Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Apontamentos de

Filosofia Antiga I

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As Origens da Filosofia

Do Mito á Filosofia

a) Conceito do mito

No limiar da Filosofia grega há algo em si de não-filosófico, o mito. É a

fé da comunidade nas grandes questões do mundo e da vida, dos

deuses e homens, que dá ao povo a matéria do seu pensamento e do seu agir. Recebem-na da tradição popular, irreflectida, crente e

cegamente. Consoante o nota Aristóteles, o amigo do mito é, apesar

disso e a certa luz, também filósofo; por isso que, no mito, preocupa-se ele com problemas que vão ser, por sua vez, objecto da Filosofia. Donde

vem o mencionar Aristóteles, de bom grado, quando refere os

pressupostos de uma questão filosófica e a busca da sua solução, também as opiniões dos "primitivos", que foram os primeiros a

"teologizar" (οι πρωτοι νεολογηαντεζ).

b) Mitologia de Homero e de Hesíodo

Vêm aqui logo à tona Homero e Hesíodo, com os seus ensinamentos sobre a origem dos deuses (teogonias) e a produção do mundo

(cosmogonias). Assim, conforme a mitologia de Homero, devemos

procurar a causa primeira de todo devir nas divindades do mar, Oceano e Tetis, e também na água, pela qual os deuses costumam jurar, e que

o poeta denomina Estígío. Em Hesíodo aparecem o Caos, o Éter e o Eros

como os princípios primeiros de tudo. Mas, ainda outros problemas são

abordados: a transitoriedade da vida, a origem do mal, a questão da responsabilidade e da culpa, do destino e da‘ necessidade, da vida e da

morte, e semelhantes. Sempre se manifesta aí um pensamento total e

completamente imaginoso, visionado pelos claros olhos do poeta, em caso particular e concreto, intuitivamente, para depois universalizar a

intuição, e transportá-la para a vida e o mundo em geral, explicando

assim a totalidade do ser e do devir.

c) Orfismo

O Orfismo era uma religião de mistérios no antigo mundo grego, difundido a partir dos

séculos VII e VI a.C. Seu fundador teria sido o poeta Orfeu, que desceu ao Hades e

retornou. Os órficos também reverenciam Perséfone (que descia ao Hades a cada

inverno e voltava a cada primavera) e Dionísio ou Baco (que também desceu e voltou

do Hades). Como os mistérios de Elêusis, os mistérios órficos prometiam vantagens no

além-vida. Esses cultos de mistérios, que prometiam uma vida melhor após a morte,

parecem ter influenciado o início do cristianismo.

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Peculiaridades

O Orfismo diferia da religião grega popular das seguintes maneiras:

Caracterizava as almas humanas como divinas e imortais, mas condenadas a viver (por um período) em um círculo penoso de

sucessivas encarnações através da metempsicose ou

transmigração de almas; Prescrevia uma forma ascética de vida, ou vida órfica, a qual,

junto com ritos iniciáticos secretos, deveria garantir não apenas o

desprendimento do tal círculo penoso mas também uma

comunhão com deus(es); Advertia sobre uma punição pós-morte por certas transgressões

cometidas durante a vida;

Era fundamentada sobre escritos sagrados com relação à origem

dos deuses e seres humanos.

Evidências

As visões e práticas órficas foram testemunhadas por Heródoto,

Eurípides e Platão. A maioria das fontes de ensinamentos e práticas órficas é atrasada e ambígua, e alguns estudiosos

afirmam que o Orfismo tenha sido na verdade uma construção de

uma data mais recente do que se acredita. Porém, os papiros Derveni, descobertos há poucos anos, permitem datar a mitologia

órfica em quatro séculos AEC ou até uma data mais antiga que

essa. Outras inscrições encontradas testificam a antiga existência

de um movimento com as mesmas crenças centrais que foi mais

tarde associado com o nome do Orfismo.

Mitologia

As teogonias órficas são trabalhos genealógicos como a Teogonia

de Hesíodo, mas os detalhes são diferentes. O relato principal é: Dionísio (na sua encarnação de Zagreus) é o filho de Zeus e

Perséfone; ele foi assassinado e fervido pelos Titãs. Zeus lançou

um raio nestes e Hermes salvou o coração de Zagreu. As cinzas

resultantes geraram a humanidade pecaminosa, composta dos corpos dos Titãs e de Dionísio. A alma do homem (factor

dionisíaco) é portanto divina, enquanto o corpo (factor titânico)

aprisiona a alma. Declarava-se que a alma retornaria repetidamente à vida, atada à roda do renascimento. O coração

de Dionísio é implantado na coxa de Zeus, e este então engravida

a mortal Semele com o renascido Dionísio. A Teogonia

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Protogonos, perdida, composta cerca de 500 AEC, só é conhecida

através de comentários encontrados em papiros e de referências

nos autores clássicos, como Empédocles e Píndaro. A "Teogonia Eudemiana ", também perdida, foi composta no século V AEC, e

teria sido o produto de um culto sincrético Baco-Curético. A

Teogonia Rapsódica, também perdida, composta na idade helenística, incorporava os trabalhos anteriores, e ficou conhecida

através de sumários nos escritos de autores neo-platonistas. Já

os Hinos Órficos, 87 poemas hexamétricos de extensão mais

curta, foram compostos no final da era helenística ou início da

era imperial romana.

Mito de Orfeu

Orfeu, o mais conhecido dos músicos lendários da Grécia Antiga, é

objecto de grande número de mitos um tanto divergentes. Filho da musa Calíope e de Eagros, rei da Trácia, vivia perto do Monte Olimpo,

na Tessália, e aprendeu a arte com o próprio Apolo.

Tornou-se um cantor maravilhoso e tocava divinamente a lira e a cítara,

instrumento este cuja invenção lhe é atribuída. Ao ouvi-lo cantar as

feras o seguiam, as árvores se inclinavam em sua direcção e até os

homens mais irascíveis se acalmavam.

Orfeu participou da famosa expedição dos Argonautas. Durante a

viagem, apaziguava as ondas com sua música e, com ela, conseguiu até

anular o efeito do hipnótico canto das sereias e salvar o navio.

A mais famosa lenda de que participa é a da descida ao Hades à procura de sua esposa Eurídice, que havia morrido acidentalmente,

picada por uma serpente. Com sua arte, Orfeu encantou monstros, as

sombras dos mortos, o barqueiro Caronte e até os deuses infernais, Hades e Perséfone. Eles aceitaram devolver Eurídice aos vivos desde que

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o poeta deixasse o Hades, seguido por ela, sem olhar para trás uma

única vez. Atormentado pela dúvida, porém, Orfeu não resistiu e pouco

antes de sair olhou para trás. Eurídice teve que retornar e o desolado

músico, por sua vez, voltou ao mundo dos vivos.

Algum tempo depois, por razões mal esclarecidas pelas diversas lendas,

morreu esquartejado por um grupo de mulheres enfurecidas, as

mênades. A cabeça de Orfeu caiu no mar e chegou até a ilha de Lesbos, onde os habitantes ergueram-lhe um túmulo de onde, dizia-se, era

possível ouvir com frequência o som de uma lira...

Orfeu foi levado aos Campos Elísiose lá entretinham os bem-

aventurados com sua música. Sua lira foi transformada pelos deuses

em constelação

Iconografia e culto de Orfeu

Durante o século -VI, Orfeu foi associado a um culto de mistérios muito popular que preconizava a origem divina da alma e a reincarnação,

conceito mencionado igualmente pelos pitagóricos e, mais tarde, por

Platão. Segundo a tradição, foi ele quem fez as revelações místicas fundamentais aos iniciados, que aprendera durante sua descida ao

Hades.

Uma literatura esotérica, baseada nos preceitos órficos, floresceu

durante o Período Helenístico. Na iconografia grega antiga, Orfeu era mostrado cantando com uma lira ou uma cítara, em geral no momento

de sua morte às mãos das bacantes (vasos de figuras vermelhas

posteriores a -500). Os mosaicos romanos mostravam-no com

frequência ao lado de animais selvagens, embevecidos com sua música.

α) Fuga do mundo — A dogmática dos órficos era contudo coisa

totalmente diferente de uma afirmação vital. Devemos, antes, considerá-

la como uma vaga miscelânea de ascese e mística, culto das almas e esperanças no além, coisas todas muito estranhas ao povo homérico.

Agora, já a alma não é sangue, mas espírito; oriunda de um outro

mundo; exilada nesta terra, como castigo por uma culpa original;

encadeada ao corpo, deve passar por uma larga peregrinação até libertar-se dos sentidos. Via para a colimada purificação do sensível era

uma série de proibições de alimentos, como a carne e as favas.

Laminazinhas de ouro, enterradas com os mortos, testemunhavam que a sua alma provinha "pura de puros" e "libertou-se do penoso ciclo das

reencarnações". A doutrina dos órficos sobre o destino das almas,

depois da morte, espelha-se nos grandes mitos escatológicos, nos diálogos platónicos Górgias, Fédon e República. A dogmática órfica já

possuía, também, uma bem elaborada teologia e cosmogonia.

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β) Cosmogonia — Ensinava que no princípio existiu o Caos e a Noite.

O ―Chãos‖ deve compreendê-lo literalmente como o vácuo abissal ou o precipício. A Noite gerou um ovo, o ovo cósmico, donde nasceu o amor

(Eros) alado. "E este, consorciado com o abismo hiante, alado e

nocturno, no vasto Tártaro, deu origem ao nosso género e o trouxe fora, para a luz. Não havia o género dos mortais, antes de ser reduzido à

unidade pelo amor; quando, porém, ele uniu uma parte com outra,

surgiu o Céu, e o Oceano, e a Terra, e o género imortal de todos os

deuses". Segundo uma fonte mais recente, a origem primitiva do Cosmos foi um dragão com cabeça de touro e de leão: no meio, porém,

tinha o rosto de um deus, e nos ombros, asas. 3Ê conhecido como o

deus do Tempo eternamente jovem. O dragão produziu uma tríplice seminação: o Éter húmido, o Abismo ilimitado e hiante e a nebulosa

Escuridão; e além disso, de novo, um ovo cósmico.

Tudo isto é intuição de todo fantasiosa e poética. Tem-se visto na

mitologia órfica uma "palmar" tradição oriental. Em particular o dualismo de corpo e alma, do aquém e do além, e, em geral, uma forma

de vida em fuga do terreno, "uma gota de sangue estrangeiro" na

Grécia. A terra original destas corrupções pode, na realidade, ter sido a índia, onde tais ideias apareceram cerca de 800 a.C., nos Upanishads,

escritos teológicos exige ticos dos Vedas. Também se encontram na

religião de Zoroastro, no planalto do Irã, como resulta dos antigos

Gâthas do Zendavesta. Estas ideias teriam sido, então, sempre um

património espiritual ariano.

d) O mito e o Logos

Muito mais importante, porém, que a questão da origem é a

sobrevivência dessas concepções. Aristóteles disse, com razão, (Met. B. 4), a propósito do mito, que ele não constituía ciência, porquê esses

"teólogos" arcaicos apenas reproduziam as doutrinas tradicionais sem

apresentarem nenhumas provas. Opõe-lhes aqueles "que falam

aduzindo provas (οι διαποδειξεΩζ λεγοντεζ), dos quais, por isso, podemos esperar uma verdadeira "convicção". Com isso quer referir-se aos

filósofos. Por estes metódicos momentos da dúvida, da prova e da

fundamentação, distingue ele o mito, da Filosofia, embora há pouco tivesse concedido que o amigo do mito, a certa luz, também era filósofo.

A Filosofia é, ao lado do mito, realmente algo de novo. Já não se vive

numa crença cega, do património espiritual do vulgo, mas o indivíduo volta-se todo para si mesmo e deve agora, livre e sem tutela, elaborar

por si, examinando e provando, o que pensa e quer considerar

verdadeiro. Ê uma posição espiritual diferente da do mito. Contudo, não

devemos perder de vista que as questões formuladas pelo mito, como suas intuições conceptuais, elaboradas nos obscuros e não-críticos

tempos anteriores, ainda sobreviveram na linguagem conceptual

filosófica. À crítica do conhecimento filosófico impõe-se aqui a tarefa de

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examinar se os presumidos instrumentos racionais‘ ‗de pensamento

filosófico também estão, na realidade, todos racionalmente fundados.

Talvez não o sejam. E isto não somente por uma recusa, mas porque o espírito ultrapassa o "saber" e abrange o mito, num sentido positivo,

como um caminho apropriado para a sabedoria. De maneira que

somente o crente na ciência iluminada é que pretende libertar-se do mito, ao passo que Aristóteles diz, com razão, que também o mito, a seu

modo, filosofa.

As Origens da Filosofia

Quadro Político da Grécia Antiga até ao século VII

A questão das origens da Filosofia é hoje uma questão clássica mas

ainda controvertida. Para a tentarmos compreender vamos recuar até

ao momento no qual surgiram os primeiros Gregos.

Aproximadamente no ano 2000 a.C. estabeleceram-se na Grécia povos

indo-europeus que nela se fixaram, os quais já falavam o grego.

Quanto à origem e características dos indo-europeus ainda hoje

subsistem dúvidas. Poder-se-á dizer que são povos continentais, ligados

à pastorícia e com uma religião ligada aos fenómenos atmosféricos.

Detecta-se no século XVI uma civilização que vai ser brilhante, a

civilização dos Aqueus. Vários são os problemas que se colocam ao seu

estudo e para uma parte dos quais só há conjecturas.

O que podemos dizer, com alguma segurança, é o seguinte:

Os Aqueus são essencialmente guerreiros e encetam uma

expansão pelo Mediterrâneo Oriental;

Constituem uma série de estados entre os quais existe, ao que

parece, a hegemonia de Micenas;

o estado aqueu é fortemente burocratizado;

O linear B é a escrita dos Aqueus, a qual é silábica e não se

adapta à palavra oral.

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Não se conhece bem a organização política e social dos Aqueus. Sob o

ponto de vista político o poder está concentrado nas mãos do soberano;

é muito provável que haja traços orientalizantes no estado aqueu.

O soberano vive num palácio que é uma autêntica cidadela que se

ergue na parte alta da cidade. Ele governa auxiliado por altos

funcionários e uma burocracia controla tudo o que se passa no estado.

Sob o ponto de vista social deve existir uma hierarquia rígida na qual a

classe dos guerreiros é a mais importante.

Vejamos, agora, outros aspectos.

Os Aqueus entraram em contacto com outros povos e entre estes, deve

destacar-se o cretense.

Um povo rude como o aqueu, pouco a pouco, em contacto com outras

civilizações, vai-se interessando pelos aspectos artísticos; é provável que

artistas cretenses tivessem trabalhado nalguns estados Aqueus.

A civilização aqueia mostrou uma abertura ao exterior que é notável e

neste aspecto prefigura a Grécia a partir dos finais do século IX. É estas

aberturas que encontramos em relação à religião.

As religiões que vamos encontrar na Grécia arcaica, em boa parte,

estão formadas no tempo dos Aqueus. Os principais deuses encontram-

se já na civilização aqueia e há divindades que vêm de outras regiões,

em especial de Creta.

É interessante notar-se que a religião dos Aqueus, nos tempos mais

recuados, privilegiava as divindades masculinas mas, sobretudo, em

contacto com Creta o panteão vai ser enriquecido com divindades

femininas. Os contornos da religião grega são nítidos, portanto, antes

dos poemas homéricos.

Para terminarmos a parte referente aos Aqueus façamos referência a

dois problemas:

O primeiro diz respeito à Guerra de Tróia. Como é sabido a Guerra

de Tróia foi encarada, na Antiguidade, como um conflito de

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grandes proporções. Todavia, para alguns historiadores, entre os

quais citemos Finley e Claude Mossé, a importância da expedição a

Tróia foi diminuta.

O segundo problema refere-se ao fim da civilização dos Aqueus.

Não deve ter sido um final rápido: é possível que a destruição

durasse cerca de um século (do século XII ao século XI). Apontam-

se hoje várias hipóteses parecendo que se está longe de uma

certeza.

Só podemos dizer que a destruição foi brutal. No século XI um monte

de ruínas era o que restaria do mundo aqueu.

Pouco se sabe da Grécia entre os séculos XI e IX, o linear B

desapareceu e a arqueologia não tem trazido muitas informações sobre

este período.

O que se poderá dizer é o seguinte:

A Grécia fecha-se sobre si própria. Se os contactos com o exterior

não terminam, são todavia menos frequentes;

A actividade económica é diminuta;

As concentrações urbanas praticamente não existem;

A escrita, que agora é alfabética, deve ter surgido nos meados do

século X.

A introdução da escrita é um momento alto da civilização grega. A base

da escrita é o alfabeto fenício. É clara portanto a influência deste povo.

Mas o que é interessante notar-se é o facto dos Gregos não se terem

limitado a importar o alfabeto fenício: para que a escrita correspondesse

à linguagem oral os Gregos fizeram as adaptações necessárias.

A escrita antecede o aparecimento da polis. Esta, segundo Lévêque,

teria surgido cerca de 800.

As poleis espalharam-se por todo esse vasto território que constitui a

Hélade. Mas vejamos o que é a polis.

Devido à escassez de informações não conhecemos as raízes, ou seja,

as razões do aparecimento da cidade-estado. O que sabemos é que de

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uma forma geral a polis, tem um pequeno território o que a leva a

possuir, igualmente, quase sempre, uma pequena população.

Há diferenças entre o estado aqueu e a polis no tocante ao desenho

urbanístico: enquanto no primeiro a cidadela, que é a residência do rei,

é o lugar central, na polis surge a àgora que, nos seus primeiros

tempos, é uma praça pública.

Na ágora os habitantes podiam encontrar-se, conviver e trocar ideias.

Há, assim, uma maior abertura, o sinal de uma mentalidade na qual a

curiosidade sobre as concepções e a vida pública devem ter, já, um

lugar de destaque.

O que vai acontecer ao longo dos tempos é o que se tem chamado a

fragmentação do poder político. A tendência é para o poder político se

dividir por vários magistrados, colégios e assembleias. E também vários

são os regimes políticos que os Gregos vão conhecer, entre os quais o

democrático que atinge a sua forma mais avançada na Atenas do século

V.

Ora, entre o aparecimento da polis e o final do século VII podemos

encontrar, entre outros, os seguintes aspectos:

A Grécia está francamente aberta ao exterior;

A actividade económica é intensa;

Há grupos sociais em ascensão: comerciantes, navegadores,

proprietários de oficinas;

Surge a moeda, cujo significado inicial, ainda hoje não é

consensual;

Aparecem os códigos escritos, com grande repercussão na

mentalidade grega.

No final do século VII encontramos a Hélade estendendo-se da

extremidade do Mar Negro ao extremo ocidental do Mediterrâneo. A

Hélade é, assim, um espaço descontínuo onde a unidade é constituída

por laços espirituais: a língua, a religião, os festivais pan-helénicos,

entre outros. Mas a Hélade é o espaço das poleis e no período que

estamos a considerar mencionemos duas faixas de colonização

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extremamente importantes: o litoral da Ásia Menor e aquela constituída

pelo Sul de Itália e a Sicília.

Quadro cultural da Grécia Antiga até ao século VII

É frequente ao descrever-se as origens da filosofia falar-se de

passagem do mito ao logos.

Tentaremos mostrar que a expressão passagem do mito ao logos é

ambígua e pode deturpar o que historicamente se teria passado.

Comecemos pela questão do mito. O mito é uma história real, ou seja,

o que para nós é uma fábula, uma história maravilhosa, era nas

sociedades arcaicas uma narrativa verdadeira. Mas digamos, ainda, que

o mito pode ter como personagens não só os deuses como os próprios

homens (Cfr. M.H.R. Pereira).

A importância do mito é praticamente indesmentível. Funciona como

algo exemplar: o acto de semear ou de erguer uma casa é imitações de

gestos contidos nos mitos. Um dos mais importantes é o cosmogónico,

ou seja, aquele que trata das origens.

Este mito narra a forma como o mundo veio à existência e qual o papel

que os deuses desempenharam nesse acto. A origem do homem era

contemplada nesta exposição que era transmitida de geração em

geração: o mundo assim como o homem era obra dos deuses.

Para além da dimensão do mito como modelo devemos falar da

sabedoria que a ele está ligado.

O mais antigo corpo de saber que encontramos na Grécia está ligado

aos sacerdotes e aos homens divinos.

Os homens divinos constituem uma expressão usada pelos gregos.

Com ela queriam significar aquelas personalidades que continuando a

ser humanas possuíam um dom dado pelos deuses, o que fazia que

estivessem mais perto da divindade.

Estes homens tinham poderes extraordinários como por exemplo:

conhecer o passado e o futuro; separar o espírito do corpo e viajar, por

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vezes por longos anos, com o espírito deixando de lado o corpo; descida

ao Hades; poderes para deter cataclismos naturais.

Para se compreender um pouco melhor uma questão tão delicada

convirá mencionar a posição de E. Morin (O Método, III?). O filósofo

francês considera que na época em que o mito é relevante as técnicas já

existiam, isto é, há uma coexistência de actividades bem diferenciadas.

Tal significa que é próprio do espírito humano este duplo enfoque, o que

leva o homem a viver não só com a razão mas também com o mito.

No caso da Grécia Antiga podemos ver a força do mito mas também

manifestações culturais, ligadas essencialmente à literatura, que

ampliam e diversificam o campo do Homem.

Façamos assim uma referência à cultura Grega desde os poemas

homéricos até aos finais do séc. VII.

Em primeiro lugar acentuemos a importância da Ilíada e da Odisseia.

Nestes poemas viram os Gregos os seus antepassados: os Gregos são os

descendentes dos heróis da Guerra de Tróia. Há assim uma dimensão

histórica, sempre considerada ao longo dos séculos na Grécia Antiga.

Nos poemas homéricos o aspecto religioso é relevante: os episódios

relativos aos deuses são numerosos e assim não é para admirar que a

sua influência seja grande neste campo.

As qualidades ostentadas pelos heróis irão servir de modelo aos

Gregos. Assim não é para admirar que Homero fosse considerado o

educador da Grécia e os poemas constituíssem a base da paidéia grega.

Convirá reflectir um pouco sobre este ponto.

Homero será acusado por vários pensadores de contar histórias

vergonhosas acerca dos deuses.

O ataque de Xenófanes a Homero inicia a querela entre os defensores

da paidéia tradicional e os filósofos. Mais tarde, vemos Platão, na

República, criticar longamente a paideia tradicional.

Se os poemas homéricos são fundamentais todavia não fazem esquecer

a Teogonia e os Trabalhos e os Dias de Hesíodo (meados do século VIII).

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Os poemas de Hesíodo constituem um marco na História da Cultura

Grega – vejamos alguns aspectos.

Será interessante ver que o poeta fala de si próprio na sua obra (o

poeta ou poetas dos poemas homéricos não têm uma atitude pessoal).

As obras de Hesíodo apresentam outra inovação: o aspecto ético é

frisado e assim a justiça é algo de agradável aos deuses.

A Teogonia é importante não só porque é um tratado sobre a religião

grega mas também pela questão cosmogónica.

Há um esforço por parte de Hesíodo em colocar uma certa ordem na

religião grega: ao que nos parece tudo indica que o quadro religioso

grego era confuso, que as contradições eram abundantes nas biografias

dos deuses.

Surge, assim, um traço de um novo espírito: há a preocupação em

arrumar a matéria religiosa, há uma certa racionalização na tarefa

levada a cabo por Hesíodo. Com isto não queremos dizer que se perca o

sentido religioso mas sim, que começa a surgir um novo estilo.

A narrativa cosmogónica na Teogonia segue o estilo a que fizemos

referência. A génese do Universo é relativamente simples e há uma certa

aproximação à noção de Natureza sem implicar a perda do estatuto de

importância que as divindades possuíam.

Mencionemos outro acontecimento da História da Cultura Grega: o

aparecimento, nos princípios do século VII, da poesia lírica.

O poeta lírico fala de si, descreve os seus sentimentos, torna - - os

públicos. É este, sem dúvida, um fenómeno relevante na Cultura Grega.

Os quadros que traçamos não nos mostram toda a riqueza da Cultura

Grega desde os fins do século IX até aos finais do século VII. Mas

parece-nos suficiente para compreender a passagem do século VII para

o VI.

Relembremos que a parte oriental do mundo grego estava em contacto

com algumas civilizações brilhantes (Egipto, Mesopotâmia). A polis, por

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sua vez, implicava uma mobilidade espiritual que a diferenciava do

estado oriental.

Sob o ponto de vista cultural, a trajectória seguida, implicava uma

discussão sobre temas cada vez mais amplos e complexos.

Segundo os Gregos nos finais do século VII e primeiras décadas do VI

surgiu uma plêiade de personalidades a quem chamaram os sete sábios

e cujos nomes variavam de lista para lista. Tales é um dos nomes

presentes em todas elas.

Os sete sábios, envolvidos em parte pela lenda, são figuras

diferenciadas: ao lado de legisladores e governantes surgem, também,

aqueles que têm poderes extraordinários.

Vejamos algumas das suas características:

Os sete sábios estão ligados à defesa da polis ou escrevendo os

códigos ou salvando-a de catástrofes por meios extraordinários;

O seu saber é condensado em máximas, os apotegmas;

Esse saber é público e algumas máximas são gravadas na pedra.

Quando chegamos a Tales de Mileto há na Grécia uma longa tradição

cultural. Encontramos a inovação que não corta abruptamente essa

mesma tradição. Não deve ser por acaso que Tales é um dos sete sábios

e o primeiro filósofo.

O filósofo surge como o herdeiro do chamane, do sacerdote, do poeta.

É detentor do saber como o eram os seus antepassados. Mas agora o

saber é oferecido a quem o quiser fruir. É um saber aberto que

contrasta, agora, com o círculo fechado do antigo corpo de saber.

Há uma dessacralização do saber? A resposta não é fácil. Há mitos e

narrativas que perdem velocidade, que se vão tornando mais

abstractos, ao longo dos tempos. Mas a religião não perde o seu

prestígio e acompanhara sempre o homem grego.

Pelo que dissemos, já anteriormente, a expressão passagem do mito ao

logos não é muito correcta.

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O mito não desaparece com a filosofia, umas vezes enfrenta-a, outra

cruza-se com ela. Na longa caminhada não há cortes bruscos, há

transformações mais ou menos lentas. Nos finais do século VII havia

condições para o aparecimento da filosofia. Um quadro político aberto é

uma delas. Mas há também um conjunto de experiências culturais que

preparam o terreno para a "aurora da filosofia".

Conclusão

Nos finais do século VII e princípio do século VI, Existia um quadro

politico social e favorável ao aparecimento de um novo tipo de

concepção que se afastasse, pelo menos em parte da mítica e que tenta-

se abarcar todo o real e cujo instrumento predominante fosse a razão.

Das exposições que fizemos atem agora é importante salientar o

seguinte:

Não há um corte brusco com o passado; há uma determinada evolução

constituída por uma série de transformações e um condicionalismo

propício ao aparecimento da filosofia.

O filósofo vai surgir em determinadas condições históricas: abertura da

Grécia a outras civilizações, lugar proeminente de novas forças sociais:

determinada concepção de estado; e mudança de mentalidade que se

produziu ao longo dos séculos. A explicação mítica e substituída

pela explicação filosófica. Os primeiros pensadores debruçam -se

sobre as origens do universo e do homem, questões já albergadas

nos grandes mitos cosmológicos. Convém assinalar que a filosofia

surgida na Jónia no século VII E VI não irá constituir um corpo de

saber que aniquila-se por completo aquele que tinha vigorado mas

devido as transformações económicas, sociais e politicas permitem o

aparecimento de novas teorias, estas durante mais ou menos tempo

terão coexistido com as antigas, e por vezes surgir concepções híbridas.

O aparecimento da filosofia, que devemos saudar como um

acontecimento cultural de grande importância, não rompe totalmente

com as concepções do mundo e da vida que tinham atravessado muitos

e muitos séculos.

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O Filósofos Pré – Socráticos

A passagem da consciência mítica e religiosa para a consciência

racional e filosófica não foi feita de um salto. Esses dois tipos de consciência coexistiram na sociedade grega.

De acordo com a tradição histórica, a fase inaugural da filosofia

grega é conhecida como período pré-socrático. Esse período abrange o conjunto das reflexões filosóficas desenvolvidas desde Tales de Mileto

(623-546 a.C.) até Sócrates (468-399 a.C.).

Os primeiros filósofos buscam a arché, o princípio absoluto (primeiro

e último) de tudo o que existe. A arché é o que vem e está antes de tudo,

no começo e no fim de tudo, o fundamento, o fundo imortal e imutável,

incorruptível de todas as coisas, que as faz surgir e as governa. É a

origem, mas não como algo que ficou no passado e sim como aquilo

que, aqui e agora, dá origem a tudo, perene e permanentemente.

No vasto mundo Grego, a filosofia teve como berço a cidade de

Mileto, situada na Jónia, litoral ocidental da Ásia Menor. Caracterizada

por múltiplas influências culturais e por um rico comércio, a cidade de

Mileto abrigou os três primeiros pensadores da história ocidental a

quem atribuímos a denominação de filósofos. São eles: Tales,

Anaximandro e Anaxímenes.

O objectivo dos primeiros filósofos era construir uma cosmologia

(explicação racional e sistemática das características do universo).

Em outras palavras, os primeiros filósofos queriam descobrir,

com base na razão e não na mitologia, o princípio substancial (a arché)

existente em todos os seres materiais.

Os pré-socráticos ocuparam-se em explicar o universo e

examinavam a procedência e o retorno das coisas. Os primeiros filósofos

gregos tentaram responder à pergunta: Como é possível que todas as

Page 17: Apontamentos de Filosofia Antiga I

17

coisas mudem e desapareçam e a Natureza, apesar disto, continua

sempre a mesma?

Para tanto, procuraram um princípio a partir do qual se pudesse

extrair explicações para os fenómenos da natureza. Um princípio único

e fundamental que permanecesse estável junto ao sucessivo vir-a-ser.

Tales vai dizer que o princípio de tudo é a água; Anaximandro, o infinito

indeterminado, Anaxímenes, o ar; Heraclito, o fogo; Pitágoras, o

número; Empédocles, os quatro elementos: terra, água, ar, fogo, em vez

de uma substância única.

Os Milésios

Escola de Mileto ou Milesiana, é chamada a escola de pensamento

iniciada no Século VI a.C. na vila jónia de Mileto, na costa da Anatólia,

e representada, principalmente, pelos filósofos:

Tales de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes. Convém distingui-la da Escola Jónica, que inclui estes e outros jónios como Heraclito ( de

Éfeso), ou Diógenes de Apolônia (que viveu em Creta).

A escola de Mileto e situada na cidade de Mileto, na Jónia, litoral

ocidental da Ásia Menor. Os filósofos que fundaram a escola foram:

Tales de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes. Tales era considerado "o pai da filosofia" por ser o primeiro pensador grego. Tales queria

descobrir um elemento tísico que fosse constante em todas as coisas.

Algo que fosse o princípio unificador de todos os seres. Tales concluiu que a água é a substância primordial, a origem única de todas as

coisas, para ele somente a água permanece basicamente a mesma, em

todas as transformações dos corpos, apesar de assumir diferentes estados como: sólido, líquido e gasoso. O princípio primordial de todas

Page 18: Apontamentos de Filosofia Antiga I

18

as coisas segundo Anaximandro era o "abeiro". Já para Anaxímenes era

o "ar".

Tales de Mileto

As 3 afirmações de Tales:

1- A água é a origem de todas as coisas.

2- A terra flutua na água.

3- Tudo está cheio de Deuses.

Thalès (grego θαλες Thalễs), chamado Tales de Mileto, é o primeiro

filósofo ocidental de que se tem notícia. Ele é o marco inicial da filosofia

ocidental. De ascendência fenícia, nasceu em Mileto, antiga colónia

grega, na Ásia menor, actual Turquia, por volta de 625 a.C. e faleceu

aproximadamente em 547 a.C. - segundo o historiador grego Diógenes

Laércio, morreu com 78 anos durante a 58ª Olimpíada.

Tales é apontado com um dos sete sábios da Grécia Antiga. Além disso,

foi o fundador da Escola Jónica. Considerado, também, o primeiro

filósofo da "physis" (natureza), porque outros, depois dele, seguiram seu

caminho buscando o princípio natural das coisas.

Tales considerava a água como sendo a origem de todas as coisas. E

seus seguidores, embora discordassem quanto à “substância primordial”

Page 19: Apontamentos de Filosofia Antiga I

19

(que constituía a essência do universo), concordavam com ele no que

dizia respeito à existência de um ―princípio único" para essa natureza

primordial.

Entre os principais discípulos de Tales de Mileto, merecem destaque:

Anaxímenes que dizia ser o "ar" a substância primária; e

Anaximandro, para quem os mundos eram infinitos em sua

perpétua inter-relação.

Teorema de Tales - "Quando duas

rectas se cortam, são iguais os ângulos"

Tales observou que, num mesmo

instante, a razão entre a altura de um objecto e o comprimento da sombra que

esse objecto projectava no chão era

sempre a mesma para quaisquer

objectos

"Este teorema certamente mostra, que de duas linhas rectas, que se cortam, os ângulos contrários pelo vértice são iguais. Contudo a

questão se apresenta pouco clara, porque o teorema supõe também

outros conhecimentos mais simples, os quais possivelmente Tales não tivesse. Por isso, melhor é supor que Tales se tenha valido de sua

experiência adquirida em cálculos práticos.

A Cosmologia de Tales

Na época de Tales, os gregos – através de sua mitologia – consideravam

os elementos da Natureza (o Sol, a Terra, o Céu, o Oceano, as

Montanhas, etc.) como forças autónomas, honrando-os como deuses,

elevados pela fantasia a seres activos, móveis, conscientes e dotados de

sentimentos, vontades e desejos. Estes deuses constituíam-se na fonte e

na essência de todas as coisas do universo.

Tales foi um dos primeiros pensadores a discordar dessa religião

vigente, cujos princípios eram ditados pela percepção que os

homens captavam através de seus sentidos.

O ponto de partida da teoria especulativa de Tales – como

Page 20: Apontamentos de Filosofia Antiga I

20

também de todos os demais filósofos da escola Jónica – foi a

verificação da permanente transformação das coisas umas nas

outras e sua intuição básica é de que todas as coisas são uma só

coisa fundamental, ou um só princípio (arché).

Dos escritos de Tales, nenhum deles sobreviveu até nossos dias. Suas

ideias filosóficas são conhecidas graças aos trabalhos de Diógenes

Laércio, Simplício e principalmente Aristóteles.

Em sua obra - Metafísica, Aristóteles nos conta: ―Tales diz que o

princípio de todas as coisas é a água, sendo talvez levado a

formar essa opinião, por ter observado que o alimento de todas as

coisas é húmido e que o próprio calor é gerado e alimentado pela

humidade. Ora, aquilo de que se originam todas as coisas é o

princípio delas. Daí lhe veio essa opinião, e também a de que as

sementes de todas as coisas são naturalmente húmidas e de ter

origem na água a natureza das coisas húmidas”.

Em seu livro – Da Alma, Aristóteles escreve: ―E afirmam alguns que ela

(a alma) está misturada com o todo. É por isso que, talvez, Tales

pensou que todas as coisas estão cheias de deuses. Parece

também que Tales, pelo que se conta, supôs que a alma é algo que

se move, se é que disse que a pedra (imã) tem alma, porque move o

ferro‖.

Esse esforço de investigação de Tales no sentido de descobrir uma

unidade, que seria a causa de todas as coisas, representa uma

mudança de comportamento na atitude do homem perante o cosmos,

pois abandona as explicações religiosas até então vigentes e busca,

através da razão e da observação, um novo sentido para o universo.

Quando Tales disse que todas as coisas estão cheias de deuses, ou

que o magnetismo se deve à existência de “almas” dentro de

certos minerais, ele não estava invocando as palavras deus e

alma, no sentido religioso como as conhecemos actualmente, mas

sim adivinhando intuitivamente a presença de fenómenos

naturais inerentes à própria matéria.

Embora suas conclusões cosmológicas estivessem erradas podemos

Page 21: Apontamentos de Filosofia Antiga I

21

dizer que a Filosofia começou então com Tales, que ao estabelecer a

proposição de que a água é o absoluto, provoca como consequência o

primeiro distanciamento entre o pensamento racional e as percepções

sensíveis.

Contos

Plutarco disse que Tales certa vez olhando para o céu, tropeçou e

caiu, sendo repreendido por alguém como lunático: analisava o

tempo para descobrir que haveria uma seca, com a qual ganhou

dinheiro.

Usando seu conhecimento astronómico e meteorológico

(provavelmente herdado dos babilónios), Tales previu uma

excelente colheita de azeitonas com um ano de antecedência.

Sendo um homem prático, conseguiu dinheiro para alugar todas

as prensas de azeite de oliva da região e, quando chegou o verão,

os produtores de azeite tiveram que pagar a ele pelo uso das

prensas, o que levou-o a ganhar uma grande fortuna com esse

negócio.

Quando perguntaram a Tales o que era difícil, ele respondeu:

―Conhecer a si próprio‖. Quando lhe perguntaram o que era fácil,

ele respondeu: ―Dar conselhos‖.

Terramotos - Foram explicados por Tales como flutuação pouco

firme da terra sobre a água que a sustenta nos fundamentos. Diz

um texto, cujo informe deriva da tradição de Teofrasto, através da escola estóica de Possidónio: "Porque diz Tales, que o mundo está

apoiado sobre a água, e que ela viaja como navega ao modo de

navio, e que ela flutua movente". O terrífico fenómeno do terramoto, que as narrativas míticas apresentavam como punição

divina, passa, a partir de Tales, a ter uma explicação racional,

ainda que com falta de acerto. A explicação de Tales significa ao

menos um bom começo. Estimulado certamente por esta teoria, Anaximandro tentará outra melhor.

Page 22: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Principais Fragmentos

―... A água é o princípio de todas as coisas...‖. - ―... Todas as coisas estão cheias de Deuses...‖. - ―... A pedra magnética possui uma alma porque move o ferro...". - “... A alma é uma natureza sempre em movimento, ou que se move por si mesma...". - ―... Deus é o mais antigo dos entes, porque ele é por si mesmo...‖. - ―...O mundo é isto, que de mais belo existe, porque ele é a obra de Deus...‖. - ―... O espaço é aquilo, que de maior existe, porque ele contém tudo...‖. - ―... A mente é isto, que de mais rápido existe, porque ela corre através de tudo...‖. - ―... A necessidade é o que há de mais forte, porque ela tudo rege...‖. - "... O mais sábio é o tempo, porque ele descobre

tudo...".

Conclusão:

Tales, natural de Mileto, nascido no século VII mas cuja actividade se

deve processar essencialmente no século VI, não deve ter deixado qualquer

obra escrita.

Assim não é para estranhar que pouco conheçamos da sua vida e

pensamento.

O tema da filosofia de Tales é a physis. A physis é a substância

primordial, a génese das coisas existentes.

O problema colocado por Tales não é novo: é a questão das origens. O

filósofo quer saber qual é a substância que vai originar o universo.

Tales vai responder que a origem das coisas é a água. Com isto quer

dizer que é a partir da água que o universo, com tudo o que ele encerra, se

vai formar.

É de presumir que Tales tivesse traçado a evolução do universo:

simplesmente não temos informação que a documente.

O que sabemos, ainda, é que Tales afirmou que a Terra é um disco

achatado que está a boiar na água.

Podemos destacar os seguintes pontos:

Tales preocupa-se com a forma da Terra;

A Terra tem um suporte, o que lembra as raízes que prendem a Terra

ao fundo, que podemos ver nas cosmogonias;

Page 23: Apontamentos de Filosofia Antiga I

23

Quando a água, suporte da Terra, entra em agitação a Terra

estremece – é o terramoto.

O que podemos descortinar é que Tales se interessa com a forma da Terra

e pretende dar uma explicação de fenómenos que são importantes para a

Humanidade.

Outra tese de Tales diz que tudo está cheio de deuses. É uma

afirmação um pouco misteriosa para nós.

Sabemos que Tales fez pequenas experiências com o âmbar e o imane; viu

assim que havia corpos que atraíam outros corpos (é possível que estas

experiências sejam anteriores ao filósofo).

É provável que com estes dados Tales chegasse à seguinte conclusão: há

forças nos objectos e essas forças são deuses. Se assim é podemos concluir

o seguinte:

Os deuses estão à nossa volta, ou seja, estão em todo o lado;

Esta concepção insere-se no quadro do politeísmo grego mas há

inovação na medida em que os deuses estão mais próximos do

Homem.

Tales ficou famoso por outras actividades. Interessou-se pela matemática

mas não se conhecem os seus progressos.

Faz a previsão de um eclipse em 585 mas hoje pensa-se que Tales podia

prever a data mas não o lugar onde ele era visível. É muito provável que

Tales tivesse tido acesso às tábuas astronómicas dos babilónios, o que

demonstra a sua grande curiosidade.

Terminamos com a interessante explicação das cheias do Nilo. Tales

afirmou que os ventos etésios, em determinada altura do ano, sopram em

direcção à embocadura do Nilo dificultando a entrada das águas do rio no

Mediterrâneo: sendo assim o rio transbordaria para as suas margens,

provocando as inundações.

Hoje sabemos que a explicação de Tales não é exacta; o que é exacto é o

espírito da explicação dada pelo filósofo.

Page 24: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Anaximandro de Mileto

O Apeiron

Anaximandro ,segundo filosofo da escola jónica, natural de Mileto. Foi

geógrafo, matemático, astrónomo e político. Escreveu um livro, Sobre a natureza, que se perdeu. Autor do primeiro mapa da história e

iniciador da astronomia. Afirmou que a origem de todas as coisas

seria o Apeiron, o infinito. O mundo se dissolveria nele também. É apenas um mundo dentre muitos. Ao contrário de Tales não deu à

gênese um carácter material. O Apeiron é eterno e indivisível,

infinito e indestrutível. O princípio é o fundamento da geração de todas as coisas, a ordem do mundo evoluiu do caos em virtude deste

princípio.

Supôs a geração espontânea dos seres vivos e a transformação dos

peixes em homens. Anaximandro imaginava a terra como um disco

suspenso no ar. Diz-se também, que preveniu o povo de Esparta de um

terramoto.

Vida - Filho de Praxíades e discípulo de

Tales, 14 ou 24 anos mais jovem que o

mestre, mas ambos morreram mais ou menos no mesmo ano. Nasceu na Cidade

de Mileto em 610 a. c.. Segundo Diógenes

Laércio, Anaximandro tinha 64 anos por ocasião da 58ª olimpíada (547 a..c.) e logo

depois morreu, é possível fixar, que

efectivamente faleceu cerca de 545 a..c.

Esta informação coincide com a de

Page 25: Apontamentos de Filosofia Antiga I

25

Hipólito sobre o nascimento no terceiro ano da 42ª olimpíada (610

a.e.c.).

Diodoro de Éfeso, ao escrever a respeito de Anaximandro, diz que

[Empédocles] o imitava no gesto e no uso de vestes solenes"

1. Como se sabe, Empédocles de Agrigento, da escola jónica nova, fora um filósofo festejado ao mesmo tempo como atleta olímpico. Sendo-lhe

uma geração posterior, a comparação deve ser apenas de fundo

histórico, por conta de quem a fez. Além disto, Anaximandro foi político, professor, administrador e construtor de relógios solares, há que diga

que ele foi o inventor dos Gnômons (Relógios Solares), mas é uma teoria

bastante discutível uma vez que os gregos adoptaram essa tecnologia além das doze horas do dia dos babilónicos. Mas de qualquer forma, foi

Anaximandro quem introduziu os Gnômons na Grécia.

Previsão de um Terramoto Fez a previsão de um terramoto. Anaximandro foi até Lacedemonia e aconselhou o exército espartano a

abandonar a cidade, segundo

testemunho de Cícero a cidade inteira foi destruída. A

previsão do terramoto de

Anaximandro deve ter acontecido pela experiência a

respeito uma vez que Mileto

estava dentro de uma zona

sísmica.

Diógenes Laércio afirma que

Anaximandro foi o primeiro a

definir um perímetro da terra e

do mar. Além de construir um mapa da terra habitada, que foi

aperfeiçoada posteriormente

por Hecateo de Mileto. Seu mapa-múndi foi um desenho circular, em que as regiões conhecidas

(Ásia e Europa) formavam segmentos aproximadamente iguais e todo ele

rodeado pelo oceano.. Os conhecimentos geográficos de Anaximandro se baseavam nas notícias de navegantes que seriam abundantes e

variadas em Mileto, centro comercial e de colonização.

A Tradição considera Anaximandro, antes de tudo, um filósofo,

sucessor e discípulo de Tales, cuja filosofia devemos interpretar

como um desenvolvimento interno do racionalismo de seu mestre. Anaximandro desenvolveu, como crítica a filosofia de Tales, as ideias

filosóficas seguintes:

Page 26: Apontamentos de Filosofia Antiga I

26

a) O Apeiron. Segundo as fontes procedentes de Teofrasto,

Anaximandro havia afirmado que o principio de todas as coisas existentes não é nenhum de os denominados elementos (água, ar,

terra, fogo), se não alguma outra natureza Apeiron [indefinido o infinito];

b) O cosmos. Do centro do Apeiron eterno se agrega espécies de

elementos, sem determinações, principalmente sem qualidades contrárias Este cosmos é dinâmico e temporal que tem sua origem e seu fim no Apeiron. c) A diversidade de mundos. Todas as fontes procedentes de

Teofrasto (Simplício, Hipólito e Ps. Plutarco) atribuem a

Anaximandro ideia de mundos infinitos (simultâneos e

sucessivos).

Em Anaximandro encontramos um problema semelhante ao de Tales de

Mileto, pois em ambos pensadores as actividades científicas e filosóficas

recaem na mesma pessoa subjectiva. Anaximandro poderia ser

interpretado do ponto de vista científico como uma espécie de cosmólogo, do mesmo modo que Tales poderia ser interpretado como

um fisiólogo ou biólogo. Mas a cosmologia de Anaximandro, é igual a

physis de Tales e está coberta por ideias filosóficas. As ideias de Anaximandro (o Apeiron, o cosmos, a dinâmica e temporalidade do

mundo) só adquirem uma escala adequada ao compará-las como um

desenvolvimento interno dos problemas presentes no racionalismo de Tales, de tal modo que se poderia afirmar que muitos de suas ideias

científicas estão cumprindo funções ontológicas, só podem ser

entendidas por meio de suas ideias filosóficas.

O Apeiron

O cosmos

A Multiplicidade dos mundos

O Apeiron - Segundo fontes de Teofrasto e os textos de Aécio e D.

Laércio, o Apeiron é o conteúdo da arché (origem de toda a

matéria). A ideia de Apeiron é crítica-negativa, que não pode ser

definida positivamente. Esta negação está contida em seu significado etimológico. O termo Apeiron está composto da partícula privativa a e o

término péla (limite, borda). Etimologicamente Apeiron significa sem

limites.

A ideia de Apeiron

pode adquirir

Page 27: Apontamentos de Filosofia Antiga I

27

diferentes sentidos negativos segundo os diferentes parâmetros que

fizermos para o limitado. Assim, se tomamos como parâmetros o

limitado dos objectos concretos do mundo das formas (exemplo, uma lâmina metálica, uma cinta), Apeiron será o que não tem bordas ou

extremos, porque se uniu a um anel. Aristóteles e Aristófanes

apontaram a associação do Apeiron com algo circular ou esférico,

círculo pode ser tomado, por sua vez, como referencia do limitado (exemplo: cosmos esférico limitado por uma superfície imersa em um

espaço vazio), e, então o Apeiron seria uma esfera de raio infinito, sem

limites. o Apeiron seria, pois, o circulo, o infinito em extensão espacial.

Se tomarmos como modelo de limitado a água de Tales em quanto determinação do arché, então o Apeiron de Anaximandro será a

negação que, em seu uso filosófico, se exerce sobre a metafísica

de Tales. A água de Tales sim é algo determinado não pode ser arché. O Apeiron aparece assim como uma alternativa ao

monismo da substância e, por onde, não pode ser nem água nem

nenhum dos denominados elementos (ar, terra, fogo).

No racionalismo de Tales o arché aparece sempre determinado nas

formas do mundo. A unidade destas formas é a unidade das transformações mutuas unidade por identidade. O racionalismo de

Tales unido a redutibilidade de algumas formas a outras (o mesmo que

o bem e o mal, os gregos e bárbaros, os amos e os escravos, etc.). Agora o projecto de Tales começaria a perder-se quando as formas do mundo

começam a mostrarem-se como irredutíveis: os opostos estão separados

por fronteiras intransponíveis, ao menos de um modo directo. Contudo,

Anaximandro conservaria o grupo de transformações de Tales, mas não

de um modo directo, porém imediato.

A transformação de coisas em outras está mediada pelo Apeiron.

O Apeiron nos apresenta assim como a fonte inesgotável de

energia que garante a transformação da unidade do cosmos. São duas as características do Apeiron de Anaximandro: Infinito e

Indeterminado. Em quanto infinito o Apeiron é fonte de energia e

movimento para que no mundo não cesse a geração e declínio; Mas, além disso, o Apeiron não é nenhum dos denominados elementos

(água, ar, fogo, terra), porém algo indeterminado. Esta

indeterminação é relativa ao mundo gerado em seu ventre como um embrião na placenta. Anaxímenes, o discípulo de Anaximandro,

conservará de seu mestre a concepção do arché, mas já não será

indeterminado como em Anaximandro e sim algo determinado: o ar.

É de suma importância determinar as razões que levaram Anaximandro

a opor-se ao projecto racionalista de Tales, em termos de discussão interna, própria da Escola. Quais são as razões que levaram

Anaximandro a estabelecer a tese de que o arché infinito não pode

ser algo determinado, não pode ser nenhum dos denominados elementos? Segundo Gomperz, o grupo de transformações não pode

Page 28: Apontamentos de Filosofia Antiga I

28

servir para explicar a transformação de algumas coisas em outras.

Assim, por exemplo, o ar para converter-se em fogo por rarefação

(aumento de volume), necessita esquentar-se; As nuvens ao condensar-

se se convertem em água, mas para elas necessitam esfriar-se, etc.

Mas o argumento decisivo é que a condensação e rarefação implicam na

limitação do mundo. E se o mundo é finito então nenhuma de suas

partes, nenhuma determinação, pode ser elevada a categoria de arché infinito. Mas porque a condensação e rarefação implicam no limite do

mundo? Se partirmos da hipótese de que o mundo é infinito, e dizer,

que o mundo é composto de infinitas partes [A, B, C,........], então

cabem duas possibilidades:

1. Cada parte é algo determinado e finito; mas neste caso a parte se desintegraria na

infinidade de transformações;

2. A parte ou determinação é algo infinito, mas então nunca se transformaria em outra

parte, pois por mais que condensemos o fogo,

sempre obteremos fogo, etc.

Por reductio ad impossibilem se estabelece a tese de que o mundo das formas é um mundo finito. Logo se é possível a transformação em

mundo das formas, Tanto que elas se absorvem em um Apeiron

indeterminado. A crítica directa a Tales leva a estabelecer como

primeiro principio o arché algo indeterminado. A interpretação do arché como infinito e indeterminado, do Apeiron

como aquele em que todas as formas do mundo, e em particular os

opostos, se reabsorvem, como fonte inesgotável de energia que garante a transformação e unidade do cosmos, indica o caminho feito pela

ontologia geral.

E, sem embargo, também é possível a interpretação do Apeiron nos

limites da ontologia especial. As fontes de Simplício, Ps. Plutarco,

Hipólito, Aécio, etc. Nos informam que o Apeiron não é nenhum dos denominados elementos, mas ao mesmo tempo nos dizem que o Apeiron

é o princípio de todas as cosais existentes. Neste caso o Apeiron não é

nenhum elemento determinado mas indeterminado, em que as determinações se apagam e desaparecem. Alguns textos de Aristóteles

nos apresentam o Apeiron como uma substancia intermediária, entre

todos os elementos, Uma mescla indiferenciada de todas as matérias

empíricas.

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O Cosmos - A segunda ideia de Anaximandro, que chega aos nossos

dias é a ideia de cosmos. o termo kósmo se traduz geralmente por ―mundo‖ e por ‖natureza‖ (no contexto de ―mundo natural‖). Na

evolução semântica do termo kósmo pode-se distinguir os seguintes

estados:

a) Seu significado etimológico é ―ordem ou disposição‖ de certa coisa

(por exemplo, uma tropa de cavalos) e no de ―ornamento‖ (por exemplo, o ornamento feminino, de onde provém cosmética). Segundo Heidegger,

este segundo significado deve interpretar-se como beleza, noção ligada

transcendentalmente a ideia de ser. b) Ordem do mundo;

c) O Mundo como uma ordem;

d) O Mundo em geral sem especial referencia à estrutura ordenada 12.

Anaximandro havia efectuado o passo de (a) a (b) ou (c). Este passo só é

possível através da experiência ou representação de uma ordem concreta no primeiro sentido de (a). Mas o que é ordenação concreta?

Este se refere ao problema dos modelos (sociais, políticos, militares, ou

tecnológicos) da ideia de cosmos. Para Paul Vernant, o cosmos de Anaximandro seria o emblema da nova polis democrática em que o

príncipe o monarca havia sido substituído pelo equilíbrio de forças

democráticas que se contrapesam em torno a um centro: o àgora.

Mas, além dos modelos sociopolíticos de este tipo, existem também os

modelos tecnológicos que parecem gozar de una maior potência explicativa. Esta interpretação foi sugerida por Gomperz. A experiência

tecnológica da roda seria a corrente de transmissão para construção da

ideia de cosmos. Assim, por exemplo, Anaximandro assina trajectórias circulares aos astros, enquanto corpos isolados, mas enquanto

fragmentos de rodas de fogo envoltas em uma espécie de câmara de ar.

A roda nos apresenta assim como esquema inteligível de continuidade ou conservação dos astros. Em todo caso o ágora pode ser considerado

como um reforço do conceito de roda.

Na geração deste cosmos, o gérmen do quente e frio foi segregado do

eterno . A geração do cosmos a partir do Apeiron se produz não por

alteração do elemento, mas ao separar os opostos: quente/frio, seco/húmido. O essencial do Apeiron de Anaximandro não é que se

determine nos elementos e sim em uma ordem de elementos, formando

um cosmos, mas um cosmos enantiológico, um sistema de oposições. O cosmos de Anaximandro é a unidade metafísica do mundo das formas,

mas esta unidade se realiza de um modo diferente como ocorria no

mundo de Tales. O monismo da substancia de Tales unidade do mundo

é a unidade própria das formas que desaparecem umas em outras. Em troca, o monismo da ordem de Anaximandro, a unidade do cosmos é a

unidade das formas que aparecem: não de outras, mas do Apeiron. O

cosmos é, pois, a unidade que as formas devem manter para subsistir

Page 30: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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como tais formas. Esta unidade é já um conceito M3, que no se absorve

em nenhum corpo (M1), nem em nenhuma mente (M2).

O cosmos enantiológico forma um sistema de relações, uma estrutura,

que se realiza em todos os campos, sobre todo o elo astronómico. Neste sentido Anaximandro, antecipando-se aos pitagóricos, é o primeiro em

iniciar a análise matemática da natureza, estabelecendo relações

numéricas entre os corpos celestes e o raio da Terra tomado como

unidade:

Relaciones do raio da Terra com sua altura (a

altura é igual a um terço do diâmetro);

Relações da distância entre anéis com o raio

terrestre (o anel das estrelas e dos planetas em 9 raios, da lua 18 raios, e o anel do sol

em 27 raios).

O cosmos de Anaximandro é um sistema de relação temporal, pois a

partir de onde há geração para as coisas, há ali também a produção da destruição, segundo a necessidade de acordo com a disposição do

tempo. A dinâmica do cosmos se desenvolve conforme duas fases: a

primeira é a formação do cosmos a partir do Apeiron, a segunda fase é a

do retorno de todas as coisas ao Apeiron. O cosmos é um sistema de relação temporal, pois seus términos não procedem de si mesmos (da

transformação de uns em outros), e sim do Apeiron. Anaximandro

explica a formação do cosmos a partir do Apeiron em duas etapas: Na primeira etapa se explica a formação da Terra. Na segunda serão a da

formação das Esferas os anéis.

Do ventre do Apeiron eterno se segrega um gerador do calor e do frio.

Frio e calor são o primeiro par de opostos. O calor dá lugar ao fogo a

massa ígnea que rodeia totalmente o frio como casca e fruta. Esta esfera ígnea tem um movimento circular. O frio por sua vez se

determina em outro par de opostos: o sólido e o húmido. O sólido dá

lugar a Terra. O húmido se determina em líquido (água) e gasoso (ar). Os quatro elementos (fogo, terra, água e ar) que formam nosso cosmos

foram gerados — segundo a disposição do tempo — a partir das

qualidade opostas.

Formação da Terra. o movimento circular da esfera ígnea dá lugar a

um redemoinho que origina a Terra a partir do frio. A terra tem forma cilíndrica, como uma coluna de pedra e o homem habita uma de suas

superfícies planas. A altura da Terra é um terço de seu diâmetro no

princípio, a Terra está rodeada de água (de humidade) por todas as partes, mas o calor do fogo transforma parte da água em ar, e o resto se

converte em mar, caindo livre parte da terra que, sem embargo,

propende a secar-se completamente: o mar é um resíduo da humidade primitiva. Depois uma parte da humidade se evaporou por causa do sol

e se converteu em ventos; enquanto a parte que cai nos lugares ocos da

Page 31: Apontamentos de Filosofia Antiga I

31

terra, é mar. Que por ser secado pelo sol, diminui e acaba secando. A

Terra está no centro do universo, suspendida livremente, sem estar

sustentada por nada, movimentando-se em um espaço infinito, este movimento acaba neutralizado, pois, por estar no centro, as forças de

atracão que actuam desde os distintos lugares da abóbada se

compensam entre si. Assim, pois, a Terra tem que permanecer em seu lugar. Anaximandro parte da ideia de movimento e deduz dela o

repouso da Terra.

Formação das esferas. A cobertura ígnea rodeia e tudo mais se

desgarra para formar anéis separados. Este rompimento se produz por causa do movimento da própria esfera ígnea ou, também, porque a

massa gasosa ao aquecer penetra na esfera ígnea. Estes anéis estão

envoltos por uma massa atmosférica opaca e obscura; mas apresentam

orifícios ou aberturas através dos quais brilha o fogo que aprisionam. O que nós denominamos corpos celestes não são outra coisa que o fogo

que nós percebemos através destes orifícios. A obstrução destes orifícios

produziria segundo Anaximandro, os eclipses e as fases da lua. Existem três classes de anéis: o do sol, o da lua, e dos planetas e estrelas fixas.

O sol é o maior (distante da Terra 27 raios), depois o da lua (18 raios)

seguido das estrelas fixas e dos planetas (9 raios).

Origem dos animais e do homem. Anaximandro enuncia uma tese evolucionista, mediante generatio aequivoca, sobre a origem dos

animais. Os primeiros animais surgem da lama que se vai secando

mediante o calor do sol e estavam recobertos de uma pele ouriçada e

espinhosa para proteger-se do mundo circundante Com ele enuncia uma tese lamarquista-darwinista da defesa das espécies frente a seu

meio ambiente e da troca da forma das espécies em virtude das

mudanças produzidas nesse meio. As mudanças das condições de vida (a mudança fazia o elemento seco) ocasionam o desaparecimento da

casca que rodeava estes seres.

Por outra parte, os homens e mulheres primitivos nasceram já adultos.

Na lama esquentada pelo sol se originaram uns poucos peixes ou animais semelhantes aos peixes em cujo interior se haviam

desenvolvido os homens que permaneceram ali até o amadurecimento.

Anaximandro fundamenta esta tese no seguinte: se o homem houvesse chegado ao mundo na forma que chega actualmente, não haveria

sobrevivido. A argumentação de Anaximandro deveria ser a seguinte:

1) Todos os seres podem valer-se por si mesmos ao nascerem, excepto o

homem que necessita, ao crescimento, de um grande período de

cuidados maternos.

2) Os primeiros homens necessitariam de uma protecção especial

(biológica) que substituiria os cuidados maternos actuais.

Page 32: Apontamentos de Filosofia Antiga I

32

3) Se houvessem tido essa protecção, a espécie humana não teria

resistido.

4) Mas a espécie humana resistiu.

5) Logo os homens primitivos não chegaram ao mundo na forma que

chegam actualmente.

A dinâmica do cosmos em sua segunda fase consiste no retorno de todas as coisas ao Apeiron. O próprio sistema conduz a sua destruição e

absorção no

Apeiron.

Os anéis de

fogo, e do sol particularmente

, enquanto gira

vão determinando

uma evaporação

da água terrestre, que

terminará por

secar a terra (sufocando a vida que há nela) e assim acabará com o próprio ar que envolve os anéis. Produzir-se-ia assim uma espécie de

morte térmica do universo. Em termos mais modernos, se poderia dizer

que o cosmos de Anaximandro leva em seu ventre a morte entrópica,

seu desaparecimento pela conversão de todo o calor, em fogo.

O cosmos de Anaximandro é um equilíbrio — uma ordem, uma entropia

mínima, mas um equilíbrio instável, porque não há perfeita e constante

retribuição (segundo o critério do racionalismo de grupo) de uns

términos a outros. Por ele diz Anaximandro que o mundo é injusto e por

ele (segundo o texto de Simplício) as coisas voltam de novo ao Apeiron

segundo a ordem do tempo

A Multiplicidade dos Mundos - A dinâmica do cosmos de

Anaximandro nos mostra que este tem um começo e um fim. O Apeiron

apresenta dialecticamente no princípio e no fim do cosmos. Mas o

principio é diferente da ideia do Nada e de criação, e no fim significa

aniquilação. Por ele o Apeiron nos apresenta como a conjunção de duas

impossibilidades:

1. A impossibilidade de um cosmos eterno;

2. A impossibilidade da criação e aniquilação.

Page 33: Apontamentos de Filosofia Antiga I

33

Se o cosmos não é eterno e a aniquilação desse cosmos não é possível,

então o fim do cosmos tem que dar origem a novos mundos.

Anaximandro concebe o Apeiron fora do tempo, mas integramente orientado no cosmos. O cosmos em que estamos começa e acaba, e o

Apeiron dá lugar a novos mundos que começam e acabam. Mas a

multiplicidade dos mundos pode ser entendida como simultânea ou como sucessiva. Defendem a pluralidade simultânea Santo Agostinho,

Burnet, W. Capelle, e outros, sobre tudo Kirk e Raven ao manifestar

que, em caso de atribuir a multiplicidade de mundos a Anaximandro, observação de nosso mundo sugere mais a pluralidade simultânea (a

multiplicidade dos astros) que a sucessiva. Defendem a multiplicidade

sucessiva de mundos Zeller e Cornford (Principium Sapientiae) quem

demonstraram a falácia de muitos dos argumentos de Burnet e

conseguiram que a interpretação de Zeller desfrutasse do favor geral.

O principal problema que questiona a pluralidade dos mundos é sua

compatibilidade com o monismo, e Santo Agostinho não deixou de

contrapor o pluralismo de Anaximandro e o monismo de Tales, pois acreditava (Anaximandro) que o princípio das coisas singulares era

infinito e dava origem a mundos inumeráveis. Efectivamente, se o

Apeiron dá origem a infinitos mundos coexistentes no tempo (simultâneos), então não é possível incluir Anaximandro no monismo

milesiano. A unidade do Apeiron implica na unidade do cosmos, mas

esta unidade chocar-se-ia com a multiplicidade simultânea de mundos

singulares. Para tanto a pluralidade de mundos coexistentes romperia a unidade do Apeiron em quanto esta se funda por referencia al cosmos. Sem embargo a multiplicidade sucessiva de mundos se parece

compatível com o monismo, pois a unidade do Apeiron se mantém por referência a singularidade de cada mundo. A sucessão infinita de

mundos pode ser entendida de duas maneiras:

1. Como continuidade cósmica. A sucessão

entre dois mundos é uma continuidade

cósmica. Mas se a sucessão entre dois mundos se mantém no plano cósmico então

existe uma continuidade de cosmos. Isso

conduz à tese de que, em realidade, não existe propriamente uma pluralidade nem

sucessiva nem simultânea de mundos (ideia

de continuo que havíamos atribuído a Tales de Mileto).

2. Como hiatos acósmicos (metakósmia).

Entre mundo e mundo existiriam hiatos

extracósmicos (Apeiron). A ideia de inter-mundia (metakósmia) é uma ideia limite de

cosmos, que não podemos conhecer em si e

por isso nos apresenta como indeterminado.

Page 34: Apontamentos de Filosofia Antiga I

34

Mas a Ideia de metakósmia tampouco é incompatível com a de

simultaneidade, no caso de que a multiplicidade de mundos isolados

constitui um cosmos que tem como limite a ideia de meta cosmos.

O Fragmento de Anaximandro

"O ilimitado é a origem dos seres. E a fonte da geração das coisas existentes é

aquela na qual a destruição também acontece [segundo a necessidade

porquanto pagam castigo e retribuição uns aos outros, pela sua injustiça,

de acordo com o decreto do tempo] como ele se exprime, nestes termos um

tanto poéticos." (Trad. M. H. Rocha Pereira)

Conclusão:

Anaximandro, natural de Mileto, ficou famoso na Antiguidade por ter

desenhado um mapa. Foi um companheiro de Tales, mais jovem do que este.

Anaximandro escreveu um livro, em prosa e cujo título é Acerca da

Natureza. Tudo isto merece algumas considerações.

O título não é de completa confiança: é possível que o título original se

perdesse e mais tarde se atribuísse esta designação genérica às obras dos pré-

socráticos. Mas é interessante notar-se que, mesmo que o título seja

posterior, ele corresponde ao domínio tratado pelo filósofo.

É relevante o facto de Anaximandro ter escrito um livro em prosa.

Em primeiro lugar o pensamento de Anaximandro torna-se público, isto é,

pode ser abordado por quem tenha curiosidade para tal. É uma atitude que

acompanha, quase sempre, a Filosofia.

Em segundo o facto de o livro ser em prosa mostra uma audácia da parte de

Anaximandro. O universo cultural é dominado pela poesia no tempo do

filósofo.

Escrever em prosa era abandonar os padrões mais elevados e, em

contrapartida, Anaximandro conferia à prosa a dignidade de poder constituir o

veículo do saber.

Page 35: Apontamentos de Filosofia Antiga I

35

Vejamos agora a doutrina de Anaximandro.

O filósofo debruçou-se sobre o mesmo problema do seu antecessor: o que é a

physis? E Anaximandro dá a resposta: a substância primordial é o apeiron.

O termo Apeiron aparece na linguagem vulgar grega: nela significa algo sem

limites, inacabado e por isso não é perfeito ou belo. Porém, para

Anaximandro o termo embora conserve o sentido de qualquer coisa sem

limites tem uma dignidade que não possui na linguagem vulgar.

A substância primordial para Anaximandro é algo sem limites e

indeterminada. Esta última característica é fundamental para se

compreender o que é o Apeiron. Este não é uma substância determinada

como a água, por exemplo, mas também não é uma mistura de substâncias. Se

fosse uma substância determinada destruiria todas as outras, na medida em

que a physis é infinita.

É importante assinalar que a substância primordial é increpada e

imperecível: temos aqui patente a importância e a dignidade do Apeiron que

existe desde sempre e existirá para sempre.

Indiquemos igualmente a identificação da Divindade com a substância

primordial; a este respeito façamos as seguintes observações:

As características do Apeiron são tão importantes que são dignas para

aplicar à Divindade;

Se a Divindade é a substância primordial não é antropomórfica o que

mostra a inovação introduzida por Anaximandro.

O filósofo está interessado na génese do Universo e sobre este tema temos

alguma documentação, embora escassa.

Para Anaximandro, em determinada altura, separou-se do apeiron uma

massa capaz de produzir o quente e o frio; em seguida a parte fria ocupa o

centro e a quente vai envolvê-la.

Ora, é esta situação que vai provocando a secagem, progressiva, da parte

fria e a evaporação vai ter como resultado a fragmentação da esfera de fogo.

A arquitectura do universo de Anaximandro é a seguinte:

Page 36: Apontamentos de Filosofia Antiga I

36

A Terra tem uma forma cilíndrica;

A Terra está imóvel, no centro, sem necessitar de qualquer suporte

porque está equidistante de todos os outros pontos;

os astros são constituídos por rodas ou anéis (das estrelas, da Lua e do

Sol) cheias de fogo, envoltas por uma película opaca e com aberturas

pelas quais sai a luz.

A maior ou menor obstrução dos orifícios explica os eclipses e as fases da

Lua. Esta explicação é relevante pois mostra que Anaximandro dá resposta a

fenómenos particulares inserindo-os numa teoria geral.

No que diz respeito ao tema das origens façamos, ainda referência à dos

seres vivos. Segundo Anaximandro os seres vivos nasceram da lama e nos

primeiros tempos, devido à escassez de terra firme, eram peixes ou

semelhantes aos peixes.

O homem foi idêntico aos outros seres e em determinada altura veio para

terra firme e perdeu a sua carapaça espinhosa. Podemos fazer as seguintes

observações:

Os seres vivos não tiveram sempre o mesmo aspecto, atravessaram

uma certa evolução;

Há uma adequação entre os seres vivos e o ambiente.

Deixemos para o fim o fragmento de Anaximandro, as primeiras palavras de

um filósofo que chegaram até nós. Vamos transcrevê-lo no contexto do

comentador (Simplício) que o conservou:

"O ilimitado é a origem dos seres. E a fonte da geração das coisas

existentes é aquela na qual a destruição também acontece [segundo a

necessidade porquanto pagam castigo e retribuição uns aos

outros, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do tempo]

como ele se exprime, nestes termos um tanto poéticos." (Trad. M. H.

Rocha Pereira).

Page 37: Apontamentos de Filosofia Antiga I

37

As palavras de Anaximandro estão entre parênteses rectas.

Numa primeira leitura e seguindo a letra do fragmento podemos concluir que

se trata de um quadro ético-jurídico: termos tais como castigo, injustiça,

decreto do tempo parecem indiciar esta interpretação.

Todavia, podemos perguntar se fará sentido que coisas inanimadas, por

exemplo, cometam qualquer injustiça e por isso tenham de ser castigadas. É

provável que Anaximandro utilizasse termos poéticos, como diz Simplício,

para descrever um determinado quadro. O filósofo poderia querer dizer que a

noite para surgir necessitava que o dia desaparecesse assim como a uma

estação sucedia outra.

O que queremos afirmar é que as coisas actuais não permitem o

aparecimento de outras e é necessário que essas desapareçam para que

outras venham à existência. E é também muito possível que este universo,

segundo Anaximandro, um dia seja destruído para outro se formar.

Assinalemos, por fim, que para o milésio o universo é regido por normas (os

decretos do tempo); é um universo regido pela necessidade e não pelo acaso.

Page 38: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Anaxímenes de Mileto

O Ar

Anaxímenes de Mileto é o terceiro e último importante filósofo da escola

jónica antiga, no quadro ainda da fase Milesiana.

Embora pouco se saiba de sua vida, ele é contudo citado com

frequência para dizer que foi sua a proposição do ar como elemento básico na formação de tudo.

Dedicou-se à meteorologia, foi o primeiro a considerar que a lua recebe

a luz do sol. Era companheiro de Anaximandro. Hegel diz que

Anaxímenes ensina que nossa alma é ar, e ele nos mantém unidos, assim um espírito e o ar mantém unido o mundo inteiro. Espírito e ar

são a mesma coisa.

A substância Primordial volta a ser uma coisa determinada como em

Tales. Anaxímenes identificou o ar talvez porque tenha visto seu movimento incessante, e que a vida e o ar andam juntos, na

maioria dos casos. A respiração é um processo vivificante,

dependemos dela durante toda a nossa vida. Ele via que no céu existem nuvens, e que a matéria possui diferentes graus de

solidez.

Vida - Anaxímenes de Mileto, filho de Eurístrato, foi discípulo de

Anaximandro. Nasceu quando Anaximandro tinha 25 anos,

possivelmente no ano 585 a.C., no mesmo ano do eclipse predito por Tales. Anaxímenes nasceu, quando Mileto ainda era florescente cidade

independente e liderava as cidades da confederação jónica. Sardes,

capital do reino Lídio, fora conquistada mais cedo pelos persas em 546 a.C. e também mais cedo foi destruída. Mileto, ainda por algum tempo,

continuou próspera, mesmo quando reduzida à parte da satrapia persa

instalada com domínio sobre toda a Jónia.

Page 39: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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O verdadeiro significado de Anaxímenes está em haver dado

continuidade à ciência e à filosofia em curso. Por Anaxímenes se

constata que a ciência e a filosofia, já nascidas, prosperam definitivamente por fora das tradições dogmáticas mitológicas.

A influência de Anaxímenes ocorreu sobre os mais diversos filósofos,

como por exemplo Pitágoras, Melisso, Anaxágoras, Demócrito, Diógenes

de Apolónia.

Nada mais se sabe sobre sua vida e profissão. Supõe-se que escreveu

um livro pois segundo as informações de Diógenes Laércio ―escreveu em

dialecto jónico em um estilo simples e conciso‖. Vale lembrar que naquela época os autores se utilizavam de papiros, uma vez que não

existiam livros de facto.

Restam somente três reduzidos fragmentos dos escritos de Anaxímenes

de Mileto. Estes se devem às citações feitas por Plutarco e Aécio.

"Escreveu em língua jónica, com simplicidade e sobriedade". O idioma grego se falava em 4 dialectos básicos, o acádico, de Atenas, se tornou o

principal, sendo que o jónico, muito próximo do acádico, foi também a

língua de importantes obras. Se Diógenes Laércio avaliou o estilo de Anaxímenes, isto pode significar que o livro do filósofo Anaxímenes de

Mileto ainda se conservava ao seu tempo. Mais provável, entretanto, é

que a informação tenha vindo através de Teofrasto, que, por sua vez,

poderia ter conhecido a obra.

De outra parte, a observação sobre a simplicidade e sobriedade do estilo

de Anaxímenes pode indicar diferença com aquele de Anaximandro, ao

qual tinha como poético.

O ar como elemento

Cosmologia

Ar como primeiro elemento na composição da matéria - O ar como primeiro e infinito elemento. Divergindo de Tales, proponente da água e de Anaximandro do infinito, agora Anaxímenes propõe o ar como elemento fundamental da natureza, a partir de cuja complexificação se formam todas as coisas, e no qual elas todas se decompõem. A ideia fundamental continua a mesma, de que tudo se forma a partir de um

elemento primeiro, o qual subsiste por si só e é consequentemente divino.

Anaxímenes propõe como arché o ar que é um principio infinito, como o Apeiron de Anaximandro; mas determinado, como a água de Tales. Por

isso podemos interpretar a filosofia de Anaxímenes como uma espécie

de síntese entre Tales e Anaximandro. o racionalismo de Anaximandro é

um racionalismo aberto pois a transformação de umas coisas em outras só é possível por meio do Apeiron. Em Anaxímenes assistimos

novamente o racionalismo cercado do grupo de transformações. O ar

Page 40: Apontamentos de Filosofia Antiga I

40

como arché substitui a água de Tales, mas por sua vez incorpora

algumas das propriedades do Apeiron de Anaximandro.

Em Anaximandro o arché é infinito e indeterminado. Para Anaxímenes

o ar, como arché, é um Apeiron (infinito), mas determinado.

Anaxímenes encontrou no ar empírico uma série de propriedades que

desempenhariam melhor que os outros elementos as funções de arché. Por esse motivo ele não escolheu o fogo, a terra ou a água. Em primeiro

lugar l invisibilidade do ar. Segundo Hipólito 4 o ar ―quando é perfeito é

imperceptível à visão‖. O ar é infinito, mas determinado. Mas a determinação do ar é mais abstracta a os sentidos que a água: é

invisível como o Apeiron.

O ar é infinito e “envolve todo o cosmos” pois o ar empírico parece

não ter limites, ocupa uma vasta região do mundo já desenvolvido

e penetra todas as coisas: A omnipresença extensiva do ar empírico é maior que a da água. O ar é, além disso, um princípio

activo e em movimento (empurra os barcos, movimenta as ondas,

etc.).

Em segundo lugar o ar tem carácter divino ―Anaxímenes diz que o ar é Deus‖ e se compara com a alma. Melhor que a água o ar constitui a

matéria adequada para o racionalismo do grupo de transformações. A

condensação e a rarefação são atribuídas por Simplício tanto a Tales como a Anaxímenes. Além disso, segundo informações de Hipólito o ar

se manifesta distintamente ao condensar-se, se fazendo mais subtil‖. O

ar ao rarefazer-se aumenta o volume e se converte em fogo.

Ao condensar-se diminui o volume e se transforma em água e em terra.

São por tanto as mudanças quantitativas (aumento o diminuição de volume) que produzem as diferenças qualitativas. Anaxímenes introduz

um princípio gradualista ao passo da quantidade à qualidade: natura non facit saltus. Além do mais os dois opostos (quente e frio) que Anaximandro extraía do ápeiron, Anaxímenes os constroem por meio da

condensação e da rarefação: comprimido e condensado é frio e rarefeito

é quente.

A partir das notícias de Simplício (as demais coisas se produzem a

partir destas substâncias) e de Cícero (Anaxímenes disse que o ar é

infinito, mas as coisas dele nascem finitas: a terra, a água, o fogo e, a

partir destas, todas as demais), Anaxímenes para explicar a formação

dos corpos compostos não necessita remontar-se ao ar como princípio,

bastando fazê-lo a partir de substâncias básicas ou elementos simples

(fogo, ar, vento, nuvens, água, terra) que compõem os demais corpos. Se

isto for verdade, Anaxímenes seria o pioneiro da ideia de elemento, já

Page 41: Apontamentos de Filosofia Antiga I

41

que esta ideia não foi anunciada formalmente até Empédocles: conhecer

racionalmente os fenómenos não significa explicar as coisas por seus

últimos princípios (por exemplo, a partir do ar) mas a partir dos

elementos.

Cosmologia

As informações que temos da cosmologia de Anaxímenes são escassas e, por geral, manifestam opiniões bastante ingénuas. Assim, a terra, o sol, a lua e os demais astros ígneos cavalgam sobre o ar e são planos.

Os astros não se movem de baixo da terra, mas ao redor dela ―como gira

um chapéu ao redor de nossa cabeça‖. O sol gira ao redor da terra em

um plano horizontal e se oculta porque o cobrem as partes mais

elevadas da terra e porque aumenta a distância em relação a nós.

Em outras ocasiões suas opiniões se acercam mais da verdade que as de seu mestre Anaximandro. Assim mantém a tese de que a lua reflectia

a luz do sol, que os eclipses do sol e de lua acontecem quando estes

corpos são ocultados por outros corpos celestes.

Page 42: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Fragmentos

I ―...O sol é largo como uma folha...".

II ―... Do ar nascem todas as coisas existentes, as que foram e as que serão, os deuses e as coisas divinas...‖.

III ―... O Ar é Deus...‖.

IV ―... O ar contraído e condensado da matéria é frio, e o ralo e frouxo é quente. Como nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o Cosmo, sopro e ar mantém...''.

Conclusão:

O terceiro milésio, Anaxímenes, escreveu um livro em prosa, Acerca da

Natureza, num estilo simples, segundo testemunho que chegou até nós.

O tema principal para este pensador é o mesmo dos seus antecessores:

a physis. A substância primordial é a bruma para Anaxímenes.

O que se pode perguntar agora é o seguinte: conhecendo Anaxímenes

as críticas do seu antecessor às substâncias determinadas porque é que

o terceiro milésio escolheu a bruma? É aqui que entra uma explicação

francamente engenhosa.

Segundo Anaxímenes a substância primordial transforma-se nas

várias substâncias que vão formar as coisas através do processo de

rarefacção e de condensação. Assim, por exemplo, a bruma rarefazendo-

se ao máximo transforma-se em fogo e na condensação máxima dá

origem as pedras.

Estamos perante uma resposta subtil a um problema difícil, ou seja, a

passagem da substância primordial (neste caso determinada) às outras

substâncias.

Anotemos, ainda, que a bruma para Anaxímenes é infinita e é a

divindade suprema. São dois aspectos que vêm de Anaximandro;

acentuemos que a noção de infinito pertence ao património filosófico

milésio.

Page 43: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Segundo Anaxímenes o universo deve a sua génese ao processo de

rarefacção e condensação. Assim, surgiu a Terra, achatada, assente na

bruma, e os astros que circulam em redor da Terra são corpos ígneos.

O fragmento que chegou até nós, atribuído a Anaxímenes não merece

grande confiança devido às interpolações que sofreu. Desta forma será

mais prudente procurar o sentido geral da passagem preservada por

Écio:

A bruma é o lugar do nascimento e da destruição das coisas

existentes.

Quanto ao fragmento parece que alma de que nos fala o filosofo é vital

e sensitiva ou seja o que nós hoje chamamos vida. Desta forma parece

que a alma que o fragmento fala não é intelectual.

A bruma cerca e sustenta todo o universo, mas segundo pensamos,

Anaxímenes desejava reafirmar também o principio que a bruma é

estrutura de tudo quanto existe, é por assim dizer que a estrutura do

corpo e é ela que nos faz mover com que a actividade humana seja

possível.

A afirmação de que a alma é a bruma não nos deve espantar pois tal

ideia que nos parece constituir o sentido de todo o fragmento, é

coerente com a doutrina de Anaxímenes. De facto a substancia

primordial não é só a origem como a estrutura das coisas existentes, é

perfeitamente admissível que o milésio considerasse que a alma fosse

constituída por bruma já que o homem também sendo uma coisa

existente, deveria estar integrado na mesma substancia primordial. A

alma embora esta seja vital ou sensitiva, é algo extremamente

importante e tal como possui a dignidade de ser composta pela

substancia primordial.

Diremos apenas que há uma analogia entre a alma humana, que é

bruma, e a bruma que cerca (sustenta) o mundo. Não é para espantar

que a alma seja constituída por bruma (possivelmente no seu estado

puro) já que esta está presente em todas as coisas. A alma dá o

movimento ao corpo humano e a bruma sustenta o universo.

Page 44: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Xenófanes de Cólofon

Filósofo grego, que emigrou da Jónia para o Ocidente. Fixando-se

finalmente em Eleia, passou a ser considerado o fundador da escola do

mesmo nome. Esta se fez famosa por defender a unidade e imutabilidade do ser, e pela reduzindo a diversidade e o

movimento às impressões subjectivas dos sentidos.

A curta biografia legada por Diógenes Laércio sobre Xenófanes é

praticamente só o que sabe a seu respeito. A partir de uma análise se

determinam mais alguns esclarecimentos.

"Xenófanes, filho de Déxio, ou de acordo com Apolodoro, de Ortomenes,

era de Colófon. Foi elogiado por Timon assim: Xenófanes, não altivo,

castigador com homéricos embustes.

Foi banido de sua cidade natal. Viveu em Zancle, e em Catânia. Segundo alguns, não foi discípulo de ninguém; segundo outros foi

discípulo de Boton de Atenas, ou como dizem alguns, de Arquelao.

Socion o fez contemporâneo de Anaximandro. Seus escritos são em

metro épico, como elegias e Jambos, contra Hesíodo e Homero, denunciando o que eles diziam sobre os deuses. Ele mesmo cantava

seus versos.

Diz-se ainda que se opôs às opiniões de Tales e Pitágoras, e atacou

também a Epimênides. Atingiu uma longa idade, como testemunhou por suas próprias palavras: Sessenta e sete são agora os anos em que

me agito em cuidados pela terra grega; antes já eram passados outros

vinte e cinco anos, se ainda sei dizer a verdade a cerca disto" (D. L., IX,

18-19).

Depois de se referir às suas doutrinas, retoma Diógenes Laércio as

informações biográficas: "Xenófanes escreveu dois mil versos sobre a

fundação de Altabosco [Colófon] e a colonização de Elea na Itália.

Page 45: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Floresceu na sexagésima olimpíada 540-537 a.e.c. Lê-se também em

Demétrio de Falera, no Tratado da velhice, e em Panécio o Estóico, Da tranquilidade, que enterrou os filhos com as próprias mãos. Acredita-se houvesse sido vendido como escravo e posto em liberdade pelos

pitagóricos Parmenisco e Orestades" (D., L., IX, 20). Pouquíssimo mais

se encontra em outros doxógrafos, que citaremos oportunamente.

Vida

Vida acidentada no Oriente - Infere-se dos dados conhecidos que Xenófanes tenha nascido pela volta de 570 a.c Teria deixado a Ásia

Menor aos 25 anos quando já não era considerada terra grega, pois em

548 a.C. a conquistara o rei Ciro da Pérsia. Para ter sido discípulo de Anaximandro, falecido por volta de 545 a.C., deveria também ter

nascido cerca do ano 470 a.C.

Creso, rei da Lídia [Ásia Menor], que sucedeu a Aliates em 571

conquistou a vizinha Éfeso, principal cidade a cujo grupo pertence Colófon. A esta nova situação parece estar coerente uma referência de

uma elegia de Xenófanes aos seus compatriotas colofônios, quando diz

que: "Com os lídios aprenderam os modos relaxados, nocivos; e, antes

de experimentarem a odiosa tirania, dirigiam-se ao agorá, não menos de mil cada vez, revestidos de púrpura, cheios de orgulho, envaidecidos de

seus bem amaneirados cabelos, gotejantes de artificiosos bálsamos"

(Frag. 3) (Atheneu XII, 526 A).

Uma longa vida no Ocidente - Depois de sua fase jovem de até 25 anos (e o poeta se revela sobretudo nesta idade), teria vivido mais 67

anos perambulando por terras gregas, como deixa calcular pelos seus

versos. Resulta ter alcançado 92 anos, e, por conseguinte o ano de 475 a.C. O clima em que tudo isto se dá, admite dizer que tenha sido

compelido a sair de sua pátria, por ocasião da conquista persa, quando,

em 548 a.C. o rei Ciro derrota a Creso da Lídia (capital Sardes), à qual

até ali estavam submetidos os efésios.

Xenófanes de Colófon, o cantor afoito, não teria sido bem visto pelos novos senhores da Ásia Menor, os persas. Expulso, terá sido mandado

andar e cantar por outras terras. Agora o artista empobrecido, se

aprimora como pensador e crítico, radicando-se finalmente em Elea,

depois de passar por Zancle e Catânia cidades da Sicília.

O fato de haver enterrado seus próprios filhos outra vez confirma sua

longa idade, ao ponto de ter sobrevivido a estes. Os versos para Colófon

significa haver actuado em sua terra pelo tempo suficiente para formar vivências, que teria depois transformado em poema de saudade. Por sua

vez os versos sobre Elea confirmam sua estadia significativa nesta.

Não tendo sido um homem rico e nem mestre de uma escola, o colofônio

exilado foi um pregador de civismo e de pensamentos filosóficos, morais

Page 46: Apontamentos de Filosofia Antiga I

46

e religiosos, através de um importante instrumento de comunicação, o

do canto e da recitação. Desta sorte influenciou aos de sua época.

Receptivo, por causa de sua arte, ensinou um pensamento novo,

reagindo contra os aspectos mais ingénuos da religiosidade mítica.

Anterior a Parménides - Não é clara a posição de Xenófanes 570 - 475

a.C. como fundador da escola de Eleia, sendo todavia muito plausível,

que o tenha sido. Dado como mais antigo em relação a Parménides, a atribuição de fundador da escola, se faz sem contradição. Apoia-se na

afirmativa de Aristóteles, feita século e meio depois: "Xenófanes, o mais

antigo partidário da unidade, pois Parménides foi, se diz, seu

discípulo…" (Metafísica 986 b 21-22).

As poucas informações colocam portanto a Xenófanes antes de Parménides, e ainda como o mais antigo unicista, mas não o declara

directamente fundador da escola. Em Platão o texto também é fugidio:

"Lá a nossa gente de Elea, que vem de Xenófanes, e de mais além…

(Sofista, 242 d).

Diógenes Laércio, que se limitou a dizer que Parménides fora discípulo

de Xenófanes, não se refere a este como fundador da Escola de Elea. As

informações vagas se repetem nos doxógrafos, vindo finalmente a ser expressamente afirmada a posição de Xenófanes como fundador da

escola de Elea: "Xenófanes, o fundador da escola eleata…" (Teodoreto

IV, 5, in Aécio).

Obras

Restaram apenas fragmentariamente, nas citações de outros autores,

representadas por meia dúzia de páginas de versos, com predominância

de elegias e sátiras.

Mas é sobretudo em informações doxográficas que encontramos suas

doutrinas tipicamente eleáticas; elas vêm de Platão, Aristóteles,

Simplício, Sexto, Hipólito, Aécio. Mas os versos fragmentários se prestam para estabelecer o clima religioso e moral em que se situava.

Perderam-se, todavia, os versos referentes à fundação mesma de

Colófon e Elea.

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Doutrinas:

A terra como elemento | Metafísica é a Glória de Xenófanes | Unidade

do Ser | Subjectivismo e Relativismo | Ser Uno | Antropomorfismo | Entidades Divinas Secundárias | Ética | Entidades Divinas

Secundárias | Cosmogonia | Meteorologia

A terra como elemento - Tal como os primeiros jónicos, a investigação

de Xenófanes foi primeiramente à busca de uma natureza elementar a

partir da qual se formariam todas as coisas. Tales propusera como primeiro elemento a água, Anaximandro o infinito, Anaxímenes o ar,

Heráclito o fogo. Xenófanes propõe a terra. "Pois tudo vem da terra e na

terra tudo finda" [Frag. 27] (Aécio IV, 5). Todavia, não há rigidez na

proposição de Xenófanes.

Também diz: "Terra e água é tudo quanto vem a ser e cresce" [Frag. 29]

(Simplício, Física 188, 32).

"Pois todos nascemos da terra e da água" [Frag. 33] (Sexto, Contra os

matemáticos X, 314).

"Porfírio afirma que Xenófanes considera princípios o seco e o húmido;

eu digo que ele considera a terra e a água" (Filopono, Física 125, 27).

A metafísica é a glória de Xenófanes - Partindo para uma nova interpretação da diversidade múltipla da natureza, dizendo que esta

multiplicidade é apenas o efeito aparente dos sentidos, estabeleceu a

unidade em si mesma da coisa que existe. O ser é uno e imutável, não se dividindo e não se multiplicando, nem se transformando e nem se

movendo. A base desta afirmação a estabeleceu Xenófanes mediante

considerações metafísicas. Seus sucessores avançarão as especulações, mas é com o velho rapsodo que tiveram início. As relações entre o uno e

o múltiplo são diferentes das que se supunham até então: "Opõe-se às

opiniões de Tales e Pitágoras, e também de Epimênides" (D. Laércio, IX,

18), – eis como se pode entender o texto já citado anteriormente.

Unidade do ser - Percebendo a unidade da natureza – à que chama terra, a intuiu já não somente como sendo esta matéria sensível, mas

simplesmente como um todo entitativo, assim apreendido pela

inteligência. As coisas são simplesmente ser, instituído como resultado de uma especulação abstracta, alteado este ser acima do meramente

sensível. O ser é indicado por qualificativos como uno, eterno, imutável,

infinito, divino.

Num diálogo de Platão se exprime pitorescamente o Estrangeiro de Eleia: "Cada qual parece que nos conta um conto, como se fossemos

crianças. Diz um que são três os seres que ora se combatem, ora se

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48

convertem em amigos, dos quais assistimos as bodas, os partos e a

criação dos filhos. Outro, dizendo que são apenas dois, o húmido e o

seco, ou quente e o frio, junta-se e os casa. Mas, lá a nossa gente de Eleia, que vem de Xenófanes, e de mais além, admite em suas doutrinas

que um único é o ser, designando tudo" (Platão, Sofista 242 c-d).

Adverte Aristóteles contudo que Xenófanes não aprofundou a doutrina

da unidade do ente. Concluída a exposição das doutrinas pluralistas do ente, continua o Mestre do Liceu, comentando as da unidade. "O

pensamento dos velhos filósofos, que admitiram a pluralidade dos

elementos da natureza, está suficientemente conhecida pelo que precedeu. Há ainda outros que professaram que o todo é uma só

realidade, mas a excelência da exposição não alcança o mesmo nível

junto de todos, nem a conformidade com os fatos" (Aristóteles,

Metafísica, 986, b, 10).

Esclarece que não se trata de um princípio primordial, a partir do qual as coisas derivam. "A discussão de suas doutrinas não entra no quadro

do presente exame de causas. Eles não procedem à maneira de certos

fisiólogos; estabelecendo o ser como um, não engendra todas as coisas a partir do Uno considerado como matéria. Suas doutrinas são outras.

Enquanto os fisiólogos admitem o movimento no todo, os filósofos de

que falamos pretendem, pelo contrário, que o todo é imóvel" (Metafísica,

986b 13).

Prossegue Aristóteles distinguindo entre unidade material (aquela

adquirida por um elemento de determinada espécie, por exemplo, a

água) e a unidade formal (por definição), adquirida pela unidade simplesmente do ente. Pretende, então, dizer que Parménides alcança a

unidade formal do ser, ao passo que não Melisso. Quanto a Xenófanes

não teria alcançado precisão de conceitos sobre o assunto. Na verdade,

Xenófanes tem a visão da unidade, através da unidade da natureza, de suas leis, de suas transformações cíclicas. Transcende à unidade

material, sem maiores esclarecimentos, sobre monismo fundamental.

"Parménides concebeu a unidade quanto à definição e Melisso a

unidade material; ela é finita, para o primeiro, infinita, para o segundo.

Quanto a Xenófanes, o mais antigo adepto da unidade (pois se diz que Parménides foi seu discípulo), não há nada claro, visto que não parece

ter entendido a natureza de uma e de outra destas causas. Mas,

observando o universo material em conjunto, asseverou que o Uno é Deus. Estes filósofos, como dissemos, deverão ser postos à margem da

presente investigação, e completamente dois deles, cujas concepções

são, em verdade, muito grosseiras, a saber, Xenófanes e Melisso. Pelo

contrário, Parménides parece raciocinar aqui com mais penetração"

(Metafísica, 986b 20-25).

Page 49: Apontamentos de Filosofia Antiga I

49

Subjectivismo e relativismo - O unicíssimo de Xenófanes, - qualquer

seja a avaliação de sua profundidade, - tem implicações gnosiológicas, -

o carácter subjectivo e relativo do conhecimento. Conscientizou-se Xenófanes sobre a dificuldade do problema levantado. E isto é

importante anotar. Parece haver estado próximo do vago cepticismo

depois praticado por outros: "Não há homem algum que claramente visse, e nenhum haverá jamais que claramente tivesse visto, e saiba dos

deuses e de tudo quanto eu falo; pois ainda que alguém viesse a

pronunciar o melhor possível a lavra definitiva, nem esse saberia: sobre tudo recai a opinião" (Sexto, Contra os matemáticos, VII 49, 110; Plut.

Aud. Poet. 2 p.17 E).

Sobre a relatividade advertiu Xenófanes que: "Se Deus não tivesse

feito o dourado mel, muito mais doces diriam [os homens] são os

figos" (Frag. 38, em Herodiano Gramático, Sobre particularidades da

linguagem, 41,5).

Diante da diversidade oferecida pelos sentidos, os eleatas advertem que

é preciso ficar com a razão, que oferece a unidade e a imobilidade do

ser. Sobre esta ponderação dos eleatas informou genericamente

Aristóteles: " Achavam, com efeito, alguns dos antigos, que o ser é um e imóvel. Alegando, que o vazio é um não -, não podendo haver nele

movimento, porquanto não há vazio separado" (Da geração e corrupção,

I, 8. 825a 2).

O ser uno é caracterizado como divino – a tudo superior - Repete aqui Xenófanes o pensamento dos Milésios, que faziam do elemento

primordial um ser divino. Trata-se, pois um panteísmo monista, ou

simplesmente de um monismo materialista.

"Teofrasto assevera que Xenófanes admite um só princípio, considerando o ser como um e tudo (nem finito, nem infinito, nem

móvel, nem imóvel). Concorda, Teofrasto, que a menção desta doutrina

mais convém a outro domínio, que ao da história natural. Porque, na

verdade, no dizer de Xenófanes, este um e tudo é Deus.

Declara que é um, por ser o mais poderoso de todos; se vários entes houvesse, estaria repartido em igualdade o poder entre todos; ora Deus

é o que há de mais sublime e a tudo superior quanto ao poder. É

ingénito; o que nasce, haveria de nascer, ou do semelhante, ou do dissemelhante. Ora, o semelhante, diz ele, não pode exercer este efeito

(de gerador) sobre o semelhante, porquanto não convém mais a um que

a outro o gerar e o ser gerado. De outra parte, se nascesse do dissemelhante, nasceria do que não é. Assim demonstra a

ingenerabilidade e a eternidade.

Não é infinito; porque o infinito é o não ser, pois não tem início, nem

meio, nem fim e porque (só) os múltiplos seres se limitam reciprocamente. Do mesmo modo elimina o movimento e o repouso;

Page 50: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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porque o imóvel é o não ser, que em outro não se torna, nem outro nele

se torna; o movimento convém mais ao múltiplo, que o uno, pois neste

caso podem um em outro se transmutar. Por conseguinte, quando se diz – E sempre se mantém no mesmo lugar, sem mover-se, nem convém

à sua natureza que se mova para cá e para lá [Frag. 24], entenda-se não

a imobilidade que se opõe à mobilidade, mas sim a estabilidade sem

movimento e sem repouso.

Nicolau Damasceno, em seu tratado A cerca de Deus, atribui a ele

[Xenófanes] a declaração de que o princípio é infinito e imóvel.

Conforme Alexandre (de Afrodísio), seria limitado e esférico. Claramente

sua doutrina é a que ele é infinito e ilimitado; demonstra a limitação e a

forma esférica dizendo que semelhante é o ente por todos os lados. Também afirma que ele pensa todas as coisas, dizendo – e sem custo

tudo move por força do próprio pensamento (Simplício, Física, 22,22ss).

A mais antiga advertência contra o antropomorfismo teológico -

Destacou-se Xenófanes pelo seu combate aos conceitos antropomórficos da divindade, ocorridas sobretudo na religião tradicional. Ainda que se

pudesse pôr restrições a tudo o que houvera o mesmo Xenófanes dito

sobre a natureza divina, encontrava-se no recto caminho, o de uma análise ontológica a partir do ser. Até seu tempo, foi Xenófanes o

melhor dos profetas, no sentido de haver melhor falado sobre Deus.

Nenhuma teologia é boa, sem uma correcta noção filosófica de

divindade.

Aqui importa relembrar o texto de Platão em que o Estrangeiro ridiculariza o que se diz dos deuses e adverte para a doutrina do ser:

"Mas lá a nossa gente de Eleia, que vem de Xenófanes, e de mais além,

admite em suas doutrinas que um único ser é o que designa tudo"

(Sofista 242 d).

O mérito teológico de Xenófanes também foi reconhecido por Aristóteles:

"Os poetas representam a opinião dos homens, como as histórias

que se contam dos deuses. Essas narrativas talvez não sejam

verdadeiras, nem melhores; talvez as coisas sejam como pareciam a Xenófanes; no entretanto, assim as dizem os homens" (Poética, 25

p.1460 b 35).

Em outro passo: "… dizia Xenófanes que tantos são ímpios os que

afirmam que os deuses nasceram, como os que asseveram que eles morreram. De ambos os modos se diz que em determinado tempo

não existiram" (Retórica, II, 23 p. 1399 b 5).

"Perguntaram os cidadãos de Eleia a Xenófanes se deviam, ou não,

oferecer sacrifícios a Leucotéia, e lamentá-la como uma defunta. Aconselhou-os a que não lamentassem, se como deusa a veneravam;

mas se a consideravam como um ser humano, não lhe deveriam

Page 51: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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sacrificar" (Ibidem, II, 26 p. 1400 b 5). Fragmentos dos Silos apresentam

a mesma linguagem satírica de Xenófanes contra as imaginações

antropomórficas.

"Homero e Hesíodo imputaram aos deuses tudo quanto entre os homens e indecoroso e censurável: roubos, adultérios, enganos

recíprocos" [Frag. 11] (Sexto, Contra os matemáticos, IX, 193). "Muitos

actos ilícitos eles contam dos deuses: roubos, adultérios, enganos

recíprocos" [Frag. 12] (Ibidem, I, 289).

"Mas crêem os mortais que os deuses nasceram, e que, tal como eles, têm figura, vestes e voz" (Clemente de Alexandria, Strômata, V,

109).

"Os etíopes se afiguram os deuses, com pele negra e nariz achatado;

os trácios, com olhos azuis e cabelos loiros" [Frag. 16] (Ibidem, VII,

22).

Entidades divinas secundárias. A noção de um deus supremo e

único nesta condição, ainda não exclui a admissão de deuses como

entidades secundárias e criaturas como os anjos, desde que não sejam

aventados como uma necessidade ontológica. Por esta outra via os deuses foram admitidos por Xenófanes, ao que parece. De futuro,

também Heráclito, Platão, Aristóteles não sacrificarão totalmente a

ideias das deidades individuais e subalternas.

Seria demais, que um homem, como Xenófanes, em tão remota época se despojasse inteiramente do lastro cultural da religiosidade helénica de

seu povo. Xenófanes não foi um monoteísta em sentido pleno. Ou

melhor, não foi um monista em sua totalidade. Não há conflito entre combater o antropomorfismo religioso e a admissão de divindades

secundárias. Combateu Xenófanes, a figuração humana dos deuses,

mas não os deuses simplesmente em si mesmos.

A conceituação politeísta de Xenófanes está bem clara neste fragmento:

"Um só Deus, o maior entre os deuses e os homens, diferente na forma e no pensamento dos mortais" [frag.23] (Clemente de

Alexandria, Strômata V, 109).

O mesmo contexto politeísta se reencontra nos versos, como este: "Ter

sempre veneração pelos deuses, isto é bom" (Final do Frag. 1, em

Atebeo X, 462 C).

Por isso se tem contestado a afirmação de outros tempos de que

Xenófanes fosse o primeiro monoteísta.

"Xenófanes havia sido considerado antigamente como o primeiro

monoteísta grego. Os argumentos contra esta opinião foram expostos e defendidos com êxito por Freudenthal em sua obra Ueber die Theologie

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52

des Xenophanes, Breslau, 1866, trabalho a que nós devemos muito. O

argumento decisivo contra o pretendido monoteísmo de Xenófanes está

contido no único verso: um só deus, entre os deuses..." (Th. Gompers,

Pensadores gregos, nota ao item Xenófanes).

Não obstante, importa não desatender ao fato de que Xenófanes foi

também um poeta, e neste sentido poderia ter usado por vezes a

linguagem poética, a qual certamente é favorecida pela imaginação

politeísta. Sobre a alma "Xenófanes foi o primeiro a declarar, que tudo

está destinado a perecer, e que a alma é um sopro" (D. Laércio, IX, 19).

A Ética - de Xenófanes se mantém ainda nas frases sentenciosas,

peculiares às religiões tradicionais, envolvidas em considerações

episódicas. Depois de se referir ao fato de ser apreciado como mais

ilustre aquele que vence nos jogos, adverte:

"A sabedoria de certo é mais nobre que o vigor dos homens e dos

cavalos. Insensato costume, e injusto, este, de mais prezar a força que a

sabedoria. Mesmo que haja entre o povo um pugilista hábil, ou quem vença no pentatlo e na luta, ou até na corrida (que mais estimada é a

rapidez que a força), quem quer que vitorioso saia das másculas

competições, - nem por isso o povo andará mais bem governado. Pouco proveito adviria à cidade, se algum cidadão vencesse as margens do

Pisa. Não é isso que lhe aumenta tesouros da cidade" [Frag.2] (em

Ateneo X, 413 F).

Um sentir geral de tolerância - Se observa no pensamento religioso e

moral de Xenófanes, não sendo nem fanático e nem contrário ao culto popular dos deuses, tudo dentro de uma ética aberta. Este é o clima de

um longo fragmento elegíaco, em que participa, e ao mesmo tempo que

recomenda moderações:

"Agora o chão da casa está limpo, as mãos de todos e as taças; um cinge as cabeças com grinaldas de flores, outro oferece odorante mirra

numa salva; plena de alegria ergue-se uma cratera, à mão está outro

vinho, que promete jamais faltar, vinho doce, nas jarras cheirando flor; pelo meio perpassa sagrado aroma de incenso, fresca é a água,

agradável e pura; ao lado estão pães tostados e sumptuosa mesa

carregada de queijo a espesso mel; no centro está um altar todo

recoberto de flores, canto e graça envolvem a casa. É preciso que alegres os homens primeiro cantem os deuses com mitos piedosos e

palavras puras. Depois de verter libações e pedir forças para realizar o

que é justo – isto é que vem em primeiro lugar -, não é excesso beber quanto te permita chegar à casa sem guia, se não fores muito idoso. É

louvar-se o homem que, bebendo, revela actos nobres como a memória

que tem e o desejo de virtude sem nada falar de titãs, nem de gigantes, nem de centauros, ficções criadas pelos antigos, ou de lutas civis

violentas, nas quais nada há de útil. Ter sempre veneração pelos

deuses, isto é bom" [Frag. 1] (em Ateneo X, 462 C).

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Cosmogonia e cosmologia Não obstante sua nova maneira de

interpretar a variedade dos entes como sendo fundamentalmente um

unicíssimo, Xenófanes apresentou uma filosofia da natureza não menos curiosa. Não deve todavia condenar a Xenófanes de contradição com

sua tese da unidade do ente ao estabelecer una interpretação

cosmológica à natureza, como já o quis invectivar de incoerência, na antiguidade, Teodoreto: "Xenófanes, o fundador da seita eleática,

assevera que o todo é um, esférico e limitado; ingénito, mas eterno e

absolutamente imóvel; mas depois, olvidado destas doutrinas, diz que

da Terra tudo nasce" (Teodoreto, IV, 5 em Aécio).

Não temos informações sobre a evolução cronológica do pensamento de

Xenófanes. Mas não é impossível que seu unicíssimo fosse uma

evolução ulterior, e que de início pensasse apenas como os jónicos,

sobre um ser material. Nesta condição inicial terá desenvolvido uma cosmologia em que os elementos seriam a terra e a água. Depois com a

teoria do ser uno, esta cosmologia somente se manteria como aparência

sensível. No futuro, também o idealista Emanuel Kant, apresentará uma teoria do céu astronómico. E assim já na antiguidade os eleatas

desenvolveram a doutrina da aparente variedade e movimento do ser.

"Nasce o sol por via de aglomeração de partículas inflamadas, que vai

aumentando dia a dia; a terra é ilimitada, e nem o ar, nem o céu a cingem, infinito O mar é salgado porque nele convergem muitas

matérias amálgamas. Xenófanes crê que a terra se mistura com o mar.

Com o tempo nele se dissolvera" (Hipólito, Refutação, I, 14).

"Todos os dias os astros se apagam e todas as noites se reacendem

como carvões; nascimentos e ocasos, são inflamações e extinções" (Aécio II, 13,14). Por mais hipotéticas que sejam as teorias de Xenófanes

sobre os astros, elas representam algo muito mais evoluído que a

interpretação mítica e mitológica então dominante.

"Muitos afirmam que a parte inferior da terra se prolonga indefinidamente, asseverando que ela radica no infinito, assim o

diz Xenófanes de Colófon" (Aristóteles, Do céu, 2,13. 294a 21).

Um conceito adiantado da meteorologia - Já se encontra formulado

em Xenófanes. Um círculo de acções ocorreria a começar da água

salgada, continuando pela água doce, pela evaporação, finalmente pela formação das nuvens, das chuvas, dos rios e de novo do mar. Ocorre ali

a visão da natureza como um sistema de leis, sem mitos.

"Supurada a água do mar, a doce separa-se pela subtileza própria, e

depois, condensando-se em névoa, forma as nuvens; e prosseguindo a

condensação, cai a chuva e sopram os ventos" (Aécio, III, 4,4).

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Diz então Xenófanes: "Fonte da água é o mar, e fonte dos ventos; pois

nem existiriam as nuvens sem o vasto mar, nem o curso dos rios, nem a

chuva dos céus. Mas é ele, o vasto mar, que gera as nuvens, os ventos e

os rios" [Frag. 30] (Aécio, III, 4,4).

A terra e a água são as fontes sempre presentes nas explicações de

Xenófanes. Não importa a qual dê prioridade. O importante é que

formula o sistema de uma explicação.

Fragmentos

I "...Deus é uma substância esférica sob nenhum aspecto parecido com o homem. O todo vê, o todo ouve, porém não respira. Ele é ao mesmo tempo todas as coisas,

inteligência, pensamento, eternidade" (D. Laércio, IX, 19).

II "...Todo inteiro vê, todo inteiro pensa, todo inteiro ouve" [Frag. 24] (em Sexto, Contra

os matemáticos, IX 144).

III "...Se a divindade é a mais forte de todas as coisas, só pode ser uma única (...), pois se houvesse dois ou mais deuses, não poderia ser o mais forte e o melhor de tudo. Portanto, só pode haver uma divindade (Pseudo-Aristóteles, De Meliso, Xenophonte,

Górgias 3,3)

IV "...Se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões, e se pudessem com as mãos pintar ou produzir obras de arte, como se fossem homens, pintariam as figuras dos deuses, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois; esculpiriam os corpos deles, respectivamente, de acordo com o próprio aspecto" [Frag. 15] (Ibidem,

V, 110).

V "...Um só Deus, o maior entre os deuses e os homens, diferente na forma e no

pensamento dos mortais" [frag.23] (Clemente de Alexandria, Strômata V, 109).

VI "...O sol apaga-se, e outro sol renasce no Oriente" (Aécio, II, 24,2).

VII "...O sol provém de nuvens inflamadas... provenientes de exalações húmidas"

Conclusão:

Xenófanes compôs poesias satíricas, os siloi, os quais contêm o seu pensamento

filosófico. Isto mostra que os filósofos, sob o ponto de vista formal, tanto

empregam a prosa como a poesia.

Xenófanes ficou famoso pelas críticas à religião tradicional e pela sua concepção

de Divindade.

O filósofo atacou duramente os grandes poetas da Grécia, Homero e Hesíodo,

como responsáveis pela imagem degradada dos deuses: ladrões, adúlteros e

mentirosos (cfr. frag. B11).

Page 55: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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O antropomorfismo dos deuses já criticado no frag. B11 é reforçado em B14

(roupagem e corpo, por exemplo, idênticos aos homens).

Os frags. B16 e B15 ampliam e inovam em relação aos frags. citados

anteriormente.

O frag. B 16 chama a atenção para o facto de os Etíopes e os Trácios fazerem os

deuses à sua imagem.

O que é importante anotar é que para Xenófanes os deuses antropomórficos não

são universais. Teremos, ainda de falar, um pouco mais à frente, da noção de

universal.

Vamos, agora, transcrever o frag. B15:

"Mas se os bois [os cavalo] ou os leões tivessem mãos ou pudessem pintar ou esculpir

como os homens,

os cavalos desenhariam imagens equinas dos deuses,

e os bois, bovinas,

e pintariam a forma e o corpo dos deuses como

eles o têm

de modo que cada [espécie] teria o seu aspecto físico."

(trad. M. H. Rocha Pereira)

Este fragmento é para nós importante por duas razões:

É a nova crítica, através do ridículo, ao antropomorfismo;

Mostra uma preocupação metodológica, na medida em que estamos

perante uma argumentação por absurdo.

A filosofia, não obstante a sua pequena tradição, travava, com Xenófanes, uma

das suas grandes batalhas: a apresentação de uma nova paidéia, que se

contrapunha à tradicional, cujos pilares eram Homero e Hesíodo.

Page 56: Apontamentos de Filosofia Antiga I

56

Xenófanes não ficou pela crítica ao antropomorfismo: apresentou, também, a

sua concepção de divindade.

Assim, fala de um deus com o máximo poder e que não possui traços

antropomórficos (frag. B23). Este deus está imóvel e não necessita de fazer

qualquer esforço para dominar todas as coisas (frag. B 26+25). O último

aspecto é reforçado pelo frag. B24: vê tudo, ouve tudo, pensa tudo.

Encontramos aqui uma preocupação pela teologia natural (aspecto da filosofia

pré-socrática posto em relevo por W. Jaeger) que já estava presente em Tales de

Mileto.

Façamos ainda duas observações:

O deus de Xenófanes tem um carácter universal, isto é, pode ser encarado

sob o mesmo aspecto por quaisquer homens (pertençam ou não a

sociedades diferentes).

Há uma questão ainda em aberto acerca da possível posição monoteísta de

Xenófanes, embora, eu pense que o filósofo se mova, ainda, num quadro

politeísta.

*

O tema do conhecimento é extremamente importante para Xenófanes. Para ele

o homem não pode atingir a verdade, só tem acesso à opinião. E com grande

subtileza afirma que se alguém dissesse a verdade não saberia que a tinha dito: o

filósofo, defenderia, possivelmente, que tal sucedia porque não existe um

critério da verdade (para estes aspectos veja-se o frag. B34).

No frag. B18 Xenófanes afirma que os deuses não deram a conhecer todas as

coisas nos primeiros tempos da Humanidade; o homem ao longo dos tempos

através da indagação descobre o que é melhor.

A teoria do conhecimento de Xenófanes apresenta uma série de aspectos que

deveremos por em relevo:

o filósofo coloca a dicotomia verdade-opinião considerando que o homem

só alcança a última. È um ponto importante porque abre um debate na

filosofia grega que terá de levar em linha de conta este problema;

Page 57: Apontamentos de Filosofia Antiga I

57

Xenófanes defende o progresso da Humanidade opondo-se assim ao mito

da Idade de Ouro, o qual afirmava que a primeira sociedade tinha vivido

numa autêntica beatitude. Em contrapartida o filósofo considera que o

esforço consegue obter o progresso. Isto significa que o homem não está

em regressão mas sim em marcha para aquilo que é melhor. Trata-se de

outro tema que será debatido por filósofos posteriores.

O que disse, segundo espero, mostra a grande envergadura de Xenófanes, o qual

não ignorou a cosmologia, tema que não tratei nestas linhas.

Nota Adicional

No capítulo dedicado a Xenófanes surge uma numeração atribuída aos

fragmentos do filósofo. Esta numeração foi estabelecida por Diels na sua grande

obra onde compilou as passagens referentes aos pré-socráticos, obra esta revista

por Kranz.

Os fragmentos atribuídos aos filósofos podem ser apresentados da seguinte

maneira:

Pela simples numeração, por exemplo, Xenófanes, frag. 34;

Pela numeração e secção, por exemplo, Xenófanes, frag. B34;

Pela numeração e iniciais de Diels – Kranz, por exemplo, Xenófanes, frag.

34 D-K.

Creio que o mais simples é numerar os fragmentos ou indicar também a secção.

Parte-se do princípio de que a numeração é a estabelecida por Diels – Kranz.

Segundo a obra de Diels-Kranz são apresentadas três secções: A- passagens

relativas ao filósofo; B- fragmentos da sua obra; C- passagens duvidosas.

A numeração que utilizamos (Diels-Kranz) permite ao leitor, com facilidade,

verificar os fragmentos assim como as traduções das quais são passíveis.

Page 58: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Pitágoras de Samos

As coisas são números

Pitágoras de Samos (do grego Πυθαγόρας) foi um filósofo e matemático

grego que nasceu em Samos entre cerca de 570 a.C. e 571 a.C. e

morreu em Meta ponto entre cerca de 496 a.C. ou 497 a.C.

A sua biografia está envolta em lendas. Diz-se que o nome significa altar da Pítia ou o que foi anunciado pela Pítia, pois mãe ao consultar a

pitonisa soube que a criança seria um ser excepcional.

Pitágoras foi o fundador de uma escola de pensamento grega Biografia

Da vida de Pitágoras quase nada pode ser afirmado com certeza, já que

ele foi objecto de uma série de relatos tardios e fantasiosos, como

referentes às viagens e aos contactos com as culturas orientais. Parece certo, contudo, que o Filósofo e matemático grego nasceu no ano de 496

a.C. na cidade de Samos, fundou uma escola mística e filosófica em

Crotona (colónia grega na península itálica), cujos princípios foram determinantes para evolução geral da matemática e da filosofia

ocidental cujo principais enfoques eram: harmonia matemática,

doutrina dos números e dualismo cósmico essencial. Aliás, Pitágoras foi o criador da palavra "filósofo". Acredita-se que tenha sido casado com a

física e matemática grega Theano, que foi sua aluna. Supõe-se que ela e

as duas filhas tenham assumido a escola pitagórica após a morte do

marido.

Page 59: Apontamentos de Filosofia Antiga I

59

Pitágoras cunhado em moeda

Os pitagóricos interessavam-se pelo estudo das propriedades dos números - para eles o número (sinónimo de harmonia) era

considerado como essência das coisas - é constituído então da soma

de pares e ímpares, noções opostas (limitado e ilimitado) respectivamente números pares e ímpares expressando as relações que

se encontram em permanente processo de mutação, criando a teoria da

harmonia das esferas (o cosmos é regido por relações matemáticas).

A observação dos astros sugeriu-lhes a ideia de que uma ordem domina o universo. Evidências disso estariam no dia e noite, no alterar-se das

estações e no movimento circular e perfeito das estrelas, por isso o

mundo poderia ser chamado de cosmos, termo que contem as ideias de ordem, de correspondência e de beleza. Nessa cosmo visão também

concluíram que a terra é esférica, estrela entre as estrelas que se

movem ao redor de um fogo central. Alguns pitagóricos chegaram até a

falar da rotação da Terra sobre o eixo, mas a maior descoberta de Pitágoras ou dos discípulos (já que há obscuridades que cerca o

pitagorismo devido ao carácter esotérico e secreto da escola) deu-se no

domínio da geometria e se refere às relações entre os lados do triângulo

rectângulo. A descoberta foi enunciada no teorema de Pitágoras.

Foi expulso de Crotona e passou a morar em Metaponto, onde morreu

provavelmente em 496 a.C. ou 497 a.C..

A escola de Pitágoras

Segundo o pitagorismo, a essência, que é o princípio fundamental que forma todas as coisas é o número. Os pitagóricos não distinguem forma, lei, e substância, considerando o número o elo entre estes

elementos. Para esta escola existiam quatro elementos: terra, água, ar e

fogo.

Assim, Pitágoras e os pitagóricos investigaram as relações matemáticas

e descobriram vários fundamentos da física e da matemática.

Page 60: Apontamentos de Filosofia Antiga I

60

O pentagrama era o símbolo da Escola Pitagórica

O símbolo utilizado pela escola era o pentagrama, que, como descobriu

Pitágoras, possui algumas propriedades interessantes. Um pentagrama é obtido traçando-se as diagonais de um pentágono regular; pelas

intersecções dos segmentos desta diagonal, é obtido um novo pentágono

regular, que é proporcional ao original exactamente pela razão áurea.

Pitágoras descobriu em que proporções uma corda deve ser dividida para a obtenção das notas musicais no início, sem altura definida,

sendo uma tomada como fundamental (pensemos numa longa corda

presa a duas extremidades que, quando tangida, nos dará o som mais

grave - e a partir dela, gerar-se-á a quinta e terça através da reverberação harmónica. Os sons harmónicos. Prendendo-se a metade

da corda, depois a terça parte e depois a quinta parte conseguiremos os

intervalos de quinta e terça em relação à fundamental. A chamada SÉRIE HARMÔNICA. À medida que subdividimos a corda obtemos sons

mais altos e os intervalos serão diferentes. E assim sucessivamente.

Descobriu ainda que fracções simples das notas, tocadas juntamente com a nota original, produzem sons agradáveis. Já as fracções mais

complicadas, tocadas com a nota original, produzem sons

desagradáveis.

O nome está ligado principalmente ao importante teorema que afirma:

Em todo triângulo rectângulo, a soma dos quadrados dos catetos é

igual ao quadrado da hipotenusa.

Além disto, os pitagóricos acreditavam na esfericidade da Terra e dos

corpos celestes, e na rotação da Terra, com o que explicavam a

alternância de dias e noites. A filosofia baseou uma doutrina chamada

Filosofia explanatória Cristo-Pitagorica.

A escola pitagórica era conectada com concepções esotéricas e a moral

pitagórica enfatizava o conceito de harmonia, práticas ascéticas e

defendia a metempsicose.

Durante o século IV a.C., verificou-se, no mundo grego, uma revivescência da vida religiosa. Segundo alguns historiadores, um dos

Page 61: Apontamentos de Filosofia Antiga I

61

factores que concorreram para esse fenómeno foi a linha política

adoptada pelos tiranos: para garantir o papel de líderes populares e

para enfraquecer a antiga aristocracia, os tiranos estimulavam a

expansão de cultos populares ou estrangeiros.

Dentre estes cultos, um teve enorme difusão: o Orfismo (de Orfeu),

originário da Trácia, e que era uma religião essencialmente esotérica.

Os seguidores desta doutrina acreditavam na imortalidade da alma, ou seja, enquanto o corpo se degenerava, a alma migrava para outro corpo,

por várias vezes, a fim de efectivar a purificação. Dioniso guiaria este

ciclo de reencarnações, podendo ajudar o homem a libertar-se dele.

Pitágoras seguia uma doutrina diferente. Teria chegado à concepção de que todas as coisas são números e o processo de libertação da alma

seria resultante de um esforço basicamente intelectual. A purificação

resultaria de um trabalho intelectual, que descobre a estrutura

numérica das coisas e torna, assim, a alma como uma unidade harmónica. Os números não seriam, neste caso, os símbolos, mas os

valores das grandezas, ou seja, o mundo não seria composto dos

números 0, 1, 2, etc., mas dos valores que eles exprimem. Assim, portanto, uma coisa manifestaria externamente a estrutura numérica,

sendo esta coisa o que é por causa deste valor.

Principais descobertas

Além de grandes místicos, os pitagóricos eram grandes matemáticos. Eles descobriram propriedades interessantes e curiosas sobre os

números.

Números figurados

Os pitagóricos estudaram e demonstraram várias propriedades dos

números figurados. Entre estes o mais importante era o número

triangular 10, chamado pelos pitagóricos de tetraktys, tétrada em português. Este número era visto como um número místico uma vez

que continha os quatro elementos fogo, água, ar e terra: 10=1 + 2 + 3 +

4, e servia de representação para a completude do todo.

α

α α α α α

α α α α

A tétrada, que os pitagóricos desenhavam com um α em cima, dois abaixo deste, depois três e por fim quatro na base, era um dos símbolos principais do seu conhecimento avançado das realidades teóricas.

Representação toda perfeita em si de qualquer um dos lados que se

observe.

Page 62: Apontamentos de Filosofia Antiga I

62

Números perfeitos

A soma dos divisores de determinado número com excepção dele

mesmo, é o próprio número. Exemplos:

1. Os divisores de 6 são: 1,2,3 e 6. Então, 1 + 2 + 3 = 6.

2. Os divisores de 28 são: 1,2,4,7,14 e 28. Então, 1 + 2 + 4 + 7 + 14

= 28.

Teorema de Pitágoras

Uma das formas de demonstrar o Teorema de Pitágoras.

Um problema não solucionado na época de Pitágoras era determinar as relações entre os lados de um triângulo rectângulo. Pitágoras provou

que a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da

hipotenusa.

O primeiro número irracional a ser descoberto foi a raiz quadrada do número 2, que surgiu exatamente da aplicação do teorema de Pitágoras

em um triângulo de catetos valendo 1:

Os gregos não conheciam o símbolo da raiz quadrada e diziam

simplesmente: "o número que multiplicado por si mesmo é 2".

A partir da descoberta da raiz de 2 foram descobertos muitos outros

números irracionais.

Pitágoras percorreu por 30 anos o Egipto, Babilónia, Síria, Fenícia e

talvez a Índia e a Pérsia, onde acumulou ecléticos conhecimentos:

astronomia, matemática, ciência, filosofia, misticismo e religião.

Page 63: Apontamentos de Filosofia Antiga I

63

Quando retornou à sua cidade natal, Samos, indispôs-se com o tirano

Polícrates e emigrou para o sul da Itália, na ilha de Crotona, de

dominação grega. Aí fundou a Escola Pitagórica, a quem se concede a

glória de ser a "primeira Universidade do mundo".

A Escola Pitagórica e as actividades se viram desde então envoltas por

um véu de lendas. Foi uma entidade parcialmente secreta com centenas

de alunos que compunham uma irmandade religiosa e intelectual.

Entre os conceitos que defendiam, destacam-se:

Prática de rituais de purificação e crença na doutrina da

metempsicose, isto é, na transmigração da alma após a morte, de

um corpo para outro. Portanto, advogavam a reencarnação e a imortalidade da alma;

Lealdade entre os membros e distribuição comunitária dos bens

materiais;

Austeridade, ascetismo e obediência à hierarquia da Escola; Proibição de beber vinho e comer carne (portanto é falsa a

informação que os discípulos tivessem mandado matar 100 bois

quando da demonstração do denominado Teorema de Pitágoras); Purificação da mente pelo estudo de Geometria, Aritmética,

Música e Astronomia;

Classificação aritmética dos números em pares, ímpares, primos e facturáveis;

"Criação de um modelo de definições, axiomas, teoremas e

provas, segundo o qual a estrutura intrincada da Geometria é obtida de um pequeno número de afirmações explicitamente

feitas e da acção de um raciocínio dedutivo rigoroso" (George

Simmons);

Grande celeuma instalou-se entre os discípulos de Pitágoras a respeito da irracionalidade do 'raiz de 2'. Utilizando notação

algébrica, os pitagóricos não aceitavam qualquer solução

numérica para x² = 2, pois só admitiam números racionais. Dada a conotação mística atribuída aos números, comenta-se que,

quando o infeliz Hipasus de Metapontum propôs uma solução

para o impasse, os outros discípulos o expulsaram da Escola e o afogaram no mar;

Na Astronomia, ideias inovadoras, embora nem sempre

verdadeiras: a Terra é esférica, os planetas movem-se em diferentes velocidades nas várias órbitas ao redor da Terra. Pela

cuidadosa observação dos astros, cristalizou-se a ideia de que há

uma ordem que domina o Universo;

Aos pitagóricos deve-se provavelmente a construção do cubo, tetraedro, octaedro, dodecaedro e a bem conhecida "secção";

Na Música, uma descoberta notável de que os intervalos musicais

se colocam de modo que admitem expressões através de

proporções aritméticas.

Page 64: Apontamentos de Filosofia Antiga I

64

Pitágoras é o primeiro matemático puro. Entretanto é difícil separar

o histórico do lendário, uma vez que deve ser considerado uma figura

imprecisa historicamente, já que tudo o que dele sabemos deve-se à tradição oral. Nada deixou escrito, e os primeiros trabalhos sobre o

mesmo deve-se a Filolau, quase 100 anos após a morte de Pitágoras.

Mas não é fácil negar aos pitagóricos - assevera Carl Boyer - "o papel primordial para o estabelecimento da Matemática como disciplina

racional". A despeito de algum exagero, há séculos cunhou-se uma

frase: "Se não houvesse o 'teorema Pitágoras', não existiria a

Geometria".

Ao biografar Pitágoras, Jâmblico (c. 300 d.C.) registra que o mestre vivia

repetindo aos discípulos: ―todas as coisas se assemelham aos números‖.

A Escola Pitagórica ensejou forte influência na poderosa verba de

Euclides, Arquimedes e Platão, na antiga era cristã, na Idade Média, na

Renascença e até em nossos dias com o Neopitagorismo.

Pensamentos de Pitágoras

1. Educai as crianças e não será preciso punir os homens.

2. Não é livre quem não obteve domínio sobre si.

3. Pensem o que quiserem de ti; faz aquilo que te parece justo. 4. O que fala semeia; o que escuta recolhe.

5. Ajuda teus semelhantes a levantar a carga, mas não a carregues.

6. Com ordem e com tempo encontra-se o segredo de fazer tudo e

tudo fazer bem. 7. Todas as coisas são números.

8. A melhor maneira que o homem dispõe para se aperfeiçoar, é

aproximar-se de Deus. 9. A Evolução é a Lei da Vida, o Número é a Lei do Universo, a

Unidade é a Lei de Deus.

10. A vida é como uma sala de espectáculos: entra-se, vê-se e sai-se.

11. A sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas os

homens podem desejá-la ou amá-la tornando-se filósofos

Page 65: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Pitágoras de Samos

Com Pitágoras de Samos a filosofia muda de quadrante geográfico.

Este emigrante instala-se em Crotona, na Grande Grécia, onde funda

uma escola.

A escola pitagórica é a primeira a ser fundada na Grécia. Vários

testemunhos indicam que se tratava de uma escola relativamente

fechada.

A índole da escola pitagórica é religiosa e de investigação. A

purificação da alma e o seu destino são preocupações fundamentais

mas a sua contribuição filosófica é relevante e os pitagóricos ficarão

célebres pelos seus estudos de matemática.

A escola desenvolve-se, nestas vertentes mas há dois aspectos que

ainda devemos mencionar:

Pitágoras, não obstante ter sido uma figura histórica,

aparece, cedo, rodeado pelo maravilhoso.

Este pensador aparece com traços xamanísticos o que

mostra claramente a presença do antigo corpo de saber no

campo filosófico;

Há uma ligação entre o pitagorismo e os mistérios órficos.

Durante bastante tempo afirmou-se que o Orfismo

influenciou o pitagorismo mas hoje coloca-se a hipótese de

ter sido o pitagorismo a influenciar o Orfismo.

A escola pitagórica chegou a dominar, sob o ponto de vista político, a

cidade de Crotona. Em determinada altura a facção democrática da

Cidade revoltou-se e massacrou os pitagóricos.

Foram poucos os que escaparam; Pitágoras foi um deles e refugiou-se

em Metaponto, onde veio a falecer.

Conhecer o que pertenceu a Pitágoras e às várias gerações dos seus

discípulos é tarefa muito difícil.

Essencialmente duas razões concorrem para tal facto:

Page 66: Apontamentos de Filosofia Antiga I

66

Por uma questão de respeito os pitagóricos atribuíram

teorias posteriores ao próprio fundador;

Uma literatura abundante sobre a Escola é muito posterior a

Pitágoras e aos seus primeiros discípulos.

A Doutrina de Pitágoras:

Pelo que acabamos de ver torna-se difícil fazer a reconstituição do

pensamento de Pitágoras a nossa exposição irá incidir em

primeiro lugar sobre o problema da alma e em segundo sobre as

suas actividades no campo da matemática

A Pitágoras poder-se-á atribuir três teses que estão ligadas entre si:

(a) Imortalidade da alma

(b) transmigração da alma

(c) o parentesco dos seres animais.

A afirmação da imortalidade da alma é importante. A tradição

religiosa não tinha sido muito clara quanto a este ponto: a alma

sobrevivia à morte do corpo mas não se podia garantir a sua

imortalidade.

A transmigração das almas constitui uma inovação a salientar.

Para Pitágoras se a alma não fosse pura durante a vida terrena, após a

morte do corpo, ela teria de reencarnar noutros corpos ou humanos ou

de outros animais, até atingir a purificação. Isto é a transmigração

pressupõe a imortalidade já que a alma passando por corpos

diversos (humanos ou de outros animais) vai sobrevivendo a esses

mesmos a corpos. É importante referir que a transmigração esta

ligada a uma concepção ética a alma impura por castigo tem de

penetrar noutro corpo.

Compreende-se agora o sentido da terceira tese de Pitágoras. Se a

alma humana pode estar presente nos corpos de vários animais isso faz

com que eles sejam parentes do homem.

Page 67: Apontamentos de Filosofia Antiga I

67

Se o tema da imortalidade da alma e a transmigração da alma estão

ligados como já vimos o parentesco dos seres animais decorre em 2

aspectos. E Porque? Uma vez que a alma humana pode habitar corpos

de outros animais (o homem incluído) Então existe um parentesco entre

os animais não é pois de admirar que a morte de qualquer animal

provocada por qualquer homem, seja considerada um pecado. A escola

pitagórica tinha um conjunto de regras que deviam ser observadas

entre as quais avultavam a que diziam respeito aos animais.

E assim não é para espantar a proibição de matar e consumir a carne

dos animais e também surge um vegetal como tabu – a fava hoje

parece-nos ridículo tal prescrição mas segundo os pitagóricos enquanto

os animais poderiam albergar uma alma humana, as facas eram o

veiculo para a alma sair do Hades para o mundo exterior.

*

Como já dissemos, é difícil discernir o que pertence às várias gerações

dos pitagóricos. A partir de agora, a nossa exposição abarca um período

que vai, praticamente, até aos finais do século V.

Segundo Kirk e Raven as duas doutrinas cientificas mais

fundamentais e universais

O dualismo essencial entre o limite e limitado

E o segundo a equação de coisas e números.

Pitágoras descobriu provadamente ao medir num monocórdio os

comprimentos da corda correspondentes aos sons que os principais

intervalos musicais se podem exprimir em proporções numéricas

simples entre os 4 primeiros números inteiros. A descoberta levada por

Pitágoras teve uma grande ressonância não só dentro da escola como

também fora dela assim também os pitagóricos consideravam que a a

soma dos quatro primeiros números a década tinha uma importância

decisiva no ponto de vista científico e foi tão considerada que os

pitagóricos juravam sobre ela. A década de uma forma geral era

representada por 10 pontos dispostos de tal forma que tinham a

composição de um triângulo equilátero.

Page 68: Apontamentos de Filosofia Antiga I

68

x x x

x x x

x x x x

Como veremos é provável que Pitágoras e os seus primeiros discípulos

que os números são corpúsculos ou átomos da matéria os quais

constituíam as coisas.

Os Primeiros Pitagóricos

Tratar da escola pitagórica e das suas origens até meados do século V

constitui uma das tarefas mais difíceis do historiador de filosofia grega.

Já tivemos a ocasião que e muito difícil destrinçar o que pertenceu as

diferentes gerações de pitagóricos. Todavia é importante é importante

realizar uma tentativa através da escola ate aproximadamente meados

do século v e que pertenceu a escola do tempo de Filolau e de Eurito. É

de salientar que o texto mais importante para a reconstituição da

doutrina pitagórica é constituído por uma longa passagem da metafísica

de Aristóteles. Mas é difícil na posição aristotélica que abarca cerca de

um século de actividades, ver o que pertenceu aos diferentes períodos

do pitagorismo.

Alcméon de Crotona

Vamos fazer uma referência a Alcmeon de Crotona que ficou célebre

como medico e cultor da investigação filosófica. Este sendo mais jovem

que Pitágoras não pode ser considerado seguramente um discípulo

deste filosofo. O próprio Aristóteles não tem a certeza se foram os

pitagóricos que influenciaram o médico de Crotona ou se deu o

contrario. Seja como for o que é importante é o facto das concepções de

alcméon se encontrarem em consonância com a escola pitagórica.

Vamos mostrar 3 aspectos que mostram uma envergadura filosófica de

ser sublinhada:

Page 69: Apontamentos de Filosofia Antiga I

69

Em primeiro lugar a sua teoria sobre a saúde teve uma larga voga.

Para ele a saúde é o equilíbrio ente os opostos como põe exemplo o

amargo e doce. Quando este equilíbrio se rompe ou seja um dos

elementos fica em supremacia surge então a doença.

Em segundo o aspecto que vamos referir é a imortalidade da alma.

A alma é imortal devido a semelhança que ela possui com as coisas

imortais. O que é divino está em movimento como o sol, a lua e as

estrelas por exemplo. Ora como a alma está em movimento ela é

imortal como são os corpos que a mencionamos. Que saibamos esta

é a primeira tentativa de demonstração da imortalidade da alma,

baseadas não já numa simples crença mas de razões de ordem

filosófica.

O ultimo aspecto diz respeito ao conhecimento divino e ao

conhecimento humano.

Enquanto no primeiro aparece a certeza e a clareza, no segundo

apenas surgem as conjunturas. È uma oposição que vai ser sustentada

por vários pré-socráticos ou seja aquela entre a altheia ( verdade

suprema ) e a doxa (crença comum ou opinião)

A Tábua dos opostos

Um dos pontos fulcrais do pensamento pitagórico esta contido na

celebre tábua dos opostos.

Os pitagóricos defendem a existência de dois princípios ou substâncias

opostas o limite e o ilimitado a partir dos quais o universo virá à

existência.

A tábua dos opostos é ainda hoje tema de discussão. Vejamos primeiro

os seus elementos:

Page 70: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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LIMITE ILIMITADO

Impar Par

Uno Múltiplo

Direito Esquerdo

Macho Fêmea

Imóvel Móvel

Recto Curvo

Luz Trevas

Bom Mau

Quadrado Rectangular

Façamos algumas considerações. Em primeiro lugar trata-se de uma

tábua com dez pares de opostos e em segundo o primeiro par é

constituído pelos dois princípios ou substâncias fundamentais para os

pitagóricos (Limite e Ilimitado).

Qual o sentido desta tábua? Esta é a questão mais difícil. Em cada

coluna o termo fundamental é o primeiro sendo os nove restantes

variações do primeiro. A coluna do Limite é positiva, a do Ilimitado,

negativa.

É muito possível que os pitagóricos pretendessem descrever a

realidade e mostrar os seus diferentes aspectos que, todavia, serão

modalidades do primeiro par de opostos.

Page 71: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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As Coisas são números

Um dos temas mais importantes do pitagorismo é sem dúvida a tese

que ficou famosa "as coisas são números".

Assim pretendeu-se ver uma matematização do universo , mas para

que tal acontecesse ser necessária a concepção abstracta dos números.

Ora com o próprio Pitágoras e as primeiras gerações de pitagóricos, a

matemática, como a aritmética e a geometria fizeram sem dúvida

progressos assinaláveis no mundo grego. Todavia o numero para os

pitagóricos eram algo de material um corpúsculo ou átomo de matéria.

Mas ainda o que vai provocar grande polémica a escola considerou

indistintamente, os números, os pontos geométricos e os corpúsculos

materiais. Os Pitagóricos não introduziram distinção entre átomos,

números e pontos da geometria. Os Números como corpúsculos são

assinalados de forma bem explicita pelo próprio Aristóteles bem

informado sobre as teorias pitagóricas. Aristóteles vai afirmar que esses

números são partes constituintes das coisas. Assim podemos dizer que

as coisas existentes são formadas por aglomerados de números. Por

outras palavras significam as coisas são conjuntos de corpúsculos

(átomos).

A cosmologia

Os pitagóricos da primeira metade do século v apresentaram como era

lógico a sua concepção cosmológica.

Podemos dizer que o princípio gerador do universo é duplo pois será o

par de opostos limite e ilimitado que estará na sua génese

O limite desenvolveu-se como uma semente que se desenvolve e, ao

crescer foi penetrado pelo ilimitado o qual estava no seu exterior e que

o fragmentou em corpúsculos.

O universo é constituído por um fogo central (que ilumina o Sol e a

Lua) e por nove astros visíveis aos quais os pitagóricos juntaram a anti-

terra (astro invisível) para perfazer o número dez que para eles era o

número perfeito.

Page 72: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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É possível que esta cosmologia remonte ao tempo de Filolau. Aspecto

curioso é a chamada harmonia das esferas que consistia na música

provocada pelo movimento dos astros. A base desta teoria era a

seguinte: se um corpo é lançado provoca um ruído e se não ouvimos a

música dos astros é porque estamos, desde crianças, habituados a ela.

È subtil esta teoria porque os pitagóricos argumentavam que o facto

de não se ouvir essa harmonia era devido a habituação a que desde o

nascimento dos homens estavam submetidos.

A questão da alma

Como já dissemos o tema da alma ocupou um lugar de destaque nas

preocupações dos pitagóricos. Não é para admirar que se debruçassem

sobre a natureza da alma. Uma teoria considerava que a alma era um

conjunto de partículas de pó que estão em suspensão e que depois

entrariam no corpo humano ; possivelmente é a primeira concepção

defendida pela Escola.

Vamos encontrar outra teoria, mais elaborada, a qual deve ser

posterior. A alma surge como o princípio da harmonia do corpo.

A força e o prestígio da Escola pitagórica ultrapassaram o século V

devido às suas concepções filosóficas. A matemática, da qual foram

grandes cultores trouxe-lhes, todavia, grandes problemas atestados na

polémica entre eleatas e pitagóricos.

*

Page 73: Apontamentos de Filosofia Antiga I

73

Heraclito de Éfeso

O devir

Nasceu em Éfeso, cidade da Jônia, descendente do fundador da cidade.

Desprezava a plebe, não participou da política e desprezou a religião, os

antigos poetas e os filósofos de seu tempo. É o primeiro pré-socrático

com um número razoável de pensamentos, que são um tanto confusos, e por isso tem o nome de Heráclito, o obscuro. Foi muito crítico.

Chama a atenção, além da pluralidade, para os opostos. Tanto o bem

como o mal são necessários ao todo. Deus se manifesta na natureza, abrange o todo e é crivado de opostos. O logos é o princípio cósmico,

elemento primordial, e a razão do real, a inteligência. A verdade se

encontra no devir , não no ser.

Afirmava que todas as coisas estão em movimento como um fluxo perpétuo. O escoamento contínuo dos seres em mudança perpétua, e

que esse se processa através de contrários. A lei fundamental do

Universo é o devir, que significa contínuas transformações. Tudo flui e nada fica como é. Coisa alguma é estável. Tudo segue seu curso. Para

Heráclito o princípio das coisas é o fogo. O fogo transforma-se em água,

sendo que uma metade retorna ao céu como vapor e a outra metade

transforma-se em terra. Sucessivamente, a terra transforma-se em água e a água, em fogo. Todas as coisas mudam sem cessar, e o que temos

diante de nós em dado momento é diferente do que foi há pouco e do

que será depois.

Grande representante do pensamento dialético. Concebia a realidade do mundo como algo dinâmico, em permanente transformação. Daí sua

escola filosófica ser chamada de mobilista (=movimento). Para ele, a

vida era um fluxo constante, impulsionado pela luta de forças contrárias. Assim, afirmava que ―a luta é a mãe, rainha e princípio de

todas as coisas‖. É pela luta das forças opostas que o mundo se

modifica e evolui. Heráclito imaginava a realidade dinâmica do mundo

Page 74: Apontamentos de Filosofia Antiga I

74

sob a forma de fogo, com chamas vivas e eternas, governando o

constante movimento dos seres.

Vida - Foi um melancólico que tinha aversão à sociedade, e evitava a

sua convivência preferindo a solidão, esta condição pessoal contribuiu

para que se criassem ficções biográficas, que não podemos hoje tomar

como precisas; nem mesmo o mobilismo de que falou, o teria defendido

de maneira tão radical quanto lhe foi atribuído.

Timeo de Fliunte, foi o primeiro a chamá-lo de "Heráclito o obscuro, ou

o tenebroso", tornado esse apelido comum. Heráclito foi um sábio, que

tinha consciência da acessibilidade do homem ao saber, ainda que não

atingido por toda a massa. A fonte principal das notícias biográficas de Heráclito se encontra em Diógenes Laércio, além das menções dispersas

em Aristóteles e outros antigos. Não restam elementos para determinar

o ano de nascimento de Heráclito, nem o de sua morte. Mas se sabe onde nasceu e quando floresceu: "Heráclito, filho de Bloson, ou, de

acordo com outra tradição, de Heronte , nasceu em Éfeso. Floresceu na

69ª olimpíada" 4. Esta ligação com a 69ª olimpíada, acontecida nos anos 504 - 500 a.e.c., permite calcular vagamente o restante da

cronologia de sua vida.

Poderá ter nascido por volta de 540 a.e.c. e vivido até pelo ano 480

a.e.c. Trata-se, pois de um tempo em que as cidades da Jônia grega já

se encontravam integradas no império persa, desde 546 a.e.c., quando Ciro houvera conquistado Sardes, aos lídios, e logo também as cidades

da Jônia. Mileto, que se rebelara, foi destruída em 494 a.e.c., portanto

ao tempo de Heráclito. Já agora o grande rei da Pérsia se chamava

Dario 486 a.e.c.

Heráclito pertenceu à nobreza de Éfeso. Em seu tempo o partido

aristocrático fora aliado do poder. Este fato poderia ter sensibilizado sua

aversão à massa popular, então exercendo democraticamente o poder, certamente com alguns desmandos, que o deixaram pessimista. Tinha

em si mesmo alto apreço frente aos demais, sobretudo no que se referia

ao saber. Formou um alto conceito de si mesmo em seu livro onde diz: a erudição não ensina a sabedoria; assim fosse a teria ensinado a Hesíodo

e a Pitágoras, e por sua vez a Xenófanes e Hecateo 5. Porque "nisto só

consiste a sabedoria, conhecer a mente que governa todas as coisas

através de tudo e que Homero devia ter sido excluído das competições e

açoitado e igualmente Arquíloco" .

Descendendo da nobreza, que o liga à família de Codros, rei de Atenas e

chefe da emigração jônica e fundador de Éfeso, gozava Heráclito do

direito de posição de destaque, por ocasião de atos públicos, como por exemplo por ocasião das festas de Deméter. Talvez desiludido dos

homens e de outra parte como sábio desprendido dos formalismos,

renunciou Heráclito suas prerrogativas em favor de seu irmão 7.

Page 75: Apontamentos de Filosofia Antiga I

75

Pronunciando-se sobre assuntos políticos, declarou muito

positivamente: "É necessário que o povo lute em defesa da lei como por

sua muralha". Tudo o mais que disse da política e seus episódios tem a forma agressiva e contestatória. Reprovava amargamente aos efesinos a

expulsão de seu amigo Hermodoro, dizendo: ―Todos os efesinos adultos

deviam ser condenados à morte, e os adolescentes postos para fora da cidade, porque expulsaram a Hermodoro, seu benfeitor. Que ninguém

aqui se destaca pela sua virtude; caso haja alguém deveria ir viver em

outro lugar e com outros".

Retirando-se do templo de Ártemis, e jogando os dados com as crianças, e quando os efesinos se reuniram em torno e o observavam, disse:

Porque estais atónitos? Perversos. Acaso não é melhor fazer isto, do que

ter parte em vossa vida civil?" .Heráclito também persuadiu o tirano

Melancome a deixar o poder. Negou-se ao rei Dário quando o convidou a ir para entre os persas. Ao que parece, notoriamente inteligente,

Heráclito muito desenvolveu a partir de própria pesquisa. Mas não terá

deixado de aproveitar os conhecimentos de outros.

"Foi excepcional desde sua infância. Quando jovem usava dizer que nada sabia. Quando adulto declarava tudo saber.

De ninguém foi discípulo, mas dizia que indagava a si próprio e aprendera tudo por si mesmo. Alguns, entretanto, como Sócion,

asseveram que ele foi discípulo de Xenófanes".

Sabe-se que Xenófanes era de Colófon, outra cidade jónica, e que

desenvolveu um racionalismo, em que se criticava o antropomorfismo

dos conceitos sobre Deus, e que se dirigindo para o Ocidente, fundou a

escola de Elea. Ora, Heráclito, se ocupou com uma espécie de panteísmo hilozoista. Quanto ao pitagórico Hípaso, que é de Metaponte

(Itália) cultivou uma doutrina que contém elementos tanto pitagóricos

como jônicos, tendo o fogo como elemento principal. Ora, Heráclito possui afinidades com este pensamento. O mais provável é que

Heráclito influenciasse sobre Hípaso, e que por isso ambos tenham

pensamento afim.

Heráclito não se deu a viagens, como outros sábios do seu tempo.

Convidado por Dário, escreveu-lhe em resposta:

“Todos os homens sobre a terra se afastam da verdade e da justiça, entregues por falta de juízo à avareza e à sede de popularidade. Eu, que

ignoro todas as fraquezas e não desejo outra coisa senão horror ao esplendor, não posso seguir para a Pérsia. Contento-me com pouco,

quando este pouco é para a minha mente"

Heráclito aos 60 anos vitimado pela hidropisia, foi enterrado como os

nobres em lugar público, isto é, na àgora, ou Fórum. A luta dramática do filósofo contra a doença foi descrita de maneira muito realista, e

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poderá não ser verdadeira em todos os detalhes:

Por fim passou a odiar os homens e se retirou para as montanhas.

Como ali só se alimentasse de ervas, adoeceu de hidropisia, sendo obrigado a retornar à cidade. Fez aos médicos a enigmática pergunta, se

podiam mudar a chuva em secura. E como não o entendessem, meteu-

se sob o calor do esterco num estábulo, esperando que evaporasse a água que o atormentava. Como o remédio não trouxesse resultado, logo

morreu, na idade de sessenta anos.

Hermipo conta o facto de outro modo. Teria ele perguntado aos

médicos, se era possível, comprimindo-lhe os intestinos, extrair a água. E como o negassem, estendeu-se ao sol e ordenou aos seus

empregados, que o cobrissem com esterco de boi. Assim deitado, no

segundo dia faleceu, e foi sepultado na praça pública. Neantes de Císico

alega que, não tendo podido retirar-se de sob o esterco, lá ficou; e,

irreconhecível, por deformado, o devoraram os cães.

Obras :

Heráclito escreveu um livro Sobre a natureza. Mas não se pode afirmar

directamente que foi este o título, porquanto foi um hábito posterior atribuir a filósofos antigos um livro com semelhante denominação. O

texto certamente existiu como provam os poucos fragmentos que dele

restaram. A circunstância de o haver depositado no famoso templo de

Ártemis (ou Diana) de Éfeso permite supor houvesse tratado de coisas transcendentais. Ou teria ali depositado simplesmente, houvesse uma

pequena biblioteca junto ao templo.

Mas havendo-se criado em torno do livro a seita dos heraclíteos, este

fato prova que Heráclito formou discípulos e que o livro continha elementos religiosos, que o tornavam como que um escrito sagrado.

Diógenes Laércio, depois de informar sobre o escrito de Heráclito, logo

lhe fez também a resenha doutrinária:

"O livro que lhe atribuem se estende sobre a natureza, dividido em três exposições: sobre o todo, a política, a teologia. Este livro o

depositou no templo de Ártemis, e, de acordo com alguns, o tornou

mais obscuro intencionalmente, para que senão os adeptos se

acercassem dele, e não fosse desestimado pelo vulgo”.

Houve muitos comentários de sua obra, inclusive Antístenes e Heráclides do Ponto, Cleantes e Esfero o Estóico, e ainda Pausânias

denominado o Heraclitista, Nicomedes, Dionísio, e entre os gramáticos

Diódoto. Este último afirma que o tratado de Heráclito não é sobre a natureza, mas sobre o governo e que a parte física serve como

ilustração. Existem vários epigramas 16 acerca de Heráclito, entre

outros os seguintes: Eu sou Heráclito; porque me torturais ignorantes? Não é para vós que eu trabalhei, mas para os que me podem

compreender. Para mim, um homem vale trinta minas; uma multidão

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não vale nem uma só. Eis o que vos digo, desde o fundo do palácio de

Proserpina.

Outro epigrama: Não vos precipiteis em adquirir o livro de Heráclito de

Éfeso; o caminho é difícil; trevas e impenetrável obscuridade o rodeiam; mas se um iniciado vos guia, o caminho brilhará mais que a luz solar

17. Heráclito ficou famoso também pela dificuldade de entendimento.

Diz Seleuco o gramático que, segundo um tal Croton, em O mergulhador, o livro havia sido levado pela vez primeira à Grécia por um

certo Crates, o qual dizia que era preciso ser um mergulhador de Delos

para não afogar-se nesta obra.

Mesmo Sócrates ficara perplexo, conta Diógenes Laércio que como Eurípides desse uma obra de Heráclito a Sócrates e lhe pedindo a

opinião a respeito ele contestou:

- O que compreendi é excelente; o resto suponho igual, mas para

entendê-lo é necessário um mergulhador de Delos.

Ainda sobre a obra de Heráclito, que a primeira informação parece sugerir haver sido Sobre a natureza, sabe-se que era mencionada

também com outros títulos. O título dado para ela, por alguns é As Musas; por outros Sobre a natureza; mas Diódoto a chama Um leme para governar a vida; outros, Ciência dos costumes, e Complemento e ornato de uma certa medida para todas as coisas.

Didacticamente consegue-se expor em separado o pensamento

cosmológico de Heráclito, a seguir seu monismo, conceitos psicológicos,

finalmente, conceitos éticos, sociais

Fogo como 1º Elemento | O Devir Universal | Causa e Lei | O Monismo Heraclito | A Alma e Suas Funções |

Doutrinas Morais de Heráclito

Fogo como primeiro elemento na composição da matéria - Heráclito afirmava que o princípio constitutivo de todas as coisas é o fogo, e a

partir dele tudo se explica por transformações, além disso o fogo é

sempre móvel, de onde decorre sua dinâmica.

Heráclito costumava afirmar que havia uma lei natural ordenadora para todo o universo, ora ele denominava essa lei como Deus, obviamente

não como um Deus da mitologia, mas algo que fosse o organizador de

toda a existência do universo. Costumava chamar essa lei natural também de Logos. A ordenação se dá dialecticamente, em direcções

contrárias, de concórdia e discórdia. Nesta visão complexa da

realidade total do universo de Heráclito se distinguem aspectos, que

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importa abordar sucessivamente, começando pelo princípio

constitutivo cosmológico, o fogo.

É o fogo de Heráclito concebido com as feições do indefinido ou

infinito. Este infinito tem as mesmas feições do Apeiron de Anaximandro de Mileto. Curiosamente Anaximandro não está incluído

entre aqueles aos quais Heráclito criticou. Mas Anaximandro

permaneceu na concepção mais abstracta do infinito, enquanto Heráclito preferiu um elemento mais caracterizado na natureza, como o

fogo. Anaxímenes e Diógenes colocarão o ar como anterior à água, e,

entre os corpos simples, lhe dão a preferência como princípio, ao passo

que, para Hípaso de Metaponte e Heráclito de Éfeso, o primeiro

elemento é o fogo.

Heráclito e Hípaso de Metaponte vêem no fogo o princípio de todos os

seres. Tudo nasce do fogo e no fogo tudo finda. Da extinção deste,

todas as coisas são geradas; porque, contraindo-se em si mesma a parte mais espessa (do fogo), nasce a terra; depois, dilatando-se a

terra, por virtude do fogo, nasce a água. Da evaporação desta se dá

origem ao ar. E, ao invés, o cosmo e todos os corpos pelo fogo parecem

na conflagração.

“Este mundo, o mesmo para todos, nenhum dos deuses e nem dos homens o fez, é e será fogo sempre vivo, que se acende e com medida se

apaga".

"Aqui está um sumário de suas doutrinas. Todas as coisas são compostas de fogo e no fogo se resolvem. As coisas todas se produzem segundo o destino. Entram em harmonia através de um movimento de

opostos. E tudo está cheio de almas e divindades.

Parte por parte, estas são as suas doutrinas: o fogo é o princípio, ou

elemento e todos os seres são uma transformação do fogo, vindo a se produzir por rarefação e condensação. Mas não dá explicação clara.

Todas as coisas se produzem pelo conflito de opostos e o seu conjunto

flui como um rio. Tudo o que se realiza é limitado e forma um só universo. E ele é gerado alternativamente do fogo, e de novo reduzido ao

fogo em cada ciclo de tempo, por toda a eternidade, e isto é determinado

pelo destino.

Dentre os opostos, um deles se chama guerra e discórdia e o

outro, a tendência à destruição pelo fogo, se chama concórdia e paz.

A transformação é um caminho para cima e para baixo, e isto

determina, o nascimento do mundo. Pela contracção o fogo se humedece, e se converte em água. E a água ao contrair-se se converte

em terra. Este é o caminho para baixo. Mas depois novamente o fogo faz

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expandir-se a terra, que volta a produzir a água, e da água o restante

da série, cuja maior parte resulta da exalação do mar. Este é o caminho

para cima

O Devir Universal - O devir universal das coisas era a principal preocupação de Heráclito. Por causa da constatação da universal

transformação de tudo, induziu que fosse o fogo o elemento principal.

Porquanto se apresenta eminentemente móvel. Afirmando enfaticamente que tudo flui e nada permanece. Qualquer fosse o

componente básico, a partir dele derivariam todas as coisas, através de

uma geral mobilidade. Não insiste Heráclito no mesmo fogo, e

concordaria fosse outro este elemento básico, desde que melhor

explicasse a hipótese da geral mobilidade.

O mobilismo incorre em várias perguntas, dentre as quais importa

começar pela forma desta alteração contínua. Dar-se-ia a alteração

mais fundamentalmente na mesma estrutura do elemento em mudança ao modo do hilemorfismo (por substituição das determinações)? Ou se

daria ao modo do atomismo (por disposição das partes, quer por

complexificação, quer por simples condensação e rarefação)?

É difícil de decidir qual fora a precisa maneira de pensar de Heráclito. Ou seguiu inteiramente a Anaximandro, com quem já se assemelha por

ter substituído o Apeiron indeterminado, por um elemento semelhante

pela mobilidade, o fogo, e então o fogo se transformaria ao modo

hilemorfista, pela substituição substancial das formas. Ou seguiu a Anaxímenes, nesta outra parte, referente às mudanças, que o terceiro e

último filósofo de Mileto concebia como simples rarefação e

condensação das partículas, sem que elas mesmas individualmente se alterassem. A aparência exterior do fogo parece conduzir à interpretação

hilemorfista: então Heráclito à mesma maneira como Anaximandro,

teria prenunciado o hilemorfismo aristotélico. Uma passagem de Platão

sugere exactamente isto:

"Não declarou Heráclito que tudo está em movimento? E que nada permanece parado? Comparando a realidade ao curso de um rio, ele

disse: duas vezes no mesmo rio não colocarás teu pé"

O "tudo flui, ou tudo está em movimento" contém o sentido hilemórfico da mudança da forma. De outra parte, porém, "condensação" e

"rarefação", usadas com referência à Heráclito, são tipicamente

atomistas, estas expressões não deixam clara a tese do mobilismo,

senão pelo contexto.

“Hipaso de Metaponte e Heráclito de Éfeso também admitem um só (princípio) movente e limitado (finito), que seria o fogo. Tudo nasce do fogo por condensação e rarefação, e tudo se resolve no fogo, sendo ele a única natureza substancial. Pois diz Heráclito, tudo se troca por fogo, e fogo por

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tudo. A ordem do cosmos e sua transformação em tempo limitado

obedece a uma necessidade prefixada".

"Heráclito suprimiu o repouso e a estabilidade no todo, pois isto é próprio dos mortos. Atribui o movimento a todas as coisas: Eterno às eternas;

transitório às transitórias .

"Não é possível descer duas vezes ao mesmo rio, segundo Heráclito, nem tocar duas vezes uma substância transitória no mesmo estado: por via

da impetuosidade e da velocidade da transmutação, aflui e reflui, avança e retrocede, ou melhor, nem de novo, nem mais tarde, mas no mesmo

instante, se congrega e se desagrega, se junta e se disjunta" .

Mas que Heráclito também ensinava a geração e a corrupção do cosmo,

provam-no estas palavras suas:

“Transmutações de fogo: primeiro o mar; e do mar, metade terra e metade turbilhão ígneo, o que significa que é o fogo, mediante o qual o Logos ou Deus rege o todo, que, transmudado em ar, se volve em humor, o qual é,

por assim dizer, o sémen da ordenação cósmica, o que ele denomina:

Mar.

Do mar renasce a terra e o que entre a terra e o céu se encontra. Mas de que maneira o cosmo regressa à ordem primordial e como se dá a

deflagração, isso claramente o exprime assim: (a terra) derrama-se qual mar, a medida da mesma lei que prevalecia antes que este se

transmutasse em terra".

Clemente de Alexandria com suas palavras fez a seguinte afirmação:

Heráclito de Éfeso, quando ensina que um cosmo é eterno e outro

transitório, sabendo ele, todavia, que este (o transitório), no que respeita à organização, não é diverso daquele (o eterno) que possui certa

estrutura.

Mas que ele tenha considerado como eterno o cosmo, aquele que

consiste de toda a substância, estruturado como quer que seja, isto

claramente o revela, dizendo: - Este cosmo, que é o mesmo para todos, nem Deus nem homem algum o fez; sempre foi, é e será um fogo

eternamente vivo, que se alumia por medida e por medida se apaga"

Lê-se em Aristóteles:

"Todos os físicos admitem que o céu foi gerado, uns o proclamam eterno, outros, corruptível, como qualquer outra natureza composta. Há também os que sustentam que a corrupção é alternada, ora num sentido, ou noutro, e que este processo é infinito. Tal é a doutrina de Empédocles de

Agrigento e de Heráclito de Éfeso"

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Causa e Lei - A ideia de causa e de lei natural para as transformações

é um aspecto novo desenvolvido pela filosofia de Heráclito. Ela marcará

a diferença entre os jónicos antigos e os novos. Os antigos cuidavam da

estrutura, e muito pouco da dinâmica das mesmas. Os novos

apresentam hipóteses sobre as causas da mudança ou da transformação. Qualquer fosse o princípio primordial, importava saber

como se dinamizava. Heráclito ainda se preocupa com uma certa ordem

racional, portanto de uma lei, e que denominava logos (inteligência ou razão). Não aconteceriam casos, por efeito de poderes gratuitos ou

fortuitos, fatais, absurdos, míticos.

As causas do devir, além disto, mostravam outras características a

serem examinadas, como por exemplo, suas direcções para cima e para baixo, num sentido de diversificação do fogo primordial e num de

retorno a ele, - de guerra e paz, de explosão e de apagamento. Em

outras palavras, é a lei natural a reger as coisas. Tais doutrinas sobre

as leis da dinâmica das coisas apenas se encontram em embrião nos anteriores filósofos Milésios. Admitiam estes a transformações a partir

de causas dinâmicas; não lhes emprestaram, todavia o carácter racional

da lei, ou seja, de um logos inserido naturalmente.

Heráclito conduz à frente a interpretação dinâmica do ente. Não se preocupando apenas com o componente estático primordial, levou sua

preocupação para a causa do comportamento dinâmico do mesmo.

Orientou desta sorte as especulações filosóficas e cientificas para um campo que lhes é mais peculiar. O pensamento mítico também se ocupa

de causas, todavia só das causas mágicas, como da vontade que se

expressa em palavras e cria o mundo em um momento ou em poucos

dias.

Para Heráclito o logos é a lei natural racionalmente entendida

operando a partir de dentro do mundo. Se algumas versões anteriores

comentam Heráclito entendendo a lei na forma de destino, lhe deformam o pensamento, ou emprestam a estas palavras um sentido de

lei racional, deu oportunidade a equívocos, como se ele admitisse

deuses ou almas à maneira órfica ou ao modo do estoicismo eclético

ulterior.

Encontramos no velho Platão, sem mencionar os autores, uma

referência à doutrina da geração e corrupção alternada:

"Certas musas da Jónia e da Sicília (Heráclito e Empédocles) deliberaram que o mais seguro é combinar as duas teses e dizer que o ser é uno e múltiplo, mantendo sua coesão pelo ódio e a amizade. Efectivamente,

discordando sempre concordam; assim dizem as musas mais decididas; porém as mais moderadas, embora asseverando que assim é sempre,

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também afirmam que alternadamente, ora o todo é um amigo, por virtude

de Afrodite, ora múltiplo e inimigo por obra de não sei que discórdia".

O monismo Heraclito - O monismo materialista é essencial à filosofia

de Heráclito, e foi o seu lado mais profundo entre Deus e o mundo, ou seja, entre o logos e o fogo; também não há esta distinção entre o corpo

e alma. O fogo contém a propriedade eminente da racionalidade, a qual

denominou logos. Assim também o corpo não contém dualisticamente

uma vida, que nele resida como substância autónoma. O mesmo corpo

é vivo.

Mas como o logos é espiritual, o monismo materialista de Heráclito

é um materialismo espiritual, isto é uma substância material com

funções espirituais, por exemplo a de pensar. Em Do ar, como em Anaxímenes, agora Heráclito simplesmente passa a denominar de outro

modo o princípio universal de tudo, o fogo. Deus, ou os deuses,

somente podem ser concebidos como integrantes deste elemento de

base. Assim se entende o episódio narrado por Aristóteles:

"Heráclito, ao aquecer-se à lareira e vendo que uns forasteiros se detiveram, procurando-o, mandou que entrassem sem receio, pois

também ali havia deuses".

Se tudo é um ser e se Deus se confunde com o ser, devia também estar

ali. Não há verdadeiramente ser morto. Se tudo se move, isto exactamente confere com a vida. O movimento inferior não é senão um

apaziguamento da vitalidade do fogo universal. Também o logos, em

tudo existente como propriedade essencial, diminui as suas manifestações nos movimentos para baixo e cresce naqueles para cima.

A alma plena não é senão o instante alto do logos em acção; a morte é o

instante em que o logos já não se manifesta, sem haver todavia

desaparecido.

A vida é rítmica, pois, cresce e dominou no macrocosmo do corpo humano, até que um dia não mais se manifesta, em virtude da

dominância do movimento para baixo, quando se comporta como água,

terra e outros materiais. Os astros, sobretudo o sol, enquanto facho de fogo, devem ter pensamento. A presença do logos se faz sobretudo no

espaço etéreo. Dali como que se dilata para o homem sobre a terra.

Neste contexto se interpreta a afirmação:

"Heráclito diz que o sol é um facho inteligente".

Os textos referentes ao monismo panteísta, combinado com o logos

universal e a alma, se encontram com relativa profusão. Mas são inteligíveis apenas se levarmos em conta o contexto geral em que se

situa o autor.

Page 83: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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"Heráclito declara que a alma é o princípio primordial, uma vez que ela é (idêntica à) exalação, da qual tudo o mais provém. Ele acrescenta que este princípio é o que há de mais incorporal, e que ele está em fluxo

perpétuo" .

"Heráclito diz que a alma do Cosmo é a exalação das coisas húmidas que nele há, mas a dos seres viventes deriva da exalação tanto de fora como

de dentro deles mesmos, a qual em ambos os casos é homogénea"

"... Uma vez separada do corpo, regressa à alma do Cosmo, que é da

mesma natureza".

Compõem Heráclito a sua sentença, escrevendo aproximadamente isto:

"Morte das almas, o tornarem-se água, e morte da água, o volver-se em

terra; mas da terra renasce a água, e da água a alma".

Não tem sentido para Heráclito o conceito mítico da divindade separada, nem da doutrina órfica da alma separada. Verdadeiramente nada

morre, mas apenas cessam funções, que em outras circunstâncias

poderão retomar-se. a respiração e a nutrição reacendem constantemente o fogo da vida. É como que o contacto com o fogo

universal, o logos, que contudo não está separado, como se de fora

viesse.

Repudiando a religião mítica, Heráclito indaga:

"Se há deuses, porque os chorais? Mas se os chorais, não os venerais

como deuses".

A Alma e Suas Funções -Alma é o fogo em fluxo perpétuo,

quando em manifestações especiais. A respiração e a nutrição

reacendem constantemente o fogo da vida. É como que o contacto como o fogo universal, o logos. Ainda que a água seja o fogo em instante

decrescente, dali pode reacender-se. Desta sorte, a água pode ser

alimento da alma. Coerentemente, diz Heráclito que a alma humana,

após a morte, retorna ao logos universal. Nada mais diz, senão, que a vida cessa de se manifestar, sem todavia desaparecer a condição

substancial do fogo elementar de algum dia explodir na ekpyrosis.

A ressurreição de que fala Heráclito deve ser entendida dentro de seu

conceito monista de funções que sobem e descem, num emergir e regredir das manifestações da vida. O pensamento como um emergir da

razão divina contida em todos nós, - segundo Heráclito, - foi descrito

um tanto imaginosamente, por Sexto Empírico, ao mesmo tempo que

retransmitia suas ideias sobre o antigo autor: Esta razão divina penetra em nós pela respiração, e assim nos tornamos inteligentes, no sono,

inconscientemente, na vigília, conscientemente.

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Pois enquanto dormimos e cerrados permanecem os poros dos nossos

sentidos, a inteligência que está em nós, aparta-se do que a rodeia, e só

como que por uma espécie de raiz, a respiração mantém o liame. Em consequência desta separação perde a capacidade de memória que

antes possuía. Na vigília, pelo contrário, olhando através dos poros dos

sentidos, ela retoma o contacto com o circundante e readquire as faculdades racionais. Tal como os carvões que junto ao fogo se

transformam e ardem, e, pelo contrário, se extinguem uma vez

apartados dele, assim também, a parte que do circundante em nosso corpo reside, dele separada, quase irracional se torna; ao passo que,

reunida pelo maior número de poros (dos nossos sentidos) torna-se

semelhante ao todo (do universo penetrado pelo logos).

Este logos comum e divino, por participações do qual nós somos lógicos,

- eis a faculdade da verdade segundo Heráclito. Por conseguinte tudo quanto a todos comumente pareça (claro), crível, será; mas, pelo motivo

oposto, quanto a um só ocorra, incrível será. Eis porque logo no

princípio do seu livro Da natureza, aludindo de certo modo ao

circundante, diz:

Este logos, ainda que exista sempre, os homens são incapazes de entendê-lo, quer antes de o haverem escutado, quer após o terem ouvido.

Pois ainda que tudo aconteça segundo este logos, parecem não ter experiência alguma dele, - eles que experimentaram palavras e obras,

tais como eu as exponho, distinguindo a natureza de cada uma delas , e explicando-a tal qual é. Os demais homens, porém, tão pouco sabem o

que fazem despertos, quão pouco se lembram do que fizeram dormindo.

Por estas palavras expressamente afirma que nós tudo fazemos e pensamos, enquanto participe do logos divino; e pouco depois

acrescenta:

Distingue Heráclito entre sentidos e inteligência. Acto contínuo, aprecia

o valor gnosiológico de ambas as formas de conhecimento.

Acontece em Heráclito aquele vago cepticismo que perpassa toda a

filosofia pré-socrática e que alcança principalmente as faculdades sensíveis. A escola eleática (de Xenófanes e Parménides, Senão e

Melisso) adverte para a imobilidade e unidade do ente, o que provaria o

engano dos sentidos ao apresentarem como móvel e múltiplo. Agora, em Heráclito, afirma-se a mobilidade geral e o ente, outra vez porém

advertindo para o engano dos sentidos; o devir generalizado do ente

impediria o conhecimento preciso das coisas.

Pois que lhe parecia ser o homem dotado de duas faculdades para o conhecimento da verdade, - sensibilidade e razão (ou logos), também

para Heráclito, como para os mencionados físicos (Parménides e

Empédocles) a sensibilidade era suspeita. A razão (logos), pelo contrário,

ele a considera como faculdade (da verdade). A experiência sensível

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reprova-a dizendo textualmente: más testemunhas os olhos e os

ouvidos para os homens com almas de bárbaros. A relatividade do ente,

do conhecimento, da moral decorre da doutrina da mobilidade intrínseca do ente. Em virtude do movimento em direcções opostas,

para cima e para baixo, para a excitação e para o apaziguamento,

ocorrem no mesmo ente, os contrários em busca de equilíbrio.

"Heráclito diz que os contrários conferem, e dos diferentes nasce a mais bela harmonia".

"Heráclito, o obscuro diz, que as conexões são completo e incompleto, o que é concordante e o que é discordante; o que produz a consonância e o

que produz a dissonância, - de tudo é composto o um; de um, tudo".

Aqui está directamente indicada a moral natural, mas sempre com uma

certa relatividade, por causa da mobilidade do todo.

"Aqueles que falam com inteligência, devem apoiar-se no que é comum a todos, como uma cidade em sua lei, ainda com muito mais firmeza. Pois todas as leis humanas se alimentam em uma só lei divina, já que esta

domina quanto quer e é suficientemente para todos e ainda tem de sobra" .

Os valores são apreciados diversamente. A felicidade não é buscada nas

mesmas coisas.

"O cavalo, o cão e o burro têm prazeres diversos e, como diz Heráclito,

os burros prefeririam a palha ao ouro. Com efeito, mais grato aos

burros é o pasto que o ouro" .

"Bem e mal são uma e a mesma coisa. Diz Heráclito: os médicos, cortando, torturando, queimando, os doentes de toda a maneira, ainda

exigem deles uma recompensa que não merecem, pois só um e o mesmo

efeito conseguiram: bens e males".

Sobre classes sociais:

"Que o pai entre todos os seres gerados, é ingénito e gerado, criatura e criador, sabemo-lo, dizendo ele: Prélio é o pai de todas as coisas, de todo

o rei; de alguns fez deuses, de outros fez homens; destes, escravos, e

daqueles, homens livres" .

"Dizem que é próprio dos deuses o regozijarem-se com o espectáculo das batalhas. Mas não é impróprio, pois todas as acções generosas são

próprias para regozijar. Batalhas e combates parecem-nos horríveis, mas para a divindade nada disso é horrendo... como diz Heráclito: para Deus

todas as coisas são belas, boas e justas; os homens porém, umas consideram injustiça, outras justas”.

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"Pois justamente também o nobre Heráclito vitupera a turba, como destituída de inteligência e raciocínio: que senso e intelecto é o deles?

Deixam-se guiar por poetas errantes e amestrar pela multidão; não

sabem que muitos são os maus, poucos os bons” .

Teria negado o princípio de contradição? Ao dizer que o contrários se

unem, parece não ter pensado no alcance total dos termos, ao ponto de

opor o ser e o nada. Por isso o mesmo Aristóteles ressalva a Heráclito de

haver negado o princípio de contradição:

"Não é possível conceber jamais que a mesma coisa é e não é, como certos acreditam que Heráclito o tenha dito: porque o que se diz, não se é

obrigado pensar" .

Doutrinas Morais de Heraclito - Conceitos éticos, sociais e

políticos se encontram nos fragmentos de Heráclito e em informações

doxográficas, estando influenciada pelo seu geral mobilismo e

relativismo. A divisão do seu livro em três partes, - o todo, a política, a teologia, - prevê mesmo tais questões.

O estudo dos temas humanos, apesar de menos cuidado pelos pré-socráticos, que são antes de tudo filósofos da natureza física, tem um

primeiro importante sinal em Heráclito ao declarar:

"Eu me busquei a mim mesmo".

É similar à advertência do templo de Delfos "conhece-te a ti mesmo"

assumida com efectividade por Sócrates.

Entretanto, o pouco, que se conservou dos ensinamentos morais de Heráclito, mal deixa a entrever um sistema, não havendo ultrapassado

muito além dos dizeres sentenciosos da moral popular religiosa

tradicional. Entretanto, de outra parte, a filosofia de Heráclito contém o

princípio racional, que comanda o todo, ao qual tudo o mais obedece.

"Lei também é obedecer ao plano do uno".

"Um vale mais para mim, do que dez mil, se for melhor".

"Saber pensar é a mais alta virtude; e a sabedoria consiste em dizer a

verdade e agir em conformidade com a natureza, obedecendo-lhe".

"Quem queira falar com inteligência, deve tornar-se forte com o (logos) comum a todos, como uma cidade com a lei, e ainda mais forte; porque

todas as leis humanas se nutrem de uma só, divina, que tudo governa, podendo quanto ser, sem tudo bastando, tudo excedendo".

"O homem infantil ouve a Deus falar, como um menino a um homem".

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Governo aristocrático. Ligado à nobreza de Éfeso, teve Heráclito

oportunidades de abordar e definir temas políticos, e nem lhe faltava

coragem para isto, nem mesmo inteligência.

A circunstância de haver sido alijado do poder o partido dos nobres, atingindo portanto a ele mesmo, proporcionou mais uma vez a

discussão e a necessidade de defesa, inclusive a revisão dos conceitos.

Do aceso das refregas resultam alguns dos pensamentos de Heráclito e

que chegaram até nós apenas fragmentariamente. Com ironia falou:

"Que não vos falte a riqueza, ó efésios, para que fique demonstrada

vossa má conduta".

Fundando-se na diferença entre os homens, Heráclito defendeu a

aristocracia como forma do poder. O povo se atém ao sensível, quando uns poucos se elevam ao poder raciocinativo do logos. Poucos são os

que alcançam a virtude. O povo que não a atinge, expulsa os virtuosos,

como sucedeu em Éfeso. O conceito de sociedade como resultante de um pacto social e a partir de onde se julgaria sua forma de governo,

conforme a capacidade do próprio povo, - é coisa que não passa pela

cabeça de Heráclito, e nem passará mais tarde pela de Platão, também

defensor do absolutismo ilustrado.

A cosmogonia e astronomia é similar aos dos primeiros jónicos, todavia

ajustada ao princípio primordial do fogo e ao seu devir.

"O sol tem o tamanho de um pé humano".

"O sol, como diz Heráclito, não somente é novo cada dia, senão que é

novo continuamente". Esta afirmação se deve entender no contexto do

mobilismo Heraclito.

"As transformações do fogo são: em primeiro lugar o mar, e do mar a metade se transformou em terra e a outra metade em torvelinho ígneo. A

terra se torna mar líquido e é medida com o mesmo logos que existia

antes de se tornar terra".

"O mais belo universo é somente um montão de desperdícios reunidos ao azar.

Principais fragmentos:

I "Os homens são deuses mortais e os deuses, homens imortais; viver é-lhes

morte e morrer é-lhes vida".

II "Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos".

III ―... O movimento se processa através de contrários."

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IV ―... Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela

harmonia...‖

V ―... Não podemos entrar duas vezes no mesmo rio, pois da segunda vez,

tanto rio, como nós estaremos mudados...‖.

VI "... Mais vale apagar o orgulho que um incêndio...".

VII ―... Para mim, um homem vale trinta minas; uma multidão não vale nem

uma só...‖.

VIII "...Se há deuses, porque os chorais? Mas se os chorais, não os venerais

como deuses...".

IX "...Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o

logos é um só...‖.

X "...Pois justamente também o nobre Heráclito vitupera a turba, como destituída de inteligência e raciocínio: que senso e intelecto é o deles? Deixam-se guiar por poetas errantes e amestrar pela multidão; não sabem que muitos são os maus, poucos os bons...‖.

XI "O mais belo dos macacos é feio se compara com a raça dos homens. O mais sábio dos homens, comparado com Deus parece um macaco em

sabedoria, beleza e tudo o mais.

Conclusão:

Com Heraclito e Parménides a filosofia pré-socrática atinge o seu auge. Ambos

os pensadores têm a sua actividade em pleno século V e a sua influência vai ser

nítida.

Heraclito, autor de um Acerca da Natureza, volta à prosa mas esta é oracular,

próxima dos apotegmas, o que torna a filosofia heracliteana de difícil

compreensão.

Quanto à posição de Heraclito gostaríamos de focar três pontos preliminares:

Há um ataque aos grandes poetas e a alguns pensadores (Pitágoras e

Xenófanes). Se a crítica a Homero e a Hesíodo não surpreende porque já

tinha sido feita por Xenófanes o ataque a filósofos merece uma rápida

consideração. A filosofia já tem os contornos do que vai ser a sua

natureza: é uma reflexão independente, os seus cultores são solitários em

embates com os seus colegas, nunca formando propriamente uma

comunidade;

Page 89: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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O interesse e a defesa por uma religião depurada é patente em Heraclito

(cfr. frag. B5). O filósofo inscreve-se numa linha do pensamento grego

cuja preocupação é a moralidade, portanto a dignidade da religião;

Tema caro a Heraclito é a diferença entre o homem e os deuses. O

filósofo reata aqui um tema contido no antigo corpo de saber. Para

Heraclito há um abismo entre a sabedoria do deus e a do homem: é a

concepção do saber humano como algo que pouco vale. É, no fundo, a

consciência de que a razão tem limites estreitos e que para além dela se

abre a imensidão do desconhecido.

A filosofia de Heraclito já era difícil de interpretar na Antiguidade quando o seu

livro ainda estava completo; os fragmentos que chegaram até nós tornam a tarefa

mais árdua. O nosso ponto de partida vai ser a noção de Logos (frags. B 1,B2 e

B50).

É conhecida a dificuldade em traduzir a palavra grega logos. Por isso vamos

tentar apresentar os traços mais relevantes desta noção em Heraclito:

O homem vulgar desconhece o Logos; existe, assim, uma clivagem entre os

homens comuns e o filósofo;

Todas as coisas acontecem segundo o Logos: este orienta e dirige tudo

quanto existe;

O Logos é algo de comum;

Por um lado o Logos é o que é comum a todas as coisas, por outro todas as

coisas formam uma unidade;

O Logos não é a palavra do filósofo mas algo que lhe é independente e

exterior.

Segundo penso para Heraclito o Logos é a estrutura das coisas existentes e o que

permite explicitá-las, fazendo, igualmente a sua unidade.

É minha opinião que o Logos se identifica com a Divindade e o Fogo, outras duas

noções fundamentais no pensamento heracliteano.

A Divindade é o uno, a sabedoria única (cfr. frag. B32); ora, a ênfase posta na

unidade liga-se, ao que nos parece, ao Logos que, como vimos, é algo de comum.

Quanto ao Fogo aparece como algo de eterno, que se acende e se extingue com

medida, sendo ele que constitui a ordem do mundo (cfr. frag. B30).

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Como podemos ver este Fogo tem uma norma interna, é inteligente, passe a

expressão, o que permite, segundo penso, identificar Logos, Divindade e Fogo.

O que há de inovador nesta perspectiva?

A substância primordial dos Milésios torna-se mais complexa em Heraclito; neste

pensador o Fogo surge com a função tradicional da physis e a sua identificação

com a Divindade não é nova.

A novidade constitui no facto de Heraclito analisar mais profundamente esta

noção, mostrando que ela possui várias facetas o que a torna mais complexa,

como já dissemos.

Até este momento acentuei a tónica da unidade numa filosofia mais conhecida

pela noção de fluir constante.

Heraclito ficou célebre pela luta dos contrários, pela mudança que se vai

operando, sem cessar.

Ora, ao que me parece, o chamado fluir constante não se opõe à concepção de

unidade que apresentei anteriormente.

O que quero dizer é que esta luta de contrários, este fluir, é superficial, ou

seja, o substrato das coisas não é afectada.

Heraclito conjuga a unidade com o movimento: o que é importante é verificar

que o essencial é a unidade, a qual não é posta em causa.

Embora Heraclito seja mais conhecido pelo filósofo do Logos ou do fluir

constante todas as suas reflexões se fazem no âmbito da cosmologia. Ao que me

parece é a origem e a estrutura do Universo assim como a forma de que se

reveste que constitui a base da sua filosofia (embora no campo estritamente

cosmológico Heraclito não seja muito original).

Por fim façamos uma referência ao tema da alma. O Efésio considera que a

alma é fogo, devendo estar ligada ao Fogo universal. As almas, e isso deve ser o

mais comum, podem transformar-se em água, o que constitui a sua morte. Por

seu lado as almas virtuosas (porque são secas) sobrevivem à morte do corpo

(veja-se os frags. B25, B36, B118).

Page 91: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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O facto de Heraclito se ter debruçado sobre a questão da alma mostra-nos o

seguinte:

É um tema importante a partir de Pitágoras;

Heraclito ao defender que nem todas as almas são imortais mostra

claramente as divergências e a ambiguidade deste tema desde os poemas

homéricos.

A exposição que fizemos teve de deixar de lado alguns aspectos da filosofia de

Heraclito em que ele mostra toda a sua pujança e que nos ajuda a compreender a

influência que vai ter ao longo da Filosofia Grega.

Page 92: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Parmenides de Eleia

Parménides de (cerca de 530 a.C. - 460 a.C.) nasceu em Eléia, hoje

Vélia, Itália. Foi o fundador da escola eleática. Há uma tradição que afirma ter sido Parménides o discípulo de Xenófanes de Cólofon mas

não há certeza sobre o facto, já que uma tradição distinta afirma ter

sido o filósofo pitagórico Amínias (ou Ameinias) quem despertou a

vocação filosófica de Parménides.

Os outros representantes da escola eleática são Zenão de Eleia e

Melisso de Samos.

O Pensamento de Parménides

Seu pensamento está exposto num poema filosófico intitulado Sobre a Natureza, dividido em duas partes distintas: uma que trata do caminho

da verdade (alétheia) e outra que trata do caminho da opinião (dóxa), ou

seja, daquilo onde não há nenhuma certeza. De modo simplificado, a

doutrina de Parménides sustenta o seguinte:

Unidade e a imobilidade do Ser; O mundo sensível é uma ilusão;

O Ser é Uno, Eterno, Não-Gerado e Imutável.

Devido a essas características, alguns vêem no poema de Parménides o

próprio surgimento da ontologia. Ao mesmo tempo, o pensamento de Parménides é tradicionalmente visto como o oposto ao de Heráclito de

Éfeso mas verifica-se que essa oposição é relativa aos pitagóricos e não

a Heraclito de Éfeso , para alguns estudiosos: Parménides fundou a

Page 93: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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metafísica ocidental com sua distinção entre o Ser e o Não- Ser.

Enquanto Heráclito ensinava que tudo está em perpétua mutação,

Parménides desenvolvia um pensamento completamente antagônico: “Toda a mutação é ilusória”. Parménides vai então afirmar toda a

unidade e imobilidade do Ser.

Fixando sua investigação na pergunta: ―o que é‖, ele tenta vislumbrar

aquilo que está por detrás das aparências e das transformações. Assim, ele dizia: ―Vamos e dir-te-ei – e tu escutas e levas as minhas palavras.

Os únicos caminhos da investigação em que se pode pensar:

um, o caminho que é e não pode não ser, é a via da Persuasão,

pois acompanha a Verdade; o outro, que não é e é forçoso que não seja, esse digo-te, é um caminho totalmente impensável. Pois não

poderás conhecer o que não é, nem declará-lo.”

Numa interpretação mais aprofundada dos fragmentos de Heráclito e

Parménides, podemos achar um mesmo todo para os dois e esta

oposição entre suas visões do todo passa a ser cada vez menor.

Parménides comparava as qualidades umas com as outras e as ordenava em duas classes distintas. Por exemplo, comparou a luz e a

escuridão, e para ele essa segunda qualidade nada mais era do que a

negação da primeira. Diferenciava qualidades positivas e negativas e, esforçava-se em encontrar essa oposição fundamental em toda a

Natureza. Tomava outros opostos: leve-pesado, activo-passivo, quente-

frio, masculino-feminino, fogo-terra, vida-morte, e aplicava a mesma comparação do modelo luz-escuridão; o que corresponde à luz era a

qualidade positiva e o que corresponde à escuridão, a qualidade

negativa. O pesado era apenas uma negação do leve. O frio era uma

negação do quente. O passivo uma negação ao activo, o feminino uma negação do masculino e, cada um apenas como negação do outro. Por

fim, nosso mundo dividia-se em duas esferas: aquela das qualidades

positivas (luz, quente, activo, masculino, fogo, vida) e aquela das qualidade negativas (escuridão, frio, passivo, feminino, terra, morte). A

esfera negativa era apenas uma negação da esfera positiva, isto é, a

esfera negativa não continha as propriedades que existiam na esfera positiva. Ao invés das expressões ―positiva‖ e ―negativa‖, Parménides

usa os termos metafísicos de ―ser‖ e ―não-ser‖. O não-ser era apenas

uma negação do ser. Mas ser e não-ser são imutáveis e imóveis. No seu

livro: Metafísica, Aristóteles expõe esse pensamento de Parménides:

“Julgando que fora do ser o não-ser é nada, forçosamente admite

que só uma coisa é, a saber, o ser, e nenhuma outra... Mas,

constrangido a seguir o real, admitindo ao mesmo tempo a unidade

formal e a pluralidade sensível, estabelece duas causas e dois princípios: quente e frio, vale dizer, Fogo e Terra. Destes (dois

princípios) ele ordena um (o quente) ao ser, o outro ao não-ser.”

Page 94: Apontamentos de Filosofia Antiga I

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Parménides de Eleia

Nota Introdutória

Na exposição do pensamento de Parménides de Eleia seguimos a

tradução de M. H. Rocha Pereira (Hélade). Tal significa que as

passagens traduzidas do Poema de Parménides se devem à Autora

citada.

Aproveito esta Nota para chamar a atenção do leitor para a diversidade

de traduções do texto de Parménides. A dificuldade de uma tradução,

relativamente consensual, pode levar-nos a interpretações diversificadas

da doutrina do Eleata.

Com Parménides voltamos de novo ao quadrante ocidental da Hélade.

O filósofo é natural da Eleia, situada nesse vasto espaço que é a Grande

Grécia.

Na sua juventude foi discípulo de um pitagórico e perto da sua

maturidade escreveu um poema que contém a sua doutrina filosófica.

O poema pode ser dividido em três partes: prelúdio, via da verdade e

via da opinião. Façamos algumas considerações sobre a forma como se

exprime Parménides:

A forma pela qual os pré-socráticos se exprimem é diferenciada:

uns escrevem em prosa, outros em verso. O facto de Parménides

escrever em verso mostra o prestígio de que gozava a poesia;

Parménides coloca as suas palavras na boca de uma deusa. A

interpretação deste facto é difícil e controvertida.

Penso que o filósofo quis dar o máximo de dignidade à sua

doutrina: assim, surge o discurso proferido pela deusa, para

mostrar que a sua filosofia podia ser expressa por uma divindade.

É um sentimento de grande religiosidade que anima uma parte dos

pré-socráticos.

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Vejamos, agora, alguns aspectos do Poema de Parménides.

O prelúdio tem um interesse que não é meramente formal. Ele

apresenta uma viagem, a viagem espiritual de Parménides que tendo

como guias as filhas do Sol passa por uma encruzilhada onde se

encontram os portões do caminho da Noite e do Dia (frag. 1 v. 11).

O final da viagem é a mansão da Divindade que em determinada altura

lhe diz o seguinte:

"...Força é pois que saibas tudo:

O ânimo inabalável da rotunda Verdade

e a opinião dos mortais, em que não há

confiança verdadeira

No entanto aprenderás isso também, como

as aparências

deviam ser de um modo aceitável, tudo passando

através de todas as coisas."

(frag. B 1, vv. 28-32)

Tentemos aclarar alguns pontos:

A viagem descrita no prelúdio faz-nos lembrar as deambulações da

alma de um xamane;

O prelúdio mostra claramente a ligação com o mais antigo corpo de

saber;

Na passagem transcrita podemos ver que o filósofo deve possuir

não só o conhecimento da verdade mas também a opinião dos

mortais. Teremos de ver mais tarde porque é que Parménides não

se pode contentar só com o conhecimento da verdade;

Os vv. 28-32 do frag. B1 constituem, na nossa opinião uma das

chaves para a interpretação global do Poema, como tentaremos

mostrar.

Ainda no prelúdio são indicadas as duas vias que vão ser objecto dos

dois discursos da Deusa. Uma via afirma a existência de o que é e a não

existência de o que não é (cfr. frag. B2).

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Podemos, desde já, fazer duas observações:

Os termos o que é e o que não é podem ser traduzidos,

respectivamente, por ser e não-ser. São estas duas traduções que

vamos utilizar;

Parménides, pela boca da Deusa, irá afirmar que a primeira via é a

verdadeira e a segunda deverá ser afastada porque o não-ser não

pode ser conhecido nem declarado.

A via da verdade ocupa o frag. B4 ao v.49 do frag. B8. O frag. B6

coloca um problema de interpretação, ainda hoje, largamente

controvertido. Depois de ter falado dos dois caminhos Parménides

pretende afastar o seu leitor

"...daquele também, no qual vagueiam os mortais que nada

sabem, homens de duas faces. Pois a incapacidade lhes dirige

no peito a mente errante. E eles são levados, surdos e cegos a

um tempo, estupefactos, multidão sem discernimento que

julgam que ser e não ser ora valem o mesmo, ora não valem..."

(frag. B6, vv. 4-9).

Tem-se pretendido ver nestes versos um terceiro caminho sendo

Heraclito o alvo do filósofo de Eleia.

Todavia as expressões homens de duas faces, surdos e cegos, multidão

não parecem dirigir-se a um filósofo, relativamente solitário, como

Heraclito. É mais provável que seja uma escola ou circulo o alvo de

Parménides. A expressão homens de duas faces pode aplicar-se aos

pitagóricos defensores do par Limite -Ilimitado.

O poema de Parménides marca a ruptura com a escola pitagórica à

qual tinha pertencido. Segundo pensamos o Eleata desejaria mostrar a

distância que agora o separa da sua antiga escola.

Uma última consideração sobre os versos transcritos. Segundo penso

não há uma terceira via mas sim uma variante da via da opinião. A

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digressão de Parménides teria como objectivo por em relevo aqueles que

seriam os seus grandes adversários.

O frag. B8 (vv.1-49) vai indicar as características do ser.

Em primeiro lugar o ser é incriado e imperecível porque "é completo,

inabalável e sem fim" (frag. B8, v.4). Desta forma os termos geração e

destruição não têm qualquer sentido (frag. B8, v. 21).

O ser é também homogéneo, contínuo e imóvel (frag. B8, vv. 22-28). E

como nada falta ao ser, isto é, ele é completo segundo Parménides, tem

de ser finito (frag. B8, v.32).

Não nos é possível dar uma ideia da argumentação cerrada de

Parménides nem do seu espírito que me parece dogmático. Porém,

algumas considerações são indispensáveis:

a argumentação de Parménides a favor da existência do ser e da

não existência do não-ser é brilhante. O não-ser não tem razão

para existir. Se o não-ser existisse no princípio, seria contraditório

que dele nascesse o ser; é contraditório porque admite que o ser

vem do não-ser seria considerar que o não-ser possuía o ser. Da

mesma forma o ser não pode perecer porque então o não-ser viria à

existência o que é um absurdo porque tinha de se admitir que o ser

possuía o não-ser;

ao considerar erróneos os termos geração e destruição Parménides

vai considerar o movimento como ilusório; o chamado mundo

sensível não têm sentido e não tem realidade;

convirá levar em linha de conta a continuidade do ser. Este aspecto

vai contra a descontinuidade defendida pelos pitagóricos. Veremos

mais tarde as consequências desta oposição;

por seu lado a finitude está em oposição à infinitude defendida

pelos milésios. Sob o ponto de vista etimológico infinito, em grego,

significava também imperfeição porque era algo de não acabado.

Ora, Parménides ao considerar o ser como completo, isto é, como

perfeito, concebeu-o, portanto, como finito.

Vejamos, agora, uma das passagens mais controvertidas do Poema:

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"O que pode ser pensado e o pensar são o mesmo" (frag. 8,

v.34)

Frequentes vezes esta passagem tem sido interpretada como a

identificação do ser com o pensar. Mas segundo penso não é a melhor

interpretação.

O que está aqui em causa é a natureza do pensar. Possivelmente

Parménides considerava que o pensar não é algo que se defina com

facilidade.

O pensar tem um determinado objecto que é o ser. Ou seja, se o real é

o ser e se não existe mais nada para além dele só poderá chamar-se

pensamento o acto que incide sobre o ser. Em contrapartida, em nossa

opinião, quando não há a incidência sobre o ser, rigorosamente não há

o pensar.

O discurso sobre a opinião vai desde o frag. B8, v.50 ao frag. B19.

É com estas palavras que se vai iniciar o discurso da deusa sobre o

caminho da opinião:

"Com isto cesso o meu discurso digno de fé e o meu

pensar]

acerca da verdade. Sobre a humana opinião aprende,

a partir de agora, escutando a ordem ilusória das

minhas palavras.]" (frag. B8, vv. 50-52)

Esta passagem vai auxiliar-nos a compreender o sentido geral do

Poema de Parménides. Neste momento o que nos vai interessar é a

ordem ilusória que a deusa seguirá na última parte do Poema, parte

esta que nos chegou muito fragmentada.

O que vamos encontrar no caminho da opinião é uma cosmologia de

tipo tradicional. Os dois princípios (as substâncias primordiais) que vão

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dar origem às coisas são a luz e a escuridão (cfr. frag. B8, vv. 55-59). As

coisas têm um nascimento e uma morte (frag. B19) e sabemos,

igualmente, que a Terra está presa através de raízes aquáticas (frag.

B15a).

Vamos transcrever, para uma breve análise, um frag. da última parte

do Poema:

"Assim, segundo a aparência, as coisas se criaram e

ora existem,]

e depois disto crescerão e chegarão ao seu termo.

A cada uma delas os homens puseram um nome distintivo"

(frag. B19).

Embora esta passagem pertença ao caminho da opinião ela é

extremamente importante pois tem por objectivo a natureza da

linguagem.

O frag. B19 mostra como nos inícios do séc. V o problema da

linguagem já se punha, problema este de grande relevo a partir da

segunda metade do mesmo século.

Para Parménides, segundo a via da opinião, os nomes correspondem

às coisas, isto é, distinguem-se pelas diferentes denominações. A

natureza da linguagem é permitir a compreensão das coisas por nomes

distintos.

A compreensão global da filosofia parmenidiana é difícil e estamos

muito longe de um consenso. O grande problema reside na articulação

entre o caminho da verdade e o da opinião.

Segundo nos parece para Parménides os dois caminhos são

incompatíveis: os frags. B1, vv. 28-32 e B8, vv. 50-52, que já citámos,

apontam nessa direcção. Mas, se assim é qual a função do discurso da

opinião?

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Penso que a última parte do Poema é um exercício, um jogo, realizado

por Parménides.

O filósofo quereria mostrar que a opinião pode dar azo a discursos

enganosos, que podem passar por verdadeiros. Assim, por vezes, a

opinião é difícil de refutar porque dá a sensação de verdadeira.

A posição de Parménides é importante na História da Filosofia. É

inovador em relação aos seus antecessores e levanta uma série de

problemas relevantes: a questão do ser, a desvalorização do mundo

sensível, a ilusão do movimento.

Como veremos, ou defendendo-o ou atacando-o os filósofos posteriores

não o poderão ignorar.