Apologia de Sócrates

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Apologia de Sócrates Com efeito, a APOLOGIA, ou DEFESA, consiste no discurso de Sócrates perante o júri ateniense que o condenou. Acusado de desrespeitar as leis da cidade e os deuses tradicionais e de corromper a juventude ateniense, Sócrates é levado a julgamento. Recusa-se a apresentar uma defesa tradicional, o que poderia, dada a sua habilidade, tê-lo livrado da condenação, mas defende a sua liberdade de pensamento e o caráter crítico da filosofia em um verdadeiro desafio ao júri, que acaba por considerá-lo culpado. No final Sócrates salienta: “a vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. 1) O papel do filósofo. A busca racional da verdade, da qual é possível se aproximar, sem talvez nunca alcançá-la, é o papel do filósofo. A defesa de Sócrates é uma prova de que não se deve professar um entendimento racional e não segui-lo. Sócrates demonstrou isso ao aceitar até as últimas conseqüências o julgamento que lhe foi imposto. Para Sócrates, o filósofo é o sábio que busca a verdade, que foge da ignorância e que se faz disponível para auxiliar no parto de idéias (maiêutica) daqueles que buscam, como ele, a razão das coisas, por meio da reflexão . É o que demonstra neste trecho de sua defesa: “Ninguém sabe, na verdade, se por acaso a morte não é o maior de todos os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como se soubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber aquilo que não 1

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Apologia de Sócrates

Com efeito, a APOLOGIA, ou DEFESA, consiste no discurso de Sócrates perante o júri ateniense que o condenou. Acusado de desrespeitar as leis da cidade e os deuses tradicionais e de corromper a juventude ateniense, Sócrates é levado a julgamento. Recusa-se a apresentar uma defesa tradicional, o que poderia, dada a sua habilidade, tê-lo livrado da condenação, mas defende a sua liberdade de pensamento e o caráter crítico da filosofia em um verdadeiro desafio ao júri, que acaba por considerá-lo culpado.

No final Sócrates salienta: “a vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”.

1) O papel do filósofo.

A busca racional da verdade, da qual é possível se aproximar, sem talvez nunca alcançá-la, é o papel do filósofo. A defesa de Sócrates é uma prova de que não se deve professar um entendimento racional e não segui-lo. Sócrates demonstrou isso ao aceitar até as últimas conseqüências o julgamento que lhe foi imposto.

Para Sócrates, o filósofo é o sábio que busca a verdade, que foge da ignorância e que se faz disponível para auxiliar no parto de idéias (maiêutica) daqueles que buscam, como ele, a razão das coisas, por meio da reflexão.

É o que demonstra neste trecho de sua defesa:

“Ninguém sabe, na verdade, se por acaso a morte não é o maior de todos os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como se soubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber aquilo que não se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos, talvez nisso seja diferente da maior parte dos homens, eu diria isto: não sabendo bastante das coisas do Hades, delas não fugirei. Mas fazer injustiça, desobedecer a quem é melhor e sabe mais do que nós, seja deus, seja homem. isso é que é mal e vergonha. Não temerei nem fugirei das coisas que não sei se, por acaso, são boas ou más.”

2) Como podemos entender a máxima socrática: “a vida sem reflexão não vale a pena ser vivida.

Quando se defende das acusações, Sócrates nos brinda com uma descrição da sua práxis. O indivíduo deve se perguntar, de forma permanente, sobre a origem das suas crenças, das suas certezas e da sua conduta, de forma a evitar viver longe da razão, distante da verdade.

O sábio vive de forma plena porque tenta, através da reflexão, se libertar do engano, das aparências e do mau juízo. A falta de uma reflexão profunda leva ao

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dogma que poderíamos chamar de “apenas aprendido”, como se o entendimento daquilo que é o mundo fosse algo pronto e acabado. O diálogo consigo mesmo leva o indivíduo a elaborar perguntas, cujas respostas, quando analisadas com honestidade, levam a novas perguntas.

Entendemos que a máxima quer dizer que esse processo é como uma espiral ascendente, onde a partir da consciência de que eu pouco sei, que nasce e opera em mim a partir da reflexão, em qualquer ponto da espiral, eu ascendo através da dúvida, da resposta a esta dúvida, e depois da nova dúvida que surge exigindo outra resposta.

3) Como Sócrates responde às acusações que lhe são feitas.

Sócrates se defende de duas acusações, e para melhor se defender divide em duas partes sua defesa.

Primeira acusação: Sócrates comete crime e perde a sua obra, investigando as coisas terrenas e as celestes, e tornando mais forte a razão mais débil, e ensinando isso aos outros.

Defesa: O Filósofo inicia sua defesa sem atacar a questão de imediato, mas dá a impressão de desejar afastar de pronto qualquer semelhança entre ele e os Sofistas quando afirma no início da sua defesa: “(...) e, se tendes ouvido de alguém que instruo e ganho dinheiro com isso, não é verdade.”

Sócrates localiza os seus problemas a partir da afirmação da pitonisa do oráculo de Delfos de que ninguém era mais sábio que ele. Após tal afirmação, amargurado, ele procura homens tidos como sábios e que como sábios também se viam, em toda a polis. Não vê verdadeira sabedoria neles, pois como diz dos poetas:

“( ...) acreditavam-se homens sapientíssimos ainda em outras coisas, nas quais não eram.”

Segundo ele, sua busca, indo a todos aqueles que diziam saber qualquer coisa, o levou a concluir, em suas palavras, que os mais estimados eram quase privados do melhor, e que, ao contrário, os outros, reputados ineptos, eram homens mais capazes, quanto à sabedoria. Seus acusadores, sendo ambiciosos e resolutos e em grande número, e por desejarem dizer a verdade, isto é, por que descobriram a presunção de seu saber, quando não sabem nada encheram os ouvidos dos Atenienses caluniando-o de forma persistente.

Segunda acusação: Sócrates comete crime corrompendo os jovens e não considerando como deuses os deuses que a cidade considera, porém outras divindades novas.

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Defesa: Os jovens não eram por ele corrompidos, o fato é que muitos o imitavam angariando com isso um ódio gratuito a pessoa do filósofo:

“Além disso, os jovens ociosos, os filhos dos ricos, seguindo-me espontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os homens, e muitas vezes me imitam, por sua própria conta, e empreendem examinar os outros; e então, encontram grande quantidade daqueles que acreditam saber alguma coisa, mas, pouco ou nada sabem. Daí, aqueles que são examinados por eles encolerizam-se comigo assim como com eles, e dizem que há um tal Sócrates, perfidíssimo, que corrompe os jovens. E quando alguém os pergunta o que é que ele faz e ensina, não tem nada o que dizer, pois ignoram.”

Não existia também a descrença nos Deuses, nem a introdução de novos. Sócrates, nesse assunto demonstra a fragilidade da acusação ao induzir seu inimigo à contradição, apelando para o seu peculiar método de argumentação:

“Se, pois, creio na existência dos demônios, como dizes, se os demônios são uma espécie de deuses, isso seria propor que não acredito nos deuses, e depois, que, ao contrário, creio nos deuses, porque ao menos creio na existência dos demônios.”

4) Por que, segundo Sócrates, é importante ouvir as leis de Atenas.

Vemos a importância das leis nesta afirmação de Sócrates:

“Que o juiz não ceda já por isso, não dispense sentença a favor, mas a pronuncie retamente e jure condescender com quem lhe agrada, mas proceder segundo as leis. Por isso, nem nós devemos habituar-vos a proceder contra o vosso juramento, nem vós deveis permitir que nos habituemos a fazê-lo.”

Para ele, as leis eram o espírito da polis, o mapa de seus tesouros: sua organização e a atribuição da cidadania a cada um dos seus através da democracia direta. A polis era produto da razão. Renunciar às leis da polis era renunciar a razão.

5) Qual é o argumento de Sócrates com relação a sua condenação.

Sócrates não se assusta com a condenação, e fica claro para ele que sua condenação não significou “proceder conforme as Leis”:

“A minha impassibilidade, cidadãos atenienses. diante da minha condenação, entre muitas razões, deriva também desta: eu contava com isto, e até, antes me espanto do número dos dois partidos. Por mim, não acreditava que a diferença fosse assim de tão poucos, mas de muitos, pois, se somente trinta fossem da outra parte, eu estaria salvo.”

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E fiel a sua consciência, não a ofende apelando por clemência ou mitigando a condenação. Enfrenta a situação com argumentos claros e muito fortes. Ele decidiu ser o que era, e foi “Sócrates” em todos os momentos do julgamento:

“(...) e Estando, pois, convencido de não ter feito injustiça a ninguém, estou bem longe de fazê-la, a mim mesmo e dizer em meu dano, que mereço um mal, e me assinalar um de tal sorte.”

Ele acusa, embora de forma indireta, a assembléia de assassinato, ao dizer:

“Por não terdes querido esperar um pouco mais de tempo, atenienses, ireis obter, da parte dos que desejam lançar o opróbrio sobre a nossa cidade, a fama e a acusação de haverdes sido os assassinos de um sábio, de Sócrates.”

Sócrates lembra que não caiu por falta de raciocínios, mas de audácia e imprudência, e por não dizer às coisas que a audiência deseja ouvir, e mantêm-se firme, sem arrependimentos, preferindo morrer a negar a verdade.

6) A defesa de Sócrates é pertinente e coerente?

A defesa de Sócrates é coerente com a forma de viver que escolheu em caráter definitivo, ou seja, de que não aceita privar-se. Sócrates acha que cabe ao homem viver de acordo com os seus valores, manifestar em suas atitudes aquilo de que fala e apresentar o que acredita àqueles que estiverem desejosos desse saber. Como não aceita viver a sua vida de outra forma ou em outro lugar, senão aquele de que é cidadão – Atenas – e por considerar-se, como sábio, ignorante quanto ao destino dos que morrem, percebendo que não há o que temer, pois não se sabe se o bem ou mal sobrevirá á morte, Sócrates demonstra em sua defesa a conduta com que viveu. O que fica registrado quando diz: “(...) estamos raciocinando juntos (...)” (XXV), pois não parece ser outro o intento de seu método, a maiêutica, senão este de seguir e reorientar o raciocínio de seu interlocutor – raciocinando juntos.

Pertinente? – Para seus discípulos, talvez; para demonstrar a coerência de seus ideais, com certeza. Mas não para de fato apresentar como defesa, no sentido estrito desta palavra. Pois não há o que se falar de possível repercussão das razões apresentadas por Sócrates no raciocínio dos que o acusaram. Se fossem estes sensíveis àquela razão de Sócrates, coerente, como dissemos, à vida que se pretendia suprimir da sociedade ateniense, não teria havido sequer a acusação pela qual estava sendo julgado.

7) A verdadeira acusação que se faz contra Sócrates.

No dizer de Sócrates: seu amigo Xenofonte perguntou ao oráculo se havia alguém mais sábio do que Sócrates, tendo recebido a resposta de que não havia ninguém mais sábio. Buscando refutar essa informação, da qual afirmava discordar, Sócrates intentou demonstrar que havia cidadão mais sábio e

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procurou este que inicialmente considerou digno de receber tal posição. No entanto, logo percebeu que apesar de parecer sábio aos outros e a si mesmo, este cidadão não era sábio. Sócrates, então, intentou demonstrar isso ao que se julgava sábio, conquistando deste o sentimento de ódio.

Dessa forma, Sócrates percebeu, ao menos nisso, ser mais sábio do que este e do que tantos outros que, de igual forma, procurou, com o mesmo intento. Colhia sempre o sentimento de ódio. Ao estender sua investigação para os demais cidadãos, além dos políticos, Sócrates não logrou êxito em tentar demonstrar ser outro alguém mais sábio do que ele, mas conquistou inimigos e disso derivou tantas calúnias, além de lhe ser atribuída a qualidade de sábio.

Sócrates defendeu a hipótese de ter o deus afirmado ser o entendimento manifesto por ele, o que de fato recebia a posição de sapiência: o reconhecimento do homem de que não há mérito na sabedoria.

Seus discípulos o seguiam espontaneamente e o imitavam questionando a sapiência de mais e mais pessoas. Eles recebiam destas pessoas o ódio que se estendia à Sócrates. Daí o entendimento de que Sócrates corrompia os jovens.

Não tendo, os que o odiavam, o que dizer sobre Sócrates, diziam o que se diz de todos os filósofos: “que ensina as coisas celestes e terrenas, a não acreditar nos deuses, e a tornar mais forte a razão mais débil”. Do que se extraíram as acusações que, ao final, o condenaram.

Para Meleto, um dos acusadores: Sócrates comete crime corrompendo os jovens e não considerando como deuses os deuses que a cidade considera, porém outras divindades novas.

8) Os elementos políticos a ser extraídos do texto.

Em nossa opinião, diante do exemplo de respeito às leis da polis e a crença na retidão de caráter dado por Sócrates, fica patente o valor da Democracia Grega como espaço de decisões acerca da administração do estado e da vida pública. Em primeiro lugar porque o juiz não era singular e a defesa podia estar a cargo do mais interessado, o próprio réu. Em segundo lugar porque uma condenação ou absolvição era objeto de um escrutínio público, cabendo a cada um o alívio ou a culpa pelo veredicto, porém cabendo sempre a polis a responsabilidade última pela execução da pena. Porém, fica claro também que a Democracia pode ser vítima da retórica e do poder daqueles que conseguem, por meio do uso do prestígio ou do uso da fortuna, mobilizar a massa e fazer condenar ou absolver com base em argumentos frágeis ou falaciosos.

César Augusto Soares dos Santos

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