Apogeu e Queda Da Democracia Mediada
-
Upload
thayane-guimaraes -
Category
Documents
-
view
216 -
download
0
description
Transcript of Apogeu e Queda Da Democracia Mediada
APOGEU E QUEDA DA DEMOCRACIA MEDIADA
Notas sobre Sociologia da Comunicação & Política Pós ModernaMarcelo Bolshaw Gomes1
RESUMO: Este texto resume o pensamento dos principais teóricos atuais em torno do enquadramentopolítico e sociológico da mídia na democracia contemporânea. Discute-se aqui a relação entre cidadaniamoderna e posição ideológica, ancorado na filosofia político de Norberto Bobbio e na proposta de uma‘política de terceira via’ defendida por Anthony Giddens. Em seguida, apresenta-se as noções de Eleitor-consumidor (proposta por Flavio Silveira), de Democracia Deliberativa Mediada e de Imagem Pública(elaboradas por John Thompson). Também se problematizam a noção de inteligência coletiva, criada porPierre Levy e desenvolvida por Henry Jenkin; e o surgimento das Redes Sociais e Digitais com os novosmovimentos sociais, descritos por Manuel Castells;.
PALAVRAS-CHAVE: Ciências Sociais Aplicadas1; Comunicação midiática2; Sociologia das mídias3;
ABSTRACT: This paper summarizes the major current theoretical thinking about the political andsociological framework of media in contemporary democracy. We discuss here the relationship betweenmodern citizenship and ideological position, anchored in the political philosophy of Norberto Bobbio andthe proposal of a 'third way politics' advocated by Anthony Giddens. Then, it present the notions ofVoter-Consumer (proposed by Flavio Silveira), Deliberative Democracy Mediated and Public Image(prepared by John Thompson). Also problematize the notion of collective intelligence, created by PierreLevy and developed by Henry Jenkin; and the emergence of Social and Digital Networks with the newsocial movements, described by Manuel Castells;.
KEYWORDS: Social Sciences Aplicadas1; Media Communication2; Sociology of medias3;
1. INTRODUÇÃO
Na revolução francesa, os girondinos sentaram à direita; e os jacobinos, à
esquerda. Para Noberto Bobbio (2001), tal fato caracterizou ideologicamente toda
história política que se seguiu. A direita representa os que defendem a liberdade
individual acima da igualdade social entre indivíduos; a esquerda corresponde aos que
advogam a primazia da igualdade de todos sobre a liberdade de cada um. Os dois lados
políticos são assim polos da contradição moderna entre liberdade e igualdade.
Assim, por exemplo, pode-se dizer que Nietzsche é um filósofo existencialista
'de direita' quando afirma que os homens são diferentes perante Deus e Estado; que a
igualdade jurídica entre indivíduos é uma mentira (1998). Por outro lado, também se
pode dizer que Sartre é um existencialista 'de esquerda' porque acredita que cada
homem é um 'universal singular', uma miniatura diferenciada do universo, ao lado de
outros universos singulares (2014).
1 Professor de Sociologia da Comunicação no Departamento de Comunicação Social (DECOM) e deEstudos Narrativos no Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia (PPGEM) da UFRN. Doutor emCiências Sociais.
Porém, a contradição política entre direita e esquerda não é apenas discursiva
(e filosófica); ela é ideológica e está encravada na prática política, nas formas de
representação da sociedade moderna. Na verdade, pode-se dizer que toda política
moderna se baseia na luta entre essas duas práticas políticas contrárias.
Para Bobbio, que era liberal e socialista, quando uma sociedade pendia demais
para esquerda, tornava-se totalitária em nome da igualdade; e, quando se fixava na
direita, se tornava injusta e desigual em nome da liberdade. O ideal, então, seria o
equilíbrio complementar entre as duas práticas, o centro, a fraternidade, a única capaz
de observar qual a melhor posição no momento para cada situação (movimento
pendular) e de negociar pragmaticamente soluções e compensações caso a caso. O
centro seria assim menos ideológico e mais prático, ou mais responsável e orientado
por objetivos e estratégias do que por convicções e valores, para citar as éticas políticas
de Weber (2004, 112-116).
Também é preciso lembrar que, como princípios norteadores da ação política
moderna a partir da revolução francesa, a liberdade e a igualdade são mediadas pela
fraternidade. Mas que, como sociabilidade arcaica, a fraternidade é anterior à luta
política pela liberdade e pela igualdade - movimentos colaterais opostos recentes.
Entendida como princípio de reciprocidade (não fazer aos outros, o que não se deseja
para si próprio), a fraternidade é um preceito universal, presente em todas as religiões
e filosofias éticas. Pode-se até atribuir a versão normativa de sua inversão – a lei de
talião: “olho por olho, dente por dente” – à primeira regulamentação da vida social.
Em relação ao modelo de democracia deliberativa, pode-se dizer: que a
igualdade jurídica entre indivíduos é representada pelo Estado; que a liberdade é um
atributo e uma exigência do Mercado; e que a Sociedade Civil encarna o princípio da
solidariedade fraterna. O tripé da estrutura política moderna oscila entre as tentativas
do Mercado de segmentar a Sociedade Civil e do Estado de ampliar a esfera pública
através das comunidades. Na verdade, a ideia de fraternidade relativizar a igualdade
jurídica entre indivíduos e limitar a liberdade de ação de sujeitos individuais e coletivos
também vem crescendo e se modificando com decorrer do tempo.
2. A Era Giddens
Anthony Giddens2 retoma a reflexão de Bobbio, mas, socialdemocrata, discorda
no movimento pendular do centro, apontando para uma ‘terceira via’: nem a
regulamentação econômica com anarquia moral – como quer a esquerda; nem a
anarquia econômica com fortes controles morais – como deseja a direita.
ESQUERDA DIREITA
Defende intervenção econômica do Estado Liberdade de Mercado
Liberdade total para vida sexual e familiar Moralismo tradicional, regulamentação da vida civil
O crime é produto da desigualdade socialO crime resulta da desagregação familiar resultante da entrada
das mulheres no mercado de trabalho.
Com a proposta de uma Política de Terceira Via (2001a, 2001b), Giddens elabora
uma resposta ao impasse entre a socialdemocracia tradicional (o keynisianismo e o
estado do bem-estar social) e o neoliberalismo (ou o estado mínimo e aberto às trocas
externas) com a ampliação do papel desempenhado pela Sociedade Civil. Nem a auto
regulação selvagem dos mercados, nem o Estado inoperante e falido; apenas
democratização da democracia pode mediar o conflito entre os interesses econômicos
e políticos. A política de terceira via seria essa despolarização pragmática do modelo
esquerda x direita, em que planejamento e a liberdade se combinem criativamente.
Este realinhamento dos extremos desemboca na ideia de uma política sem inimigos.
Para esquerda, os maus são os capitalistas, o mercado, as grandes corporações, os EUA,
etc; para direita, os maus são: o estado inchado, o relativismo cultural, os imigrantes e
os criminosos. “Mas não há uma fonte concentrada dos males do mundo: temos que
deixar para trás a política de redenção” (GIDDENS, 2001a, p.45). E essa 'política sem
inimigos', acima da direita e da esquerda, é também um forte argumento eleitoral.
Muitos são os que minimizam a importância das ideias de Giddens, mas a
verdade é que ela é enorme tanto diretamente - no Partido Trabalhista britânico, no
Partido Democrata dos EUA e em todos os partidos socialdemocratas ocidentais que
seguem explicitamente sua orientação; como indiretamente, através de imitadores
inconfessos de diferentes tipos, professando ‘novas políticas’ sem os velhos polos
extremos opostos ideológicos.
2 Anthony Giddens é sociólogo, diretor da London School of Economics e professor da Universidade deCambridge. Também é professor visitante de instituições importantes, como as universidades deHarvard, Standford, Roma, Sorbonne. O pensador tem 31 livros, publicados em 22 países.
Navegando entre a autonomia cosmopolita e a dependência fundamentalista,
entre o público e o privado, entre a socialdemocracia e o neoliberalismo (e entre
outros opostos); a política de terceira via ajudou a terceirizar o estado (diminuir seus
custos sem prejuízo do setor social), através de organizações não governamentais,
políticas público-privadas e redes de agentes temporários. Por outro lado, também
inspirou reformas previdenciárias e flexibilizações nas legislações trabalhistas,
sequestrando direitos de trabalhadores e aposentados em todo mundo.
Giddens (2003) analisa dois grupos de pensamento sobre Globalização o
fenômeno: os ‘céticos e/ou fundamentalistas’, que acham que a globalização não traz
nada de novo: é apenas o desenvolvimento imperialismo norte-americano; e os
‘radicais cosmopolitas’, que acreditam que ela está mudando tudo, destacando a onda
mundial de adaptação econômica dos ‘países em desenvolvimento’ à dinâmica do
mercado global, bem como a influência cultural desses países em relação aos ‘países já
desenvolvidos’. A essa contra influência o autor denomina de ‘colonização inversa’.
Com a globalização, as ações não são mais locais, mas têm repercussões mundiais.
Repercussões que, ao mesmo tempo em que mudam as estruturas sociais, interferem
na identidade do cidadão que se encontra no cerne da luta entre dependência e
autonomia, entre fundamentalismo territorial e cosmopolitismo sem raízes.
Porém, a principal deficiência da política de terceira via é a incompreensão sobre
o novo comportamento político mediado e na transformação do cidadão moderno em
um consumidor de informação. Giddens até reconhece (2003) a importância dos meios
de comunicação para o funcionamento da democracia, mas não compreende sua
relação com o sistema de representação e seu efeito no comportamento político.
3. O eleitor-consumidor e a cidadania midiática
Flávio Silveira (1998) subdivide os comportamentos políticos em três grupos:
comportamento não racional tradicional (baseado na lealdade, na tradição e em
relações de dependência duráveis); comportamento racional (ideologicamente
orientado, com ênfase em objetivos e estratégias); e novo comportamento não
racional (baseado na sensibilidade individual de caráter instável e volúvel). Segundo o
autor, este terceiro tipo de comportamento político desenvolvido a partir da linguagem
da mídia, está se generalizando e tende a se tornar dominante.
A diferença entre os antigos e os novos tipos de comportamentos não racionais
é que, enquanto o comportamento tradicional é uma relação durável, repetida,
contínua, com laços de lealdade; o novo comportamento midiático é instável, mutável,
descontínuo, volátil. O primeiro se baseia em uma interação social que envolve
dependência, subordinação e até coerção; o segundo implica em uma autonomia
individual relativa e em uma liberdade de decisão limitada. O antigo comportamento
não racional implicava em uma perda da identidade, no qual se tinha uma confiança
incondicional; enquanto o novo comportamento eleitoral não racional é uma
afirmação da própria identidade, uma consulta à sensibilidade, que pode levar ao
apoio ou à reprovação circunstancial dos atores políticos.
Outra distinção sustentada por Silveira é a diferença entre o comportamento
racional e o novo comportamento não racional. O comportamento de tipo racional é
aquele que defende seus interesses de forma lógica, geral, tomando decisões
calculadas a partir de conteúdos políticos; enquanto, “a nova escolha não racional” é
formada por decisões imediatas e volúveis, motivada a partir de imagens e símbolos,
uma compulsão ao apelo emocional travestido de uma consulta à sensibilidade e ao
bom gosto do eleitor. Silveira afirma que o comportamento racional é resultante de
critérios objetivos universais, enquanto o comportamento midiático é fruto de critérios
subjetivos, singulares; que, enquanto um crê na representação conceitual da realidade
e na veracidade dos fatos de forma abstrata, geral e homogênea, o outro constrói uma
representação simbólica do mundo com base na autenticidade de várias referências
concretas e heterogêneas.
Na verdade, Silveira faz uma interpretação das ideias de Max Weber, traçando
uma correspondência entre as “formas de dominação legítima – tradicional, legal e
carismática” (WEBER, 1992, p. 349-359) - com seus tipos de comportamento político
eleitoral. Max Weber acreditava na crescente burocratização das sociedades modernas
e no predomínio da racionalidade por objetivos, em detrimento das formas de
dominação legítimas tradicionais, enquanto Silveira observa um crescente predomínio
do comportamento midiático ou de uma dominação legítima do tipo carismática – o
que, segundo o autor, ameaça à democracia representativa, ou seu modelo
parlamentar baseado na racionalidade política. (SILVEIRA, 1998, 230)
O eleitor-consumidor não vende seu voto por favores ou dinheiro; nem
tampouco acredita em partidos políticos e nos seus programas eleitorais. Ele vota na
imagem do candidato, vota na pessoa humana em que mais confia, vota no que vê na
mídia e no que conversa com os amigos. O novo comportamento não racional proposto
por Silveira é apoiado em pesquisas de opinião quantitativa e de volatilidade eleitoral,
que apontam para uma crescente imprevisibilidade (que não havia nos
comportamentos clientelistas e de identificação partidária).
O novo comportamento midiático passou a se reorganizar parcialmente pela
gramática específica da linguagem dos meios de comunicação (com ênfase na
novidade, no inusitado e em padrões estéticos), produzindo uma cultura política
centrada no consumo de imagens, gerando novas competências, como marketing (que
adapta a política às preferências do público através de pesquisas) e se baseia na
similitude aparente entre audiência e eleitorado (entre a opinião pública e o mercado
consumidor). A mídia promoveu uma des-ideologização da política, do paradigma
direita-esquerda e os programas se tornaram muito semelhantes em suas propostas
práticas (organizados a partir de pesquisas de opinião sobre as preferências do eleitor).
O critério principal do voto passa então a ser ‘quem’ e não ‘o que’ – uma vez
que todos dizem praticamente a mesma coisa. Houve uma personalização da política; a
confiabilidade e a honestidade se tornaram pré-requisitos decisivos nas escolhas
eleitorais – e não a posição do candidato. Há ainda vários outros aspectos negativos
dessa des-ideologização carismática da política: a redução das diferenças a gostos, a
imagem como inimiga do pensamento abstrato, a linguagem da TV como empecilho à
polêmica argumentativa.
O resultado? O crescente desinteresse do público mais informado; o caráter
artificial da opinião pública; a perda de autenticidade dos agentes e das instituições de
representação política; e, principalmente, a substituição parcial dos partidos e das
instituições políticas representativas pelos meios de comunicação no debate e na
defesa dos interesses da população. A mídia, na modernidade, sequestrou o 'lugar da
fala' da autoridade pública e religiosa. Nas culturas pré-modernas, a informação era
distribuída unicamente a partir dos estados e das igrejas.
Ao se estabelecerem instituições de mediação com autonomia relativa (a
ampliação da esfera pública de Habermas), o 'monopólio da fala' foi terceirizado.
Assim, a mídia é, ao mesmo tempo, um campo aberto para o diálogo direto
entre os atores políticos e o público; e também mais um ator político com interesses
próprios em um contexto social mais amplo. Ela é simultaneamente um campo para os
agentes políticos e um agente social invisível que seleciona, hierarquiza e dá
visibilidade aos acontecimentos.
Os campos da Política e da Comunicação se interpenetram numa relação
recíproca, mais ambos preservam suas especificidades; nem a política se submete
completamente à visibilidade da mídia, nem os meios de comunicação são meros
instrumentos ideológicos do poder. Os domínios da comunicação e da política são
insuficientes para explicar o fenômeno da cidadania midiática, é preciso conhecer seu
contexto social e as motivações estruturais dos atores e instituições. Esta ampliação
econômica e sociológica extrapola o âmbito discursivo da perspectiva do “duplo
domínio”, permitindo abordar a questão de um ângulo mais abrangente e sociológico.
E a equivalência ideológica entre o consumidor e o cidadão, ou melhor, entre o
mercado consumidor e a opinião pública é a grande intercessão entre os campos da
política, da comunicação e da economia. Na cidadania midiática, todos são iguais
perante o mercado, embora alguns tenham liberdade de consumir mais que os outros.
Por um lado, a política vira um negócio: o candidato torna-se um produto; o voto, uma
venda; a eleição, uma liquidação. Mas, por outro lado, a própria noção de cidadania se
amplia em seus direitos básicos (educação, saúde, etc) e na capacidade de fazê-los
valer, com o direito do consumidor. O consumo nos tornou cidadãos mais fortes!
4. A utopia democrática
Noberto Bobbio (2000) também considera que a democracia faz parte de um
mesmo processo histórico de secularização das tradições, que ela é meia-irmã da
burocracia weberiana. Para ele, o pluralismo democrático dos grupos em relação ao
Estado acabou com a democracia social entre os indivíduos.
Bobbio acredita que a democracia moderna nasceu de uma concepção
individualista de sociedade, em que a vontade coletiva é produzida pela regra de
maioria e acatada por todos formando uma unidade de ação “de forma centrípeta ou
monocrática”, porém, na verdade, sempre vivemos em uma policracia, em que os
grupos (e não os indivíduos) lutam para preservar seus interesses de forma centrifuga.
Assim há uma flagrante contradição entre a representação do interesse público (da
vontade da maioria formada por indivíduos) com a representação dos interesses
privados coletivos em vários níveis: regionais, corporativos e pessoais.
Ele elabora um eufemismo interessante para analisar democracias
representativas atuais: suas “promessas não cumpridas”, isto é, aquilo que as
democracias representativas gostariam de ser idealmente, mas que efetivamente não
são. As “promessas não cumpridas” são: a democracia promete defender o interesse
público (mas apenas negocia acordos dos interesses privados); a democracia promete
acabar com os privilégios das elites, tratando todos os indivíduos de forma igual (mas
há uma persistência das oligarquias e do tratamento desigual); a democracia promete
ainda educar o povo para cidadania, transformando súditos em cidadãos, aumentando
a participação ativa de todos sobre tudo (mas, o que se constata é a crescente apatia
política dos jovens de melhor instrução e renda); a democracia promete, através da
imprensa livre, acabar com o poder invisível (mas a transparência não venceu a
privacidade dos acordos particulares); para citar apenas as promessas principais.
Mas apesar dessas críticas, em nenhum momento Bobbio desiste da
democracia em si como sendo a melhor (ou, por baixo, “a menos pior” – como disse De
Gaulle) forma de governo. Sua crítica visa antes levantar as deficiências institucionais
da democracia para aperfeiçoa-la, através de uma passagem gradativa da
democratização do Estado à democratização da sociedade e das instituições (da escola,
da fábrica, dos bairros).
Giddens chama este processo histórico-institucional de “democratização da
democracia”, miniaturizando ainda mais a noção de democracia, entendida agora não
como uma 'forma de governo', mas como um método de relacionamento entre pais e
filhos, entre grupos de amigos, entre marido e mulher (GIDDENS, 2003: p.61). A
democracia como método não consiste simplesmente na regra de maioria (pois assim
seria impossível existir democracia entre duas pessoas com interesses diferentes) ou o
direito ao dissenso, mas sim na negociação dos interesses divergentes e das próprias
regras de negociação.
A democracia vista desse modo não é o predomínio formal da maioria, mas a
tomada de decisões através das regras negociadas entre os diferentes pontos de vista
que formam uma unidade de ação.
Giddens não acredita na secularização absoluta das tradições e sim que a
modernidade e a democracia (como um regime de regras negociadas) convivem com o
poder simbólico de modo diferente. Para Giddens, não existe uma estrutura social fixa
e permanente como pensava o estruturalismo e o funcionalismo, ela é processual e
histórica. Não há uma única estrutura social, mas sim um processo de estruturação em
que as relações sociais não são rígidas, mas sim dinâmicas e relativas no tempo e no
espaço, práticas recursivas. ‘Reflexibilidade’ é a capacidade de retroalimentação
realidade cultural e a vida social, ‘uma recursividade indireta’.
Para pensar o conceito de reflexividade, Giddens realiza um contraponto entre
as sociedades tradicionais e as sociedades modernas. A vida social tradicional era
voltada para o passado, para repetição de ciclos históricos; a modernidade e a
democracia iniciam uma nova concepção de tempo-espaço em que a reflexividade é
voltada para o presente e para o futuro: a sociedade de risco.
Segundo Giddens (2003, p.33), risco corresponde a “infortúnios ativamente
avaliados em relação a possibilidades futuras”.
O risco é a dinâmica mobilizadora de uma sociedade propensa à mudança,que deseja determinar seu próprio futuro em vez de confia-lo à religião, atradição ou aos caprichos da natureza. O capitalismo moderno difere de to-das as formas anteriores de sistema econômico em suas atitudes em relaçãoao futuro. Os tipos de empreendimento de mercado anteriores eram irregu-lares ou parciais. As atividades dos mercadores e negociantes, por exemplo,nunca tiveram um efeito muito profundo na estrutura básica das civilizaçõestradicionais, que permaneceram amplamente agrícolas e rurais (GIDDENS,2003, p.34)
Nesse sentido, a aceitação da existência do risco corresponde a uma forma cal-
culista de ver o mundo, através da qual, simulam-se várias reações possíveis aos acon-
tecimentos. Quanto mais a tecnologia interfere na vida social, quanto mais a objetivi-
dade científica torna-se senso comum, mais o homem reflete a existência do risco e
adota psicologicamente o ‘princípio do acautelamento’, em que se sustenta a incerteza
científica (a dúvida sistemática).
Apesar de a modernidade ser mais aberta ao conhecimento, ela também gera
inseguranças pela pluralidade de opções que detém. Essa falta de certeza e de
segurança, por sua vez, aumenta ainda mais a reflexibilidade da simulação de situações
de risco. A democracia, assim vista, é 'a' utopia (o projeto futuro de uma sociedade
perfeita sempre inacabada) por excelência. Os mitos estão sempre ancorados no
passado imemorial, na tradição, na origem anterior à história; a utopia, ao contrário,
está projetada no futuro, em um tempo que ainda não chegou no 'fim da história'. E,
no presente, na reflexibilidade moderna, a democracia real é sempre imperfeita e
imprevisível, arriscada e manipulada pelo poder simbólico.
A “reflexividade cultural exacerbada pelo risco” produz comportamentos
individualistas. A única saída para democracia é se democratizar ainda mais, fazendo
com que todos sejam responsáveis e tenham o máximo de autonomia individual. Ou
seja: a globalização gera o individualismo e a necessidade de aprofundá-lo ainda mais,
através de políticas públicas contra a dependência, seja química, social, familiar,
emocional, econômica ou cultural.
E, em outro oposto, Giddens também acredita que “o mundo precisa de mais
governo”, isto é, que o público governe mais o privado – considera inclusive que isso o
define como sendo ‘de esquerda’. Na verdade, a terceira via leva apenas à exacerbação
dos dois extremos ideológicos clássicos em uma mesma proposta voltada para a
globalização – o hiper-individualismo e o governo social em parceria com o terceiro
setor; e não a superação prática e teórica da polaridade entre as perspectivas da direita
e da esquerda, como promete.
Desta contradição nasce “o paradoxo da democracia”: quanto mais as pessoas
se individualizam, menos participam das decisões coletivas. Giddens prova o paradoxo
estatisticamente e suspeita que a mídia seja parcialmente responsável pelo problema,
uma vez que ela frequentemente desqualifica os políticos e a política parlamentar.
E, assim, algumas perguntas cruciais permanecem sem resposta: Qual papel dos
meios de comunicação no contexto da modernidade e da democracia representativa?
Como é a relação entre a tradição (ou poder simbólico) e a democracia, entendida
como método de decisões negociadas?
5. A democracia mediada.
Quem pretende responder essas perguntas é John B. Thompson (1995, 1998,
2002), que foi aluno de Giddens e tenta aprofundar alguns pontos de suas ideias,
principalmente, sobre a relação cultural entre tradição e modernidade; e sobre o papel
da mídia na democratização social da democracia representativa.
Em Ideologia e Cultura Moderna, Thompson retoma a questão da teoria liberal
sobre a imprensa livre – o “quarto poder”, situando estruturalmente a mídia entre o
Estado e o Mercado e postulando, por um lado, a separação do poder estatal e o
princípio do pluralismo regulado dos meios de comunicação para que eles, e por outro
lado, que eles não atendam aos interesses do mercado (1995: p. 337).
No último capítulo de Mídia e Modernidade (1998), Thompson aprofunda mais
a questão, abordando-a agora de um ponto de vista mais normativo e menos analítico,
com seu aperfeiçoamento da proposta de uma “democracia deliberativa” feita por
Habermas e desenvolvida por Giddens. A proposta de democracia deliberativa
aperfeiçoada por Thompson consiste em uma reforma institucional do atual modelo de
democracia representativa, com o fortalecimento da mídia (e da Sociedade Civil
politicamente organizada) em relação ao mercado e em relação ao Estado.
SOCIEDADE CIVIL / COMUNIDADEMEIOS DE COMUNICAÇÃO
ESTADO / PÚBLICO MERCADO / PRIVADO
Outro aprofundamento do pensamento de Giddens por Thompson é a
persistência discreta da tradição durante a modernidade, contrariando a ideia de que
iluminismo foi uma ruptura radical. Para demonstrar seu ponto de vista, Thompson faz
uma distinção operacional em quatro aspectos da tradição: hermenêutico, normativo
do cotidiano, legitimador do poder e identificador cultural.
No aspecto normativo, a tradição é um sistema de normas que orienta a Ação
Social segundo o passado. De forma que as rotinas reproduzem a memória e a
memória produz as rotinas cotidianas. No aspecto legitimador, a tradição é também
ideologia que autoriza o exercício do poder. Thompson, nesse ponto, segue Weber, que
crê no declínio da legitimidade tradicional e o predomínio da legitimidade legal
(através de leis e regras) e da nova legitimidade carismática (através da personalidade
e do magnetismo pessoal) gerada pela mídia. No aspecto hermenêutico, a tradição é
uma estrutura de interpretação. Assim, pode-se dizer que a ciência é uma tradição de
interpretar os acontecimentos como fatos objetivos. E no aspecto de identificador, a
tradição é ainda um fator de auto formação cultural de identidade coletiva e individual,
do ‘Self’ de um determinado grupo ou população. E a identidade de pertencimento
territorial, profissional e/ou religioso.
Segundo Thompson, a globalização acabou com os aspectos Normativo e
Legitimador das tradições, mas os aspectos Hermenêutico e Identificador Cultural
permanecem vivos na cultura moderna. (THOMPSON: 1998; p. 165) O poder simbólico
tradicional não normatiza mais o cotidiano nem legitima autoridades impostas pela
força, mas continua vivo como sistema de interpretação e formação cultural.
Thompson dá destaque, principalmente, à mudança do aspecto identificador e ao fato
de que a nova experiência do Eu (Self) em um mundo mediado apontar para uma nova
ancoragem das tradições e para a cidadania global. A comunicação mediada
globalizada torna o processo de auto formação dos indivíduos muito mais aberto e
reflexivo que na relação face a face. Por outro lado, ela não somente enriquece e
transforma o processo de formação do Self, mas também troca da experiência vivida
pela experiência mediada, gerando uma situação antes inexistente, um novo tipo de
relação carismática, a “intimidade não recíproca à distância” ou Imagem Pública.
6. Imagens e escândalos
‘Imagem Pública’ (ou imagem de marca) é o conceito utilizado para definir uma
representação social comum aos seus agentes e à sua audiência. Diferencia-se tanto da
‘imagem semiótica’ (uma foto, por exemplo) quanto da ‘imagem cognitiva’ (a
imaginação simbólica), embora guarde uma proximidade estreita com ambas.
A Imagem Pública tem um lado conceitual, proposto pelos agentes; um lado
simbólico em sua recepção; e um lado codificado em uma linguagem. Aliás, ela é
resultante de uma tripla representação: a representação do ator, a representação do
diretor (e da linguagem) e a representação do público.
No livro A mídia e a modernidade – uma teoria social da mídia (1998), John
Thompson para definir Imagem Pública ou ‘intimidade à distância não recíproca’ dá um
exemplo curioso: uma senhora que tem fantasias sexuais com um astro do cinema
enquanto faz amor com seu marido. Ela se sente culpada, mas depois, entra um fã
clube, onde encontra mulheres com imaginações semelhantes. Para o autor, trata-se
de uma curiosidade (se apaixonar unilateralmente por um desconhecido), mas, para
nós, o curioso é que esse tipo de relação imaginária (hoje em dia muito comum, para
não dizer ‘normal’) não existia há cento e cinquenta anos. Há cento e cinquenta anos
também era bastante raro que individuo conhecesse cerca de cem pessoas. As pessoas
viviam suas vidas isoladas, conhecendo outras pessoas apenas presencialmente.
Em outro livro, O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia (2002),
Thompson advoga a tese de que as Imagens Públicas transitam sempre entre o público
e o privado. Apesar de classificar os tipos de escândalos pela transgressão-gatilho (de
abuso de poder, sexuais, financeiros), Thompson chama a atenção para o fato de que o
que realmente alimenta em longo prazo o escândalo midiático não é a gravidade da
transgressão principal que o gerou, mas sim “transgressões de segunda ordem”:
mentiras, desmentidos, ocultamentos. O que fomenta os escândalos durante mais
tempo é a tentativa dos agentes de manter invisível algo que se tornou público.
O escândalo é esse ‘desmascaramento’ dos agentes e de sua confiabilidade.
Enquanto se diz algo publicamente; dos fundos de sua vida privada emergem fatos,
pessoas, situações, que contradizem o que está sendo dito. A verdade aparece nas
costas dos agentes, desmentindo-os por de trás, no fundo que os enquadra. O efeito
das transgressões secundárias – as discrepâncias entre significado e significante da
imagem – tanto pode reforçar (por complementariedade entre figura e fundo) ou
destruir (por contradição entre o dito e o visto).
Nesse contexto, os escândalos têm se tornado um elemento central na forma
de se fazer política nas democracias modernas. É claro que sempre existiram
escândalos; mas, na contemporaneidade, eles se tornaram constantes e até mesmo
periódicos e obrigatórios. Mais do que eventos esporádicos e excepcionais, os
escândalos se tornaram uma constante da prática política em muitos países
democráticos em que a mídia goza de liberdade investigativa, a ponto de vários autores
falarem da “cultura do escândalo” ou da “política de escândalos” permanentes. 3
O surgimento das imagens públicas passou a ter mais relevância do ponto de
vista artístico, desportivo e político do que do ponto de vista religioso, embora o
comportamento do fã da cultura de massas seja essencialmente o mesmo do fanático
religioso em um ambiente mediado.
Uma das características marcantes do regime de visibilidade da mídia é a
necessidade constante de produção de conteúdo. ‘Ficar e se manter em evidência’. E os
escândalos além de desmascarar a imagem dos poderosos, também criam e ampliam
Imagens Públicas. Modelos e atrizes que tem fotos comprometedoras roubadas por
hackers, bandidos que conquistam celebridade pelos seus crimes, atletas desleais,
injustiças, etc. Por mais tristes, desagradáveis ou cruéis sejam os acontecimentos, eles
celebram seus personagens; por mais reprováveis sejam as ações e que desabonem
política e moralmente seus agentes, elas ainda assim os popularizam. 4
Gomes (2006) estudou a Imagem Pública de Luís Inácio Lula da Silva nas
eleições de 1989, 2004, 2008 e 2002. O trabalho ressalta que as três primeiras
derrotas foram fundamentais para o candidato alcançar visibilidade nacional e,
modificando sua Imagem através de técnicas de marketing, ganhar a quarta eleição. 5
7. Metodologia tríplice
Thompson, no entanto, não considera a experiência mediada como sendo uma
interação (pois não tem reciprocidade) e estuda a Imagem Pública apenas na ótica da
3 SILVA (2013) apresenta um panorama da pesquisa sobre escândalo político no Brasil e no exteriorentre os anos de 1998 e 2008. No levantamento junto a bases internacionais, revistas e congressosnacionais de área, a pesquisadora identifica o crescente interesse que o tema desperta entrepesquisadores, especialmente da área da comunicação.
4 A Imagem Pública pode inclusive ser reforçada pela sua própria sombra. Os ‘defeitos’, erros ouquaisquer pontos negativos de alguém podem ser interpretados de modo favorável, dando ainda maisconfiabilidade ao agente da Imagem Pública. Assim, o ‘despreparado’ se torna ‘humilde em suaignorância’; o ‘arrogante’ vira ‘verdadeiro’; e o ‘autoritário’ é vendido como alguém que chama para sitoda responsabilidade, solitariamente, ‘isolado e incompreendido’.
5 Aliás, a Imagem Pública de Lula mereceria um estudo aparte no que diz respeito à habilidade doagente, tanto em reverter propaganda negativa dos inimigos eleitorais, quanto a se manter ‘blindada’em função dos escândalos, como o do ‘mensalão’, durante seus dois mandatos. Talvez porque a ImagemPública da Lula, vista como uma mediação de intimidade não recíproca à distância, seja um pouco maisíntima e um pouco menos não recíproca do que a maioria, dialogando publicamente com seus aspectosnegativos, falando com diferentes públicos segundo seus modos particulares.
comunicação de massas. Para isso, ele prescreve uma metodologia hermenêutica não
como uma alternativa aos outros métodos de análise já existentes, mas sim como um
referencial metodológico geral, dentro do qual alguns desses métodos e técnicas
específicas podem ser correlacionados entre si.
Emissor Mensagem Receptor
OBJETOAnálise sócio-histórica da produção e transmissão
Análise Formal ou DiscursivaAnálise sócio-histórica da apropriação
METODOS
Situações espaço-temporais
Campos de interação
Instituições Sociais
Estrutura Social
Meios técnicos de transmissão
Análise semiótica
Análise de conversação
Análise sintática
Análise narrativa
Análise argumentativa
Interpretação das Mensagens
Mapa das diferentes interpretações
Re-interpretação da interpretação
RESULTADO Síntese Hermenêutica
Por entender que os processos de compreensão e de interpretação devem ser
vistos não como uma dimensão metodológica que exclua radicalmente uma análise
formal ou objetiva, mas antes como uma dimensão que está no início e no final do
conhecimento ao mesmo tempo, Thompson: a) parte da compreensão imediata que se
tem de uma determinada forma simbólica na vida cotidiana, b) analisa objetivamente
esta interpretação preliminar (consorciando vários métodos), e c) reinterpreta o
significado da forma simbólica. A esta metodologia geral de interpretação dos discursos
dos meios de comunicação, chama-se “enfoque tríplice”. (THOMPSON, 1995: 355)
Inicialmente (1995, 366), o objetivo da análise sócio histórica é reconstruir as
condições sociais e históricas de produção, circulação e difusão das formas simbólicas.
As maneiras como essas condições influenciam podem variar de acordo com a situação
e o objeto pesquisado. Thompson propõe alguns níveis de análise: as situações de
tempo/espaço em que as formas simbólicas são produzidas; os campos de interação
(face a face, interação mediada); as instituições sociais; a estrutura social (as classes
sociais, as relações entre gêneros e outros fatores sociais permanentes) e os meios
técnicos de transmissão de mensagens (a fixação material e a reprodução técnica dos
sinais). Em um segundo momento (1995: 369), toma-se a forma simbólica como um
texto, isto é, uma estrutura narrativa relativamente autônoma de sua produção e de
seu consumo. Neste sentido, a análise simbólica implica em uma abstração
metodológica das condições sociais e históricas de produção e recepção das formas
simbólicas. Thompson adota vários métodos de análise discursiva: semiótica, sintática,
narrativa, argumentativa, etc.
Finalmente (1995: 375), na última fase de sua hermenêutica, Thompson leva
em conta a interpretação criativa do significado das formas simbólicas em diferentes
contextos de recepção, inclusive no próprio contexto do analista/enunciador da
interpretação. A análise dos diferentes contextos de recepção demonstra que por mais
rigorosos que sejam os métodos e técnicas, eles não podem abolir a liberdade de
interpretação dos públicos e das situações em que se encontram inseridos.
Aliás, temos, dentro da proposta do enfoque tríplice, uma síntese entre três
tipos de estudos distintos da área de comunicação:
a) A sociologia dos meios de comunicação (os estudos centrados no contexto detransmissão – seja na versão crítica que denuncia a indústria cultural ou nafuncionalista que enaltece a comunicação de massa);
b) a semiótica (e os vários tipos de estudos em torno da linguagem verbal e visual,retórica, filosofia analítica, analise discursiva e a própria hermenêutica);
c) e, finalmente, os diferentes tipos de estudos de recepção (pesquisas de opiniãoquantitativas e qualitativas, pesquisas de agendamento e de análise bibliográficaespecializada).
Thompson considera que em estudos midiáticos, ao contrário da hermenêutica
literária tradicional, a “autonomia semântica das mensagens” é secundária diante dos
contextos históricos de transmissão e recepção. E com essa ênfase sociológica nos
contextos históricos dos interlocutores, Thompson não está apenas ampliando o
alcance discursivo da hermenêutica, mas também adaptando a teoria da interpretação
para a comunicação de massas.
Com as redes sociais e digitais, no entanto, deixou-se de ter um único contexto
de transmissão e vários contextos de recepção para se tornar um conjunto de múltiplos
contextos mistos de transmissão/recepção dentro de um único contexto virtual em
regime de simultaneidade de tempo.
Hoje, estamos vivendo a desfragmentação da cultura de massas, promovida
pela segmentação e pela interatividade das Redes Digitais, e as questões em torno da
noção de Imagem Pública se tornaram ainda mais complexas, se multiplicando e
dividindo de diferentes modos, democratizando e pulverizando a visibilidade em
universos culturais variados e simultâneos.
Com a segmentação, houve uma pulverização dos fluxos sociais e o surgimento
de ‘micro imagens públicas’: celebridades setoriais, tribais, transnacionais e até
celebridades locais virtuais. Houve uma democratização relativa da visibilidade. A
Imagem Pública pessoal das redes pode ser vista como uma miniatura da Imagem
Pública de massas. Há inclusive vários tipos de sobreposição entre as duas: escândalos
das grandes Imagens Públicas através das redes digitais, celebridades virtuais que
chegam à grande mídia, etc.
Com a interatividade, a intimidade à distância deixou de ser ‘não-reciproca’,
aumentou o retorno da audiência na construção da Imagem Pública e no
comportamento dos agentes. A visibilidade tornou-se uma relação pessoal de micro
poder. Em tempos de hipervisibilidade das redes, todos tem uma Imagem Pública, quer
queiram ou não, para zelar como patrimônio pessoal.
A popularidade, o carisma e o personalismo sempre existiram; porém no regime
de hipervisibilidade promovido pelas mídias esses elementos assumem um caráter
decisivo na vida social. A noção de Imagem Pública reúne, sintetiza e globaliza várias
categorias analógicas (reputação, prestigio, honra, status quo, etc.) que antes existiam
de forma fragmentada em diferentes graus, variando segundo a cultura de cada
sociedade. E com as redes digitais, essas imagens técnicas pessoais se miniaturizaram e
se multiplicaram em escala infinitesimal.
8. Inteligência coletiva
Para executar uma sinfonia musical com precisão e sensibilidade, uma
orquestra precisa que seus integrantes desenvolvam certas habilidades psicológicas e
competências subjetivas (além da excelência das qualidades técnicas e artísticas), tais
como: afinidade emocional, capacidade de sincronia intuitiva, criatividade coletiva,
improviso em conjunto, tolerância com erros secundários e gentileza nas correções
necessárias. Essas mesmas habilidades também são necessárias para a produção
colaborativa em rede de, por exemplo, narrativas audiovisuais, que envolvem vários
tipos de artistas e técnicos. Atualmente, cada vez mais ‘grupos’ estão se tornando
‘equipes’ nas mais diversas atividades profissionais, principalmente na área da
educação. A diferença entre o ‘grupo’ e a ‘equipe’ é que a última ultrapassa a soma das
habilidades de seus integrantes através da inteligência coletiva, da capacidade de
interagir criativamente em conjunto. Imagine várias equipes espalhadas no espaço que
passam a se coordenar umas em relação às outras de forma descentralizada, sincrônica
e horizontal – sem uma hierarquia vertical que as centralize. Cada equipe local seria,
então, um integrante de uma equipe nacional ou internacional. O resultado desta
interação participativa entre cada um e o conjunto é a ‘Inteligência Coletiva’.
Para Pierre Levy (2007), principal elaborador do conceito, a inteligência coletiva
é um conceito que descreve um tipo de inteligência compartilhada que surge da
colaboração de muitos indivíduos em suas diversidades. É uma inteligência distribuída
por toda parte. A internet é uma forma de inteligência coletiva, resultante de um
processo social de inteligência coletiva, que, por sua vez, abriga vários outros projetos
de inteligência coletiva dentro de si (como o movimento de softwares livres). Na
verdade, a internet não é a ‘causa’ das mudanças sociais de comportamento, ela é o
produto e a ferramenta da inteligência coletiva para sua ampliação exponencial e a
configuração de uma inteligência global.
Segundo Levy, a oralidade anterior à escrita é baseada no modelo de interação
presencial 'um-um'; a comunicação através da escrita e dos meios de comunicação de
massa corresponde à interação 'um-muitos' (um contexto de emissão e vários
recepção); e a inteligência coletiva é resultante de uma novo modelo de interação
social: a relação 'muitos-muitos'. Levy acredita que a internet e as novas formas de
interatividade nos levarão de volta à democracia participativa e ao voto direto: a
tecnodemocracia ou ecologia cognitiva. Segundo Levy, ecologia e solidariedade passam
mais por um redimensionamento das desigualdades cognitivas que de uma
redistribuição material das riquezas ou de uma reorganização política das relações de
força.
A principal diferença entre as propostas de Thompson e Levy é a questão da
legitimidade dos mecanismos de representação do poder na cultura atual. Thompson
acredita na racionalização dos interesses sociais através de uma mídia democrática;
Levy deseja, a partir do controle social através da informação, reorganizar as relações
sociais em uma nova organização do tempo social e um novo regime visual de
simultaneidade: a inteligência coletiva.
Para Thompson, no entanto, a comunicação mediada é uma 'quase-interação'.
Ele não desconhece a ideia de que a Internet permite uma interação múltipla face-a-
face, mas não vê este modelo como um paradigma cultural estruturante das relações
sociais nas sociedades em rede e considera o retorno à democracia direta participativa
uma ilusão 'plesbicitária' e não uma ameaça real à democracia representativa.
SOCIABILIDADE ORGANIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA
Anomia (Caos social) Consciência Coletiva < Consciência Individual
Solidariedade Mecânica Consciência Coletiva > Consciência Individual
Solidariedade Orgânica Consciência Coletiva = Consciência Individual
Inteligência Coletiva Consciência Coletiva + Consciência Individual
Para Durkheim, nas sociedades primitivas a consciência coletiva predominava
sobre a individual e a solidariedade entre seus integrantes é mecânica.
Imagine-se, por exemplo, em um jogo de futebol em que todos os jogadores de
cada time atacam e defendem em bando sem nenhuma preocupação tática com as po-
sições. Há uma completa desorganização, em que cada um tenta sozinho, através de
sua técnica pessoal, ganhar o jogo. Teríamos aqui uma situação de anomia ou caos.
No entanto, se o esquema tático do time tolher as habilidades pessoais, com
cada jogador preso a uma posição e com jogadas sempre previsíveis baseadas no de-
sempenho físico, estaríamos em uma situação de solidariedade mecânica.
Nesta lógica, a solidariedade orgânica será aquela em que as duas formas de
consciência – a individual e a coletiva – se mantiverem equilibradas, ou seja, que cada
jogador dessa partida imaginária tiver uma visão de conjunto e alguma liberdade tática
de movimento. A noção de Inteligência Coletiva representa um nível de organização
mais aperfeiçoado do que a solidariedade orgânica porque ao invés de um equilíbrio
entre formas de consciência concorrentes entre o todo e as partes, ela representa a in-
teração em uma única consciência que, além de ser coletiva e individual simultanea-
mente, é também espontânea e intuitiva.
Em relação ao nosso jogo de futebol, é quando o futebol deixa de ser técnico e
tático, para ser artístico; quando sem nenhum planejamento anterior, armam-se tabe-
las de passes imprevisíveis e as jogadas acontecem como “se fossem por mágica”. E
essa sinergia, descentralizada e sincrônica, é a inteligência coletiva.
Segundo o professor Henry Jenkins (2008), a inteligência coletiva não é mera-
mente uma redistribuição quantitativa das informações de todas as culturas. Ela deve
ser sobretudo qualitativa, no sentido de inventar e formar novas competências para
própria rede. A Internet não é a ‘causa’ das mudanças sociais de comportamento, ela é
o produto e a ferramenta da inteligência coletiva para sua ampliação exponencial e a
configuração de uma inteligência global.
Vários autores utilizam o termo ‘inteligência coletiva’ para designar fenômenos
específicos diferentes6. Outros pensadores generalizam bastante o conceito, retirando-
o do contexto contemporâneo7.
Segundo Jenkins, a Inteligência Coletiva, como advento histórico das sociedades
mediadas, interdepende de dois outros acontecimentos importantes: a cultura partici-
pativa (a segmentação interativa da mídia) e a convergência corporativa e tecnológica
da mídia em escala planetária. A cultura participativa se refere ao fato da audiência mi-
diática ter se tornado integrante ativa do processo comunicacional e a inteligência cole-
tiva à nova sinergia social resultante (a transmediação) da convergência midiática e da
cultura participativa.
Por um lado, com a desmassificação da comunicação, as pessoas querem cada
vez mais interferir, opinar, participar; por outro, há também uma concentração de re-
cursos tecnológicos e financeiros convergindo no sentido de produzir uma sociabilida-
de grupal mais inteligente. Para Jenkins, a inteligência coletiva é definida por esses dois
parâmetros.
6 Tais como a colaboração involuntária através de dados em site LinkedIn, uma rede de integraçãoprofissional que sugere parcerias e negócios; ou o PageRank do Google, um algoritmo que atribuipopularidade a links (endereços eletrônicos) segundo seu acesso diário, citação por outros links e outroscritérios.
7 Howard Bloom (1995), por exemplo, tem discutido a possibilidade de inteligência coletiva do nível dafísica quântica (comportamento coletivo das partículas subatômicas) ao nível da evolução biológica dasespécies (comportamento coletivo das bactérias, plantas, animais e sociedades humanas).
As redes sociais são formadas por unidades autônomas interligadas em arranjos
temporários (unidades globais e locais ao mesmo tempo, dotados de inteligência
coletiva, isto é, da capacidade de agir simultaneamente em conjunto sem hierarquia
vertical). E essa sinergia entre os grupos e pessoas, descentralizada e sincrônica, é a
inteligência coletiva.
9. Movimentos sociais e Redes Digitais
Diferencie-se aqui a noção de ‘Rede Social’, referente à ação comum, sincrônica
e descentralizada de agentes semelhantes não presenciais durante algum tempo (rede
de apoio ao Tibete e ao Dalai Lama – por exemplo); da noção de ‘Redes Digital’, que
correspondem às redes intercomunicação dentro e fora da internet (incluindo os sites
de serviço de compartilhamento de arquivos e mensagens, como o Facebook). As
Redes Sociais, assim, são anteriores, em todos os sentidos, às Redes Digitais.
Muitas vezes, no entanto, essas definições se confundem. Pois, se o
acontecimento é realizado por uma Rede Social, a representação do acontecimento
pela Rede Digital é quem o torna visível; e se foram as necessidades sociais de
comunicação dos grupos que geraram as Redes Digitais, essas estão potencializando a
organização da toda sociedade em Redes Sociais.
Recentemente, o sociólogo Manuel Castells (2013) estudou vários movimentos
sociais organizados através da internet a partir de 2010 (Tunísia, Islândia, a revolução
egípcia, os indignados da Espanha, o Occupy Wall Street em Nova York e os protestos
de junho de 2013 no Brasil) e identificou vários aspectos em comum - o caráter
espontâneo, pluralista, apartidário e heterogêneo das manifestações - formando ‘um
padrão rizomático emergente’, uma ‘cultura da autonomia’. Os movimentos descritos
por Castells foram populares, dirigidos por si mesmos, organizados autonomamente
pela internet por ativistas sem militância, sem direção única ou coordenação
centralizada, sem o controle de organizações políticas ou entidades civis, nem o apoio
dos meios de comunicação tradicionais. Foram movimentos pluralistas e heterogêneos,
com motivações, bandeiras e palavras de ordem as mais variadas e até contraditórias.
O sentido mais geral das manifestações coloca em xeque a própria estrutura do sistema
de representação política. Algumas foram contra o que o parlamento e os partidos
representam, mas sem intenção de substituí-los ou extingui-los.
Castells se tornou internacionalmente conhecido devido sua trilogia A
Sociedade em Rede (1999), em que analisa as mudanças contemporâneas em um tripé:
a nova economia-política (as relações sociais de produção se desindustrializam e
passam a se organizar em redes de unidades autônomas); nova relação de tempo-
espaço em função da linguagem da mídia; e as novas 'relações de experiência' nas
vidas pessoais, no cotidiano.
No primeiro livro da trilogia, Castells faz uma homenagem a McLuhan como
pioneiro no entendimento das mudanças de percepção instituídas pela televisão (e
multiplicadas pelo computador), mas também o relativiza, uma vez que ele leva em
conta apenas um terço dos fatores estruturais que estão modificando a sociedade,
sendo preciso ainda avaliar as transformações existentes no mundo do trabalho e das
relações de gênero.
Quinze anos depois (e não por acaso os quinze anos em que a internet se
desenvolveu e se estabeleceu) pode-se dizer o modelo de organização em rede foi do
mercado corporativo à sociedade civil organizada, chegando agora à esfera pública da
política. Redes de indignação e esperança (2013) é um livro que aponta para falência
da organização política tradicional dos partidos e dos parlamentos atuais.
E, principalmente, esbouça uma nova concepção de liberdade e de igualdade,
própria da democracia inerente a esses novos movimentos sociais em rede.
10.Conclusão
Que lições se pode tirar da leitura desses autores? Será que a sociedade em
rede colocará fim à democracia mediada? Ou a tornará mais interativa? E o mais
importante: o que aprendemos com a democracia das Redes Sociais?
Somos iguais por dentro e diferentes por fora? Os homens são objetivamente
diferentes uns dos outros, mas todos são subjetivamente semelhantes. Ou seria o
contrário: os homens são iguais (ou biologicamente equivalentes) enquanto seres e
variados do ponto de vista psicológico. Não importa. Em ambos os casos, somos todos
especiais. Não apenas iguais ou diferentes. Somos semelhantes e diferenciados - tanto
cultural como geneticamente.
E uma segunda conclusão derivada desta primeira é que precisamos criar um
mínimo de regras que garantam liberdade e igualdade, a todos e a cada um, segundo
seu esforço e capacidade, tanto do ponto de vista quantitativo como no aspecto
qualitativo. Não basta que se garantam direitos “iguais” a todos, é preciso também
tratar todos como “pessoas especiais”. O ‘Paradoxo da Democracia’ de Giddens
(segundo o qual quanto mais se individualizam, menos as pessoas participam); exclui a
solidariedade fraterna e a cooperação livre entre iguais como fundamento da
sociabilidade. Pois é não é apenas na diversidade e na autonomia das relações entre os
grupos sociais e os indivíduos que repousa hoje a possibilidade de uma democracia
cada vez mais múltipla, complexa e produtora de singularidades. É, sobretudo, na
compreensão e na reciprocidade que podemos construir a nova sociabilidade
democrática das redes.
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. O futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000._____ Direita e Esquerda. São Paulo: UNESP, 2001. CASTELLS, Manuel. A Era da Informação - Economia, Sociedade e Cultura, três volumes: A Sociedade em Rede; O Poder da Identidade; O Fim de Milênio. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ________Redes de indignação e esperança – Movimentos sociais na era da internet. Tradução Carlos Alberto Medeiros. São Paulo: Zahar, 2013.GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. 1ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 1991._____ Para Além da Esquerda e da Direita. São Paulo: UNESP, 1996._____ A terceira via. Rio de Janeiro: Record, 2001a._____ A terceira via e seus críticos. Rio de Janeiro: Record, 2001b._____ O Mundo em descontrole – o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2003. GOMES, Marcelo Bolshaw. Decifra-me ou te devorarei – A imagem pública de Lula no horário eleitoral em 1989, 1994, 1998 e 2002. Tese de doutorado em Ciências Sociais (2006). Natal, EDFURN: 2006.JENKINS, Henry. A cultura da convergência. Tradução Suzana Alexandria. São Paulo, Aleph: 2009.LEVY, P. Tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993._______ A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola 2007. SILVEIRA, Flavio E. A Decisão do Voto no Brasil. 1998 (Tese de doutorado em Ciência Política). UFRGS, Porto Alegre. THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna – teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. ______ A mídia e a modernidade – uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998. _______ O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Trad. de Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2002.WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2004._______ Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo: Cortez/Unicamp, 1992.