Apostila 1 - Direitos Humanos - 2014 - 1º

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 [email protected] 1 Apostila 1    Direitos Humanos 1 Conceito de direitos humanos O conhecimento acerca dos direitos humanos interessa a todos, principalmente, no que diz respeito à consecução do homem como pessoa. Isso porque aos olhos do direito moderno, os direitos humanos são encarados como aqueles afetos à dignidade humana. Portanto, tratam- se os direitos humanos de direitos mínimos, básicos, fundamentais, inerentes ao homem por sua condição, natureza humana.  Noutras palavras, os direitos humanos podem ser definidos como um conjunto institucionalizado de direitos e garantias tendo por finalidade básica o respeito e a consecução da dignidade humana, por meio da proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e de desenvolvimento da personalidade humana. Assim 1 , pode-se afirmar que os direitos humanos nada mais são do que um conjunto de prerrogativas e garantias inerentes ao homem, cuja finalidade básica é o respeito à sua dignidade, tutelando-o contra os excessos do Estado, estabelecendo um mínimo de condições de vida. Ou seja, são direitos indissociáveis da condição humana.  Nesse quadrante, uma definição interessante pode ser encontrada em Maria Victoria Benevides para quem, segundo João Baptista Herkenhoff 2 , os direitos humanos são aqueles direitos considerados fundamentais a todos os seres humanos, sem distinção de sexo, nacionalidade, etnia, cor da pele, faixa etária, classe social, profissão, condição de saúde física e mental, opinião política, religião, nível de instrução e julgamento moral. 1  PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio.  Direitos humanos    Coleção OAB nacional    Primeira fase). Fábio Vieira Figueiredo; Fernando F. Castellani; Marcelo Tadeu Cometti (Coordenação Geral). São Paulo: Saraiva, 2012, p. 20. 2  HERKENHOFF, João Baptista. Curso de Direitos Humanos. Aparecida: Editora Santuário, 2012, p. 12.

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    Apostila 1 Direitos Humanos

    1 Conceito de direitos humanos

    O conhecimento acerca dos direitos humanos interessa a todos, principalmente, no que

    diz respeito consecuo do homem como pessoa. Isso porque aos olhos do direito moderno,

    os direitos humanos so encarados como aqueles afetos dignidade humana. Portanto, tratam-

    se os direitos humanos de direitos mnimos, bsicos, fundamentais, inerentes ao homem por

    sua condio, natureza humana.

    Noutras palavras, os direitos humanos podem ser definidos como um conjunto

    institucionalizado de direitos e garantias tendo por finalidade bsica o respeito e a consecuo

    da dignidade humana, por meio da proteo contra o arbtrio do poder estatal e o

    estabelecimento de condies mnimas de vida e de desenvolvimento da personalidade

    humana.

    Assim1, pode-se afirmar que os direitos humanos nada mais so do que um conjunto

    de prerrogativas e garantias inerentes ao homem, cuja finalidade bsica o respeito sua

    dignidade, tutelando-o contra os excessos do Estado, estabelecendo um mnimo de condies

    de vida. Ou seja, so direitos indissociveis da condio humana.

    Nesse quadrante, uma definio interessante pode ser encontrada em Maria Victoria

    Benevides para quem, segundo Joo Baptista Herkenhoff2, os direitos humanos so aqueles

    direitos considerados fundamentais a todos os seres humanos, sem distino de sexo,

    nacionalidade, etnia, cor da pele, faixa etria, classe social, profisso, condio de sade fsica

    e mental, opinio poltica, religio, nvel de instruo e julgamento moral.

    1 PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Direitos humanos Coleo OAB nacional Primeira fase). Fbio

    Vieira Figueiredo; Fernando F. Castellani; Marcelo Tadeu Cometti (Coordenao Geral). So Paulo: Saraiva,

    2012, p. 20. 2 HERKENHOFF, Joo Baptista. Curso de Direitos Humanos. Aparecida: Editora Santurio, 2012, p. 12.

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    2 Direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais

    Fazendo uso das palavras de Nestor Sampaio3, pode-se aduzir que a expresso direitos

    do homem detm cunho jusnaturalista, induzindo uma gama de direitos naturais (inerentes ao

    homem) no positivados. A terminologia direitos humanos seria utilizada para denominar

    direitos e garantias inerentes pessoa humana, tipificados pelo direito pblico internacional.

    J o ditame, direitos fundamentais, seria voltado ao direito constitucional, compreendendo

    direitos e garantias positivados na ordem jurdica interna de determinado Estado.

    Nesses termos, os direitos fundamentais so conhecidos como aqueles direitos

    positivados na Constituio como sendo fundamentais. Logo, so direitos fundamentais

    aqueles direitos em que a Constituio de um pas denomina como tais.

    Neste sentido, Sarlet afirma que:

    o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano, reconhecidos e positivados, na esfera do direito constitucional

    positivo de determinado Estado, ao passo que a expresso direitos humanos guardaria relao com os documentos de direito internacional, por referir-se quelas posies jurdicas que se reconhecem ai ser humano como

    tal, independente de sua vinculao com determinada ordem constitucional,

    e que, portanto, aspiram validade universal, para todos os povos e tempos,

    de tal sorte que revelam um inequvoco carter supranacional

    (internacional)4.

    3 PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Direitos humanos Coleo OAB nacional Primeira fase). Fbio

    Vieira Figueiredo; Fernando F. Castellani; Marcelo Tadeu Cometti (Coordenao Geral). So Paulo: Saraiva,

    2012, p. 21. 4 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

    2007, p. 67.

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    J a expresso direitos do homem, conforme George Marmelstein, liga-se a instncias

    ou valores ticos anteriores ao direito positivo, podendo-se dizer que eles esto, at mesmo,

    acima do direito positivo, possuindo um contedo semelhante ao direito natural5.

    3 Fundamento dos direitos humanos

    Dentre as pretenses de se apontar os fundamentos dos direitos humanos

    (fundamentais), destacam-se as teorias jusnaturalista, positivista e culturalista (moralista).

    Segundo adeptos da teoria jusnaturalista, os direitos humanos fundamentais seriam

    direitos inatos ao ser humano, advindo de uma ordem superior universal, imutvel e

    inderrogvel e no uma criao dos legisladores, tribunais ou juristas.

    Para esta escola o direito (logo, os direitos humanos tambm) seria um conjunto de

    ideias ou princpios superiores, eternos, uniformes, permanentes, imutveis, outorgados ao

    homem pela divindade, quando da criao, a fim de traar-lhe o caminho a seguir e ditar-lhe a

    conduta a ser mantida.

    Nesse horizonte, ao trazer existncia a criatura, o criador teria alocado em sua

    conscincia um conjunto de princpios superiores, eternos e imutveis, que constituiriam o

    direito natural, ponto de referncia para se saber o que justo ou injusto, bom ou mau, e base

    de todas as leis.

    Pertencente a esta escola, importa frisar a escola do direito natural, tambm chamada

    como dos contratualistas, defensora de que o direito constitui um conjunto de princpios

    permanentes, estveis e imutveis, mas, contudo, tendo como origem a natureza racional do

    homem e no a divindade.

    5 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 2. ed. So Paulo: Atlas, 2009, p. 25-26.

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    De acordo com a escola contratualista a natureza racional do homem seria igual em

    toda parte e em todos os tempos, por isso a imutabilidade. O direito positivo por sua vez,

    decorreria do pacto social a que o homem fora levado a celebrar para viver em coletividade.

    Segundo seus adeptos, haveria uma ntima relao entre ambos, sendo o primeiro o

    fundamento do segundo. Destarte, o direito positivo deveria respeitar os princpios

    fundamentais do direito natural por lhes serem superiores, no podendo deles se afastar sem

    se tornar injusto. Em ocorrendo o afastamento, impe-se a imediata reformulao do direito

    positivo a fim de ajust-lo aos imutveis princpios do direito natural.

    De outro modo, os defensores da escola positivista apontam como fundamento dos

    direitos humanos (fundamentais) a ordem normativa, enquanto legitima manifestao do

    soberano (Estado). Nesses moldes, apontam-se como direitos humanos (fundamentais)

    aqueles expressamente previstos no ordenamento jurdico positivado.

    Por fim, segundo aqueles que sufragam pela escola culturalista (Moralista) cunhada

    por Chaim Perelman, a fundamentao do direito encontra-se na prpria existncia e

    conscincia moral de determinado povo.

    Sobre o tema, Alexandre de Moraes6 afirma que as teorias se completam, devendo

    coexistir, pois somente a partir da formao de uma conscincia social (Perelman), baseada

    principalmente em valores fixados na crena de uma ordem superior, universal e imutvel

    (teoria jusnaturalista), que o legislador ou os tribunais encontram substrato poltico e social

    para o reconhecerem a existncia de determinados direitos humanos fundamentais como

    integrantes do ordenamento jurdico (teoria positivista).

    Aps o raciocnio, importante entender a dignidade humana como o verdadeiro

    fundamento dos direitos humanos fundamentais, sendo esta entendida como o princpio mais

    importante do ordenamento jurdico ptrio, alm de um alicerce para todos os direitos,

    merecendo, no caso concreto, quaisquer denominaes.

    6 MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais. So Paulo: Atlas, 1997, p. 35.

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    Pense-se que a plena consecuo da dignidade humana esteja condicionada

    efetividade dos direitos fundamentais, entendidos como direitos individuais, sociais, polticos

    e econmicos.

    A respeito e conectado ao ordenamento brasileiro, imprescindvel citar:

    Dignidade da pessoa humana um valor supremo que atrai o contedo de

    todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito vida.

    Concebido como referncia constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital de Moreira], o conceito de

    dignidade da pessoa humana obriga a uma densificao valorativa que tenha

    em canta o seu amplo sentido normativo-constitucional e no uma qualquer

    ideia apriorstica do homem, no podendo reduzir-se o sentido da dignidade

    humana defesa dos direito pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de

    direitos sociais, ou invoc-la para construir teoria ncleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existncia

    humana. Da decorre que a ordem econmica h de ter por fim assegurar a todos a existncia digna (art. 170), a ordem social visar a realizao da

    justia social (art. 193), a educao, o desenvolvimento da pessoa e seu

    preparo para o exerccio da cidadania (art. 205) etc., no como meros

    enunciados formais, mas como indicadores do contedo normativo eficaz da

    pessoa humana7.

    Conforme Marcelo Novelino8, fomentando Habermas, a dignidade o fundamento, a

    origem e o ponto comum entre os direitos humanos fundamentais, os quais so

    imprescindveis para uma vida digna. Ou seja, a dignidade humana, que uma e a mesma em

    toda parte e para todos, fundamenta a indivisibilidade de todas as categorias dos direitos

    humanos. S em colaborao uns com os outros podem os direitos fundamentais cumprir a

    promessa moral de respeitar igualmente a dignidade humana da pessoa.

    7 SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32. ed. rev. e atual. So Paulo: Malheiros,

    2009, p. 105. 8 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6. ed. So Paulo: Mtodo, 2012, p. 383.

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    Nesse contexto, segundo Sarlet9, verifica-se ser de tal forma indissocivel a relao

    entre a dignidade da pessoa e os direitos humanos fundamentais que mesmo nas ordens

    normativas onde a dignidade ainda no mereceu referncia expressa, no se poder apenas a

    partir deste dado concluir que no se faa presente, na condio de valor informado de toda

    a ordem jurdica, desde que nesta estejam reconhecidos e assegurados os direitos

    fundamentais inerentes pessoa humana.

    3 O papel desempenhado pelos direitos humanos fundamentais

    Para explicar o papel desempenhado pelos direitos humanos fundamentais, traremos

    baila a teoria dos quatro Status do indivduo perante o Estado de Jellinek, a qual se mostra

    atualssima, elucidando, com propriedade, as relaes travadas entre o Estado e o indivduo

    (sujeito de direitos) no que tange as funes desses direitos.

    Status passivo o indivduo se encontra em posio de subordinao aos poderes

    pblicos, vinculando-se ao Estado por mandamentos e proibies. Em suma, o indivduo

    aparece como detentor de deveres perante o Estado.

    Status negativo o indivduo goza de um espao de liberdade diante de ingerncias

    dos Poderes Pblicos.

    Status positivo o indivduo tem o direito de exigir que o Estado atue positivamente,

    realizando uma prestao a seu favor.

    Status ativo o indivduo possui atribuies para influenciar a formao da vontade

    do Estado. Ex: exerccio do direito de voto.

    Sobre o tema, aduziu Pedro Lenza:

    9 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituio Federal de

    1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 101.

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    Status passivo ou subjectionis o indivduo se encontra em posio de subordinao aos poderes pblicos, vinculando-se ao Estado por meio de

    mandamentos e proibies. O indivduo aparece como detentor de deveres

    perante o Estado. Status negativo o indivduo, por possuir personalidade, goza de um espao de liberdade diante das ingerncias dos Poderes Pblicos.

    Nesse sentido, podemos dizer que a autoridade do Estado se exerce sobre

    homens livres. Status positivo ou status civitatis o indivduo tem o direito de exigir que o Estado atue positivamente, realizando uma prestao a seu

    favor. Status ativo o indivduo possui competncias para influenciar a formao da vontade do Estado, por exemplo, pelo exerccio do direito de

    voto (exerccio de direitos polticos)10

    .

    4 As caractersticas dos direitos humanos fundamentais

    Os direitos humanos fundamentais detm variadas caractersticas, as quais podem ser

    encontradas nas mais diversas obras sobre o tema, conforme o ponto de vista de cada autor.

    Pode-se apontar, contudo, que as caractersticas dos direitos fundamentais sejam:

    Historicidade; universalidade; limitabilidade; inexauribilidade; essencialidadade;

    concorrncia, irrenunciabilidade; inalienabilidade; imprescritibilidade; interdependncia e

    complementaridade, vedao ao retrocesso; efetividade.

    Historicidade - Os direitos fundamentais so resultado de um processo histrico

    (historicidade), iniciado com o cristianismo, reforado pelas revolues (inglesa, norte-

    americana, francesa entre outras), at culminar no que hoje concebemos como tais.

    Universalidade - O carter universal dos direitos fundamentais (universalidade)

    decorre do fato de que tais direitos so universais, porque so inerentes condio humana.

    Assim, toda pessoa humana titular de direitos fundamentais, independentemente de sua

    condio social, poltica, econmica, sexo, idade, raa ou nacionalidade.

    Limitabilidade - Os direitos humanos fundamentais no se perdem com o passar do

    tempo, sobremaneira, pelo seu no uso.

    10

    LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. So Paulo: Saraiva, 2012, p. 965.

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    Inexauribilidade - Estes direitos so inesgotveis, no sentido de que podem ser

    ampliados a qualquer tempo. Logo, podem surgir outros direitos humanos fundamentais alm

    daqueles hoje conhecidos.

    Essencialidade - Tratam-se de direitos inerentes ao ser humano, tendo por base valores

    supremos do homem e de sua dignidade, assumindo posio normativa de destaque.

    Concorrncia - Esta caracterstica indica que variados direitos humanos fundamentais

    podem ser exercidos ao mesmo tempo.

    Irrenunciabilidade - Os direitos fundamentais so irrenunciveis, ou seja, nenhum ser

    humano pode abrir mo de possuir direitos fundamentais. Assim, o titular de direito

    fundamental pode at no utiliz-lo, mas lhe vedada a possibilidade de renunci-lo.

    Inalienabilidade - Por inalienabilidade dos direitos fundamentais, entende-se que esses

    direitos so insuscetveis de serem transferidos onerosa ou gratuitamente.

    Imprescritibilidade - Os direitos fundamentais so imprescritveis

    (imprescritibilidade), pois uma vez no exercitados no incidem prescrio (sua perda por um

    lapso temporal).

    Interdependncia e complementaridade - As vrias previses, concepes e

    classificaes dos direitos fundamentais na norma jurdica, apesar de autnomas, possuem

    diversas interseces (interdependncia/complementaridade). Neste contexto, os direitos

    humanos fundamentais no devem ser interpretados isoladamente, mas de forma conjunta,

    pois em variados casos, a consecuo de dado direito depender do de outro.

    Vedao ao retrocesso Os direitos humanos fundamentais so insuscetveis de

    diminuio ou reduo no seu aspecto de proteo.

    Efetividade - O Estado deve buscar ao mximo a criao de mecanismos aptos

    efetivao dos direitos humanos fundamentais.

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    6 Eficcia horizontal dos direitos fundamentais

    A aplicao dos direitos fundamentais nas relaes estabelecidas entre o particular

    (pessoa fsica ou jurdica privada) e o poder pblico (Estado) no se discute, pois esses

    direitos nasceram, sob a gide do Estado liberal, para que o indivduo se defenda de eventuais

    arbitrariedades por parte do Estado (eficcia vertical dos direitos humanos fundamentais).

    Corroborando a alegao, aduz George Marmelstein:

    Como se sabe, os direitos fundamentais foram concebidos, originariamente,

    como instrumentos de proteo dos indivduos contra a opresso estatal. O

    particular era, portanto, o titular dos direitos e nunca o sujeito passivo. o

    que se pode chamar de eficcia horizontal dos direitos fundamentais,

    simbolizando uma relao (assimtrica) de poder em que o Estado se coloca

    em uma posio superior em relao ao indivduo11

    .

    Assim, sabe-se, por exemplo, que para se aplicar dada sano ao indivduo (sujeito de

    direito) deve-se percorrer os caminhos da ampla defesa e do contraditrio (CF, art. 5, LV),

    bem como que em dado concurso pblico, deve-se observar o princpio da isonomia

    (igualdade), previsto no art. 5, caput da Constituio Federal de 1988.

    O problema surge quando se pensa na aplicao dos direitos fundamentais entre

    particulares.

    Tendo os direitos humanos fundamentais nascido como um meio de defesa do

    indivduo contra o arbtrio estatal, ser que com o advento do Estado Democrtico de Direito

    referidos direitos no ganharam outra roupagem, sendo passveis de aplicao nas relaes

    entre particulares?

    A pergunta se torna pertinente pelo fato de reconhecer-se, atualmente, que os direitos

    humanos fundamentais projetam-se tambm nas relaes entre particulares (eficcia

    11

    MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 2. ed. So Paulo: Atlas, 2009, p. 336.

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    horizontal dos direitos fundamentais), at porque os agentes privados, especialmente aqueles

    detentores de poder social e econmico, so capazes de causar danos efetivos aos princpios

    constitucionais, podendo oprimir tanto ou at mais do que o Estado12

    .

    Nesse vis, conforme Pedro Lenza, algumas situaes so fceis de ser resolvidas.

    Sem dvidas, por exemplo, se um empresrio demitir um funcionrio em razo da sua cor, o

    judicirio poder reintegr-lo, j que o ato motivador da demisso, alm de triste e inaceitvel

    crime praticado, fere, gravemente, o princpio da dignidade da pessoa humana, dentre

    outros13

    .

    Num desses casos de fcil constatao de aplicao dos direitos fundamentais na

    relao entre particulares, o Supremo Tribunal Federal se manifestou:

    SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIO BRASILEIRA

    DE COMPOSITORES. EXCLUSO DE SCIO SEM GARANTIA DA

    AMPLA DEFESA E DO CONTRADITRIO. EFICCIA DOSDIREITOS

    FUNDAMENTAIS NAS RELAES PRIVADAS. RECURSO

    DESPROVIDO. I. EFICCIADOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS

    RELAES PRIVADAS. As violaes a direitos fundamentais no ocorrem

    somente no mbito das relaes entre o cidado e o Estado, mas igualmente

    nas relaes travadas entre pessoas fsicas e jurdicas de direito privado.

    Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituio vinculam

    diretamente no apenas os poderes pblicos, estando direcionados tambm

    proteo dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCPIOS

    CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES AUTONOMIA PRIVADA DAS

    ASSOCIAES. A ordem jurdico-constitucional brasileira no conferiu a

    qualquer associao civil a possibilidade de agir revelia dos princpios

    inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que tm por fundamento

    direto o prprio texto da Constituio da Repblica, notadamente em tema

    de proteo s liberdades e garantiasfundamentais. O espao de autonomia

    privada garantido pela Constituio s associaes no est imune

    incidncia dos princpios constitucionais que asseguram o respeito

    aosdireitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que

    encontra claras limitaes de ordem jurdica, no pode ser exercida em

    detrimento ou com desrespeito aosdireitos e garantias de terceiros,

    especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia

    da vontade no confere aos particulares, no domnio de sua incidncia e

    atuao, o poder de transgredir ou de ignorar as restries postas e definidas

    12

    MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 2. ed. So Paulo: Atlas, 2009, p. 336. 13

    LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14. ed. So Paulo: Saraiva, 2010, p. 745.

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    pela prpria Constituio, cuja eficcia e fora normativa tambm se

    impem, aos particulares, no mbito de suas relaes privadas, em tema de

    liberdadesfundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS

    LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAO PBLICO,

    AINDA QUE NO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARTER PBLICO.

    EXCLUSO DE SCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO

    LEGAL.APLICAO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    AMPLA DEFESA E AO CONTRADITRIO. As associaes privadas que

    exercem funo predominante em determinado mbito econmico e/ou

    social, mantendo seus associados em relaes de dependncia econmica

    e/ou social, integram o que se pode denominar de espao pblico, ainda que

    no-estatal. A Unio Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem

    fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posio

    privilegiada para determinar a extenso do gozo e fruio

    dosdireitos autorais de seus associados. A excluso de scio do quadro social

    da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditrio, ou do

    devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual

    fica impossibilitado de perceber os direitosautorais relativos execuo de

    suas obras. A vedao das garantias constitucionais do devido processo legal

    acaba por restringir a prpria liberdade de exerccio profissional do scio. O

    carter pblico da atividade exercida pela sociedade e a dependncia do

    vnculo associativo para o exerccio profissional de seus scios legitimam,

    no caso concreto, a aplicao direta dos direitos fundamentais concernentes

    ao devido processo legal, ao contraditrio e ampla defesa (art. 5, LIV e

    LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINRIO DESPROVIDO14

    .

    Enfim, nalgumas situaes a aplicao dos direitos fundamentais ser facilmente

    visualizada. O problema surge quando se pensa, por exemplo, quando da aplicao do direito

    igualdade (CF, art. 5) na relao entre indivduos.

    Ex: O dono do negcio poder demitir algum simplesmente por no estar gostando de

    sua aparncia? Numa entrevista de emprego, o dono do negcio dever contratar o melhor

    candidato?

    A partir do problema, surgiram trs teorias: a teoria da ineficcia, a teoria da eficcia

    indireta (mediata) e a teoria da eficcia direta (imediata).

    A primeira teoria, teoria da ineficcia, aplicada nos Estados Unidos, repele a aplicao

    dos direitos humanos fundamentais entre particulares. Segundo adeptos desta vertente, esses

    14

    BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 201819 / RJ - RIO DE JANEIRO. Segunda Turma. Rel. Gilmar

    Mendes. Deciso em 11/10/2005.

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    direitos, conforme o seu nascimento, servem, unicamente, para que o indivduo possa

    defender-se do arbtrio estatal, devendo a relao entre indivduos, ser pautada na autonomia

    privada.

    Os defensores da teoria da eficcia indireta ou mediata sustentam a possibilidade de

    aplicao dos direitos humanos fundamentais entre particulares, desde que o legislador

    preveja em quais situaes e sobre quais direitos.

    J aqueles que propugnam pela teoria da eficcia direta ou imediata, aduzem que os

    direitos humanos fundamentais podem ser aplicados s relaes privadas sem que haja

    necessidade de intermediao legislativa para sua concretizao.

    Segundo Steinmetz, a possibilidade de aplicao direta no significa uma sobreposio

    das ponderaes judiciais em relao s legislativas. Havendo regulao legislativa especfica,

    desde que compatvel com a Constituio e com os direitos humanos fundamentais, deve

    prevalecer a aplicao da norma infraconstitucional. Somente na hiptese de serem

    deficitrias, insuficientes, lacunosas ou manifestamente inconstitucionais que as

    concretizaes legislativas devero ser afastadas15

    .

    7 Eficcia irradiante dos direitos fundamentais

    Fazendo uso da denominao do constitucionalista Daniel Sarmento, os direitos

    humanos fundamentais tm uma eficcia irradiante, seja para o Legislativo ao elaborar a lei,

    seja para a Administrao Pblica ao governar, seja para o Judicirio ao resolver eventuais

    conflitos de interesses.

    Noutras palavras, referidos direitos condicionam os atos do Poder Pblico quando da

    efetivao das suas funes.

    15

    STEINMETZ, Wilson. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo: Malheiros, 2004, p.

    268.

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    Assim, a funo legislativa est condicionada criao de leis que visem efetivao

    dos direitos humanos fundamentais, bem como impossibilidade (vedao) de criar normas

    que tornem inaplicveis esses direitos.

    Ademais, os poderes executivo e judicirio devero resolver casos concretos e

    individualizados, bem como dirimir conflitos de interesses, respectivamente, com vistas,

    desde sempre, efetiva tutela dos direitos humanos fundamentais.