequentemente, dos direitos fundamentais. Cumpre alertar que a aplicação do instituto aos feitos de competência dos Tribunais de Contas é matéria ainda incipiente, conforme se verá, de modo que o presente texto buscará lançar luzes sobre a matéria, visando suscitar discussões em torno da temática. Percustrar-se-á, especialmente, o posicionamento adotado no Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais acerca das medidas coercitivas, mediante análise normativa e dos excertos de decisões exaradas na Casa, balizando-as com o entendimento de outros Tribunais. 2 Astreintes 2.1 Origem e conceituação A multa de caráter coercitivo, conhecida como astreinte, possui origem pretoriana, tendo sido cunhada pela jurisprudência francesa no início do século xIx, com o fito de assegurar ao credor a satisfação de seu direito, mediante a constrição econômico-psicológica do obrigado ao cumprimento de suas obrigações específicas. Importante altear que à época de sua criação, com espeque nas palavras de Eduardo Talamini, 1 o Código de Napoleão (art. 1.142) preconizava que a inadimplência das obrigações de fazer e de não fazer convertia-se em perdas e danos, recaindo a execução sobre o montante pecuniário estabelecido pelo magistrado em sentença. 1 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer: CPC, art. 461; CDC, art. 84. São Paulo: Revista dos Tri- bunais, 2001. p. 50.

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Aplicação das astreintes no âmbito dos Tribunais de Contas

Reuder Rodrigues Madureira de AlmeidaBacharel em direito pela Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Pós-graduado em Direito Público pela Universida-de Cândido Mendes (Ucam). Técnico de Controle Externo do tribunal de contas do estado de minas gerais. membro da Comissão de Jurisprudência e Súmula do TCEMG.

1 Introdução

O presente trabalho tem por objetivo tecer algumas considerações acerca da aplicabilidade do instituto das astreintes no âmbito dos Tribunais de Contas, como ferramenta destinada a conferir maior efetividade às decisões, tendo em vista as valiosas competências afetas às Cortes de Contas, a fim de consolidá-lo como órgão proeminente na defesa do erário e, consequentemente, dos direitos fundamentais.

Cumpre alertar que a aplicação do instituto aos feitos de competência dos Tribunais de Contas é matéria ainda incipiente, conforme se verá, de modo que o presente texto buscará lançar luzes sobre a matéria, visando suscitar discussões em torno da temática.

Percustrar-se-á, especialmente, o posicionamento adotado no Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais acerca das medidas coercitivas, mediante análise normativa e dos excertos de decisões exaradas na Casa, balizando-as com o entendimento de outros Tribunais.

2 Astreintes

2.1 Origem e conceituação

A multa de caráter coercitivo, conhecida como astreinte, possui origem pretoriana, tendo sido cunhada pela jurisprudência francesa no início do século xIx, com o fito de assegurar ao credor a satisfação de seu direito, mediante a constrição econômico-psicológica do obrigado ao cumprimento de suas obrigações específicas.

Importante altear que à época de sua criação, com espeque nas palavras de Eduardo Talamini,1 o Código de Napoleão (art. 1.142) preconizava que a inadimplência das obrigações de fazer e de não fazer convertia-se em perdas e danos, recaindo a execução sobre o montante pecuniário estabelecido pelo magistrado em sentença.

1 talamini, eduardo. tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer: CPC, art. 461; CDC, art. 84. São Paulo: Revista dos Tri-bunais, 2001. p. 50.

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A positivação do instituto, na França, se deu por intermédio da Lei 72-226, de 05 de julho de 1972.2 Hodiernamente, o ordenamento jurídico francês preceitua, expressamente, que todo juiz pode, mesmo de ofício, ordenar uma astreinte para assegurar a execução de sua decisão (art. 33, da Lei 91-650/91).

a astreinte, conceitua Talamini,3 (2001, p. 50) é a condenação a uma soma de dinheiro fixada por dia de atraso (ou outra unidade de tempo) e destinada a pressionar a parte condenada ao cumprimento de uma decisão do juiz.

Com a clareza que lhe é peculiar, o jurista Cândido Rangel Dinamarco4 (2004, p. 369) leciona que:

(...) as multas periódicas, que são a versão brasileira das astreintes concebidas pelos tribunais franceses (...), atuam no sistema mediante o agravamento da situação do obrigado renitente, onerando-o mais e mais a cada hora que passa, ou a cada dia, mês ou ano, ou a cada ato indevido que ele venha a repetir, com o objetivo de criar em seu espírito a consciência de que lhe será mais gravoso descumprir do que cumprir a obrigação emergente do título executivo.

em suma, a astreinte visa, portanto, exercer pressão psicológica sobre o obrigado, mediante o estabelecimento de um valor pecuniário, a fim de que a obrigação seja cumprida, resguardando-se, dessa forma, a autoridade das decisões e a tutela específica do direito, vencendo-lhe a obstinação em descumprir seus deveres e obrigações.

2.2 Natureza jurídica

a astreinte possui natureza cominatória. Não tem caráter repressivo, compensatório ou reparatório. Assim, o pagamento do montante executado a título de multa periódica não extingue a obrigação.

Nesse sentido, citam-se trechos de decisão paradigmática do Supremo Tribunal de Justiça — STF, voto da lavra do Ministro Moreira Alves:

EMENTA — Astreintes. Honorários de advogado.

— A pena pecuniária que, a título de astreinte, se comina não tem o caráter de indenização pelo inadimplemento da obrigação de fazer ou de não fazer, mas, sim, o de meio coativo de cumprimento da sentença, como resulta expresso na parte final do art. 287 do CPC; consequentemente, não pode essa pena retroagir a data anterior ao trânsito em julgado da sentença que a cominou.

— Aplicação do óbice do inciso VII do art. 325 do Regimento Interno do STF quanto à questão referente a honorários de advogado.

2 marinoni, luiz guilherme. p. 168.

3 talamini, op. cit., p. 50.

4 dinamarco, cândido rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. IV. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 369

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Recurso extraordinário conhecido em parte, e nela provido.

(...)

VOTO

Com efeito, com a introdução no direito processual civil brasileiro (arts. 287, 644 e 645) das astreintes, a pena pecuniária que, a esse título, se comina não tem o caráter de indenização pelo inadimplemento de obrigação de fazer ou não fazer, mas, sim, o de meio coativo de cumprimento da sentença, como resulta expresso na parte final do art. 287 do CPC: ‘(...) constará da petição inicial a cominação da pena pecuniária para o caso de descumprimento da sentença (arts. 644 e 645)’. Consequentemente, não pode a pena retroagir a data anterior ao do trânsito em julgado da sentença que a cominou. (RE 94.966-6/RJ. Relator Ministro Moreira Alves. DJ 26/03/82)

a astreinte tem por escopo, repete-se, exercer uma pressão econômico-psicológica sobre o devedor a fim de promover a tutela específica do direito do autor, devendo-se reconhecer, desse modo, o caráter acessório da multa, não se confundindo com as perdas e danos (art. 461, § 2°, do CPC).

nas palavras de marinoni5

a multa, ou a coerção indireta, implica ameaça destinada a convencer o réu a adimplir a ordem do juiz. A técnica mandamental, fundada na ordem e na multa, não se confunde com a técnica condenatória, ou mesmo com a técnica executiva ligada à coerção indireta ou à sub-rogação.

desse modo, nada impende que as astreintes sejam cumuladas com perdas e danos, multa moratória, condenação por litigância de má-fé, multa por contempt of court, crime de desobediência, bem como com outras sanções processuais.

o autor sérgio cruz arenhart6 assevera que a astreinte, dada a sua função de resguardar o respeito às decisões estatais, assemelha-se ao instituto do contempt of court:

A função, portanto, da multa é garantir a obediência à ordem judicial. (...) Está em jogo, afinal, a própria autoridade do Estado. Não se pode, portanto, dizer que ocorreu apenas o inadimplemento de uma ordem do Estado-juiz. Ocorreu, em verdade, a transgressão a uma ordem, que se presume legal.

2.3 Princípios aplicáveis às astreintes

a astreinte, em função de seu intuito coercitivo, deve ser cominada em montante que estabeleça uma pressão psicológica sobre o obrigado.

5 marinoni, luiz guilherme. Tutela específica: arts. 461, cPc e 84, cdc. 2. ed. rev. são Paulo: rt, 2001, p. 72.

6 arenHart, sergio cruz. A tutela inibitória da vida privada. são Paulo: rt, 2000, p. 200.

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Neste sentido, leciona Nelson Nery Júnior:7

Deve ser imposta a multa, de ofício ou a requerimento da parte. O valor deve ser significativamente alto, justamente porque tem natureza inibitória. O juiz não deve ficar com receio de fixar o valor em quantia alta, pensando no pagamento. O objetivo das astreintes não é obrigar o réu a pagar o valor da multa, mas obrigá-lo a cumprir a obrigação na forma específica. A multa é apenas inibitória. Deve ser alta para que o devedor desista de seu intento de não cumprir obrigação específica. Vale dizer, o devedor deve sentir preferível cumprir a obrigação na forma específica a pagar o alto valor da multa fixada pelo juiz.

Contudo, cumpre elucidar que o valor da astreinte, embora não esteja vinculada sequer ao montante da obrigação deve com esta guardar certa proporção, de modo que desempenhe seu papel coercitivo, em consonância com os critérios de suficiência e compatibilidade.

o autor talamini8 esclarece que:

A lei faz referência a suficiência e compatibilidade da multa com a obrigação (art. 461, § 4°).Tais parâmetros prestam-se não só a indicar as hipóteses de cabimento da multa, como ainda definem os seus limites quantitativos. Mas não se trata de limitação do valor da multa ao da obrigação nem ao dos danos derivados da violação — o que só se explicaria, se aquela tivesse caráter indenizatório (...).

Nesse diapasão, cumpre alertar que a multa periódica deve ser estabelecida tendo-se em conta a situação econômica do obrigado, devendo-se observar, sempre, os ditames da razoabilidade e da proporcionalidade, levando-se em consideração, ainda, sua periodicidade e sua mutabilidade.

No que tange ao princípio da razoabilidade, de suma importância na seara do Direito administrativo, estabelece-se a necessidade de haver uma ponderação entre os meios e os fins perseguidos pelas normas jurídicas.

registra-se, nesse passo, o ensinamento expendido por maria sílvia zanella di Pietro,9 acerca do princípio da razoabilidade:

o princípio da razoabilidade, sob a feição de proporcionalidade entre meios e fins, está contido implicitamente no art. 2°, parágrafo único da Lei n. 9.784/99, que impõe à Administração Pública: adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público (inciso IV); observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos

7 NERY, Nelson Junior; ANDRADE, Rosa Maria Nery. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 7. ed. são Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

8 talamini. op. cit. p. 242.

9 di Pietro, maria silvia zanella. Direito Administrativo. 17. ed. são Paulo: atlas, 2004, p. 82-83.

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dos administradores (inciso VIII); adoção de formas simples suficientes para propiciar grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administradores (inciso IX); e também está previsto no art. 29, § 2°, segundo o qual os atos de instrução que exijam atuação dos interessados devem realizar-se do modo menos oneroso para estes.

Sob o aspecto da razoabilidade, a multa coercitiva deve ser moderada, devendo-se evitar que se torne fonte de injustiça. Desse modo, impõe-se o equilíbrio entre o montante e a periodicidade da multa e a finalidade almejada pela medida constritiva.

Acerca do princípio da proporcionalidade, translúcidas as palavras do ilustre constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho,10 ao concluir que se trata de uma questão de medida ou desmedida para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.

A doutrina majoritária subdivide o princípio da proporcionalidade em três diferentes subprincípios, quais sejam o da adequação, o da necessidade ou exigibilidade e o da proporcionalidade em sentido estrito, devendo, portanto, a multa-coerção estar em consonância com os três prismas citados para que tenha uma aplicação válida e eficaz.

Faz-se imprescindível o respeito aos citados princípios para que se obtemperem os rigores da multa coercitiva a ser aplicada em cada caso concreto, resguardando-se seu caráter cominatório constritivo, indutor ao fiel cumprimento da obrigação, sem, contudo, ocasionar a insolvência patrimonial do obrigado.

Deve-se, portanto, evitar, ao máximo, o abuso na fixação das astreintes, consoante prestigiosa lição do saudoso processualista Calmon de Passos,11 de modo que esta se apresente suficiente para induzir o devedor a adimplir, pelo que variará em função da capacidade econômica do devedor, mais do que em função da natureza da obrigação, mas essa correção não pode alcançar excesso, devendo cingir-se ao compatível.

2.4 As astreintes no ordenamento jurídico pátrio

No Brasil o julgador também está autorizado a aplicar as astreintes de ofício, ou seja, independentemente de qualquer pedido, configurando-se, assim, em importante ferramenta para a efetividade das decisões.

O principal dispositivo atinente às astreintes encontra-se preceituado no § 4° do art. 461 do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei n. 8.952/94, nos seguintes termos:

Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

10 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 387-388.

11 CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Inovações do Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 62.

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(...)

§ 4o O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.

registre-se que há menção às astreintes em outros dispositivos do Código de Processo Civil, dentre os quais se destacam os arts. 287, 644 e 645, in verbis:

Art. 287. Se o autor pedir que seja imposta ao réu a abstenção da prática de algum ato, tolerar alguma atividade, prestar ato ou entregar coisa, poderá requerer cominação de pena pecuniária para o caso de descumprimento da sentença ou da decisão antecipatória de tutela (arts. 461, § 4°, e 461-A).

(...)

Art. 644. A sentença relativa a obrigação de fazer ou não fazer cumpre-se de acordo com o art. 461, observando-se, subsidiariamente, o disposto neste Capítulo. (Redação dada pela Lei n. 10.444, de 07/05/2002).

Art. 645. Na execução de obrigação de fazer ou não fazer, fundada em título extrajudicial, o juiz, ao despachar a inicial, fixará multa por dia de atraso no cumprimento da obrigação e a data a partir da qual será devida. (Redação dada pela Lei n. 8.953, de 13/12/1994)

Parágrafo único. Se o valor da multa estiver previsto no título, o juiz poderá reduzi-lo se excessivo.

O jurista Cândido Rangel Dinamarco,12 ao tecer comentários acerca dos arts. 644 e 645 do CPC, esclarece que:

A profunda remodelação por que passou a tutela específica das obrigações de fazer ou de não fazer repercutiu in executivis mediante nova formulação que a Lei n. 8.953, de 13 de dezembro de 1994, veio a dar aos arts. 644 e 645 do Código de Processo Civil. Constitui a síntese e lema dessa novidade o reforço das astreintes. Quis o legislador, visivelmente, revigorar o instituto e dotá-lo de maior eficácia para o combate aos notórios óbices à efetividade das decisões judiciais e das obrigações concertadas mediante títulos executivos extrajudiciais (óbices ilegítimos ao acesso à justiça). (...) Sabe o legislador que os meios de pressão psicológica são particularmente eficientes e capazes de proporcionar ao credor mais rapidamente a satisfação do seu direito, mediante a retirada da resistência do obrigado.

importante altear que mesmo antes da positivação das astreintes no CPC, as multas coercitivas periódicas já figuravam como medida hábil a resguardar a efetividade das decisões em outros

12 dinamarco. cândido rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 241.

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diplomas legais, merecendo destaque o art. 11 da Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85) e o art. 84, § 4°, do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90).

Ressalta-se, ainda, que a possibilidade de aplicação das astreintes no processo administrativo encontra amparo em diversos diplomas legais. Cumpre destacar, por oportuno, que a Lei n. 8.884/94 estabelece, em seu art. 9°, inciso IV, ser competência dos Conselheiros do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a adoção de medidas preventivas fixando o valor da multa diária pelo seu descumprimento.

A Comissão de Valores Mobiliários também tem competência para impor a aplicação de multa em razão do descumprimento de suas decisões, conforme preceituam os arts. 9°, II, e 11, § 11, da lei n. 6.385/76:

Art 9° A Comissão de Valores Mobiliários, observado o disposto no § 2° do art. 15, poderá: (Redação dada pelo Decreto n. 3.995, de 31/10/2001)

(...)

II — intimar as pessoas referidas no inciso I a prestar informações, ou esclarecimentos, sob cominação de multa, sem prejuízo da aplicação das penalidades previstas no art. 11; (Redação dada pela Lei n. 10.303, de 31/10/2001)

(...)

Art. 11 (...)

§ 11. A multa cominada pela inexecução de ordem da Comissão de Valores Mobiliários, nos termos do inciso II do caput do art. 9° e do inciso IV de seu § 1° não excederá a R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por dia de atraso no seu cumprimento e sua aplicação independe do processo administrativo previsto no inciso V do caput do mesmo artigo. (Redação pelo Decreto n. 3.995, de 31/10/2001).

Feitas as considerações conceituais preliminares acerca das astreintes, buscar-se-á abordar, a seguir, sua aplicabilidade ao âmbito das decisões exaradas pelos Tribunais de Contas, tendo em vista sua prestigiosa posição no cenário institucional pátrio a partir da promulgação da Carta Magna de 1988, destacando-se, especialmente, o atual posicionamento da Corte de Contas mineira acerca da matéria.

3 Tribunal de Contas e as astreintes

3.1 Importância dos Tribunais de Contas no novo cenário constitucional

A instituição de um órgão de controle externo, nos moldes das Cortes de Contas, no Brasil, deu-se com a edição do Decreto 966-A, de 07 de novembro de 1890, a partir de proposta da lavra do eminente Rui Barbosa, que defendeu a criação do Tribunal de Contas, um

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corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com atribuição de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil.13

Todavia, incumbe salientar que o mencionado decreto jamais foi regulamentado, e, menos ainda, executado, de forma que a regulamentação das atribuições do Tribunal de Contas no Brasil adveio apenas com a promulgação da primeira Constituição republicana, em 1891, que estabeleceu a criação de um Tribunal de Contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso.14

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 teve importância ímpar na reafirmação do Tribunal de Contas enquanto instituição de relevância na teia organizacional do País. Isso porque, as Cortes de Contas receberam tratamento destacado, com a ampliação de sua jurisdição e de suas atribuições/competências, tornando-se protagonista na fiscalização estatal com o fito de proteger o erário, e, assim, auxiliar na efetivação dos direitos fundamentais.

As atribuições afetas aos Tribunais de Contas pela Carta Magna vigente possuem tal relevância que uma parcela da doutrina, diga-se minoritária, entende que as Cortes de Contas, juntamente com o Ministério Público, passaram a constituir um quarto Poder, aos quais seriam cometidas as funções de controle.

Controvérsias a parte, pode-se afirmar que, no atual cenário constitucional pátrio, a instituição Tribunal de Contas constitui um órgão de destaque e relevância, cujas atribuições e competências decorrem diretamente da Constituição, não sendo subordinada a qualquer dos três Poderes constituídos, tendo como missão, auxiliar, de maneira técnica, a atuação de controle a cargo do Poder legislativo.

Acerca da posição proeminente dos Tribunais de Contas no ordenamento jurídico brasileiro, impende destacar os seguintes trechos da decisão prolatada na ADI 215/PB, no qual o Supremo Tribunal Federal sustentou que:

Com a superveniência da nova Constituição, ampliou-se, de modo extremamente significativo, a esfera de competência dos Tribunais de Contas, os quais foram investidos de poderes jurídicos mais amplos, em decorrência de uma consciente opção política feita pelo legislador constituinte, a revelar a inquestionável essencialidade dessa instituição surgida nos albores da República. A atuação dos Tribunais de Contas assume, por isso, importância fundamental no campo do controle externo e constitui, como natural decorrência do fortalecimento de sua ação institucional, tema de

13 barbosa, rui. Obras Completas de Rui Barbosa. v. 18. t 3. 1891, p. 363. Trecho extraído de Tribunal de Contas: exposição de motivos. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/scripts/scripts/rui/mostrafrasesrui.idc?CodFrase=2343>. Acesso em: 15/03/2010.

14 FERRAZ, Luciano. Controle da Administração Pública: elementos para a compreensão dos Tribunais de Contas. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999. p. 115.

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irrecusável relevância. (ADI-MC n. 215/PB. Relator: Ministro Celso de Mello. Publicado no D.J. de 03/08/90)

3.2 Competência normativa e poder geral de cautela dos Tribunais de Contas

Diz-se acima que a constituição delineou as competências afetas aos Tribunais de Contas. De fato, a Constituição da República de 1988 explicitou-as nos arts. 33, § 2°, 71-74, e 164, parágrafo único.

Dentre as atribuições afetas aos Tribunais de Contas, o inciso VIII do art. 71 da Constituição da República vigente, assegura-lhes competência normativa, ao preceituar que incumbe a eles aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário.

Nesse diapasão, o art. 73 da Carta Magna confere aos Tribunais de Contas as competências enunciadas em seu art. 96. Impende destacar que o inciso I, alínea a do citado artigo concede aos Tribunais competência para elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos.

Desse modo, o regramento constitucional assegurou competência normativa aos Tribunais de Contas, a ser exercida mediante a edição de seus regimentos internos, de instruções normativas e de resoluções.

O jurista Luciano Ferraz,15 acerca da competência normativa dos Tribunais de Contas, ressalva que:

Os limites para o exercício da competência normativa atribuída a qualquer órgão da administração, — entre os quais os Tribunais de Contas —, estão na própria lei a ser regulada. Os atos normativos no Direito brasileiro não possuem vida autônoma, dependem da lei, sendo-lhes vedado dela desbordar, sob pena de ilicitude.

O que se quer significar é que lei e ato normativo diferenciam-se, não só pela origem (órgão produtor) e pela posição de supremacia da primeira (diferença de grau hierárquico), mas, sobretudo, porque a lei tem o condão de inovar no ordenamento, estabelecendo, alterando ou extinguindo relações jurídicas (desde que acorde com a Constituição). O ato normativo, ao contrário, como fonte secundária do Direito, depende da lei; se inova na ordem jurídica há invasão de competência, abuso de poder.

Assim, as normas editadas no âmbito das Cortes de Contas devem observância às regras legais vigentes, a fim de que tais instrumentos normativos tenham força de lei, relativamente às matérias que regulem.

15 FERRAZ, Luciano. Poder de coerção e poder de sanção dos Tribunais de Contas — Competência normativa e devido processo legal. n. 2. ano XX. Revista do Tribunal de Contas de Minas Gerais. v. 43, n.2, abr./jun, 2002.

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Outro importante ponto a se destacar, no que tange à atuação dos Tribunais de Contas, está relacionado à prerrogativa de atuar preventivamente, com a adoção, também, das medidas oriundas do denominado poder geral de cautela.

O Ministro Celso de Mello, no julgamento do Mandado de Segurança n. 26.547 / DF, reconheceu ao Tribunal de Contas da União o exercício do poder geral de tutela, conforme excerto a seguir:

EMENTA: TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. PODER GERAL DE CAUTELA. LEGITIMIDADE. DOUTRINA DOS PODERES IMPLÍCITOS. PRECEDENTE (STF). CONSEQUENTE POSSIBILIDADE DE O TRIBUNAL DE CONTAS EXPEDIR PROVIMENTOS CAUTELARES, MESMO SEM AUDIÊNCIA DA PARTE CONTRÁRIA, DESDE QUE MEDIANTE DECISÃO FUNDAMENTADA. DELIBERAÇÃO DO TCU, QUE, AO DEFERIR A MEDIDA CAUTELAR, JUSTIFICOU, EXTENSAMENTE, A OUTORGA DESSE PROVIMENTO DE URGÊNCIA. PREOCUPAÇÃO DA CORTE DE CONTAS EM ATENDER, COM TAL CONDUTA, A EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL PERTINENTE À NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES ESTATAIS. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO EM CUJO ÂMBITO TERIAM SIDO OBSERVADAS AS GARANTIAS INERENTES À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW”.

(...)

Decisão:

Com efeito, impende reconhecer, desde logo, que assiste, ao Tribunal de Contas, poder geral de cautela. Trata-se de prerrogativa institucional que decorre, por implicitude, das atribuições que a Constituição expressamente outorgou à Corte de Contas.

Entendo, por isso mesmo, que o poder cautelar também compõe a esfera de atribuições institucionais do Tribunal de Contas, pois se acha instrumentalmente vocacionado a tornar efetivo o exercício, por essa Alta Corte, das múltiplas e relevantes competências que lhe foram diretamente outorgadas pelo próprio texto da Constituição da República.

Isso significa que a atribuição de poderes explícitos, ao Tribunal de Contas, tais como enunciados no art. 71 da Lei Fundamental da República, supõe que se reconheça, a essa Corte, ainda que por implicitude, a possibilidade de conceder provimentos cautelares vocacionados a conferir real efetividade às suas deliberações finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações de lesividade, atual ou iminente, ao erário.

(...)

Na realidade, o exercício do poder de cautela, pelo Tribunal de Contas, destina-se a garantir a própria utilidade da deliberação final a ser por ele tomada, em ordem a impedir que o eventual retardamento na apreciação do

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mérito da questão suscitada culmine por afetar, comprometer e frustrar o resultado definitivo do exame da controvérsia.

Torna-se essencial reconhecer — especialmente em função do próprio modelo brasileiro de fiscalização financeira e orçamentária, e considerada, ainda, a doutrina dos poderes implícitos (MARCELO CAETANO. Direito Constitucional, São Paulo: Forense, 1978. v.2, item 9, p. 12-13; CASTRO NUNES. Teoria e Prática do Poder Judiciário, São Paulo: Forense, 1943. p. 641-650; RUI BARBOSA, Comentários à Constituição Federal Brasileira, São Paulo: Saraiva, 1932, v.1, p. 203-225, coligidos e ordenados por Homero Pires, 1932, Saraiva, v.g.) — que a tutela cautelar apresenta-se como instrumento processual necessário e compatível com o sistema de controle externo, em cuja concretização o Tribunal de Contas desempenha, como protagonista autônomo, um dos mais relevantes papéis constitucionais deferidos aos órgãos e às instituições estatais. (MS 26547/DF. Relator: Ministro Celso de Mello)

Registre-se que o Tribunal de Contas da União, com espeque nos fundamentos citados na decisão retromencionada, exerce o poder de cautela inaudita altera pars, conforme se pode dessumir da ementa a seguir:

AGRAVO DE MEDIDA CAUTELAR. FERROVIA NORTE-SUL. PODER GERAL DE CAUTELA DO TCU. POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DE CAUTELARES SEM OITIVA DE RESPONSÁVEIS E INTERESSADOS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. IMPROCEDÊNCIA DOS DEMAIS ARGUMENTOS. NÃO PROVIMENTO.

1. O poder geral de cautela autoriza o TCU a adotar medidas cautelares, sem oitiva prévia de responsáveis e interessados e sem que isso caracterize violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa, desde que mediante deliberação fundamentada (Agravo n. 021.283/2008-1. Ministro Relator Aroldo Cedraz. Publicado no DOU 03/04/2009).

Conforme se pode assentir, os Tribunais de Contas necessitam tornar sua atuação mais efetiva, a fim de que possam cumprir com esmero as nobres atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição da República vigente, dentre as quais destacamos, nesse trabalho, a possibilidade de que tais órgãos se utilizem das técnicas de multas coercitivas como forma de alcançarem uma maior efetividade de suas decisões.

O Supremo Tribunal Federal enfrentou a matéria acerca da adoção de medidas cautelares no âmbito do Tribunal de Contas da União, tendo se posicionado, ainda, acerca da competência normativa das cortes de contas, quando do julgamento do mandado de segurança n. 24.510/DF,16 sob a relatoria da Ministra Ellen Gracie.

16 Impende ressaltar que tal decisão não foi unânime, uma vez que o voto vencido do Ministro Carlos Ayres Britto rejeitava a possibi-lidade de o Tribunal de Contas da União sustar a realização de procedimentos licitatórios promovidos por órgãos ou entidades da Administração Pública, sob a alegação de que tal atuação extrapolaria as competências que lhe foram afetas constitucionalmen-te. Ou seja, negava a possibilidade de o TCU atuar de forma preventiva, mediante a adoção de medidas cautelares, a despeito de o Regimento Interno daquela Corte de Contas preceituar, expressamente, tal possibilidade de atuação.

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Nesse julgamento, reafirmou-se a importância de tais medidas para que as Cortes de Contas consigam prestar de forma adequada suas atribuições constitucionais. Colaciona-se a ementa e trechos dos votos:

EMENTA: PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. IMPUGNAÇÃO. COMPETÊNCIA DO TCU. CAUTELARES. CONTRADITÓRIO. AUSÊNCIA DE INSTRUÇÃO.

1 — Os participantes de licitação têm direito à fiel observância do procedimento estabelecido na lei e podem impugná-lo administrativa ou judicialmente. Preliminar de ilegitimidade ativa rejeitada.

2 — Inexistência de direito líquido e certo. O Tribunal de Contas da União tem competência para fiscalizar procedimentos de licitação, determinar suspensão cautelar (arts. 4° e 113, § 1° e 2° da Lei n. 8.666/93), examinar editais de licitação publicados e, nos termos do art. 276 do seu Regimento Interno, possui legitimidade para a expedição de medidas cautelares para prevenir lesão ao erário e garantir a efetividade de suas decisões.

3 — A decisão encontra-se fundamentada nos documentos acostados aos autos da Representação e na legislação aplicável.

4 — Violação ao contraditório e falta de instrução não caracterizadas.

Denegada a ordem.

(...)

VOTOS

O SR. MINISTRO CEZAR PELUSO — Sr. Presidente, penso que os princípios da legalidade e da moralidade, além da analogia estabelecida com o poder jurisdicional, implicam o poder que o Tribunal de Contas tem de prevenir uma situação em que ele atuaria a posteriori, para remediar os danos já causados ao erário. Noutras palavras, parece-me conforme com todos os princípios que é melhor prevenir do que remediar.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO — Entendo, Senhor Presidente, que o poder cautelar também compõe a esfera de atribuições institucionais do Tribunal de Contas, pois se acha instrumentalmente vocacionado a tornar efetivo o exercício, por essa Alta Corte, das múltiplas e relevantes competências que lhe foram diretamente outorgadas pelo próprio texto da Constituição da República.

(...)

É por isso que entendo revestir-se de integral legitimidade constitucional a atribuição de índole cautelar, que, reconhecida com o apoio na teoria dos poderes implícitos, permite, ao Tribunal de Contas da União, adotar as medidas necessárias ao fiel cumprimento de suas funções institucionais e ao

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pleno exercício das competências que lhe foram outorgadas, diretamente, pela própria Constituição da República.

(...)

Assentada tal premissa, que confere especial ênfase ao binômio utilidade/necessidade, torna-se essencial reconhecer — especialmente em função do próprio modelo brasileiro de fiscalização financeira e orçamentária, e considerada, ainda, a doutrina dos poderes implícitos — que a tutela cautelar apresenta-se como instrumento processual necessário e compatível com o sistema de controle externo, em cuja concretização o Tribunal de Contas desempenha, como protagonista autônomo, um dos mais relevantes papéis constitucionais deferidos aos órgãos e às instituições estatais.

(...)

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (Presidente) — (...) nenhum poder decisório constitucional é dado para tornar-se ineficaz: e, por isso, tenho como implícito, na norma que outorga o poder de decidir, o poder cautelar necessário a garantir a eficácia da eventual decisão futura (MS 24.510-7/DF. Ministra Relatora Ellen Gracie. Publicado no DJ de 19/03/2004).

Pode-se constatar, então, que o Supremo Tribunal Federal além de assegurar o poder geral de cautela aos Tribunais de Contas, reconheceu, ainda, a competência normativa das Cortes de Contas, ao ratificar a legitimidade da norma regimental do TCU que preceituava a possibilidade de sustação dos atos licitatórios eivados de ilegalidade.

3.3 Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais e a aplicação das multas coercitivas

Conforme visto, os Tribunais de Contas, sob a nova ótica constitucional, passaram a figurar como órgãos de relevância constitucional, aos quais foram estabelecidas diversas competências. Para tanto, foram-lhes reservadas algumas prerrogativas que visam assegurar a efetividade de sua atuação, na consecução de uma administração pública proba, resguardando-se, dessa forma, os interesses da coletividade.

Aos Tribunais de Contas, em sua atuação como órgãos judicantes, devem-se assegurar os mecanismos legalmente estabelecidos para garantir a eficácia de suas deliberações, no que concerne à defesa do erário, especialmente, quanto à verificação da legalidade, regularidade e economicidade dos atos dos administradores públicos e demais responsáveis pela guarda e emprego de recursos públicos.

Nesse sentido, é preciso atentar-se ao dispositivo constitucional (art. 71, VIII, CR/88) que autoriza a aplicação, por intermédio das Cortes de Contas, aos responsáveis, no caso de ilegalidade de

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despesa ou irregularidade de contas, das sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário.

No âmbito do Tribunal de Contas da União, a Lei n. 8.443/92 preceitua, em seu art. 58, incisos II, IV, V, VI e VII, a possibilidade de aplicação de medidas de coação indireta, mediante o estabelecimento de multas pecuniárias decorrentes do descumprimento dos deveres impostos aos administradores públicos.

Colaciona-se excerto de julgado do TCU que, com espeque na defesa da autoridade de suas decisões, aplicou multa ao gestor, nos seguintes termos:

Monitoramento. Descumprimento de diligência promovida pelo Tribunal, sem causa justificada, por parte do gestor municipal. Desobediência que implica em aplicação de multa ao gestor

VOTO

No que atine à aplicação da multa ao gestor municipal, manifesto-me de acordo com as conclusões da unidade técnica nesse sentido.

Como já se discorreu, a despeito de terem sido promovidas três diligências junto ao ente municipal, este se limitou a encaminhar apenas parte da documentação solicitada, sem apresentar justificativas para a não entrega das demais peças. Ressalte-se que a última delas, efetivada em 27/05/2009, remanesce não atendida até a presente data.

Face a essa injustificada inércia por parte do órgão diligenciado, este Tribunal tem-se visto impedido de dar impulso ao presente processo e o que é mais importante, de averiguar a regularidade do procedimento licitatório já concluído há mais de um ano e, por conseguinte, das contratações dele decorrentes.

Importa consignar, ainda, que em todos os ofícios de diligência endereçados ao Prefeito, constou a advertência de que o seu não atendimento, no prazo fixado, sem causa justificada, sujeitaria o responsável à pena de multa.

Considerando que os contratos provenientes do certame, objeto do presente monitoramento, encontram-se em curso, urge ao Tribunal obter as informações indispensáveis à fiscalização, de modo a dar cumprimento às determinações expedidas no Acórdão n. 608/2008 — TCU — Plenário.

Diante desse cenário, tenho que se faz forçoso o exercício do poder coercitivo desta Corte de Contas mediante a aplicação da multa prevista no art. 58, inc. IV, da Lei n. 8.443/92, a qual estipulo no valor de R$10.000,00 (dez mil reais).

ACÓRDÃO

(...)

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9.1. com fundamento no art. 58, inciso IV, da Lei n. 8.443/1992, aplicar ao Sr. (...), Prefeito de Várzea Grande/MT, multa no valor de R$10.000,00 (dez mil reais) (...);

(Processo n. 022.891/2008. Ministro Relator Benjamin Zymler. Sessão do dia 09/09/2009. Publicado no DOU em 11/09/2009)

Vale dizer que, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, ainda sob a regência da revogada Lei Complementar Estadual n. 33, de 28 de junho de 1994, detinha a prerrogativa de cominar multas coercitivas no exercício de suas atribuições constitucionais, com espeque no art. 95, incisos IV, V, VI e Ix da citada lei, aplicáveis quando do não cumprimento das obrigações públicas impostas pela legislação aos administradores públicos e demais responsáveis pela gestão do erário.

Veja-se excerto de decisão, da lavra do Conselheiro Antônio Carlos Andrada, na qual se manteve a multa-coerção cominada em razão de descumprimento de prazo estabelecido em norma, nos seguintes termos:

(...) foi imputada ao ora recorrente, pena de multa (...) pelo não cumprimento da data limite (15/02/06) fixada na Instrução Normativa TC 05/2004 para disponibilização, via internet, pelo Siace/LRF, do Relatório de Gestão Fiscal (RGF) data-base 31/12/05 (...).

(...) é importante frisar que a natureza da sanção imposta, qual seja multa-coerção, configura-se exatamente pelo descumprimento de uma obrigação pública legalmente imposta por esta Corte. São estes os termos exarados em julgado do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, verbis:

Direito Administrativo. Ação Anulatória de multa aplicada pelo Tribunal de Contas. Competência. Multa. Origem. Descumprimento de prazo previsto em Instrução Normativa. Previsão legal. Natureza Coercitiva.

(...)

A multa-coerção constitui numa maneira de assegurar o cumprimento da obrigação pública, de forma a inibir que o administrador público descumpra, por reiteradas vezes, o prazo normativo, sendo o contraditório instaurado a posteriori. (TJMG — Apelação Cível n. 1.000.249.768-3/000 — Relator: Desembargador Célio Cesar Paduani (grifo nosso).

IV — VOTO

À vista do exposto, considerando que as razões recursais não tiveram o condão de elidir as falhas cometidas pelo ora recorrente concernente ao não cumprimento da data limite (...) nego provimento ao recurso, mantendo incólume a decisão prolatada (...) que determinou, nos termos do disposto no art. 95, II e IV da Lei Complementar n. 33/94, a pena de multa ao recorrente (...). (Processo n. 715.362 — Recurso de revisão. Relator: Conselheiro Antônio Carlos Andrada. Pleno. Sessão do dia 29/04/2009)

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em diversos julgados17 o Tribunal firmou posição no sentido de que, em se tratando de multas-coerção, o contraditório pode ser diferido, tendo em vista tratar-se de uma cominação previamente preceituada em lei, e aplicável em caso de inobservância das obrigações e prazos previstos na lei ou ato normativo da casa.

Tanto assim que, na Sessão Plenária do dia 28 de novembro de 2008, restou aprovado o enunciado de Súmula n. 108 do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, cujo teor dispõe in verbis que: A imposição de multa-coerção sem prévia oitiva do jurisdicionado, em virtude de descumprimento de prazo ou de obrigação pública decorrentes de lei ou ato normativo do Tribunal, não viola o contraditório e a ampla defesa.

Registre-se que, com a promulgação da Lei Complementar Estadual n. 102, de 17 de janeiro de 2008, as multas coercitivas de natureza análoga àquelas preceituadas na lei orgânica revogada, encontram-se disciplinadas no art. 85, incisos III, IV, V, VI, VII, VIII e xI.

Todavia, cumpre ressaltar que tais multas, embora sejam consideradas medidas de coerção, diferem-se das astreintes por terem seu valor máximo já fixado previamente na norma legal, relativizando-se, assim, a sua eficácia coercitiva.

Isso porque, o viés constritivo, conforme se disse alhures, depende da aplicação de uma multa em valor bastante que iniba o obrigado a descumprir com suas obrigações ou deveres legais, espectro esse reduzido quando se tem um valor máximo de cominação e, sobretudo, quando se sabe de antemão a percentagem desse valor máximo, passível de ser aplicado aos diferentes tipos de descumprimento elencados na lei.

Com o advento da citada Lei Complementar Estadual n. 102/2008 — Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, vigente — o cenário das medidas coercitivas aplicáveis aos feitos de competência das Cortes de Contas ganhou um importante reforço, devendo-se ressaltar, por oportuno, o teor do art. 90 da referida lei, in verbis: O Tribunal poderá fixar multa diária, nos casos em que o descumprimento de diligência ou decisão ocasionar dano ao erário ou impedir o exercício das ações de controle externo, observado o disposto no Regimento Interno.

Foi instituída, dessa forma, a possibilidade de fixação de astreintes nos feitos de competência da Corte de Contas mineira, quando o descumprimento de uma determinada diligência ou decisão ensejar a ocorrência de dano ao erário, ficando nítido o viés preventivo de tal previsão legal.

Reitera-se, com espeque na valiosa doutrina de Marinoni,18 que a multa, característica essencial da tutela inibitória, objetiva pressionar o réu a adimplir a ordem do juiz, visando à prevenção do ilícito mediante o impedimento de sua prática, de sua repetição ou de sua continuação, confirmando-se o caráter preventivo incito ao instituto das astreintes.

17 Citam-se, a título exemplificativo, os Recursos de Reconsideração n. 712.882, 713.352, 712.875, 713.109, 737.286, 735.640, bem como os Recursos de Revisão n. 719.347, 715.554, 691.564, entre outros.

18 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória — individual e coletiva. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 173

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Nesse sentido, pode-se concluir que a multa diária, preceituada no art. 90 da Lei Orgânica do TCEMG, bem como no art. 32119 do regimento interno do tribunal de contas do estado de minas Gerais, possui a finalidade de garantir maior exequibilidade das decisões proferidas pela Corte de contas mineira.

Cumpre destacar que a multa periódica possui caráter instrumental, destinada a garantir a correta e tempestiva observância dos ditames emanados dos órgãos de julgamento do Tribunal de Contas, independentemente da ocorrência efetiva do dano ou de prejuízos ao erário. Afinal, seu escopo principal é, exatamente, atuar na psique do gestor a fim de evitar que esse pratique ou deixe de praticar algum ato que tenha o condão de lesar o erário e/ou interesses da coletividade.

Verifica-se que, após a promulgação da Lei Orgânica vigente do Tribunal de Contas do Estado de minas gerais, as astreintes têm sido aplicadas, recorrentemente, tanto nas obrigações de não fazer (quando determina a abstenção da prática de algum ato potencialmente lesivo aos interesses da coletividade e do erário), bem como nas obrigações de fazer (quando determina que o jurisdicionado apresente alguma documentação solicitada em diligência ou que proceda às correções das falhas apontadas nos editais de licitação e de concurso público).

Colaciona-se, a seguir, excerto que demonstra esse novo enfoque na aplicação das multas cominatórias no âmbito do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais:

II — FUNDAMENTAÇÃO

Analisado o edital e à vista das informações prestadas pelo órgão técnico, bem como do parecer do órgão ministerial, constatei a existência de falhas que comprometem a legalidade do certame.

(...)

III — DECISÃO:

Diante do exposto, com fundamento no § 2° do art. 95 da Lei Complementar Estadual n. 102/08, determino, ad referendum da egrégia Primeira Câmara, a suspensão do Concurso Público de Provas e Títulos para Provimento de Cargos no Quadro de Pessoal do Poder Executivo do Município (...), regido pelo Edital n. 001/2009, na fase em que se encontra, até que o Tribunal se manifeste definitivamente sobre a matéria, devendo, pois, a Administração abster-se da prática de qualquer ato atinente ao prosseguimento do certame, incluída a publicação de eventuais modificações, até julgamento final do presente feito.

19 RITCEMG. Art. 321 do. O Tribunal poderá fixar multa diária, nos casos em que o descumprimento de diligência ou decisão puder ocasionar dano ao erário ou impedir o exercício das ações de controle externo.

Parágrafo único. O Tribunal suspenderá a cominação prevista no caput deste artigo, na data em que cessar o descumprimento da obrigação.

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Intime-se o Sr. (...), Prefeito Municipal, mediante fac-símile, e-mail e por via postal para que, no prazo de 5 (cinco) dias, comprove a suspensão ora determinada, encaminhando a este Tribunal cópia da publicação no Diá-rio Oficial do Estado, sob pena de aplicação de multa diária no valor de R$2.000,00 (dois mil reais), ao fundamento do disposto no art. 90 da refe-rida Lei Complementar.

Fixo o prazo de 30 (trinta) dias para manifestação do mencionado gestor com vista ao exercício do contraditório e da ampla defesa constitucionalmente ga-rantidos. (Processo n. 804.634 — Edital de concurso público. Relator Conselhei-ro em Exercício Gilberto Diniz. Primeira Câmara. Sessão do dia 03/11/09).

Em outro julgado há uma interessante citação ao parecer do Ministério Público de Contas, o qual requereu a aplicação da multa cominatória com fundamento no art. 461, §§ 4° e 5° do CPC, além das disposições constantes na Lei Orgânica da Corte de Contas de Minas Gerais. Veja-se o excerto da decisão:

(...) o Ministério Público junto ao Tribunal postula (...), que seja fixado prazo de 48 (quarenta e oito) horas, a contar da data da intimação, para que seja publicada a comunicação da suspensão do concurso público, e, em igual prazo, que seja enviada a prova dessa suspensão a esta Corte, sendo fixada multa diária pessoal individual a quem vier a dar causa ao descumprimento dessa ordem, nos termos do art. 461, §§ 4° e 5° do CPC, c/c os arts. 85, 89, 90 e 97 da Lei Complementar n. 102/2008.

(...)

VOTO:

Em face das irregularidades apontadas nos autos do Edital de Concurso Público n. 760.740, bem como na Representação n. 767.430 e com fulcro no art. 3°, incisos XXVII e XXXI, e art. 60, todos da Lei Complementar n. 102/2008, determino, liminarmente, a suspensão do Concurso Público (...) devendo a Secretaria dessa Câmara proceder à intimação por e-mail, fac-símile e AR, (...) a fim de que se abstenham da prática de qualquer ato referente ao certame e encaminhem a esta Casa o comprovante da publicação da suspensão, no prazo de 02 (dois) dias úteis, sob pena de multa, no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais) aos que derem causa ao descumprimento dessa determinação, nos termos do art. 85, inciso III, da mencionada Lei Complementar. Ato contínuo, deve ser concedida vista dos autos aos intimados, no prazo de 15 (quinze) dias, para que apresentem justificativas ou a minuta de um novo edital, escoimado dos vícios ora apontados. (Processo n. 760.740. Edital de concurso público. Relatora Conselheira Adriene Andrade. Segunda Câmara. Sessão do dia 02/12/08).

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Acerca do aresto retromencionado impende observar que o parecer ministerial recomendou a aplicação de multa coercitiva, com espeque no art. 461, § 4°, do CPC, que preceitua a astreinte aplicável às obrigações de fazer e de não fazer no âmbito do processo civil. Balizou tal pedido, ainda, nos arts. 85, 89, 90 e 97 da Lei Complementar Estadual n. 102/2008 Lei Orgânica do TCEMG (LOTCEMG).

Em voto proferido pelo Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz, houve a aplicação de multa diária com baldrame no art. 85, III, da Lei Orgânica do TCEMG, consoante excerto a seguir:

Analisando detidamente o Edital n. 001/2009, constatei a ocorrência de falhas, algumas coincidentes com as enumeradas pelo órgão técnico e pelo órgão mi-nisterial e outras que vão além daqueles apontamentos, as quais deverão ser sanadas.

(...)

as irregularidades apontadas inviabilizam o prosseguimento do certame, impondo sejam procedidas as adequações necessárias no respectivo ato convocatório nos termos expendidos.

(...)

Por todo o exposto, com fundamento no inciso XIV do art. 76 da Constituição mineira de 1989 e no inciso XXXI do art. 3° c/c o art. 95 e inciso III do art. 96 da Lei Complementar n. 102/08, determino, liminarmente, ad referendum da egrégia Primeira Câmara, a suspensão do Concurso Público de Provas (...) na fase em que se encontra, até que o Tribunal de Contas se manifeste definitivamente sobre a matéria, devendo, pois, a Administração abster-se da prática de qualquer ato atinente a seu prosseguimento, incluída a publicação de eventuais modificações, até julgamento final do presente feito.

Intime-se o responsável legal do Departamento Municipal de Água e Esgoto do citado Município, Sr. Armando Bertoni, por fac-símile, e-mail e via postal, em razão da exiguidade de tempo, advertindo-o de que o não cumprimento da decisão importará a aplicação de multa diária no valor de R$2.000,00 nos termos do inciso III do art. 85 da mencionada Lei Complementar 102/08.

Fixo o prazo de 30 dias para manifestação do interessado e, de cinco dias para juntada aos autos, de prova da publicação da suspensão ora determinada. (Processo n. 801.607 — Edital de concurso público. Relator Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz. Primeira Câmara. Sessão do dia 03/11/09).

Observa-se que a aplicação da multa diária, nesse caso, deu-se de maneira sui generis, tendo em vista que não se fundamentou no art. 90 da Lei Orgânica do TCEMG. Algumas questões surgem da cominação de multa periódica nos termos elencados na decisão retromencionada.

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revista do tribunal de contas do estado de minas geraisabril | maio | junho 2010 | v. 75 — n. 2 — ano XXviii

Ao estabelecer a aplicação de multa diária vinculada a um dispositivo legal que estabelece o quantum máximo de cominação, restringiu-lhe o alcance e eficácia, uma vez que, em caso de descumprimento da ordem, essa estará sujeita ao limite preceituado no caput e inciso III do art. 85 da Lei Orgânica do TCE.

Deve-se enfatizar, por fim, que a cominação da multa diária coercitiva não deve, via de regra, sujeitar-se a um limite previamente estabelecido, devendo a mesma ser aplicada, observados os princípios e critérios legais na sua definição, em montante e periodicidade que exerçam impacto psicológico sobre o obrigado, de modo a impedir que o ato indesejado aconteça ou que cesse a inércia do gestor em cumprir com seus deveres, sempre visando impedir os desvios de dinheiro público.

De nada adianta estabelecer-se uma multa coercitiva ínfima nos casos que envolve grande vulto financeiro, porque o impacto psicológico será o de que compensa pagar a multa e assim dar azo ao procedimento irregular. De modo contrário, em nada auxilia o cumprimento da obrigação à cominação de uma multa diária absurda, em desconsideração à realidade econômica do obrigado, uma vez que, nesse caso, tal multa não geraria qualquer efeito coercitivo, tendo em vista a total impossibilidade de se executar o valor, em caso de descumprimento da ordem exarada pela corte de contas.

4 Conclusão

Buscou-se, de forma singela e superficial, abordar a temática das multas coercitivas, especialmente das astreintes, nos feitos de competência dos Tribunais de Contas.

A efetividade das deliberações emitidas nos Tribunais de Contas constitui tema que ressente de uma maior atenção, tendo em vista que, passados mais de 20 anos da promulgação da Constituição Cidadã, tais Cortes ainda carregam o estigma de Tribunais de faz de conta.

Insta salientar que a efetividade das decisões dos Tribunais de Contas constitui elemento essencial à própria existência de tais órgãos, que atuam com o objetivo de prevenir e coibir as práticas lesivas ao erário, promovendo-se o restabelecimento da legalidade.

Assim, faz-se imprescindível que a atuação dos Tribunais de Contas seja mais efetiva, como forma de dar um maior retorno à sociedade, reafirmando-se como Órgão de relevo constitucional, sobretudo em um período em que se põe em debate a relativização das competências e prerrogativas das Cortes de Contas, devido a interesses frustrados do Poder Executivo, principalmente na esfera federal, decorrentes das diversas paralisações de obras e licitações com indícios de irregularidades, colocando-se em xeque a possibilidade de exercerem suas atribuições de forma preventiva.

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Com clareza ímpar, o autor Luiz Guilherme Marinoni20 assevera que não há dúvida de que a tutela específica protege de modo mais adequado o direito material. A tutela dirigida a evitar o ilícito é, evidentemente, muito mais importante do que a tutela ressarcitória.

Nesse sentir, os Tribunais de Contas devem fazer uso da gama de instrumentos processuais existentes, voltados a subsidiá-los na consecução satisfatória de seu mister constitucional.

Dentre essas ferramentas, a aplicação de multa coercitiva astreintes, como forma de resguardar o interesse público e a efetividade das decisões, angariou posição de destaque na seara processual civil, dada sua eficácia na consecução da tutela específica do direito, devendo encontrar ressonância, também, nas Cortes de Contas. Afinal, com lastro na sabedoria popular, é melhor prevenir do que remediar, sobretudo em se tratando de verbas públicas que, uma vez desviadas, dificilmente são restituídas aos cofres públicos.

Viu-se que os Tribunais de Contas aplicam, há algum tempo, multas que incidem não somente nos casos de atos irregulares praticados em contas públicas ou em face dos atos de gestão ilegítimos, mas, também, nos casos de não atendimento à diligência determinada ou por sonegação de informação que inviabilize o exercício do controle externo.

As multas de caráter coercitivo, por exercerem uma coação indireta sobre a pessoa dos administradores de recursos públicos, impelindo-os ao cumprimento das obrigações públicas que lhes foram impostas pela lei, admitem o contraditório diferido, ou seja, incidem tão logo esteja consumada a coação.

Ocorre que, conforme se procurou demonstrar, a astreinte possui uma eficácia constritiva maior, em razão de ser aplicada conforme cada caso concreto, observadas as condições econômicas do sujeito passivo, em consonância ainda com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, constituindo importante pilar na defesa do erário.

Diz-se que a cominação de multa periódica coercitiva, encontra-se disciplinada em nosso ordenamento jurídico, especialmente no art. 461, § 4°, do Código de Processo Civil, trazendo em si, imbricado, o exercício do poder geral de cautela, destinado a assegurar o efetivo cumprimento das decisões estatais exaradas.

Alteie-se que o controle externo deve ser exercido de forma tempestiva e com eficácia, primando pela prevenção dos danos aos cofres públicos, visando à obtenção de uma melhor conduta administrativa na condução e uso do erário, cumprindo com seu mister de auxiliar, por via do controle externo, a concretização dos direitos fundamentais.

Tendo em vista que a própria Constituição da República vigente conferiu legitimidade aos Tribunais de Contas para exercerem competência normativa, é legítimo o estabelecimento de multas coercitivas nas leis orgânicas e nos regimentos internos das Cortes de Contas.

20 marinoni, luiz guilherme. Tutela específica: arts. 461, cPc e 84, cdc. 2. ed. rev. são Paulo: revista dos tribunais, 2001. p. 70.

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Com esse repertório de medidas processuais, avança-se muito em direção ao ideal de se conferir uma maior efetividade às diletas e honrosas competências constitucionais reservadas às Cortes de Contas, enquanto órgãos de controle externo, configurando importante passo no cumprimento das decisões dos Tribunais de Contas, como necessário mecanismo de aprimoramento da gestão pública, reparando os prejuízos causados ao erário.