Apostila de Literuraturas Africanas de LP II 2011

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA I Antologia de Textos Profa. Dra. Tania Macêdo 2011 – IIº Semestre ÍNDICE

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Literatura Africana

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA I

Antologia de Textos

Profa. Dra. Tania Macêdo

2011 – IIº Semestre

ÍNDICE

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Textos críticos A oratura em Angola – Tania Macêdo 03

Prólogo – A memória Africana - Amadou Hampâté-Ba 05

Modelos criticos de representação da oralidade – Ana Mafalda Leite 07

Valores civilizatórios em sociedade negro-africanas – Fábio Leite 16

A década de 50. O movimento dos Novos Intelectuais - Ervedosa 25

A CEI no contexto da política colonial portuguesa – Fernando Rosas 37

...Trechos de Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador... –

Memmi

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Prefácio a Os condenados da terra – J.-P. Sartre 41

Trecho do Cap. I – Os condenados da terra- F. Fanon 50

Fragmento de ensaio – Manuel Rui 54

Textos de poesia e ficção

Agostinho Neto 56

Aires de Almeida Santos 58

Antonio Jacinto 59

Arnaldo Santos 61

Boaventura Cardoso 63

Costa Andrade 65

José da Silva Maia Ferreira 66

José Luís Mendonça 67

Paula Tavares 68

Ruy Duarte de Carvalho 71

Uanhenga Xitu 73

Viriato da Cruz 76

Notas biobibliográficas 81

Obs.: Aos textos de poesia e prosa desta Antologia, serão acrescentados outros presentes nas Antologias da União dos Escritores Angolanos denominadas, respectivamente Todos os sonhos – Antologia da poesia moderna angolana (disponível no site: http://www.uea-angola.org/midia/pdf/apoesia.pdf.pdf ) e Antologia do conto angolano (disponível no site:

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http://www.uea-angola.org/midia/pdf/livro1_antologia_do_conto_angolano__revisado_07.pdf ) A oratura em Angola (trecho do livro Luanda, literatura e cidade)

Tania Macêdo

Dadas as numerosas formas de manifestação que a oratura tradicional angolana assume - a música, a poesia, as narrativas e os provérbios e até os testos ou tampas de panela1 - optamos por seguir a classificação proposta por Héli Chatelain a propósito dos quimbundo, a qual, deve-se frisar, não colide com a de outros estudiosos2 como, por exemplo, Oscar Ribas (1964). Dessa maneira, pode-se afirmar que as manifestações culturais orais angolanas classificam-se em seis classes principais:

• a primeira delas inclui todas as estórias tradicionais de ficção, inclusive aquelas em que os protagonistas são animais. Segundo Chatelain, elas “devem conter algo de maravilhoso, de sobrenatural. Quando personificamos animais, as fábulas pertencem a esta classe, sendo estas histórias, no falar nativo, chamadas de MI-SOSO. Começam e findam sempre por uma fórmula especial” (CHATELAIN, 1964, p. 102)

A forma especial de intróito dessas narrativas se dá graças a uma utilização idiomática do verbo ku-ta, que significa “contar”, “falar”, “expor”. Uma tradução do uso específico desse verbo nas narrativas tradicionais equivaleria aproximadamente a “por uma estória”. Esse uso se observa quando o contador dá início à narrativa com: “Vou por uma estória”. A que o auditório prontamente responde: “Venha ela” (“Diize”) Já com relação ao fecho das narrativas tradicionais, é Óscar Ribas quem informa:

No encerramento, diz-se: ‘Já expus (Ngateletele) a minha historiazinha. Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem.’ Quando a história é pequena, finaliza-se: “Uma criança não põe uma história comprida, senão nasce-lhe um rabo!” (RIBAS, 1964, p. 28).

Referindo-se aos temas e personagens do mi-soso (ou misosso), o mesmo autor ainda diz o seguinte sobre as personagens e ações dos contos tradicionais angolanos:

Os contos, ordinariamente, refletem aspectos da vida real. Neles figuram as mais variadas personagens: homens, animais, monstros, divindades, almas. Se, por vezes, a ação decorre entre elementos da mesma espécie, outras, no entanto, desenrolam-se misteriosamente, numa participação de seres diferentes. (RIBAS, 1964, p. 30)

Nos mi-sosso os animais, assim como os homens, revestem-se de dignidade própria e são dotados do dom da fala. Entre si tratam-se de forma cortês e ordinariamente as suas relações pautam-se não pela escala de hierarquia social, mas tão-somente da familiar. Quando em sociedade, o valor individual reside na corpulência e, por conseguinte na força, constituindo, aparentemente, a inteligência e a astúcia, predicados secundários. Ocorre, entretanto, que via de regra, tal como acontece entre os homens, um animal pequeno, valendo-se da sua esperteza, vence o de porte superior e, assim pode-se verificar que grande parte dos mi-sosso acaba por enaltecer a astúcia, em detrimento da força bruta. Dentre os animais destacam-se:

• o mbewu (cágado ou tartaruga) que normalmente é apresentado como juiz inteligente e sagaz e cuja longevidade lembra a sabedoria dos mais-velhos;

• kandimba (a lebre ou coelho selvagem) – é também juiz, mas não raro foge às conseqüências, ou seja, dá a sua opinião, decide mas não implementa as decisões, preferindo esconder-se;

• njamba (o elefante) – apresenta-se como representante da força bruta, de modo na sua representação a força física sobreleva a inteligência;

• nguli, hosi ou ndumba (leão) – assim como o elefante, é representante da força e da

1 Para José Martins Vaz (1969- I vol. p. 9), os testos – tampas - de panela são “cartas, bilhetes esculpidos, portadores de mensagem traduzíveis em provérbios (...) “ 2 Ver, a respeito, ver a exaustiva bibliografia citada e comentada por Oliveira (2000, vol. I, p. 94)

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ferocidade. É, no entanto, representado como facilmente enganável por um animal mais astuto.

Os mi-sosso, também, podem ter como personagens os monstros, antropófagos quase sempre, dentre os quais se destacam:

• os quinzáris que possuem corpo de fera (onça ou pantera), mas com pés humanos – metamorfose obtida por magia concedida para o efeito. “Homem-fera. Palavra formada a partir do quimbundo: kuzuma (dilacerar) + kûria (comer)” (RIBAS, 1997, p. 249);

• os diquíxis que apresentam aparência humana, mas possuem cabeças que se reproduzem quando decepadas “limitadamente, segundos uns; ou com muitas cabeças simultaneamente, em número variável, segundo outros”. Ainda que tenham forma humana, esse antropófagos vivem isolados do homem. “Este estado também pode ser obtido por magia, por um tempo determinado(...)”. A origem do vocábulo diquixi remontaria ao quimbundo kuxiba (sorver)”. (RIBAS, 1997, p. 82).

A segunda classe das categorias da oratura angolana é a das • MAKA – que compreenderiam as histórias verdadeiras ou reputadas como tal.

“Embora servindo também de distração estas histórias têm um fim instrutivo e útil, sendo como que uma preparação para futuras emergências”, nos informa o autor de Contos populares de Angola (CHATELAIN, 1964, p. 102).

Com relação à terceira categoria da oratura angolana, temos • MA-LUNDA ou MI-SENDU. São estórias especiais, já que são transmitidas apenas

pelos mais velhos (especialmente os chefes), pois se constituem nas verdadeiras crônicas históricas. “São geralmente consideradas segredos de estado e os plebeus apenas conhecem pequenos trechos do sagrado tesouro das classes dominantes”. (CHATELAIN, 1974, p. 102).

Na quarta categoria estão os • JI-SABU - provérbios, em que avulta a concisão. São largamente usados na fala

cotidiana: “para prova das afirmações que se fazem ao correr de um discurso, para decisão final, numa troca de impressões, a fim de destacar a idéia-mestra do diálogo; para conclusão de julgamentos (...)” (VALENTE, 1973, p. XI)

A quinta categoria abrange • a poesia e a música, quase que inseparáveis: Em regra, a poesia é cantada, e a

música vocal é raramente expressa em palavras. (...) Na poesia quimbunda existem poucos sinais de rima, mas muitos de aliteração, ritmo e paralelismo” (CHATELAIN, p. 102). Essas produções são chamadas de MI-IMBU.

A sexta e última categoria é formadas pelas • adivinhas, chamadas JI-NONGONONGO3. Têm como função principal exercitar o

pensamento e a memória. “Como noutras parte do mundo, também possuem em Angola, as suas frases pragmáticas de iniciação. Palavra do quimbundo kunyongojoka: voltear, torcer.” (RIBAS, 1997, p. 215).

Bibliografia referida

RIBAS, Óscar. Misosso - literatura tradicional angolana. Luanda: Angolana, 1964, 3 vol. VALENTE, José Francisco. Paisagem africana (Uma tribo angolana no seu fabulário). Luanda: Instituto de investigação científica de Angola, 1973. OLIVEIRA, Américo Correia de. O livro das adivinhas angolanas. Lisboa: Mar além, 2001.

3 A respeito, remetemos a O livro das adivinhas angolanas, de Américo Correia de

Oliveira (OLIVEIRA, 2001) que congrega mais de mil adivinhas divididas a partir de temas: Fauna, Flora, Mundo, Geografia, Objetos, Corpo humano, Alimentação, Pessoas, Miscelânea, Impossíveis e Filosofia de vida.

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Prólogo - A MEMÓRIA AFRICANA

Amadou Hampâté-Ba

Muitos amigos que leram o manuscrito mostraram-se surpresos. Como é que a memória de um homem de mais de oitenta anos é capaz de reconstituir tantas coisas e, principalmente, com tal minúcia de detalhes? É que a memória das pessoas de minha geração, sobretudo a dos povos de tradição oral, que não podiam apoiar-se na escrita, é de uma fidelidade e de uma precisão prodigiosas. Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta atenção, que todo acontecimento se inscrevia em nossa memória como em cera virgem. Tudo lá estava nos menores detalhes: o cenário, as palavras, os personagens e até suas roupas. Quando descrevo o traje do primeiro comandante de circunscrição francês que vi de perto em minha infância, por exemplo, não preciso me "lembrar", eu o vejo em uma espécie de tela de cinema interior e basta contar o que vejo. Para descrever uma cena, só preciso revivê-Ia. E se uma história me foi contada por alguém, minha memória não registrou somente seu conteúdo, mas toda a cena - a atitude do narrador, sua roupa, seus gestos, sua mímica e os ruídos do ambiente, como os sons da guitarra que o grÍot4 Diêli Maadi tocava enquanto Wangrin me contava sua vida, e que ainda escuto agora ...

4 Griots: corporação profissional compreendendo músicos, cantores e também sábios genealogistas itinerantes ou ligados a algumas famílias cuja história cantavam e celebravam. Podem também ser simples cortesãos (...). Como não existe em português um termo equivalente para designar estas pessoas e este tipo de atividade, foi conservado o termo original em todo o relato. (NT)

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Quando se reconstitui um acontecimento, o filme gravado desenrola-se do começo ao fim, por inteiro. Por isto é muito difícil para um africano de minha geração "resumir". O relato se faz em sua totalidade, ou não se faz. Nunca nos cansamos -de ouvir mais uma vez, e mais outra a mesma história Para nós, a repetição não é um defeito. CRONOLOGIA Como a cronologia não é uma grande preocupação dos narradores africanos, quer tratem de temas tradicionais ou familiares, nem sempre pude fornecer datas precisas. Há sempre uma margem de diferença de um a dois anos para os acontecimentos, salvo quando fatores externos conhecidos me permitiam situá-los. Nas narrativas africanas, em que o passado é revivido como uma experiência

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atual de forma quase intemporal, às vezes surge certo caos que incomoda os espíritos ocidentais. Mas nós nos encaixamos perfeitamente nele. Sentimo-nos à vontade como peixes num mar onde as moléculas de água se misturam para formar um todo vivo. ZONA DE REFERÊNCIA Quando se fala da "tradição africana", nunca se deve generalizar. Não há uma África, não há um homem africano, não há uma tradição africana válida para todas as regiões e todas as etnias. Claro, existem grandes constantes (a presença do sagrado em todas as coisas, a relação entre os mundos visível e invisível e entre os vivos e os mortos, o sentido comunitário, o respeito religioso pela mãe, etc), mas também há numerosas diferenças: deuses, símbolos sagrados, proibições religiosas e costumes sociais delas resultantes variam de uma região a outra, de uma etnia a outra; às vezes, de aldeia para aldeia. As tradições a que me refiro nesta história são, de maneira geral, as da savana africana que se estende de leste a oeste ao sul do Saara (território que antigamente era chamado Bafur), e particularmente as do Mali, na área dos fula-tucolor e bambara onde vivi. SONHOS E PREVISÕES Outra coisa que às vezes incomoda os ocidentais nas histórias africanas é a freqüente intervenção de sonhos premonitórios, previsões e outros fenômenos do gênero. Mas a vida africana é entremeada deste tipo de acontecimentos que, para nós, são parte do dia-a-dia e não nos surpreendem de maneira alguma. Antigamente, não era raro ver um homem chegar a pé de uma aldeia distante apenas para trazer a alguém um aviso ou instruções a seu respeito que havia recebido em sonhos. Feito isto, simplesmente retomava, como um carteiro que tivesse vindo entregar uma carta ao destinatário. Não seria honesto de minha parte deixar de mencionar este tipo de fenômenos no decorrer da história, porque faziam - e sem dúvida, em certa medida ainda fazem - parte de nossa realidade vivida.

Depoimento de Amadou Hampâté Bâ, recolhido em 1986 por Hélène Heckmann HAMPATÉ-BA, Amadou. Prólogo In HAMPATÉ-BA, Amadou. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Casa das Áfricas; Palas Atenas. 2003.

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Modelos críticos das representações da oralidade nos textos literários africanos e

sua adequação no quadro das teorias pós-coloniais

Ana Mafalda Leite (Universidadede Lisboa)

Os estudos críticos sobre Literaturas Africanas de língua portuguesa têm partilhado de uma contribuição teórica estrangeira fundamental, nomeadamente oriunda do mundo francófono ou anglófono que, por razões históricas5, têm um percurso editorial e de pesquisa mais antigo. Os ensaios e teorização provenientes destas duas áreas confirmam que só um conhecimento aprofundado das realidades culturais subjacentes ao texto literário africano - por vezes com vertentes teóricas especificamente africanas6 - permitirá conferir aos textos literários a sua polivalência cultural, o seu carácter diferencial.

Com efeito, de acordo com o ponto de vista da crítica africana, os textos literários caracterizam-se pela mobilidade da sua simbolização e convocam uma multiplicidade de metodologias para a sua descodificação, ou para a fruição completa das suas várias interferências, linguísticas, culturais, simbólicas, míticas, enfim, semióticas.

A obra de Locha Mateso La Littérature Africaine et sa Critique (1986) tem interesse em servir como elemento de referência neste domínio, uma vez que faz um historial das principais tendências críticas no campo francófono. Situa as principais fases da produção crítica sobre a literatura africana, nomeadamente, referindo um percurso que se inicia com a crítica colonial, o envolvimento com a época dos nacionalismos africanos e a reivindicação negritudiana, até à instituição da área como disciplina universitária, nas universidades africanas e francesas.

A discussão sobre a validade da contribuição crítica de africanistas europeus e do contributo das escolas ocidentais começa quando os primeiros africanos reivindicam métodos tradicionais, baseando-se na existência secular de uma ‘escola’ e pensamento críticos no domínio da oratura, e ao evidenciarem o desconhecimento destas poéticas, por parte da crítica de origem ocidental.

Semelhante postura, que tem na sua base a dicotomia Oralidade/ Escrita, levada ao seu extremo, considerando que a crítica mais eficaz seria aquela culturalmente mais enraizada, acabaria por efectuar-se num quadro já nem sequer nacional, mas étnico. Thomas Melone7 é um dos representantes deste tipo de tendência etnológica e ancestralizante, e de teses que conduziram a um impasse, uma vez que, entre outros aspectos, se punha em causa, a origem não africana dos pesquisadores.

O Colóquio de Leiden (1977) sobre a Crítica Literária Africana8 discutiu questões como a especificidade do discurso crítico africano, promovendo o ecletismo como regra, e o contributo de vários tipos de modelos críticos, entre os quais, naturalmente, os tradicionais.

Locha Mateso expõe vários dos percursos críticos que posteriormente tiveram lugar, nomeadamente a partir de ensaios de origem universitária, salientando, entre outros, a crítica

5 As diferentes práticas de colonização permitiram, tanto no caso francês como inglês, o

desenvolvimento de elites intelectuais africanas desde a década de trinta, e a maioria das independências ocorreram no fim da década de cinquenta.

6 Cf. Locha Mateso, La Littérature Africaine et sa Critique, Paris, E.Karthala, 1986 ; Mineke Schipper, Beyond the Boundaries, African Literature and Literary Theory, London, Allison & Busby, 1989; Chidi Amuta, The Theory of African Literature, London and New Jersey, Zed Books Ltd.,1989.

7 Melone, Thomas, "La critique littéraire et les problèmes du langage: point de vue d'un africain" in Présence Africaine, 73, 1970, p.3-19.

8 Condé M, "Non spécifité de la critique littéraire 'africaine'" in African Perspectives: Text and Context, methodological explorations in the field of african literature, Afrika-studiecentrum, Leiden,, 1977, p.39.

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sociológica de Sunday Anozié, a crítica estilística de Zadi Zaouru, o modelo linguístico de J-P.Makouta M'Boukou9, tentando fazer uma tipologia do discurso crítico africano, reconhecendo o contributo incontornável das correntes críticas ocidentais no desenvolvimento dos estudos africanos, especialmente ao referir a importância do valor heurístico do conceito de "dialogismo", como sendo particularmente operatório no estudo das culturas não europeias, sujeitas à interpenetração de sistemas culturais diferentes: "Ainsi dans le domaine artistique ou littéraire, on peut mettre en rapport les traditions orales et les principes de création littéraire moderne, les interférences linguistiques dans les techniques d'écriture (...)" 1986:367.

O texto de Locha Mateso, "Le modèle traditionnel", incluído na obra referida (1986), tem especial interesse porque desenvolve uma abordagem teórica e metodológica distinta, que assenta sobretudo na especificação da relação entre a tradição oral africana e o romance moderno, encarada de um ponto de vista não ortodoxo, e representado pela obra, fundamental, de dois autores.

O primeiro, Mohamadou Kane, ensaísta senegalês, autor de Roman Africain et Tradition (1983)10, procura novas e mais profundas abordagens, centrando-se particularmente em dar conta da sobrevivência da tradição num contexto de modernização, consistindo o trabalho do crítico em salientar a continuidade relativa do discurso tradicional oral no discurso escrito. A oralidade, modelo do discurso romanesco, comporta segundo Kane dois aspectos complementares: o "literário" concretizado pelo vasto domínio da literatura oral, e o aspecto não verbal, em que se inscreve a sageza milenar africana11 .

É a partir da literatura oral que o autor constrói o seu modelo teórico, procurando detectar as "formas" da sobrevivência da oralidade no romance moderno. São essencialmente seis aspectos que o autor refere: Estrutura linear, Mobilidade temporal e espacial, A viagem iniciática, Carácter autobiográfico, Estrutura dialógica e Imbrincação de géneros.

Assim, segundo Kane, a literatura oral, nomeadamente o género predilecto, o conto, desenvolve uma história simples e uma acção linear e, semelhante alinhamento da intriga, visa evitar a confusão do ouvinte; do mesmo modo o romance moderno africano recupera esta técnica narrativa, insistindo na unidade de acção, e na simplicidade da intriga, aspectos, aliás, que podem levar um crítico, não conhecedor das técnicas orais, a considerá-los como factor de inexperiência ou inabilidade do escritor.

A mobilidade temporal e espacial é outra das formas de sobrevivência da literatura oral que caracteriza o romance africano, em que o itinerário do herói evolui na mudança, partindo de uma situação de desquilíbrio ou equilíbrio, que tende a inflectir no seu contrário, prevalencendo uma moralidade final. Ligada a esta característica, a viagem iniciática, segundo Kane, simboliza o drama de África, dividida entre a tradição e a modernidade, e a viagem implica aprendizagem, conhecimento, didactismo.

Por outro lado, se a literatura tradicional está mais vocacionada para os valores comunitários do que individuais, o romance africano revela uma vertente autobiográfica muito forte, componente inovadora em relação à tradição; a estrutura dialógica autor-narrador/leitor convoca os procedimentos existentes entre o contador e seu auditório, uma vez que a produção de formas breves, como as máximas, adivinhas, provérbios, pressupõe, pelo menos, a presença de dois indivíduos; a omnisciência e a polivalência do contador tradicional sobrevive nas formas do narrador , que interfere e não hesita em invadir a narrativa e distanciar-se de novo.

A imbrincação de géneros é a sexta característica da sobrevivência da oralidade no romance africano. Kane explica que na literatura tradicional não há fronteira rígida entre os diversos géneros. "Au sein d'un même conte, le récit et le chant, la musique et le jeu du conteur, créent vite l'impression d'un véritable théâtre. L'histoire et la légende se marient intimement; la poésie et le

9 Anozié, Sunday, Sociologie du Roman Africain, Paris, Aubier- Montaigne, 1970; Zadi

Zaourou, B.,La Parole Poétique dans la Poésie Africaine. Domaine de l'afrique de l'Ouest francophone, Thèse d'ètat, Université de Srasbourg, 1981; Makouta M'Boukou, JP, Introduction à l'étude du roman négro-africain de langue française, Abidjan, NEA, 1980.

10 Kane, Mohamadou, Roman Africain et Tradition, NEA, 1983. 11 "C'est l'oralité implicite des comportements 'monumentalisées'", Mateso,p.340.

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chant sont partout présents"(1983:566), e que o romancista africano integra diferentes formas da literatura oral, no decorrer da narrativa, a fim de insistir na função didáctica e moralizante, próprias dos universos narrativos africanos, tanto orais, como, agora, os escritos.

Concluindo, a originalidade do romance africano, de acordo com o ensaísta, resulta de uma dupla herança, tradicional e moderna, em que a oralidade sobrevive nas práticas de escrita.

Se alguns dos aspectos estudados, minuciosamente, por Kane continuam a ser úteis, outros parecem ter perdido a sua pertinência com a produção literária pós-colonial, mais recente. Com efeito o corpus de Kane centrou-se, em especial, em romances da década de sessenta, cuja temática se centrava no conflito de culturas. No entanto, julgamos operatórios vários dos aspectos apresentados.

Com efeito, algumas das particularidades das literaturas africanas de língua portuguesa residem nesta espécie de processo, temporalmente desnivelado em relação às suas congéneres em outras línguas. O desenvolvimento do romance moçambicano, em que nosso corpus se orienta, inicia-se na década de oitenta, bem como a sua vertente temática da conflitualidade cultural.

Antes da independência, o registo romanesco é praticamente inexistente12, e precário, prevalecendo a publicação, também incipiente, do conto. Por outro lado, a política, de base marxista, que prevaleceu durante a primeira década pós-colonial, retraiu os movimentos culturais nativistas, em favor de uma postura cultural ocidentalizada, fenómeno, aliás comum, aos outros países africanos de língua portuguesa. Estas particularidades históricas e culturais explicam, parcialmente, o surgimento tardio na literatura moçambicana de uma vertente, mais acentuadamente indigenista, que tem vindo a desenvolver-se, em particular a partir da década de noventa, com a publicação de romances e contos que tematizam e absorvem, recriados, nas formas discursivas, os intertextos das poéticas e tradições orais.

O segundo autor, mencionado por L. Mateso, que reflecte de forma original sobre o modelo tradicional na crítica africana, recuperando e desenvolvendo algumas das teses de Kane, é M. Ngal.

Ensaísta e escritor, Ngal preconiza que o autor africano se deve inspirar nos mecanismos de criação próprios da África tradicional e que o crítico da literatura africana deve orientar o seu estudo no sentido de descobrir no texto moderno as marcas dessa tradição. A sua obra romanesca, de que se destaca Giambatista Viko ou Le Viol du Discour Africain e L'Errance13, é uma alegoria em que Ngal esboça as suas concepções sobre a influência da tradição oral africana na construção do romance moderno.

Ngal define a oralidade como "tradição oral" 14, ou seja, o testemunho transmitido oralmente por uma geração às seguintes; ao crítico compete reconhecer os "lugares textuais" onde se intertextualiza a oralidade; todavia, além do reconhecimento de uma textualidade reconhecível, como por exemplo o uso do provérbio, do conto, o autor assinala as declarações de intenção paratextuais, como as introduções, dedicatórias, títulos, subtítulos, etc, bem como considera fundamental um sólido conhecimento antropológico, que permita o reconhecimento de certos

12 As publicações mais significativas no domínio da ficção no período colonial são os

livros de contos de João Dias, Godido e Outros Contos, em 1950, de Luís Bernardo Honwana, Nós Matámos o Cão Tinhoso, em 1964 e o pequeno romance Portagem de Orlando Mendes em 1965. Todos estes livros nos narram histórias que documentam a opressão do colonizado, e se situam no contexto da situação de discriminação racial e económica que então se vivia na colónia portuguesa de Moçambique.

13 Ngal, M. A M., Giambatista Viko ou le Viol du Discours Africain, Lubumbashi, ed. Alpha- Oméga, 1975; L'Errance, Yaoundé, Clé, 1979.

14 Vansina distingue quatro formas fundamentais da tradição oral:poema, fórmula, epopeia, narração .E afirma relativamente ao conceito de tradição:"La plupart des oeuvres littéraires sont des traditions, et toutes les traditions conscientes sont des discours oraux", "La tradition Orale et sa Méthodologie" in Histoire Générale de l'Afrique, I, Paris, Unesco,p.170.

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símbolos e atitudes mentais características do espaço tradicional; no entanto, o autor considera que as marcas de oralidade constituem um inventário em aberto, e susceptível de múltiplas reformulações, e não um inventário constante, como o proposto por Kane.

Nos romances de Ngal há abolição da fronteira discursiva entre narração e teorização crítica; as narrativas são usadas como um pretexto para a reflexão de pressupostos teóricos e estéticos. O personagem, Viko, professor universitário, ocidentalizado e profundamente alienado, é poeta e ensaísta. A sua obra romanesca conhece, no entanto, alguns impasses. Procura, então, na tradição oral uma forma de desbloquear o seu discurso narrativo. É acusado pelos sábios africanos de ignorância e desconhecimento. Condenado a uma errância pelas tradições africanas, Viko viaja demorada e iniciaticamente pelo interior de África, a fim de descobrir a riqueza da oralidade e em busca de uma escrita original.

O corpus de textos orais a que o escritor recorre, vão sendo comentados pela sua vertente ensaística, bem como as técnicas de narração, manipulando o narrador de forma a aproximá-lo do contador; deste modo Ngal demonstra, por exemplo, que o narrador, como na tradição oral, desempenha um papel primordial, aproximando o acto de fala ao acto de criação.

Se na tradição oral as produções assumem uma dimensão de obra colectiva, a escrita assume, também, na obra do escritor africano, um papel de recriação do legado colectivo, impregnando-o de novas modalizações; o autor insiste nas noções de tempo e de espaço, considerando que o escritor deve instalar-se numa espécie de eternidade, num tempo e espaço primordiais, tempo e espaço da criação. É isto que o contador de histórias africano faz, mestre do verbo; insiste também na reabilitação de um ‘código de arte africana’, impregnando a narrativa de uma estética do maravilhoso, e reafirma uma necessária prática da intertextualidade.

Concluindo, ao contrário de Kane, que define inequivocamente um número restrito de estruturas orais presentes no romance africano moderno, Ngal propõe um modelo crítico que, tendo por base a tradição oral, procura, no entanto, uma linguagem crítica diversificada, que não rejeita a herança da estética europeia. É precisamente aí que, segundo Ngal, reside a originalidade do romance africano, na criação livre e eclética do escritor.

Julgamos que as propostas de Kane e Ngal em relação a um modelo crítico se complementam e, especialmente a última, apesar de momentos de certa radicalização, propõe uma abertura teórica e de análise úteis para o trabalho analítico sobre os modelos críticos das representações da oralidade nos textos literários africanos

Um segundo texto, de Bill Ashcroft et al.,"African Literary Theories" (in The Empire Writes Back, London, Routledge, 1989, p.123-132) permite situar e complementar a discussão sobre a eficácia e o historial crítico do modelo tradicional, do ponto de vista dos africanos anglófonos. A discussão nasce na década de sessenta em torno dos programas curriculares oferecidos pelos departamentos de Literatura Inglesa das universidades de Ibadan, Lagos e Makerere. Escritores como Chinua Achebe15 e Wole Soyinka16 defendem uma estética africana, em que o papel social do artista africano é fundamental, distanciando-se daquilo que é designado como "preocupação europeia com a experiência individual".

Esta teoria social e funcional modelou o trabalho da crítica anglófona da década de sessenta até praticamente aos anos oitenta, insistindo-se na função social e comunitária que a literatura africana herda da tradição oral; outro ponto de discussão é a demanda da africanidade da literatura e a rejeição de leituras críticas de cariz universal.

O ensaio de Achebe "Colonialist criticism"17 - " (...) should like to see the word universal banned altogether from discussions of African literature until such a time as people cease to use it as a synonym for the narrow, self-serving parochialism of Europe." - é paradigma de um posicionamento crítico que defende a "descolonização" da literatura africana e reafirma a importância de pesquisar, teorizar, o monumental legado oral africano, equivalente, segundo o autor, à tradição literária europeia.

15 Achebe, Chinua,"The Novelist as a Teacher" in Morning Yet Creation Day, New

York, Doubleday, 1975. 16 Soyinka, Wole, " The Writer in an African State ", in Transition, 31, 1968. 17 Achebe,Chinua, Morning Yet Creation Day, New York, Doubleday, 1975, p.13.

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Estas posições atingiram o seu radicalismo máximo como grupo crítico Bolekaja, representado pelos nigerianos Chinweizu18, Jemie e Mandubuike que, partindo das asserções de Achebe, consideram que a literatura africana tem as suas próprias tradições, modelos e normas, rejeitando qualquer interferência europeia; Wole Soyinka no seu artigo "Neo-Tarzanism: the poetics of pseudo-tradition" 19, critica a atitude essencialista e reducionista dos Bolekaja, não negando a importância do legado oral, mas afirmando a inevitável hibridação cultural resultante da história da presença colonial.

Semelhante visão neo-romântica dos africanos, de que a originalidade ou a essencialidade das narrativas africanas deve ser determinada apenas pela forma como filtram as tradições orais, parece-nos desajustada dos diferentes percursos de cada uma das literaturas nacionais, do diverso e heterogéneo continente africano, e ainda eivada de preconceitos.

Outra posição radical, já na década de oitenta, é a do escritor queniano Ngugi wa Thiong'o20 que reivindica a escrita das literaturas africanas em línguas nacionais, começando por dar o exemplo ao escrever em gykuyu ou em ki-swahili, e ao considerar que as literaturas africanas vivem uma fase de transição, designando-as por Literaturas Afro-Europeias.

A crítica anglófona, desenvolveu também, mais ou menos simultaneamente, uma vertente de incidência marxista, e muitos dos ensaios procuram reafirmar o valor social e político da literatura, sublinhando que a visão indigenista da crítica ocupa menos relevância do que o papel de intervenção da prática social da escrita, na luta para a libertação das sociedades africanas da injustiça económica, retrocesso e corrupção. Saliente-se a este respeito, em especial, o trabalho do crítico zimbabweano Emmanuel Ngara21 .

No entanto, a crítica anglófona tem continuado a reflexão sobre a relação do escritor moderno com as práticas da oralidade, relativizando as posturas radicais, mas, sempre, aprofundando o modelo crítico tradicional, e o ensaísta Abiola Irele considera que, embora havendo transformações na cultura africana, pelo moderno impacto da escrita, a oralidade continua a ser o paradigma central na literatura africana : “ Despite the undoubted impact of print culture on African experience and its role in the determination of new cultural modes, the tradition of orality remains predominant, serving as a central paradigm for various kinds of expression on the continent(...) In this primary sense, orality functions as the matrix of an African mode of discourse, and where literature is concerned, the griot is its embodiment in every sense of the word. Oral literature thus represents the basic intertex of the African imagination.”22

Ensaístas como Emmanuel Obiechina, ou Ato Quayson, desenvolveram, em obras publicadas na década de noventa, propostas muito úteis para este estudo das representações da oralidade, que vêm complementar as propostas francófonas, anteriormente formuladas por Kane e Ngal.

Os trabalhos críticos, produzidos com base neste modelo, pela crítica africana em língua portuguesa, fundamentaram-se, em grande parte, em ensaios provenientes da bibliografia francófona e anglófona, no entanto, adequando-a à textualidade em língua portuguesa. Deve-se destacar a obra de Salvato Trigo sobre Luandino Vieira, que foi um dos ensaios pioneiros nesta área de pesquisa.23Neste estudo da obra de Luandino constatamos um primeiro momento de representação da oralidade, que passa necessariamente pela língua. 18 Chinweizu et al., The Decolonisation of African Literature, Washington, Howard University Press, 1983. 19 Soyinka, Wole, "Neo-Tarzanism: the Poetics of Pseudo-Tradition" in Transition, 48, 1975.

20 Thiongo'o, Ngugi wa, Decolonising the Mind: The Politics of Language in African Literature, London, Currey,1986.

21 Ngara, Emmanuel, Art and Ideology in the African Novel:a Study of the Influence of Marxism in African Writing, London, Heinemann,1985.

22 Irele, Abiola, “The African Imagination”, in Research in African Literatures, Spring 1990, p.56.

23 Salvato Trigo, Luandino Vieira O Logoteta, Porto, Brasília Editora,1981.

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Saliente-se, também neste percurso analítico das representações da oralidade na literatura angolana, o livro de Laura Padilha, Entre Voz e Letra - o lugar da Ancestralidade na Ficção Angolana do século XX, resultado da sua tese de doutoramento, que retoma alguns destes problemas, em especial, ao desenvolver aspectos relacionados com o género. O trabalho que também nós viémos a desenvolver sobre a obra poética de José Craveirinha, de certo modo executa um percurso semelhante. Este tipo de orientação veio a ser repensado teoricamente, numa outra tese, “ A Construção da Imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa”, da autoria de Gilberto Matusse.24

É partindo de algum deste enquadramento crítico, acerca da literatura moçambicana, que reflectimos agora sobre a vertente pragmática destas representações da oralidade com o estudo da obra de Ungulani Ba Ka Khosa, Ualalapi, o primeiro romance moçambicano que visa tematicamente a questionação do passado histórico, fazendo uma releitura das fontes históricas da época anterior ao início da colonização portuguesa. A obra concretiza uma reflexão sobre a noção de cultura e identidade cultural, que é retrabalhada pela reabsorção de modelos de oralidade e de uma certa mundividência mágico-mítica.

O tempo invocado em Ualalapi é a época pré-colonial, e as narrativas organizam-se em torno da personagem Ngungunhane, imperador nguni que reinava na área geográfica, que corresponde, ao que é hoje, o sul de Moçambique. As últimas narrativas da obra situam-se já na época colonial, com a vitória dos portugueses nas campanhas de ocupação, e a partida do imperador, derrotado, num barco, para o que seria o seu exílio açoriano.

Ualalapi, designado como romance, organiza-se num conjunto de seis contos, que funcionam como unidades independentes, e ao mesmo tempo interdependentes. Cada uma das narrativas é precedida de um pequeno texto em itálico (muitas vezes com atribuição de autoria, outras vezes deprende-se que são do autor da obra, e oscilando entre o testemunho histórico e a ficção), intitulado , Fragmentos do fim, numerados de um a seis, que estabelecem um evolução e quadro cronológicos, até à queda do império nguni.

Estes fragmentos e outras citações de abertura, encontradas em Ualalapi, podem ser consideradas declarações de intenção paratextuais, declarações estas que o crítico M. Ngal, no texto teórico de Mateso, considera reveladoras dos propósitos de representação da oralidade.

Os contos sucedem-se a estes textos, e a sua temporalidade, situa-se numa dimensão mais indefinida e mítica, num continuum intemporal, com ausência de tempo cronológico. Este entrecruzar entre o tempo histórico e o mítico-lendário, prevalecente, mostra que o romancista moçambicano integra uma temporalidade, característica da literatura oral, no decorrer da narrativa, a fim de insistir na função didáctica e moralizante, própria dos universos orais, em que a repetição atemporalizada dos enredos se adequa, criticamente, a qualquer época.

A escolha do conto como unidade narrativa leva-nos de imediato a considerar a opção, como sendo adequada a um universo cultural que radica na oralidade. Esta narrativa é um todo, fragmentado em histórias que, aditivamente, vão esclarecendo e diferindo os sentidos.

As narrativas da tradição oral africana têm uma forte componente didáctico-moralizante. Isto reflecte-se na sua estruturação, através do carácter e da sequência das suas transformações. Com efeito, algumas classificações tipológicas destas narrativas têm como critério fundamental o sentido da transformação que altera a situação inicial e determina a situação final da história, e que pode ser de degradação e de melhoramento.25 Distinguem-se dois tipos básicos de narrativas: as de tipo ascendente e as de tipo descendente, conforme apresentem uma transformação de melhoramento ou de degradação, respectivamente. O carácter didáctico das de tipo descendente está na exemplificação da punição de um anti-herói pela transgressão das regras, enquanto que, no caso oposto, no prémio pela exemplaridade heróica.

24 Ana Mafalda Leite, A Poética de José Craveirinha, Lisboa, Vega, 1991; Gilberto Matusse, A

Construção da Imagem da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba ka Khosa, Universidade Nova de Lisboa, 1993, Laura Padilha, Entre Voz e Letra- O lugar da Ancestralidade na ficção angolana do século XX, Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 1995.

25 Rosário, Lourenço, A Narrativa Africana, Lisboa, Icalp, 1989.

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Na quase totalidade dos contos-romance de Khosa, apesar da complexidade de estrutura, própria de uma narrativa escrita, insinua-se, como refere Gilberto Matusse 26, uma sucessão de transformações baseadas no modelo das narrativas de tipo descendente, em que o protagonista comete uma transgressão às normas vigentes na sua comunidade, para daí obter benefícios, acabando, no entanto, por ser punido por essa mesma transgressão. A recuperação deste modelo, mais ou menos linear, está naturalmente absorvida e retrabalhada de modo poliforme. Estes aspectos confirmam a mobilidade temporal e espacial, enquanto formas de sobrevivência da literatura oral que caracterizam o romance africano, conforme se assinalou no texto de Locha Mateso, com os tópicos adiantados por Kane, em que o itinerário do herói evolui na mudança, partindo de uma situação de desquilíbrio ou equilíbrio, que tende a inflectir no seu contrário, prevalecendo uma moralidade final.

No que respeita ao aspecto temático, há, também, um insistência na reivindicação de valores culturais outros, de que a tradição oral e suas formas fazem eco, como por exemplo as práticas e crenças animistas, a dimensão mítico-mágica do universo, a singularidade dos costumes e códigos sociais.

A narrativa Diário de Manua prefigura, neste sentido, algumas das questões problematizantes relativas à valorização do universo da oralidade, por oposição à escrita, metáfora da inscrição colonial. Manua é nguni, filho de Ngungunhane. Tirou um curso de artes e ofícios e deixou escrito um diário, do qual o narrador se socorre para nos dar informações. Representa o assimilado, não é reconhecido pelos seus, nem pelos brancos. Transgride os valores e a tradição da sua cultura, e por isso é punido com a morte.

Manhune transmitira ao filho e ao neto de que Manua fora envenenado pelo pai, pois era uma vergonha para os nguni ver um filho seu assimilar costumes de outros povos estrangeiros, e o pior, dizia Manhune, Manua parecia um chope, pois era subserviente aos portugueses. Matem-no na próxima oportunidade, disse Ngungunhane num dos encontros que teve com os maiores do reino. (p 106)

O conto Diário de Manua começa aliando a ideia de decadência do império com o achado do diário. A escrita é aqui, por um lado, o símbolo maior da recusa da cultura tradicional, por outro do início do colonialismo, enquanto rasura e transformação de valores dessa mesma cultura.

Sabe-se, historicamente, que foram os árabes e os europeus a introduzirem a escrita em África , e neste conto faz-se referência a um árabe, e ao seu testemunho escrito, que complementa os registos de Manua. Estas duas personagens testemunham o início da quebra de uma tradição de oralidade e a componente irreversível da transformação da sociedade pré-colonial.

Por entre os escombros daquilo que fora a última capital do império de Gaza encontraram um diário com uma letra tremida, imprecisa, tímida, as folhas amontoadas ao acaso, estavam metidas numa caveira que repousava entre ossadas humanas e animais ... Não há referência ao seu autor, mas sabe-se que pertenceu a Manua, filho de Ngungunhane (p.97) ... De 1892 a 1985, ano de sua morte, o diário nada diz, pois a folhas foram comidas pelos ratos, as letras que restaram estão soltas. Juntando as cinco letras tem-se a palavra morte. Ou temor. Ou tremo. Kamal Samade, que pela capital passou, deixou as suas impressões em árabe, escritas em folhas desordenadas. Pela sua pena sabe-se que Manua, desde a chegada tornou-se taciturno e mais bêbado do que nunca. ( p.105)

A imposição da escrita, numa sociedade de tradição oral, é um elemento de desiquilíbrio. A escrita aqui não é um produto da evolução histórica normal e responde a uma necessidade imposta pelo exterior. Por outro lado, a desvalorização das formas de culturas indígenas, que caracterizou a política colonial de assimilação, contribuiu para a descaracterização e rasura de valores ancestrais.

Khosa ao tematizar a revalorização da oralidade, encontra uma forma de manifestar a recuperação simbólica desse estado civilizacional, anterior à introdução da escrita, em Moçambique, reivindicando uma reposição de valores próprios, portanto, também um meio de afirmação de uma cultura outra, que foi subjugada pela hegemonia da escrita.

A este propósito é importante recordar que a oralidade é o domínio da cultura peculiar à

26 Gilberto Matusse, A Construção da Imagem da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa, Maputo, Imprensa Universitária, 1997, p.118.

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maioria da população moçambicana, essencialmente rural e camponesa. Por outro lado, se o oral coincide com o popular, este domínio da tradição oral é conotado com a camada considerada depositária. Valorizar esse domínio é uma forma de conhecer e respeitar, reaver, talvez, contributos importantes para a recriação e reformulação de uma cultura nacional.

Neste conto, Diário de Manua, patenteia-se, de forma relativamente explícita, uma espécie de moral ou função didáctica: o narrador, ao problematizar o significado da escrita na sociedade moçambicana, denega o seu valor, socorrendo-se parodicamente de uma estratégia temático-formal, a invenção de fontes escritas, o diário achado de Manua e o testemunho do árabe. Estas fontes forjadas no interior do texto permitem-lhe reflectir , com ironia, sobre o abandono da oralidade, e a cultura que ela representa, enquanto uma das causas da degradação cultural.

Khosa utiliza ainda outros processos característicos da narrativa oral, a intervenção do sobrenatural. É característica das narrativas orais as personagens possuírem poderes mágicos, e viverem acontecimentos de ordem mágica, bem como terem de se defrontar com inimigos possuidores desses poderes, ou serem afectados por fenómenos sobrenaturais. Nesta obra, a presença de elementos sobrenaturais é quase constante, sendo as situações mais frequentes as que envolvem a estranheza e a desproporção de fenómenos físicos e da natureza.

A incorporação do imaginário tradicional é uma das características distintivas desta obra moçambicana. Há uma valorização das crenças animistas, de códigos outros, radicados no passado, a que se atribui um valor sagrado. A isto não é certamente estranho o facto de a memória das sociedades de tradição oral se cristalizar em torno dos antepassados ancestrais. O passado institui-se como uma referência insubstituível, à qual a comunidade vai buscar a inspiração para a sua conduta no presente, bem como o exemplo para a explicação dos fenómenos com que se depara.

O carácter sagrado detecta-se numa atmosfera cuja equilíbrio precário depende da observância das normas, tornando-se a sua explicação ou caracterização inacessíveis, pelos menos aos não iniciados. A escolha de um cenário histórico, que se orienta para uma época longínqua e de contornos imprecisos, relembra a sacralidade da origem e da fundação. O mundo de ficção de Khosa apresenta-se, deste modo, numa instabilidade generalizada, é um mundo em desintegração. As causas deste desmoronar estão ligadas ao desrespeito pelo sistema de valores tradicionais, próprios da cultura pré-colonial. Ao trazer as formas, e ao recriar um certo imaginário da tradição oral na sua obra, Khosa deseja provavelmente chamar a atenção para a cultura anulada e considerada como superstição nos primeiros anos de independência, que procurou eliminar os valores do mundo tradicional.

Trata-se de uma caracterização do caos em que a sociedade mergulha com as viragens operadas, primeiro pelo colonialismo, depois pela independência27. Há efectivamente uma série de valores ideológicos que acompanham o novo poder, a partir de 1975, que entram em conflito com crenças e práticas de tradições. Ao reportar-se a um outro tempo histórico, com alguma nostalgia, o narrador quer também, e em especial, referir o tempo actual, aquele em que vive. Curiosamente a numerologia simbólica, que aparece repetida para designar o tempo mítico, refere o número onze, como emblemático. Onze noites, onze dias, onze anos de governação de Ngungunhane, onze anos de governação marxista de Samora Machel, na primeira fase pós-independência.

Por outro lado Ungulani Ba Ka Khosa, com o seu livro, Ualalapi, moderniza a ficção moçambicana ao introduzir um género, que se enraíza no romance histórico. Os sinais que nos permitem identificar o género são os nomes de personagens históricos e os acontecimentos que nos convidam a ler o texto à luz de um certo conhecimento histórico. Contudo, o modelo do género escolhido não têm a ver com o romance histórico romântico, mas antes com algumas das estratégias de ficção histórica moderna e pós-moderna, bem como com a recuperação simultânea da genologia oral africana, nomeadamente ao fazer do conto a forma de construção romanesca da sua escrita.

Esta obra vem confirmar o entrosamento cultural da literatura moçambicana, que burila, de forma mais ou menos consciente, a sua originalidade na recriação e partilha de dois universos culturais: o europeu, que lhe legou a escrita, e o pré-colonial, de que reiventa, através da escrita, a

27 Gilberto Matusse, A Construção da Imagem da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa, Maputo, Imprensa Universitária, 1997, p.138.

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fictiva ancestralidade e as formas orais. O livro termina com o conto "O Último discurso de Ngungunhane" que nos interessa aqui

destacar por vários motivos de ordem simbólica, narratológica e temática. "Virou-se repentinamente para a multidão que o vaiava, a uns metros do paquete que o levaria

para o exílio, e gritou como nunca, silenciando as aves (...) Ngungunhane falando, e o corpo bojudo oscilando para a direita e para a esquerda, enquanto os olhos reluziam e as tremiam ao ritmo das palavras que cresciam, de minuto a minuto, como agora, em que Ngungunhane dizia a todos, podeis rir, homens, podeis aviltar-me, mas ficai sabendo que a noite voltará a cair nesta terra amaldiçoada ..." (p.115)

A forma como é descrita a profecia do imperador, convoca-nos a um paralelismo com certas das formas das punições, descritas anteriormente na obra. A profecia apocalíptica silencia e aterroriza os tsongas pela sua carga tremenda de maldições. O imperador punido, acusa a aliança dos moçambicanos com os estrangeiros. Pela primeira vez, apesar da sua figura histriónica, a personagem é apresentada com alguma dignidade, como sendo portadora de um saber/poder oculto, com que se faz, mais uma vez, temer. Desta vez não apenas por razões de poder temporal, mais pelo uso da palavra que o transcende.

O discurso de Ngungunhane, nesta narrativa, projecta-se até à actualidade, prevendo os males do colonialismo, a guerra pela independência e a guerra civil pós- independência. Carregado de hipérboles, imagens abjectas e visões aterradoras, a sua palavra refere o ódio, as pragas, doenças hereditárias, violência cultural, desprezo pela cultura tradicional, humilhação física, violação de mulheres, usurpação das terras, prisões e torturas, sujeição a novas práticas religiosas, assimilação linguística e, posteriormente, todas as atrocidades da guerra civil.

A profecia de carácter apocalíptico neste conto, enquanto discurso, estabelece uma relação entre o sujeito e o transcendente, tornando-se aquele portador de uma verdade futura, antecipadamente anunciada. A profecia é característica por excelência de sociedades cuja tradição é oral, e cumpre-se através da palavra dos mediadores, profetas ou feiticeiros. Mais uma vez deparamos com uma estratégia, por parte do narrador, de tematização e de recuperação da oralidade, ao colocar na boca do seu protagonista este tipo de discurso.

Observamos ao longo da narrativa de Khosa, e neste discurso em especial, a manipulação do narrador de forma a aproximá-lo do contador, encarnando aquele a polivalência do contador tradicional, que interfere e não hesita em invadir a narrativa e distanciar-se de novo e, tal como foi referido por M. Ngal, demonstra, por exemplo, que o narrador, como na tradição oral, desempenha um papel primordial, aproximando o acto de fala ao acto de criação.

Por outro lado, dada a sua temporalidade abrangente, a profecia permite relacionar o passado com o futuro, e com o presente, sendo, por isso, adequada, às intenções críticas da narrativa histórica. Devido às formas escolhidas, há neste processo narrativo, a valorização do tempo mítico que se sobrepõe ao histórico. Passado, presente e futuro mais não são mais do que consequências transcendentes e punitivas dos actos praticados pelos homens. É esta mundividência que o narrador imprime na sua escrita.

O narrador faz uso do discurso profético, recorrendo à tradição oral, à sobrevivência e vitalidade da palavra transmitida geração, após geração. O velho que serve de fonte ao narrador, retransmite o seu saber, adquirido através da voz do avô:

"—Há pormenores que o tempo vai esboroando— disse o velho tossindo. Colocou duas achas no fogo e soprou. Novelos de fumo passaram pelo rosto. Pequenas lágrimas saíram dos olhos cansados e tocaram na pele coberta de escamas. Afastei os papéis. Olhei-o. Era noite.

—Era miúdo ainda— prosseguiu— quando o meu avô me contava histórias de Ngungunhane. (...) E ele, ao contar-me as histórias de Ngungunhane, repisava alguns aspectos que o meu pai se esquecia e que tu omitiste. E são pormenores importantes."(p.116/7)

Identificamos, nesta passagem, o narrador como testemunha, que finge ser imparcial. Ele ouve o velho no ambiente adequado, numa noite de lua cheia, em redor da fogueira. Contudo, a palavra que utiliza é escrita: "Afastei os papéis", que representa outro tempo, numa prática de reconfigurada modelação da mundividência pré-colonial à pós-colonial, que, por sua vez exige ao leitor, e ao crítico, uma leitura localizada das práticas históricas e culturais e, tal como insinua Achebe, em que o domínio do conceito de universal se torna pouco operatório.

Ualalapi de Ungulani Ba Ka Khosa permite discutir parcimoniosamente, conto a conto, a

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importância do tratamento de questões como a representação da oralidade no domínio temático, do género, e da exploração dos imaginários míticos. Por outro lado, a obra permite, ainda, evidenciar a importância crescente na literatura moçambicana de um eixo temático nativista, em pleno desenvolvimento.

LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Colibri, 2003

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VALORES CIVILIZATÓRIOS EM SOCIEDADES NEGRO-AFRICANA S

Fábio Leite

Não obstante a tentativa de se chegar a conhecimento mais decisivo acerca das sociedades negro-africanas recomendar abordagens diferenciais que permitam melhor captação de suas realidades singulares, a abrangência de que se revestem certos fatores manifestados na diversidade constitui universo privilegiado para a apreensão das propostas de organização do mundo articuladas por essas civilizações.

Nesse sentido, alguns exemplos comuns a um grande número de sociedades podem ser lembrados, de maneira genérica e com a ressalva de que cada grupo é detentor daqueles valores que hes são próprios, o que lhes confere suas individualidades.

Os tópicos que se seguem referem-se prioritariamente e muito sinteticamente a três sociedades da África ocidental - Yoruba, Agni (grupo Akan) e Senufo civilizações agrárias que, entretanto, se distinguem fortemente em virtude de suas organizações políticas, pois que, enquanto os Yoruba e Agni se constituem em sociedades dotadas de Estado, entre os Senufo essa figura não se caracteriza. Apesar de que os exemplos relacionam-se basicamente, em suas generalizações, com os grupos citados, junto aos quais desenvolvemos pesquisas de campo durante alguns anos, parece certo que são aplicáveis, com a cautela devida às individualidades, a um número não negligenciável de sociedades negro-africanas, como o demonstra a bibliografia pertinente e os dados de pesquisa.

FORÇA VITAL

A questão da força vital, que foi objeto das preocupações de Tempels (1969) e Kagamé

(1976), refere-se àquela energia inerente aos seres que faz configurar o ser-força ou força-ser, não havendo separação possível entre as duas instâncias, que, dessa forma, constituem uma única realidade. Importa notar, entretanto, que a vitalidade universal, capaz de assim individualizar-se, é relacionada com aspectos precisos da problemática que envolve, possibilitando objetivar as relações que se estabelecem entre homem e natureza e aparecendo como elemento pertencente ao domínio da consciência social.

Um aspecto que demonstra ser a força vital instrumento ligado à estruturação da realidade consubstancia-se na figura do preexistente, que é tomado como a fonte mais primordial dessa energia, dela servindo-se para engendrar a ordem natural total dentro de situações ligadas especificamente a cada sociedade, que, assim, define seu próprio preexistente. A origem divina da força vital e a consciência da possibilidade de sua participação nas práticas históricas explicam a notável importância que lhe é atribuída e, não raro, a sacralização de várias esferas em que se manifesta. Outra característica desse elemento estruturador é a de que sua qualidade de atributo vital dos seres, abrangendo os reinos mineral, vegetal e animal, estabelece individualizações que se hierarquizam segundo as espécies e faz a natureza povoar-se de forças ligadas aos seus mais variados domínios. Deve ser ressaltado que no relacionamento existente entre força vital e preexistente na elaboração do mundo, embora aquele se encontre na base das ações primordiais da criação, geralmente não se ocupa da totalidade do processo nem de seus desdobramentos, atividade que confia a certo demiurgos - entes por ele concebidos - e ao próprio homem. De fato, uma vez ocorrida a doação da vitalidade que faz configurar a vida individualizada dos seres, estes são complementados pelos demiurgos, o que também explica parte da dimensão sagrada de que é portadora a natureza: quando ocorre o ato de complementação, uma parte da vitalidade desses entes passa a integrar a constituição mais íntima dos seres, manifestando-se como dimensão específica de sua materialidade. Mas a elaboração contínua do mundo é também tarefa do homem nesse intercâmbio privilegiado entre natureza e sociedade, exercendo ações transformadoras ao criar o ser humano no âmbito de sua competência, assim como aqueles elementos ligados à organização da sociedade. É o caso, por exemplo, dos processos de socialização, com suas etapas iniciáticas - que fazem configurar o homem proposto pela sociedade em sua dimensão social -, e também das atividades relacionadas com outras instâncias históricas, onde as ações

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humanas complementam a obra inicial do preexistente, colocando-a, com o cuidado e conhecimento exigidos pela vitalidade que anima os seres, em estreita relação com a sociedade, como ocorre, para criar outro exemplo, com a manipulação da terra, fator básico da produção. Pode ser acrescentado ainda que a noção de vitalidade enquanto elemento ligado à explicação da realidade desdobra-se mesmo até seu nível empírico mais imediato, manifestando-se na vida cotidiana. Isso ocorre quando se considera, simplesmente, que algo ou alguém é por motivos que estabelecem uma relação diferenciada de qualquer natureza, envolvendo real ou simbolicamente uma propriedade distintiva. De fato, a expressão ele é forte é utilizada com grande freqüência nas mais variadas situações.

Dessa forma, a noção de força vital não se limita às instâncias das formulações abstratas, situando-se materialmente no interior das práticas históricas e da explicação da realidade.

PALAVRA

Dentro do universo que lhe é próprio nessas sociedades, a palavra emerge como fator

ligado à noção de força vital e, em seu aspecto mais primordial, tem como principal detentor o próprio preexistente. Nesse sentido, não raro, a palavra aparece como substância da vitalidade divina utilizada para a criação do mundo, confundindo-se com o chamado sopro ou fluido vital, sendo que no homem essa herança manifesta-se, em uma de suas formulações, através da respiração. o conjunto força vital/ palavra/ respiração é elemento constitutivo da personalidade, emergindo plenamente quando o homem o estrutura de maneira a criara linguagem e o exterioriza através da voz. Outro aspecto deve ser realçado. Sendo a palavra dotada de uma parcela da vitalidade do preexistente, é necessariamente uma força inerente à personalidade total, daí que sua utilização deve ser cuidadosamente orientada, pois que uma vez emitida algumas de suas porções desprendem-se do homem e reintegram-se na natureza. Nesse sentido deve ser lembrado que a palavra é elemento desencadeador de ações ou energias vitais. De fato, ao ser dirigida para atingir determinados fins, interfere na existência pois que, uma vez absorvida, pode provocar reações, controláveis ou não. É por isso que o aparelho auditivo é assemelhado aos órgãos reprodutores femininos: ambos são capazes de fazer gestar algo decisivo pela penetração, no interior dos indivíduos, de um elemento vital desencadeador do processo.

Naquela sua configuração que a liga estreitamente às práticas históricas, a palavra é geralmente relacionada com a problemática do conhecimento e sua transmissão, que se articula em vários níveis da realidade social. É o caso, dentre outras, daqueles especialistas das transformações (ferreiros, tecelões, escultores, médicos manipuladores de folhas e outros elementos, encarregados de ritos iniciáticos e funerários - universos onde ocorrem mutações na essência do ser humano -, agentes da magia que se servem da palavra para manipular forças benéficas ou maléficas etc.), das manifestações da vida espiritual (cultos a ancestrais e divindades, cerimônias envolvendo a utilização de determinadas máscaras), do domínio da própria palavra (caso dos historiadores tradicionalistas), das explicações de certos aspectos da realidade (conhecimento esotérico, jogos divinatórios e propiciatórios) etc. Em todos esses exemplos a palavra sempre acompanha as ações de uma maneira ou outra a fim de estabelecer relações entre forças vitais, as do agente e as do universo a ser explorado. A palavra é, ainda, instrumento singular das práticas políticas negro-africanas, uma vez que as decisões da família e da comunidade são tomadas em conjunto mediante a discussão das questões e exposição da jurisprudência ancestral. Isso ocorre nos conselhos de família, em âmbito mais restrito, mas também em locais públicos sacralizados para tal fim, como é o caso da árvore da palavra, geralmente encontrada no espaço altamente diferenciado que lhe é reservado nas localidades africanas.

A palavra, portanto, é dotada de origem divina mas encontra-se significativamente relacionada com as atividades humanas e não deve ser considerada somente como fonte de conhecimento, o que restringiria seu significado ao universo dominado pelos especialistas da própria palavra, os historiadores tradicionalistas, figuras sociais bastante conhecidas nessas civilizações. Na verdade, ela se manifesta nos mais variados níveis da realidade, e o significativo número de instâncias onde sua exteriorização é fundamental revela a importância que lhe é

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atribuída. A palavra é, sem dúvida, instrumento do saber, mas sua condição vital lhe garante o estatuto de manifestação do poder criador como um todo, transmitindo vitalidade e desvendando interdependências. Sua capacidade de comunicação possui essência diversa daquela proposta pela escrita, elemento apenas cultural e estrangeiro à natureza e à dimensão mais profunda do homem.

HOMEM

Nessas sociedades o homem é definido como síntese de alguns elementos vitais que se

encontram em interação dinâmica permanente. Em generalização ampla, é possível afirmar que o homem é constituído de pelo menos três elementos vitais: o corpo, o princípio vital de animalidade e espiritualidade e o princípio vital que estabelece a imortalidade do ser humano.

O corpo, manifestação visível do homem, possui um complexo externo e outro interno, ambos se encontrando em relação constante. O primeiro é percebido pela figura, flexibilidade, movimento e capacidade de criar espaços naturais e sociais. O complexo interno está ligado à noção de entranhas, que define a manifestação interior de fatores naturais e sociais, abrangendo - além da explicação relativa aos órgãos e sistemas ligados à noção de vida física - a capacidade do homem experimentar sentimentos. Deve ser acrescentado que o significado social do corpo é proposta precisa: ele se constitui em referencial histórico, aparecendo como fator de individualização, de trabalho e de reprodução da sociedade. Suas mutações configuram-se como processos sobre os quais a sociedade exerce ações eficazes tendentes a dominá-los, como, por exemplo, nos atos iniciáticos ligados à excisão e circuncisão, onde uma das proposições é a da tomada de consciência da natureza social de que também se revestem as práticas sexuais.

É da natureza do corpo constituir uma potencialidade de vida mas as energias que o animam, estruturam e lhes dão dinâmica são colocadas em ação por um outro elemento catalisador e distribuidor de forças vitais. Esse é o princípio vital de animalidade e espiritualidade - não raro identificado como sopro ou fluido vital de origem divina - que se relaciona com a energia primordial da qual o preexistente é o detentor, o que estabelece a vitalidade física e espiritual do homem enquanto manifestação de uma mesma realidade. Esse elemento é decisivo para a configuração da existência visível, pois sua ausência em um corpo - demonstrada pela falta da respiração e da palavra - estabelece, regra geral, a separação dos elementos vitais constitutivos do ser humano, evidenciando-se, então, a morte. Deve ser acrescentado que esse princípio tem como uma de suas características a capacidade de fazer individualizar fortemente uma de suas porções, que se manifesta sob a forma de duplo, concepção de significativa riqueza acerca da dinâmica dos seres. É ainda esse elemento que permite ao homem viver os sentimentos, sempre experimentados interiormente. Essa interioridade explica a importância atribuída à noção de entranhas, que sintetiza essa problemática. Finalmente, pode-se ressaltar que o princípio vital de animalidade e espiritualidade é dotado de notável capacidade de mutação e ação - fator observável principalmente através do duplo, um dos principais agentes da magia nessas civilizações - qualidade que, como no caso do corpo, pode ser controlada e dirigida através de práticas específicas ligadas a processos iniciáticos extremamente complexos.

O terceiro grande elemento vital constituinte do homem é o princípio de imortalidade. Pesquisas levadas a efeito em várias sociedades negro-africanas demonstram que esse princípio, mais do que os outros, é inexaurível e indestrutível, resistindo plenamente com sua individualidade e características, aos efeitos da morte. Liga-se às propriedades morais e intelectuais do homem, para o qual estabelece uma identidade social de vez que as realizações dos indivíduos, positivas ou negativas, são devidas às qualidades naturais desse elemento vital, que aparece também como a dimensão em que se manifesta o destino humano. Tais atributos fazem com que esse princípio vital se defina como a instância mais histórica do homem. Após o fim da existência visível, é ele que propõe a imortalidade do ser humano, pois volta a fazer parte da comunidade através dos recém-nascidos da mesma família ou insere-se na massa de antepassados privativa do grupo social a que pertence, daí nascendo a figura do ancestral, com a qual a sociedade mantém relações privilegiadas. Deve ser ressaltado que também neste caso a sociedade possui consciência ótima das potencialidades e características desse elemento vital, o que lhe permite interferir em sua progressão e, conseqüentemente, no desenvolvimento da personalidade.

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A esses três grandes princípios vitais naturais que integram a noção de pessoa, devem ser acrescentados aqueles de ordem social: o nome e a socialização com suas fases iniciáticas, bem como, em versão ampla do conceito de existência, os ritos funerários, cuja proposta mais fundamental é a de fazer caracterizar o ancestral, com a carga histórica da sociedade a que pertence, após os processos caracterizadores da morte.

SOCIALIZAÇÃO

O domínio que a sociedade detém sobre as mutações do ser humano transparece

particularmente bem nos processos de socialização, com suas fases iniciáticas destinadas a fazer configurar essa progressão que é orientada para a elaboração de uma personalidade final básica, capaz de manter e transmitir os valores mais fundamentais do grupo social. O caráter comunitário da existência exige que os processos de socialização estabeleçam quais os limites possíveis dentro dos quais os indivíduos exercem sua mobilidade social, sendo por isso que a formação da personalidade nas civilizações negro-africanas é encargo atribuído à sociedade como um todo. Esse humanismo revela que a sociedade propõe a superação, pela consciência da realidade existencial, das limitações materiais e instrumentais, harmonizando o homem com as práticas sociais suficientes.

Para alcançar esses objetivos, as crianças são introduzidas em grupos formados pelo critério de idade, nos quais ingressam logo após ultrapassadas as fases mais incipientes da infância. Desses grupos nascem aquelas figuras sociais a que se convencionou chamar de gerações: são indivíduos que passam por processos educacionais comuns a todos os componentes dos grupos segundo os estágios de aprendizado em que se encontrem. Em geral as pessoas atingem juntas a maturidade, submetendo-se coletivamente aos atos iniciáticos previstos pelo costume e que marcam etapas vencidas. Dessa maneira, os integrantes desses grupos e dessas gerações adquirem consciência ótima de sua condição social e dos principais valores, direitos e deveres de sua sociedade, ligando-se estreitamente em razão da solidariedade que se estabelece entre eles. Ao vencerem as últimas etapas, são considerados capazes de integração social e representantes legítimos da sociedade.

A importância atribuída a esses processos é tão significativa que os indivíduos que não se submetem a eles são considerados, de certa maneira, como pessoas sem cidadania. Sofrem as mais severas restrições em todos os níveis: não podem estabelecer contratos de casamento e, conseqüentemente, não obtêm cessões de terra; a eles é vedada a manifestação verbal nos conselhos de família e da comunidade, ficando impedidos de participar das decisões; e não chegam a assumir funções de importância para a comunidade.

MORTE

A proposta de imortalidade do homem explica em grande parte a extraordinária

importância que é atribuída à morte e às cerimônias funerárias. De fato, a morte apresenta-se como fator de desequilíbrio por excelência, pois promove a dissolução da união vital em que se encontram os elementos constitutivos do ser humano, estado que se faz configurar a existência visível. Tal capacidade torna a morte um evento abrangente devido à interferência que exerce em vários níveis da realidade, desde as concepções que definem o homem até à necessidade de recomposição dos papéis sociais, principalmente quando sua ação recai sobre mandatários de significado social notável, como chefes de família, de comunidade ou reis, figuras que tendem a sintetizar as ações históricas mais expressivas para o grupo.

A sociedade, entretanto, reorganiza-se rapidamente a fim de promover a superação da morte e restabelecer o equilíbrio, o que é conseguido através das cerimônias funerárias. Nestas, uma proposição básica é a da superação cultural da morte através de atos tendentes a caracterizar a natureza exterior à ordem social que lhe é atribuída. Outra dimensão fundamental das cerimônias funerárias é a da participação efetiva da sociedade nos processos de separação dos elementos vitais que constituem o homem, desagregados pela ação da morte, fazendo-os inserir-se em instâncias precisas da natureza, como a terra que recebe o corpo - salvo nos casos de mumificação e ingestão ritual - e as massas de vitalidade às quais geralmente retorna o princípio

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de animalidade e espiritualidade. Já o princípio vital de imortalidade é encaminhado ao mundo privativo dos ancestrais, no qual passa a manifestar-se, em outras condições existenciais e desde que não venha a fazer parte de um novo membro da comunidade. Esses fatores explicam a notável importância conferida às cerimônias funerárias que, se em parte podem ser consideradas como ritos de passagem, de outro se constituem em ritos de permanência, pois delas nascem os ancestrais.

A complexidade das cerimônias funerárias não é devida, assim, a fatores de ordem psicológica: elas revelam a capacidade de a sociedade dominar a desordem provocada pela morte e dar continuidade à vida ao elaborar o ancestral, fazendo com que a imortalidade do homem se configure de maneira precisa e em relação vital com o grupo social. Assim como nos processos de formação da personalidade, a tarefa de promover a superação da morte é de alçada da comunidade como um todo.

ANCESTRAIS E ANCESTRALIDADE

Nessa complexa proposição da existência, que coloca a morte dentro da vida, os

ancestrais negro-africanos constituem, juntamente com a sociedade e sem dela separar-se, um princípio histórico material e concreto capaz de contribuir para a objetivação da identidade profunda de um dado complexo étnico e das suas formas de ações sociais. De fato, as principais instâncias das práticas históricas são dotadas de alguma dimensão ancestral, tais como: preexistente e suas interferências na sociedade; divindades e criação do mundo; natureza, homem e sociedade; espaço e tempo; conhecimento; configuração da família e da comunidade envolvendo relações com a produção e o trabalho; socialização e educação, natureza e legitimação do poder estendendo-se inclusive à concepção da figura a que se denomina Estado, quando essa figura aparece.

Nesse sentido, o princípio histórico estabelecido pelos ancestrais é elemento objetivador das regras mais decisivas que regem a estrutura e a dinâmica dessas sociedades. Torna-se necessário ainda indicar que esse princípio ancestral é suficientemente amplo para incluir, além dos ancestrais nascidos do homem - os ancestrais históricos -também as divindades e até mesmo o preexistente, pois que os dados de realidade indicam que todos esses seres estão indissoluvelmente ligados à explicação do mundo e à organização da realidade, não obstante as diferenças de substância.

É por tais motivos históricos, que transcendem as esferas da espiritualidade e da religiosidade, que as relações estabelecidas pela sociedade entre as massas ancestrais e as massas de processos sociais dotados de dimensão ancestral, produzem urna síntese que, tomada em sua concretude e dinâmica, constitui a abstração a que denominamos ancestralidade.

Ou seja, aquilo que sem maiores fundamentos se costuma chamar de "tradição", "tradicional", constitui-se em amplíssimo vício de linguagem ou conceito equivocado de larga utilização, diminuindo a possibilidade de captação material das raízes de processos sociais específicos que vão se reestruturando no tempo e no espaço sem perda da essência das principais propostas adotadas sucessivamente.

FAMÍLIA

A família negro-africana típica em sociedades agrárias, conhecida pela denominação de

família extensa, é constituída por um grande número de pessoas ligadas pelo parentesco. Nas sociedades de organização matrilinear, figura que aqui serve de exemplo, o parentesco formula-se pelos laços uterinos de sangue, razão pela qual a mulher é a única fonte de legitimação das descendências. Estas constituem, assim, o núcleo fundamental que define a família, sendo que em suas bases encontram-se as ancestrais-mulheres que lhes deram origem. É devido a essa configuração do parentesco que os direitos e deveres são institucionalmente transmitidos de mãe a filha, de irmã a irmã, de tia a sobrinha e, quanto aos homens, de irmão a irmão, e de tio a sobrinho. Esses pressupostos são válidos também para a sucessão nas chefias, inclusive para a sucessão do rei naquelas sociedades dotadas de Estado, sendo aspirantes legítimos ao exercício desses cargos os indivíduos ligados à ascendência uterina. Essa fórmula tende a preservar o patrimônio

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genético estabelecido pela mulher para fins institucionais, pois que na organização matrilinear uma proposição básica é a de que nenhum homem pode provar que é o pai de seus filhos, os quais, entretanto, contém obrigatoriamente o sangue de suas mães.

Sob o prisma de sua formulação sangüínea, a família extensa de organização matrilinear transcende, portanto, o espaço físico, abrangendo todos os indivíduos ligados pelo parentesco uterino a ancestrais mulheres comuns. Em termos de sua estrutura física, a família extensa compreende a família do patriarca-chefe e as famílias conjugais a ela ligadas. A primeira é constituída pelo patriarca-chefe, sua esposa ou esposas e filhos, seus irmãos, mulheres e filhos daqueles, suas irmãs, tias e sobrinhas solteiras ou viúvas, assim como os filhos destas últimas. Quanto às famílias conjugais, elas são formadas pelo esposo, esposa ou esposas e respectivos filhos. Reunidas em um mesmo espaço físico para práticas comuns ligadas à produção, essas famílias fazem configurar a família-aldeia, unidade de produção dotada de aparatos materiais, jurídicos e políticos destinados à sua administração. Deve ser acrescentado que a família extensa pode constituir-se - além dos descendentes de ancestrais-mulheres comuns - de indivíduos pertencentes a outras descendências, dos descendentes de cativos agregados e ainda de pessoas pertencentes a outros grupos étnicos que se filiam a uma aldeia em busca de cessão de terra para cultivo. Porém, qualquer que seja o número de estrangeiros eventualmente incorporados, a família receptora detém os direitos e deveres ligados à administração.

PRODUÇÃO

Nessas sociedades, os processos de produção são baseados essencialmente na

suficiência destinada ao atendimento comunitário de necessidades vitais e específicas, razão pela qual o uso alternativo dos bens de produção não constitui fator decisivo das relações econômicas. Alguns dados, apresentados de maneira genérica, demonstram como a natureza comunitária da produção formula-se materialmente enquanto elemento decisivo da realidade social.

A terra, principal recurso natural dessas sociedades agrárias, é considerada ela mesma como uma divindade e sua fertilidade é tomada como doação preexistente. Dotada dessa energia vital que a sacraliza, a terra não pode ser apropriada pelo homem, que, entretanto, está potencialmente habilitado a ocupá-la segundo as normas ancestrais. Para tanto, é necessário organizar e sacralizar essa relação, o que é conseguido através de pactos selados entre o homem e a terra, daí nascendo os deveres e direitos de ocupação, sendo o principal deles a inapropriabilidade do solo e sua transmissão, nesse estado, às gerações que se sucedem. Os pactos são estabelecidos por famílias que ocupam uma área demarcada segundo o costume, cabendo-lhes então o direito de usufruir da fertilidade da terra e o dever de administrá-la, podendo inclusive praticar cessões a terceiros de algumas de suas partes sem que ocorra, entretanto, um desmembramento da totalidade. Essas características explicam a notável importância atribuída aos ancestrais-fundadores, que promoveram os pactos de ocupação, assim como aos zeladores da terra e da manutenção das alianças, que os sucedem.

Outro fator decisivo da produção - os instrumentos de trabalho – também se organiza a partir das relações estabelecidas entre o homem e a natureza. A origem divina da terra exige, segundo os pactos, que os instrumentos destinados à sua manipulação sejam fornecidos por ela mesma. Para esse fim, a matéria-prima necessária é retirada da terra e processada em fornos, transformando-se em ferro, com o qual são elaboradas as ferramentas destinadas ao trabalho. Importa notar que os aparatos tecnológicos existentes para tal fim encontram-se, como na produção, limitados à sua utilidade específica: destinam-se exclusivamente ao atendimento de necessidades sociais vitais da comunidade. A tecnologia suficiente de que são dotadas essas sociedades elimina a possibilidade da criação de necessidades artificiais ligadas à concepção segundo a qual o bem-estar depende da evolução instrumental.

Das alianças seladas com a terra pelas famílias nascem, como indicado antes, as unidades de produção e a comunidade, elementos sintetizados na família-aldeia. Dentro dessa proposta comunitária que orienta a existência social, o trabalho transparece como outro grande instrumento da produção, encontrando-se vitalmente associado a ele segundo as normas de interdependência estabelecidas por outros fatores que não os meramente econômicos. É bem verdade que nessas sociedades o trabalho se traduz como ação comunitária por excelência, pois

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que a sociedade dedica ao labor coletivo cerca de dois terços do tempo destinado às atividades agrárias. O tempo restante é usado para o trabalho exercido em subáreas cedidas às famílias conjugais que compõem a família extensa, possibilidade esta que é, entretanto, vedada aos homens solteiros. Os jovens que ainda não concluíram formalmente as fases finais de iniciação integrantes dos processos de socialização, dedicam-se integralmente ao trabalho comunitário. Existe ainda os trabalhos em mutirão, que estabelecem reciprocidade. As pessoas jovens devem trabalhar mais do que as de idade mais avançada, e as atividades são organizadas de maneira a que aquelas, terminadas suas tarefas, ajudem estas a concluir as suas. Finalmente, a comunidade assegura às pessoas idosas, sem condições de carregar e manipular a enxada, o direito de não mais trabalhar a terra, não lhes faltando o essencial em seus celeiros até a morte. Mas o caráter comunitário de que se reveste o trabalho não encontra sua materialidade apenas no caráter coletivista da produção. De fato, nessas sociedades a força de trabalho faz parte da personalidade e não se encontra separada da totalidade vital que configura os indivíduos, não podendo, portanto ser apropriada. Ela é, assim, cedida à comunidade sob a forma de elemento estruturador de papéis sociais, condições em que o trabalho integra-se qualitativamente nas práticas ligadas à produção enquanto fator de vida social total, fazendo emergir o indivíduo historicamente consciente das ações que deve à sociedade. Dentro de tais pressupostos, compreende-se melhor o alcance dos processos de socialização, que visam elaborar uma personalidade-padrão adequada à estruturação da sociedade.

Evidentemente a produção, nessas sociedades agrárias, é elemento estrutural cuja importância se afigura mais ainda decisiva quando se têm em conta as duras condições de que se reveste o trabalho da terra, único meio de subsistência. Mas a natureza sagrada da terra, impondo os pactos e toda a normativa que estes estabelecem, garante à sociedade deter, em suas instituições abrangentes e comunitárias, os recursos naturais, materiais e a força de trabalho como fatores unificados da produção. Por outro lado, a produção suficiente, limitada, assim como a tecnologia, às necessidades sociais vitais, impede a emergência de excedentes passíveis de serem apropriados por camadas sociais privilegiadas.

PODER

Nas sociedades sem Estado o exercício do poder é fortemente concentrado em relação

às unidades de produção - as famílias pactuadas com a terra, dotadas de auto-suficiência e que fazem configurar a família-aldeia -, mas difuso quando colocado em relação com a sociedade global, formada pelos grupos integrantes de um determinado complexo cultural. Já nas sociedades dotadas de Estado, a concentração do poder recai sobre um elemento centralizador, que abrange o conjunto da sociedade e que se manifesta essencialmente na figura do rei, devendo ser ressaltado que o Estado aparece como figura relacionada com cada grupo integrante de um determinado complexo cultural. Em ambos os casos, entretanto, existem mecanismos moderadores do poder, como os conselhos de família e de comunidade, as chefias de família, os encargos ancestrais atribuídos a certos notáveis e ainda as gerações de iniciados que exercem funções políticas. Também em ambos os casos evidencia-se uma consciência ótima acerca do território ocupado, manifestando-se a unidade cultural, dada especialmente por uma língua básica (não obstante suas eventuais variações regionais), origens ancestrais comuns e organização social e política semelhantes. Nas sociedades sem Estado, a noção de território é mais fragmentada e os limites onde ocorrem o exercício do poder restringem-se às áreas ocupadas pelas famílias-aldeias e à comunidade originada por elas, embora estejam perfeitamente estabelecidos, entre os vários grupos, os laços decorrentes de origens históricas comuns. Quanto às sociedades dotadas de Estado, o território é também o conjunto de unidades de produção sobre o qual o rei exerce uma interferência decisiva: ele é o principal guardião da unidade do Estado e de sua administração.

Uma questão específica relacionada com a configuração e legitimação do poder pode ser aflorada com o intuito de melhor objetivar alguns aspectos da problemática, servindo de exemplo, mais uma vez, as sociedades de organização matrilinear.

Nelas, a trama ancestral nascida do parentesco configurado através dos laços uterinos de sangue faz emergir o papel fundamental exercido pelas mulheres na divisão do poder, pois, devido a essa edificação das descendências e, conseqüentemente, das linhagens, elas interferem

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decisivamente nos processos de sucessão, inclusive na sucessão do rei, quando é o caso. Como a sociedade é dirigida por homens, parece haver aí uma contradição. Mas, ao contrário, essas instâncias são complementares.

As mulheres constituem fontes de legitimação na medida em que apenas elas fazem configurar as descendências e as posições dos indivíduos na estrutura da família para fins de sucessão e conseqüente acesso ao poder. É o caso concreto dos conselhos de mulheres descendentes de ancestrais-mulheres comuns, aos quais cabe indicar aos conselhos de homens os nomes Possíveis daqueles que podem aspirar legitimamente ao acesso a um cargo, inclusive o de rei, respeitadas as demais regras de sucessão. Quanto aos homens, eles são, enquanto chefes e mandatários, guardiões dos pactos selados com a terra, responsáveis pelas ações do elementos de família dentro e fora dela, zeladores da ordem e também os principais elementos de comunicação entre a comunidade e os ancestrais pois a eles cabe a direção e mesmo a execução dos atos mais decisivos relacionados com os cultos aos antepassados. Esta última atribuição demonstra particularmente bem a extensão do poder patriarcal nas sociedades negro-africanas, de vez que esse relacionamento diferenciado com os ancestrais - veículos de transmissão de força vital e fertilidade – é fator fundamental dos valores civilizatórios propostos por essas sociedades. Mas nas civilizações dotadas de organização matrilinear a legitimação histórica e jurídica desse poder emana, na realidade, da mulher.

*** A observação periférica e a explicação baseada em bibliografia que tende a marginalizar

ou minimizar a abrangência dos dados de realidade tal como emergem do próprio objeto ou, ainda, calcada em pressupostos teóricos nascidos substancialmente do pensamento estrangeiros à realidade negro-africanas, podem constituir-se em instrumentos capazes de induzir à consideração equivocada de que valores civilizatórios típicos do universo histórico dessas sociedades - dos quais alguns exemplos foram citados -não mais possuem espaço para sua manifestação concreta em face dos processos de mudança social, tratando-se de restos culturais inexpressivos e em vias de desaparecimento rápido.

É bem verdade que processos históricos abrangentes, ligados à dinâmica das mudanças sociais e tendentes à universalização, impactam crucialmente padrões civilizatórios pecualiares, mas essa realidade não se aplica apenas às sociedades negro-africanas, tratando-se de fator que se configura, menos ou mais intensamente e conforme o grau qualitativo das conjunturas, em nível planetário. Não se pode esquecer, entretanto, que tal realidade não implica, necessariamente, na destruição de singularidades.

Tal proposição não se formula apenas ao nível de fator histórico com o qual se defrontam as sociedades negro-africanas na atualidade. De fato, embora tais processos universalizantes se apresentem hoje sob formulações capitais para o conjunto da humanidade, eles já integraram, nas modalidades próprias das etapas históricas de suas manifestações, as realidades totais das civilizações de que se trata aqui. Realmente, a história evidencia, por exemplo, que não obstante todos os processos desestabilizadores e desestruradores - alguns da mais extrema crueldade - impostos a essas sociedades em épocas não tão distantes, elas absorveram os impactos decorrentes e os transformaram, em fases - e não totalidades - de sua realidade, fases essas que, embora marcando época, não foram suficientes para levá-las à aniquilação. Ou seja, as sociedades negro-africanas sempre viveram suas própria realidades no fluxo de processos sociais abrangentes, que se definem seja em relação a grupos extensos caracterizados pelos diversos complexos culturais, seja em relação ao conjunto de civilizações negro-africanas, que formam, mais do que uma simples constelação de povos, um universo histórico elaborado pela rede de relações sociais totais típicas do universo social que define essas sociedades. Em outras palavras, essas civilizações mantiveram e mantém a sua continuidade histórica - e não apenas a sobrevivência histórica - e nesse processo a natureza singular de seus valores civilizatórios é mecanismo de sua materialidade.

Para a tentativa de conhecimento mais amplo e verdadeiro dessas sociedades a análise diferencial - aquela que tem em conta a realidade mais decisiva para compreensão do objeto em situações históricas específicas – constitui-se no instrumento mais qualitativamente capaz de situar convenientemente a singularidade das civilizações negro-africanas e, conseqüentemente, definir as medidas e abrangências de suas realidades vitais em face dos processos de mudança social.

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Essa metodologia - que implica ainda em trabalho de campo intenso a fim de conhecer os homens e as sociedades para a elaboração de instâncias empíricas suficientemente capazes de fornecer bases para abstrações justificadas - pode permitir ao estudioso abandonar critérios estrangeiros ao universo a conhecer, venham de onde vierem e, mais, exercitar sua capacidade crítica com a consciência das peculiariedades históricas com as quais se defrontará.

Adotando-se essa postura metodológica, a singularidade intrínseca dos padrões civilizatórios das sociedades negro-africanas e sua abrangência são fatores que podem ser melhor percebidos através de suas totalidades, consubstanciadas nas tipologias de ações e processos históricos que estruturam as práticas sociais e fazem emergir a visão de mundo que as explicam. É nesse contexto que se inserem os exemplos citados neste texto - e certamente muitos outros, não abordados -, os quais constituem, de certa maneira, situações-limite, pois que dotadas de significativa expressão. É também nessa totalidade e nessas tipologias que deve ser situada a problemática da comunidade histórica antes referida, a qual revela, em última instância, a natureza da dinâmica dos processos históricos dessas civilizações: elas são capazes de absorver novas propostas, oriundas de vários horizontes, e reproduzi-las com a autonomia garantida pela sua materialidade própria e criando novas sínteses. Essa capacidade sintética, que mantém a singularidade na pluralidade, permite considerar que essas civilizações não se encontram fechadas e voltadas para si.

De fato, as proposições inerentes a padrões civilizatórios específicos são válidas para a maioria dos povos negro-africanos, e sua materialidade se manifesta, na atualidade, até mesmo nos centros urbanos de porte - onde se adaptam às circunstâncias impostas por elas - para não falar nas comunidades e localidades onde são perfeitamente observáveis pelo pesquisador que se dedica ao trabalho de campo. A existência desses valores não significa a cristalização de resíduos culturais capazes de estabelecer uma dualidade. Significa, mais apropriadamente, a existência de uma busca constante, nas fontes originárias, de proposições consideradas mais legítimas e sua dinamização em face de novas realidades, ou seja, a existência de uma só africanidade construindo sua própria história. Parece prematuro avaliar se os padrões civilizatórios que integram esse universo sofrerão mutações tão notáveis que desaparecerão completamente por força de processos históricos tendentes a uniformizar culturas singulares. No mesmo, a proposta que parece se colocar significativamente à reflexão é a de que essas civilizações oferecem à humanidade perspectivas próprias que não podem ser ignoradas.

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1. 2.

A DÉCADA DE 50. O MOVIMENTO DOS NOVOS INTELECTUAIS DE ANGOLA. MENSAGEM E CULTURA

Carlos Ervedosa

Em 1948, aqueles rapazes, negros, brancos e mestiços, que eram filhos do pais e se tornavam homens, iniciam em Luanda o movimento cultural "Vamos descobrir Angola!». Que tinham em mente? Estudar a terra que lhes fora berço, a terra que eles tanto amavam e tão mal conheciam. Eram ex-alunos do liceu que recitavam de cor todos os rios, todas as serras, todas as estações e apeadeiros das linhas férreas de Portugal, mas que mal sabiam os afluentes do Cuanza que corria ao seu lado, as suas serras de picos altaneiros, os seus povos de hábitos e linguas tão diversas, que liam e faziam redacções sobre a beleza da neve ou o encanto da Primavera que nunca tinham presenciado, que desenhavam a pêra, a maçã ou a uva sentindo apenas na boca gulosa o sabor familiar e apetecido da goiaba, da pitanga ou da gajaja, que inter-pretavam as fábulas de La Fontaine mas ignoravam o fabulário, os contos e as lendas dos povos da sua terra, que sabiam com precisão todas as datas de todas as façanhas dos monarcas europeus, mas nada sobre a rainha Nzinga ou o rei Ngola. O movimento, diz-nos o ensaísta Mário de Andrade, incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através de um trabalho colectivo e organizada; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas. Enquanto estudam o mundo que os rodeia, o mundo angolano de que eles faziam parte mas que tão mal lhes haviam ensinado, começa a germinar uma literatura que seria a expressão da sua maneira de sentir, o veículo das suas aspirações, uma literatura de combate pelo seu povo. Maurício de Almeida Gomes, angustiado, já interrogara: Mas onde estão os filhos de Angola se os não oiço cantar e exaltar tanta beleza e tanta tristeza, tanta dor e tanta ânsia desta terra e desta gente? e exortava: «É preciso forjar a poesia de Angola!» Uma poesia nossa, nossa, nossa! cântico, reza, salmo, sinfonia que uma vez cantada, rezada, faça toda a gente sentir, faça toda a gente dizer: - É poesia de Angola!

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Publicava este poeta, no ano de 1949, o seu melhor poema, «Estrela pequenina», e começavam a aparecer as primeiras composições literárias marcadas, bem marcadas, pelas condições ambientais, resultantes de um conhecimento perfeito do homem e da terra, como nos mostra esse admirável «Sô Santo», criação de Viriato da Cruz: Lá vai o sô Santo ... Bengala na mão Grande corrente de ouro, que sai da lapela Ao bolso ... que não tem um tostão. Quando o sô Santo passa Gente e mais gente vem à janela: _ «Bom dia, padrinho ... » _ «Olá ... » _ «Como está? .. » _ «Bo-om di-ia sô Saaanto!. .. » _ «Olá, Povo! ... » Mas porque é saudado em coro? Porque tem muitos afilhados? Porque tem corrente de ouro A enfeitar sua pobreza? Não me responde, avó Naxa? - Só Santo teve riqueza. Dono de musseques e mais musseques ... Padrinho de moleques e mais moleques .. Macho de amantes e mais amantes, Beça-nganas bonitas Que cantam pelas rebitas: «Muari-ngana Santo dim-dom ual' o banda ó calaçala dim-dom chaluto mu muzumbo dim-dom Sô Santo ... Banquetes p'ra gentes desconhecidas Noivado da filha durando semanas Kitoto e batuque pró povo cá fora Champanha, ngaieta tocando lá dentro ... Garganta cansando: «Coma e arrebenta e o que sobra vai no mar. .. » «Hum-hum Mas deixa ... Quando o sô Santo morrer, Vamos chamar um kimbanda Para Ngombo nos dizer Se a sua grande desgraça Foi desamparo de Sandu Ou se é já própria da Raça ... » Lá vai ... descendo a calçada A mesma calçada que outrora subia Cigarro apagado

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Bengala na mão .. . Se ele é o símbolo da Raça ou vingança de Sandu ... Desenvolvia-se um fenómeno literário original, no âmbito das literaturas de expressão portuguesa, activado por um conjunto de jovens talentosos e cultos espalhados por Luanda e pelos centros universitários de Lisboa e Coimbra. Eles sabiam muito bem o que fora o movimento modernista brasileiro de 1922. Até eles havia chegado, nítido, o «grito do Ipiranga» das artes e letras brasileiras, e a lição dos seus escritores mais representativos, em especial de Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Lins do Rego e Jorge Amado, foi bem assimilada. O exemplo destes escritores ajudou a caracterizar a nova poesia e ficção angolanas, mas é, certamente, num fenómeno de convergência cultural que poderemos encontrar as razões das afinidades das duas literaturas. A mesma amálgama humana, frente a frente nas duas margens do Atlântico tropical, em presença de condições ecológicas quase idênticas, teria de conhecer reacções e comportamentos muito semelhantes. Da mesma forma se poderá explicar a receptividade dos angolanos em relação aos ritmos afro-brasileiros e afro-cubanos. Realizadas as condições para a eclosão de um movimento literário, ele não se faria esperar muito e, ainda em 1950, surge, consciente da sua missão, com o nome de Movimento dos Novos Intelectuais de Angola. Como centro aglutinador, o departamento cultural da Associação dos Naturais de Angola, através do qual iniciam, em 1951, a publicação da revista Mensagem - A Voz dos Naturais de Angola, que pretendiam fosse o veículo da sua mensagem literária e ideológica: Mensagem sai hoje, para a rua, a cumprir a sua missão, levando em si, para vós, para o Mundo, uma mão-cheia de esperança; um cacho de mocidade sedenta de Verdade, de Justiça e de Paz. É a mocidade de Angola, que abraça com Mensagem os seus irmãos do Mundo; são os jovens, generosos como a própria generosidade, confiantes da missão que cada um tem a cumprir ( ... ) . ( ... ) São os jovens que não conhecem a descrença; que não acreditam no impossível e amam a Verdade; que lutam pela Justiça e crêem ainda na Solidariedade Humana e na Fraternidade Universal, - são esses jovens de Angola, iguais a todos os jovens do Mundo -, são esses que Mensagem traz até vós. E Mensagem sente-se, hoje, mais do que nunca, amanhã mais do que hoje, segura da missão que tem a cumprir. O Movimento dos Novos Intelectuais de Angola foi essencialmente um movimento de poetas, virados para o seu povo e utilizando nas suas produções uma simbologia que a própria terra exuberantemente oferece. O vermelho revolucionário das papoilas

dos trigais europeus, encontraram-no, os poetas angolanos, nas pétalas de fogo das acácias, e a cantada singeleza das violetas, na humildade dos «beijos-de-mulata» que crescem pelos baldios ao acaso. Os seus poemas trazem o aroma variado e estonteante da selva, o colorido dos poentes africanos, o sabor agridoce dos seus frutos e a musicalidade nostálgica da marimba. Mas vêm também palpitantes de vida, com o cheiro verdadeiro dos homens que trabalham, o gosto salgado das suas lágrimas de desespero e a certeza inabalável na madrugada que sempre raia para anunciar novo dia. Assim, os novos poetas foram cantando, com voz própria, a terra angolana e as suas gentes. António Jacinto escreve então alguns dos mais belos poemas do Movimento, com temas que se inscrevem tanto no mundo urbano como no mundo rural. Deste, dá-nos o escritor, entre outros poemas, a «Carta de um contratado», onde nos transmite a angústia do homem do campo, saudoso, longe da terra e da sua amada, escolhendo o poeta, com precisão, as palavras e as imagens, a forma em suma, que melhor poderia servir o tema: Eu queria escrever-te uma carta amor

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uma carta que dissesse deste anseio de te ver deste receio de te perder deste mais que bem querer que sinto deste mal indefinido que me persegue desta saudade a que vivo todo entregue Eu queria escrever-te uma carta amor uma carta de confidências íntimas uma carta de lembranças de ti de ti dos teus lábios vermelhos como tacula dos teus cabelos negros como dilôa' dos teus olhos doces como macongue dos teus seios duros como maboque do teu andar de onça e dos teus carinhos que maiores não encontrei por aí ... Eu queria escrever-te uma carta amor que recordasse nosSOS dias na capôpa nossas noites perdidas no capim que recordasse a sombra que nos caía dos jambos o luar que se coava das palmeiras sem fim que recordasse a loucura da nossa paixão e a amargura da nossa separação ... Eu queria escrever-te uma carta amor que a não lesses sem suspirar que a escondesses de papai Bombo que a sonegasses a mamãe Kieza que a relesses sem a frieza do esquecimento uma carta que em todo o Kilombo outra a ela não tivesse merecimento ... Eu queria escrever-te uma carta amor uma carta que ta levasse o vento que passa uma carta que os cajus e cafeeiros que as hienas e paIancas que os jacarés e bagres pudessem entender para que se o vento a perdesse no caminho os bichos e plantas compadecidos de nosso pungente sofrer de canto em canto de lamento em lamento de farfalhar em farfalhar te levassem puras e quentes as palavras ardentes as palavras magoadas da minha carta que eu queria escrever-te amor. .. Eu queria escrever-te uma carta ... Mas ah meu amor, eu não sei compreender por que é, por que é, por que é, meu bem

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que tu não sabes ler e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também! A poesia tipicamente suburbana aparece-nos também, magistralmente, através de outros poetas. Poemas de Viriato da Cruz, como «Sô Santo», já aqui referenciado, «Serão de menino», «Makezu» e muitos outros que os antologiadores da poesia angolana se sentem sempre na obrigação de seleccionar popularizam-se facilmente, como esse «Namoro»: Mandei-lhe· uma carta em papel perfumado e com letra bonita eu disse ela tinha um sorrir luminoso tão quente e gaiato Como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas Espalhando diamantes na fímbria do mar E dando calor ao sumo das mangas. Sua pele macia - era sumaúma ... Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosa s sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo o tão rijo e tão doce - como o maboque ... Seus seÍos, laranjas - laranjas do Loge seus dentes ... - marfim ... Mandei-lhe essa carta e ela disse que não. Mandei-lhe um cartão que o amigo Maninho tipografou: «Por ti sofre gente o meu coração» Num canto - SIM, noutro canto - NÃO E ela o canto do NÃO dobrou. Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete pedinho rogando de joelhos no chão pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia, me desse a ventura do seu namoro ... E ela disse que não. Levei à avó Chica, quimbanda de fama a areia da marca que o seu pé deixou para que fizesse um feitiço forte e segur o que nela nascesse um amor como o meu ... E o feitiço falhou. Esperei-a de tarde, à porta da fábrica, ofertei-lhe um colar e um anel e um broche, paguei-lhe doces na calçada da Missão, ficámos num banco do largo da Estátua, afaguei-lhe as mãos ... falei-lhe de amor. .. e ela disse que não. Andei barbado, sujo e descalço, como um mona-ngamba. Procuraram por mim « _ Não vi ... (ai, não viu ... ?) não viu Benjamim?» E perdido me deram no morro da Samba. Para me distrair

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levaram-me ao baile do sô Januário mas ela lá estava num canto a rir

contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário. Tocaram uma rumba - dancei com ela e num passo maluco voámos na sala qual uma estrela riscando o céu! E a malta gritou: «Aí, Benjamim!» Olhei-a nos olhos - sorriu para mim pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim. Outro poeta, Mário António, em «Linha Quatro» aborda um dos temas que sempre lhe foi dos mais gratos ao longo da sua vida e nos aparece amiúde na sua já volumosa e importante obra literária: o amor. Quatro era o número do autocarro que servia uma das zonas da periferia de Luanda - Kinaxixe, Bairro Operário, Sambizanga, Tanque d'Água - ocupada por gente humilde que todos os dias descia à cidade, a caminho dos seus modestos empregos: No largo da Mutamba às seis e meia Carros para cima carros para baixo Gente descendo gente subindo Esperarei. De olhar perdido naquela esquina Onde ao cair da noite a manhã nasce Quando tu surges Esperarei. Irei p'rà bicha da linha quatro Atrás de ti. (Nem o teu nome!) Atrás de ti sem te falar Só a querer-te. (Gente operária na nossa frente Rosto cansado. Gente operária Braços caídos, sonhos nos olhos. Na linha quatro eles se encontram Zito e Domingas. Todos os dias Na linha quatro eles se encontram. No machimbombo da linha quatro Se sentam juntos. As mãos nas mãos Transmitem sonhos que se não dizem.) No machimbombo da linha quatro Conto meus sonhos sem te falar. Guardo palavras teço silêncios Que mais nos unem. Guardo fracassos que não conheces Zito também. Olhos de cinza Como Domingas O que me ofereces!

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No machimbombo da linha quatr o Sigo a teu lado : Também na vida! Também na vida subo a calçada Também na vida! Não levo sonhos. A vida é esta! Não levo sonhos. Tu a meu lado Sigo contigo: pra quê falar-te? pra quê sonhar? No machimbombo da linha quatr o Não vamos sós. Tu e Domingas. Gente que sofre gente que vive Não vamos sós. Não vamos sós. Nem eu nem Zito. Também na vida. Gente que vive Sonhos calados sonhos contidos

Não vamos sós. Também na vida! Também na vida! Na obra dos escritores do Movimento encontram-se com frequência, as evocações da infância associadas a um sentimento de profundo amor à sua terra natal. As suas criações poéticas aparecem-nos carregadas de um saudosismo pelo paraíso perdido da infância e pela sua antiga cidade, que fora o cenário desses tempos. Poetas jovens todos eles, acabados de sair duma fase da vida que se desenrolava sem os choques nem os problemas que o estado adulto lhes revelava, recorriam amiudadas vezes à evocação dos anos passados, onde, apesar da dolorosa certeza do fim dos doces e fáceis tempos da infância, encontravam um lenitivo para as agruras que começavam a enfrentar. De Mário António recolhemos uma dessas evocações, a «Rua da Maianga»:

Rua da Maianga

Que tem o nome De um qualquer missionári o Mas para nós somente A Rua da Maianga. Rua da Maianga às duas horas da tarde Lembranças das minhas idas para a Escol E depois para o Liceu Rua da Maianga dos meus surdos rancores Que sentiste os meus passos alterados E os ardores da minha mocidade E a ânsia dos meus choros desabalados! R ua da Maianga às seis e meia Apito do comboio estremecendo os muros Rua antiga da pedra incerta Que feriu meus pezitos de criança

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E onde depois o alcatrão veio lembrar Velocidade aos carros E foi luto na minha infância passada! (Nené foi levado prHospital Meus olhos encontraram Nené morto Meu companheiro de infância de olhos vivos Seu corpo morto numa pedra fria!) Rua da Maianga a qualquer hora do dia As mesmas caras nos muros (As caras da minha infância Nos muros inapagados!) As moças nas janelas fingindo costurar A velha gorda faladeira E a pequena moeda na mão do menino E a goiaba chamando dos cestos À porta das casas! (Tão parecido comigo esse menino!) Rua da Maianga a qualquer hora O liso do alcatrão e as suas casas As eternas moças de muro Rua da Maianga me lembrando Meu passada inutilmente belo Inutilmente cheio de saudade! Por outro lado, a sua cidade, a cidade que eles adoravam, a cidade que fora o tempo desses anos descuidados, que fora o campo das suas brincadeiras, o cenário de todos os seus sonhos e a testemunha dos seus primeiros amores, começara-se rapidamente a transfigurar, tomando uma fisionomia diferente, criada pelo seu desenvolvimento e pelos costumes que lhe impunham os novos habitantes que a invadiam. O desaparecimento da antiga cidade, onde a sua população fora durante largos anos como que uma grande família, acompanhado da destruição dos lugares sagrados da infância passada, é outro tema que nos aparece com grande frequência. Hoje / A cidade está cheia de forasteiros / De desconhecidos por todas as esquinas / De atitudes vincadamente aburguesadas, lamentava-se Tomás Jorge no seu poema evocativo «Infância», que fechava de forma magnífica (...)

Hoje A cidade está cheia de palácios De novos-ricos, de meninos-de-bem Passando vertiginosamente nos seus carros estupendos Denunciando luxo. No areal a pobreza mais se multiplica É um lamento surdo e calado, quase bíblico. Todas as cidades que crescem desumanizam-se. Basta. Hoje não quero mais ter saudades de nada. Infância é ainda esta minha vida de menino grande Procurando cigarras na floração das acácias Que restam nos caminhos de ontem.

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Cumpre, finalmente, salientar uma das características fundamentais da poesia do Movimento: poesia social, onde o nacionalismo angolano transparece a cada passo, apesar da forma ambígua utilizada algumas vezes e como exigiam as apertadas limitações da época. Humberto da Silvan proclamava: Cantar África não é enaltecer, lascivamente, as belezas das negras de seios túmidos, perdidas pelos musseques e pelas libatas, não é cantar coqueiros esguios, luares de prata, baladas românticas cheias de ais! Como se África fosse, apenas, um manancial de sensualismo e os seus habitantes não sofressem algo de mais alto que febres bacanais misturadas de marufo e exotismo! E o poeta prosseguia, mais adiante: Ó meus olhos de poeta, desesperado, cerrai-vos, cerrai-vos, - e chorai; Ó minha voz de poeta soldado, erguei-vos, erguei-vos, - e cantai! O canto de Agostinho Neto distingue-se, logo de início, dos restantes camaradas do Movimento. Ele ultrapassa as fronteiras de Angola, é um canto dirigido a todos os seus irmãos de raça, da África e das Américas, aos seus irmãos que, espalhados pelo mundo, sofrem e lutam pela sua dignificação: Eu vos sinto / negros de todo o mundo / eu vivo a vossa dor / meus irmãos. Mas poemas há, como «Mussunda amigo», que são bem angolanos, recheados de símbolos que pertencem ao seu país - uma frase típica, um elemento geográfico, um facto histórico: Para aqui estou eu Mussunda amigo Para aqui estou eu. Contigo. Com a firme vitória da tua alegria e da tua consciência. _ ó ió Kalunga ua mu bangele! ó ió Kalunga ua mu bangele-Ie-Ielé ... Lembras-te? Da tristeza daqueles tempos em que íamos comprar mangas e lastimar o destino das mulheres da Funda dos nossos cantos de lamento, dos nossos desesperos e das nuvens dos nossos olhos Lembras-te? Para aqui estou eu Mussunda amigo. A vida, a ti a devo à mesma dedicação, ao mesmo amor com que me salvaste do abraço da gibóia à tua força que transforma os destinos dos homens. A ti amigo Mussunda, a ti devo a vida.

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E escrevo versos que tu não entendes! Compreendes a minha angústia? Para aqui estou eu Mussunda amigo escrevendo versos que tu não entendes. Não era isto o que nós queríamos, bem sei mas no espírito e na inteligência nós somos. Nós somos Mussunda amigo Nós somos! Inseparáveis caminhando ainda para o nosso sonho. Os corações batem ritmos de noites fogueirentas os pés dançam sobre palcos de místicas tropicais os sons não se apagam dos ouvidos _ ó iá Kalunga ua mu bangele ... Nós somos! Dentro da mesma linha de poesia social se incluem muitas outras criações, como, por exemplo, «Mamã negra», de Viriato da Cruz, «Poema da alienação», de António Jacinto,. ou «Muimbu ua Sabalu», de Mário de Andrade, poema que é a primeira tentativa de utilização integral do quimbundo na literatura angolana: Mon' etu ua kasule A mu tumisa ku S. Tomé Kexiriê ni madukumentu

Aiué! (...) Mama, muene uondó vutuka Ah! Ngongo ietu iondó biluka Aiué A mu tumisa ku S. Tomé Em 1951, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola realizava, de acordo com o seu programa cultural, o primeiro (e último) concurso literário. Para júri convidaram-se prestigiosas figuras portuguesas das letras e da democracia, os escritores João de Barros, Augusto Casimiro e Julião Quintinha, residentes em Lisboa, e a que se juntou Lília da Fonseca. Num sarau cultural proclamaram-se os vencedores do concurso e recitaram-se poemas premiados. Do poeta Maurício Gomes, porém, não foi permitida, pelas autoridades de então, a leitura do seu poema «Bandeira»: Somos um povo à parte Desprezado Incompreendido, Um povo que lutou e foi vencido. (...) A seguir, A vermelho-vivo, A vermelho-sangue, Com tinta feita de negros corpos desfeitos Em lutas que vamos travar, A vermelho-vivo Cor do nosso sangue amassado E misturado com lágrimas de sangue, Lágrimas por escravos choradas, Escreve, Negro, firme e confiante, Com letras todas maiúsculas,

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A palavra suprema (Ideal eterno, Nobre ideal Da Humanidade atribulada, Que por ela vem lutando E por ela vem sofrendo) Escreve, Negro, Escreve, irmão. A palavra suprema: LIBERDADE! À volta dessas palavras-alavancas Semeia estrelas às mãos-cheias, Todas rútilas, Todas de primeira grandeza, Estrelas belas da nossa Esperança Estrelas lindas da nossa Fé Estrelas que serão certeza na nossa BANDEIRA! Como seria de esperar, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola acabou por ser alvo da repressão policial. A Mensagem terminou a sua publicação ao fim do segundo número e o Movimento teve de se desmembrar. A maior parte desses jovens acabaria por se reunir, mais tarde, não à volta de um movimento cultural, mas já sob a bandeira de um movimento político, o MPLA. Movimento de poetas, contistas e ensaístas, foi essencialmente através da poesia que aquele grupo de jovens, no dealbar da segunda metade do século vinte, se impôs e logrou virar uma página da história da literatura angolana. Pouco tempo de actividade lhes foi permitido. Publicaram-se apenas dois números da revista, realizou-se um concurso literário e publicou-se uma pequena antologia. Mas restou um punhado de poemas que circularam durante anos, clandestinamente, pelas mãos dos jovens angolanos, que os copiavam e declamavam nas suas reuniões privadas. Apesar do fim rápido e até da pequena expansão da Mensagem, ela permaneceu, contudo, como um verdadeiro símbolo. O espírito que a animava, diz-nos o poeta Mário António, se não teve uma realização à altura, nem por isso deixou de ser - e isso é que é importante - o elemento de catálise de um despertar lite-rário que já hoje tem uma obra a defini-Ia. Poetas, contistas, ensaístas da Mensagem deram, ao longo dos anos decorridos, um corpo ao sonho que a revista não foi capaz de concretizar. Entretanto, em Dezembro de 1956, o MPLA distribuía em Luanda o seu I Manifesto, no qual se podia ler: (...) o colonialismo português não cairá sem luta. E por isso que o povo angolano só se poderá libertar pela guerra revolucionária. Será apenas vitoriosa com a realização de uma frente unida de todas as forças anti-imperialistas de Angola, que não esteja ligada à cor, à situação social, a credos religiosos e tendências individuais; será vitoriosa graças à formação de um vasto movimento popular de libertação de Angola. A ele começaram de imediato a aderir o proletariado, a burguesia e os intelectuais do país. E seria com o apoio constante destas três componentes que o MPLA levaria de vencida, através dos anos, todos os obstáculos que lhe foram surgindo pela frente. Desmembrada e extinta a Mensagem, com as suas principais figuras engajadas na luta política, aberta ou clandestina, uma nova camada juvenil surge a preencher os lugares deixados vagos, prosseguindo, especialmente na Sociedade Cultural de Angola, na Associação dos Naturais de Angola e na Casa dos Estudantes do Império, a tarefa de consciencialização e unidade nacional através da cultura. Porém, nos sete anos que medeiam a publicação de Mensagem e a reaparição de Cultura, jornal de artes e letras fundado em 1945 mas que, em dada altura, suspendera a publicação, outros escritores, mais velhos, foram isoladamente publicando os seus

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livros: Óscar Ribas, já referenciado anteriormente, que na década de 50 publica o romance Uanga, um livro de contos, Ecos da Minha Terra, e outro de carácter etnográfico, Ilundo, no qual, entre valioso material recolhido sobre ritos e divindades, podemos encontrar alguns excelentes contos tradicionais dos habitantes da região de Luanda. Este autor, no prosseguimento da sua valiosa actividade de recolha dos contos tradicionais, dar-nos-ia, já nos anos de 60, os livros Missosso e Sunguilando. Ernesto Cochat Osório, o segundo escritor a mencionar, finalizado o seu curso superior em Portugal, regressa à sua terra, e publica em 1956 e 1957, respectivamente, o livro de poesias Calema, e o de contos Capim Verde, os quais, porém, contrariamente ao que os títulos sugerem, pouco ou nada representam de tipicamente angolano. Mas alguns anos depois, já em 1960, reatado o encontro com as coisas e gentes de Angola, dá-nos um terceiro livro inspirado na sua cidade, terra de contrastes coloridos, na vegetação, nas casas e nos homens, livro de poesia sugestivamente intitulado Cidade. Em 1966 Cochat Osório publica novo livro, Biografia da Noite, de imediato apreendido pela PIDE. Através das suas páginas, o poeta narra a longa noite da opressão e anuncia o raiar da madrugada que chegaria a 25 de Abril de 1974. Em 1957 a Sociedade Cultural de Angola reinicia, como dissemos, a publicação do seu jornal Cultura, que, na senda da Mensagem, irià revelar novos valores. No seu primeiro número, Cultura afirmava em editorial: Não é apenas de hoje a necessidade de um jornal cultural em Angola. Noutras épocas, outros homens realizaram a mesma tarefa. Porém, há vários anos, em virtude de circunstâncias que não interessa agora referir, não existe em Angola qualquer órgão cultural, specificamente cultural. No entanto, os problemas continuaram a sua marcha inexorável e os homens continuam presentes, portadores, já agora, de novas necessidades, novos anseios e novas coragens. Também maiores em número, consequentemente em qualidade. Mais conscientes, mais aptos e mais responsáveis. Características que se foram afirmando, mercê da agudização de certos problemas cujo processo vem de lá de trás ( ... ). Durante dois anos, que foi o período de vida permitido ao novo jornal, publicaram-se doze números de bom nível cultural, com uma colaboração que ia desde a científica, normalmente a cargo de intelectuais progressistas portugueses residentes em Angola, à literária, esta exclusivamente preenchida peloss escritores locais. Uma nova fornada de poetas, contistas, críticos, etnólogos e ilustradores se revelam nas páginas de Cultura. Poetas como Arnaldo Santos, Costa Andrade, João Abel, Manuel Lima, Henrique Guerra, Caobelo, Ernesto Lara Filha' contistas como Luandino Vieira, Mário Guerra, Hélder Neto, um ensaísta como Adolfo Maria, um etnólogo como Henrique Abranches, a maior parte deles espraiando-se pela poesia, conto ensaio, com grande facilidade. Mas enquanto em Cultura a poesia e o conto continuavam a ser a forma literária dominante através dos seus mais assíduos colaboradores, pela pena de Ernesto Lara Filho, surge pela primeira vez a «crónica angolana», repassada de poesia e saudosismo como é timbre da geração literária angolana em que se enquadra. Ernesto Lara Filho daria também à poesia o seu valioso contributo com os livros Picada de Marimbondo, O Canto de Martrindinde e Seripipi na Gaiola, de cunho vincadamente angolano. Durante o ano de 1959, promovido pela Sociedade Cultural de Angola, realizava-se em Luanda o primeiro colóquio sobre a poesia angolana. Abriu-o uma palestra de Mário António, que apresentou então a primeira tentativa de classificação da poesia feita em Angola: «Poesia tradicional dos povos de Angola», «Poesia de Angola», «Poesia angolana», «Poesia negra de expressão portuguesa» e «Poesia». A eles se referiu o poeta Mário António na forma que, abreviadamente, apresentamos: A «Poesia tradicional dos povos de Angola» uma realidade riquíssima e viva, tão rica e viva que se passa bem do desinteresse de poetas e da de poetas e da pouca consideração de críticos. Além do mais, porque é uma poesia socialmente enquadrqda e servindo fins sociais. Ela está presente em quase todas as

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manifestações da sabedoria popular, quer associada ao canto, quer subjacente às diferentes formas de literatura oral: canto, provérbio, adivinha. «Poesia de Angola», termo que aceito para enquadrar as maniifestações poéticas de indivíduos europeus ou europeizados ql1e, elegendo Angola para motivo principal das suas composições, não conseguiram contudo passar de aspectos exteriores, paisagísticos ou de preconceito psicológico. «Poesia angolana», produto cultural do homem angolano, tal qual ele é - pelo menos o que intelectualizado (e só este até agora tem sido capaz de expressão literária) -, que através da sua formação europeia, não perdeu elementos culturais negros nem a sua consciência de homem COm determinada posição. «Poesia negra de expressão portuguesa», que é, mais do que uma revelação, afirmação de uma posição em face de um problema. A sua posição em relação à vida, releva do puro aspecto ideológico. E, finalmente, «Poesia», poesia só, sem adjetivação. Se o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola se pode considerar um movimento essencialmente de poetas (Mário António, autor de 100 Poemas, Era Tempo de Poesia, Rosto de Europa e Coração Transplantado, só mais tarde se afirmaria igualmente como ficcionista de mérito em Crónica da Cidade Es-tranha, Farra no Fim de Semana e Mahêzu), da Cultura, além de poetas, sairia já um lote de prosadores, entre os quais se destacariam Luandino Vieira, Arnaldo Santos e Benúdia (Mário Guerra) .. Mas qualquer destes movimentos literários, bastante isolados do grande público, não conseguiu, na altura em que se manifestou, ultrapassar o meio intelectual que os criava ou apoiava, e ganhar a projecção que mais tarde acabariam inevitavelmente por atingir. E compreende-se. Sem uma editora que lhes publicasse os livros e ignorados pelos grandes meios de informação, os jovens escritores angolanos só lograriam afirmar-se quando os seus trabalhos reunidos em colectâneas ou livros individuais, começaram, a partir de 1958, a circular com a chancela prestigiada da Casa dos Estudantes do Império, que, dessa forma e no cumprimento dum plano de divulgação dos valores culturais dos seus povos, dava início à Colecção Autores Ultramarinos. Simultaneamente, com fins mais amplos, destinada à divulgação de autores de língua portuguesa, surgia no Lubango a editora Imbondeiro, que lança uma colecção de livros de poesia e ficção. Na esteira deste movimento editorial, também na planáltica cidade do Huambo se dava início à Colecção Bailundo, com um livro do malogrado poeta Alexandre Dáskalos, precocemente surpreendido pela morte a meio duma carreira científica que começava a dar os seus primeiros frutos.

ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. 4 ed. Luanda: UEA, s/d (p. 81-105)

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RETRATO DO COLONIZADO PRECEDIDO PELO RETRATO DO COL ONIZADOR

PARTE I – RETRATO DO COLONIZADOR

1. Existe o Colonial?

Sentido da viagem colonial

Muitos ainda imaginam o colonizador como um homem de grande estatura, bronzeado pelo sol,

calçado com meias-botas, apoiado em uma pá – pois não deixa de por mãos à obra, fixando seu

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olhar ao longe, no horizonte de suas terras; nos intervalos de sua luta contra a natureza, dedica-se

aos homens, cuida dos doentes e diffunde a cultura, um nobre aventureiro, enfim um pioneiro.

Não sei se essa imagem convencional jamais correspondeu a alguma realizada ou se às gravuras

do dinheiro colonial se limita. Os motivos econômicos do empreendimento colonial estão,

atualmente, esclarecidos por todos os historiadores da colonização; ninguém acredtia mais na

missão cultural e moral, mesmo original, do colonizador. Em nossos dias, ao menos, a partida

para a colônia não é a escolha de uma luta incerta, procurada precisamente por seus perigos, não

é a tentação da aventura, mas a da facilidade.

É suficiente, aliás, interrogar o europeu das colônias: que razões o levaram a expatriar-se e,

principalmente, a persistir em seu exílio? Acontece que ele fala também em aventura, em

pitoresco e em expatriação. Mas, por que não os procurou na Arábia, ou simplesmente na Europa

Central, onde não se fala sua própria língua, onde não encontra um grupo importante de

compatriotas seus, uma administração que o serve, um exército que o protege? A aventura

conportaria mais imprevisto; essa expatriação, no entanto, mais certa e de melhor qualidade, teria

sido de duvidoso proveito: a expatriação colonial, se é que há expatriação, deve ser antes de mais

nada, bastante lucrativa. Espontaneamente, melhor que os técnicos da linguagem, nosso viajante

nos proporá a melhro definição da colônia: nela ganha-se mais, nela gasta-se menos. Vai-se para

a colônia porque nela as situações são garantidas, altos os ordenados, as carreiras mais rápidas e

os negócios mais rendosos. Ao jovem diplomata oferece-se um posto, ao funcionário uma

promoção, ao comerciante reduções substanciais de impostos, ao industrial matéra-prima e mão-

de-obra a preços irrisórios.

Mas seja: suponhamos que exista esse ingênuo, que desembarque por acaso, como viria a

Toulouse ou a comar.

Precisaria de muito tempo para descobrir as vantagens de sua nova situação? Pelo fato de ser

percebido mais tarde, o sentido econômico da viagem colonial nem por isso deixa de impor-se, e

rapidamente. O europeu das colônias pode também, é claro, amar essa nova região, apreciar o

pitoresco de seus costumes. Mas, mesmo repelido pelo seu clima, mal à vontade no meio de suas

multidões estranhamente vestidas, saudoso do seu país natal, o problema doravante é o seguinte:

deve aceitar esses aborrecimentos e esse mal-estar em troca de vantagens da colônia?

Bem cedo não esconde mais: é freqüente ouvi-lo sonhar em voz alta: alguns anos ainda e

comprará uma casa na metrópole... uma espécie de purgatório em suma, um purgatório

remunerado. Doravante, mesmo farto, enjoado de exotismos, algumas vezes doente, ele se

prende: a armadilha funcionará até a aposentadoria ou mesmo até a morte. Como retornar à

metrópole, onde lhe seria necessário reduzir seu padrão de vida pela metade? Retornar à lentidão

viscosa de sua carreira metropolitana?

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Quando, nestes últimos anos, com a aceleração da história, a vida se tornnou difícil,

frequentemente perigosa para os colonizadores, foi esse cálculo tão simples, porém irrespondível,

que os reteve. Mesmo aqueles que na colônia são chamados aves de arribação não manifestaram

excessiva pressa em partir. Alguns, considerando a volta, puseram-se a temer, de forma

inesperada, uma nova expatriação: a de se reencontrarem em seu país de origem. Podemos

acreditar em parte; deixaram seu país há muito tempo, e nele não têm mais amizades vivas, seus

filhos nasceram na colônia e na colônia enterraram seus mortos. Mas, exageram sua dilaceração;

se organizaram seus hábitos quotidianos na cidade colonial e, para ela importaram e a ela

impuseram os costumes da metrópole, onde passam regularmente suas férias, de onde recolhem

suas inspirações administrativas, políticas e culturais, é para a metrópole que seus olhos

permanecem constantemente voltados.

Sua expatriação, na vedade, é de base econômica: a do novo-rico que se arrisca a ficar pobre.

Resistirão, pois, o maior tempo possível, porque quanto mais passa o tempo mais duram as

vantagens, que bem merecem algumas inquietações e que sempre será cedo demais para perder.

Mas, se um dia o econômico é atingido, se as “situações”, como se diz, correm perigos reais, o

colonizador sente-se então ameaçado e pensa, seriamente, dessa vez, em regressar à metrópole.

No plano coletivo, a questão é ainda mais clara. Os empreendimentos coloniais nunca tiveram

outro sentido confessado. Quando das negociações franco-tunisianas, alguns ingênuos se

admiraram da relativa boa vontade do governo francês, particularmente no domínio cultural,

depois da aquiescência, aliás rápida, dos chefes da colônia. É que as cabeças pensantes da

burguesia e da colônia tinham compreendido que o essencial da colonização não era nem o

prestigio da bandeira, nem a expansão cultural, nem mesmo o controle administrativo e a salvação

de um corpo de funcionários. Admitiram que se pudesse transgir em tudo, desde que o principal,

quer dizer, as vantagens econômicas, fosse salvo. E, se o Sr, Mendes-

France pôde efetuar sua famosa viagem-relâmpago, foi com sua benção e sob a proteção de um

deles. Foi esse exatamente seu programa e o conteúdo mais importante das convenções.

(p. 21-24)

PARTE II – RETRATO DO COLONIZADO

2. Situações do colonizado

...E A SITUAÇÃO DO ESCRITOR

Espantamo-nos de que o colonizado não tenha literatura viva na sua própria língua. Como

recorreria a ela, se a desdenha? Como, se é afastado de sua música, de suas artes plásticas, de

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toda sua cultura tradicional Sua ambigüidade lingüística é o símbolo, e uma das maiores causas

de sua ambigüidade cultural. E a situação do escritor colonizado é disso uma perfeita ilustração.

As condições materiais da existência colonizada bastariam, sem dúvida, para explicar sua

raridade. A miséria excessiva do maior número reduz ao extremo as oportunidades estatísticas de

ver nascer e crescer um escritor. Mas a história nos mostra que basta uma classe privilegiada

para prover de artistas um povo interior. De fato, o papel do escritor colonizado é por demais difícil

de sustentar: encarna todas as ambigüidades, todas as impossibilidades do colonizado, levadas a

um grau extremo.

Suponhamos que tenha aprendido a manejar sua língua, até mesmo a recriá-la em obras escritas,

que tenha vencido sua profunda recusa a servir-se dela; para quem escreveria, para que público?

Se se obstina em escrever na sua língua, condena-se a falar para um auditório de surdos. O povo

é inculto e não lê língua alguma. Os burgueses e os letrados só entendem a do colonizador. Uma

única saída lhe resta, que se apresenta como natural: escrever na língua do colonizador. Como se

não fosse senão mudar de impasse!

É preciso, sem dúvida, que supere seu handicap. Se o bilingüe colonial tem a vantagem de

conhecer duas línguas, nenhuma domina totalmente. Isso explica igualmente a lentidão com que

nascem as literaturas colonizadas. É preciso malbaratar muita matéria humana, fazer inúmeras

tentativas para ter a oportunidade de um acaso feliz. Após o que, ressurge a ambigüidade do

escritor colonizado, em forma nova porém mais grave.

Curioso destino o de escrever para um povo que não o seu! Mais curioso ainda o de escrever para

os vencedores de seu povo! Surpreende a aspereza dos primeiros escritores colonizados.

Esquecem-se de que se dirigem ao mesmo público cuja língua tomam emprestada. Não se trata,

porém, nem de inconsciência, nem de ingratidão, nem de insolência. A esse público,

precisamente, já que ousam falar, que irão dizer a não ser seu mal-estar e revolta? Esperavam

palavras de paz daquele que sofre de uma longa discórdia? Reconhecimento por empréstimo a

juros tão altos?

Por um empréstimo que, aliás, nunca será senão um empréstimo. A rigor, substituímos aqui a

descrição pela previsão. Mas é tão legível, tão evidente! A emergência de uma literatura de

colonizados, a tomada de consciência de escritores norte-africanos, por exemplo, não é um

fenômeno isolado. Participa da tomada de consciência de si mesmo de todo um grupo humano. O

fruto não é um acidente ou um milagre da planta, mas o sinal de sua maturidade. Quando muito o

surgimento do artista colonizado precede um pouco a tomada de consciência coletiva da qual

participa, que acelera com sua participação. Ora, a reivindicação mais urgente de um grupo que

se recupera é certamente a libertação e a restauração de sua língua.

Se me surpreendo, em verdade, é de que possam surpreender-se. Somente essa língua permitira

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ao colonizado retomar seu tempo interrompido, reencontrar sua continuidade perdia e a de sua

história. A língua francesa é apenas um instrumento, preciso, eficaz? Ou esse cofre maravilhoso,

onde de acumulam as descobertas e as conquistas, dos escritores e dos moralistas, dos filósofos

e dos sábios, dos heróis e dos aventureiros, onde se transformam em uma só legenda os tesouros

do espírito e a alma dos franceses?

O escritor colonizado, que chegou penosamente à utilização das línguas européias – a dos

colonizadores, não o esqueçamos – não pode deixar de servir-se delas para reclamar em favor da

sua. Não se trata nem se incoerência nem de reivindicação pura ou cego ressentimento, mas de

uma necessidade. Não o fizesse e todo o seu povo acabaria por fazê-lo. Trata-se uma dinâmica

objetiva que ele alimenta, certamente, mas que o nutre e que continuaria sem ele. Fazendo-o, se

contribui para liquidar seu drama de homem, confirma, acentua seu drama de escritor. Para

conciliar seu destino consigo mesmo poderia tentar escrever na sua língua materna. Mas não se

refaz tal aprendizagem em uma vida humana. O escritor colonizado está condenado a viver suas

rupturas até a morte. O problema só pode resolver-se de duas maneiras: pelo esgotamento

natural da literatura colonizada; as próximas gerações nascidas na liberdade escreverão

espontaneamente na sua língua recuperada. Sem ir tão longe, outra possibilidade pode tentar o

escritor: decidir-se a pertencer totalmente à literatura metropolitana. Deixemos de lado os

problemas éticos suscitados por tal atitude. É então o suicídio da literatura colonizada. Nas duas

perspectivas, só o prazo diferindo, a literatura colonizada de língua européia parece condenada a

morrer jovem. (p. 98-100)

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Trad. R. Corbvisier e M. Pinto Coleho. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

PREFÁCIO a Os condenados da terra, de Franz Fanon

Jean-Paul Sartre

Não faz muito tempo a terra tinha dois bilhões de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros pediam-no emprestado. Entre aqueles e estes, régulos vendidos, feudatários e uma falsa burguesia pré-fabricada serviam de intermediários. Às colônias a verdade se mostrava

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nua; as “metrópoles” queriam-na vestida: era preciso que o indígena as amasse. Como às mães, por assim dizer. A elite européia tentou engendrar um indigenato de elite; selecionava adolescentes, gravava-lhes na testa, com fero em brasa, os princípios da cultura ocidental, metia-lhes na boca mordaças sonoras, expressões bombásticas e pastosas que grudavam nos dentes; depois de breve estada na metrópole, recambiava-os, adulterados. Essas contrafacções vivas não tinham mais nada a dizer a seus irmãos; faziam eco; de Paris, de Londres, de Amsterdã lançávamos palavras: “Partenon! Fraternidade!”, e, num ponto qualquer da África, da Ásia, lábios se abriam: “... tenon!...nidade!” Era a idade de outro. Isto acabou. As bocas passaram a abrir-se sozinhas; as vozes amarelas e negras falavam ainda do nosso humanismo, mas para censurar a nossa desumanidade. Escutávamos sem desagrado essas corteses manifestações de amargura. De início houve um espanto orgulhoso: Quê! Eles falam por eles mesmos! Vejam só que fizemos deles! Não duvidávamos que aceitassem o nosso ideal porquanto nos acusavam de não sermos fiéis a ele; por esta vez a Europa acreditou em sua missão: havia helenizado os asiáticos e criado esta espécie nova: os negros greco-latinos. Ajuntávamos, só para nós, astutos: deixemos que se esgoelem, isso os alivia; cão que ladra não morde. Surgiu uma outra geração que alterou o problema. Seus escritores, seus poetas, com incrível paciência trataram de nos explicar que nossos valores não se ajustavam bem à verdade de sua vida, que não lhes era possível rejeita-los ou assimila-los inteiramente. Em suma, isso queria dizer: de nós fizestes monstros, vosso humanismo nos supõe universais e vossas práticas racistas nos particularizam. E nós os escutávamos despreocupados; os administradores coloniais não são pagos para ler Hegel, aliás lêem-no pouco, mas não precisam desse filósofo para saber que as consciências infelizes se emaranham nas próprias contradições. Nenhuma eficácia. Por conseguinte, perpetuemos-lhes a infelicidade, que dela não resultará coisa alguma. Se houvesse, diziam-nos os peritos, uma sombra de reivindicação em seus gemidos, outra não seria que a de integração. Não se trata de outorgá-la, é claro, isso arruinaria o sistema, que repousa, como se sabe, na superexploração. Mas bastaria acenar-lhes com essa patranha: viriam correndo. Quanto à possibilidade de revolta, estávamos tranqüilos. Que indígena consciente iriam massacrar os filhos da Europa com o fim único de se tornar europeu como eles? Numa palavra, estimulávamos essas melancolias e não achamos mau, uma vez, conceder o prêmio Goncourt a um negro. Isso ocorreu antes de 39. 1961. Escutai: “Não percamos tempo com litanias estéreis ou mimetismos nauseabundos. Deixemos essa Europa que não cessa de falar do homem enquanto o massacra por toda a parte onde o encontra, em todos as esquinas de suas próprias ruas, em todas as esquinas do mundo. Há séculos... que em nome de uma suposta ´aventura espiritual´ vem asfixiando a quase totalidade da humanidade”. Este tom é novo. Quem ousa adotá-lo? Um africano, homem do Terceiro Mundo, antigo colonizado. Acrescenta ele: “A Europa adquiriu uma velocidade tão louca, tão desordenada... que a arrasta para o abismo, do qual é melhor que nos afastemos.” Em outras palavras: ela está atolada. Uma verdade que não é boa de dizer mas da qual – não é mesmo, meus caros co-continentais? – estamos todos intimamente convencidos. Cumpre fazer uma ressalva, porém. Quando um francês, por exemplo, diz a outros franceses: “Estamos atolados!” – o que, pelo que sei, se verifica quase todos os dias desde 1930 – trata-se de um discurso passional, ardente de cólera e amor, em que o orador se compromete com todos os seus compatriotas. E depois geralmente acrescenta: “A menos que...” Sabe-se o que isto significa: é impossível enganar-se a este respeito: se suas recomendações não forem seguidas à risca, então e somente então o país se desintegrará. Enfim, é uma ameaça seguida de um conselho, e essas conversas chocam tanto menos quanto jorram da intersubjetividade nacional. Quando Fanon, ao contrário, diz que a Europa cava a sua própria ruína, longe de soltar um grito de alarma, apresenta um diagnóstico. Este médico não pretende nem condena-la sem apelação – há tais milagres – nem lhe fornecer os meios de

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cura; constata que ela agoniza. De foram baseando-se nos sintomas que pôde recolher. Quanto a tratá-la, não. Ele tem outras preocupações na cabeça; pouco se lhe dá que ela arrebente ou sobreviva. Por este motivo, seu livro é escandaloso. E se murmurais, entre divertidos e embaraçados: “Que é que ele nos propõe?”, deixais de perceber a verdadeira natureza do escândalo, uma vez que Fanon não vos “propõe” absolutamente nada; sua obra – tão abrasadora para outros – para vós permanece gelada; amiúde fala de vós, mas nunca a vós. Acabaram-se os Goncourt negros e os Nobel amarelos; não voltará mais o tempo dos laureados colonizados. Um ex-indígena “de língua francesa” sujeita esta língua a exigências novas, serve-se dela para dirigir-se apenas aos colonizados: “Indígenas de todos os países subdesenvolvidos, uni-vos!”. Que rebaixamento; para os pais, éramos os únicos interlocutores; os filhos nem nos consideram ais como interlocutores admissíveis: somos os objetos do discurso. Evidentemente Fanon menciona de passagem nossos crimes famosos, Sétif, Hanói, Madagascar, mas não perde o seu temo a condená-los; utiliza-os. Se desmonta as táticas do colonialismo , o complexo jogo das relações que unem e opõem os colonos aos “metropolitanos”, faz isso para seus irmãos; seu objetivo é ensiná-los a desmantelar-nos. Numa palavra, o Terceiro Mundo se descobre e se exprime por meio desta voz. Sabemos que ele não é homogêneo e que nele se encontram ainda povos subjugados, outros que adquiriram uma falsa independência, outros que se batem para conquistar a soberania, outros enfim que obtiveram a liberdade plena mas vivem sob a constante ameaça de uma agressão imperialista. Essas diferenças nasceram da história colonial, isto é, da opressão. Aqui a Metrópole contentou-se em pagar alguns feudatários; ali, dividindo para reinar, fabricou em bloco uma burguesia de colonizados. Mais além matou dois coelhos de uma só cajadada: a colônia é ao mesmo tempo de exploração e de povoamento. Assim a Europa multiplicou as divisões, as oposições, forjou classes e por vezes racismos, tentou por todos os meios provocar e incrementar a estratificação das sociedades colonizadas. Fanon não dissimula nada: para lutar contra nós, a antiga colônia deve lutar contra ela mesma. Ou melhor, as duas formas de luta são uma só. No fogo do combate, todas as barreiras interiores devem derreter-se. A impotente burguesia de negocistas e compradores, o proletariado urbano, sempre privilegiado, o lumpenproletariat das favelas, todos têm de se alinhar nas posições das massas rurais, verdadeiro reservatório do exército nacional e revolucionário; nas regiões cujo desenvolvimento foi deliberadamente sustado pelo colonialismo, o campesinato, quando se revolta, aparece logo como a classe radical: conhece a opressão nua, suporta-a muito mais que os trabalhadores da s cidades e, para que não morra de fome, precisa nada mesmos que de um estouro de todas as estruturas. Triunfando, a Revolução nacional será socialista; detido seu ímpeto, a burguesia colonizada toma o poder, e o novo Estado, a despeito de uma soberania formal, continua nas mãos dos imperialistas. O exemplo de Katanga é bastante ilustrativo28. Assim, a unidade do Terceiro Mundo não está concluída: é um empreendimento em curso, que passa pela união, em cada país, antes de também depois da independência, de todos os colonizados, sob o comando da classe camponesa. Eis o q eu Fanon explica a seus irmãos da África, da Ásia, da América latina: realizaremos todos em conjunto e por toda a parte o socialismo revolucionário ou seremos derrotados um a um por nossos antigos tiranos. Não dissimula nada, nem as fraquezas, nem as discórdias, nem as mistificações. Aqui o movimento começa mal; ali, após êxitos, fulminantes, perde velocidade; noutra parte está parado: para que se reinicie, é necessário que os camponeses lancem sua burguesia ao mar. O leitor é severamente acautelado contra as alienações mais perigosas: o líder, o culto da personalidade, a cultura ocidental e, também o retorno do longínquo passado da cultura

28 Katanga é a província mais rica do Congo, devido aos seus depósitos de cobre, cobalto e urânio. Quando da independência do país, em junho de 1960, Katanga tentou ser um Estado autônomo. As tropas do governo moveram-se contra ela em agosto de 1960, mas foram barradas no estado de minas de diamante de Kasai e massacraram centenas de pessoas das tribos Baluba. Paralelamente, Joseph Mobutu deu um golpe militar em setembro de 1960, depondo o Primeiro Ministro Patrice Lumumba (1925-1961), que foi morto em circunstâncias misteriosas em fevereiro...

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africana; a verdadeira cultura é a Revolução; isso que fizer que ela se forja a quente. Fanon fala em voz alta; nós, os europeus, podemos ouvi-lo: a prova é que temos nas mãos este livro. Não teme ele que as potências coloniais tirem proveito de sua sinceridade? Não. Não teme nada. Nossos processos estão peremptos; podem talvez retardar a emancipação, mas não a impedirão. E não imaginemos que poderemos reajustar os nossos métodos: o neocolonialismo, sonho preguiçoso das Metrópoles, é vão; as “Terceiras Forças” não existem ou são falsas burguesias que o colonialismo já colocou no poder. Nosso maquiavelismo tem poucos poderes sobre este mundo extremamente vigilante que desmascarou uma após outra as nossas mentiras. O colono só tem um recurso: a força, quando esta ainda lhe sobra: o indígena só tem uma alternativa: a servidão ou a soberania. Que importa a Fanon que leiamos ou não a sua obra? É a seus irmãos que ele denuncia nossas velhas artimanhas, para as quais não dispomos de sobressalentes. É a eles que Fanon diz: a Europa pôs as patas em nossos continentes, urge golpeá-las até que ela as retire; o momento nos favorece; nada acontece em Bizerta, em Elizabethville, no deserto argelino, que não chegue ao conhecimento de toda a Terra: os blocos tomam partidos contrários, encaram-se como respeito; aproveitemos essa paralisia, entremos na história e que nossa irrupção a torne universal pela primeira vez; na falta de outras armas, a perseverança da faca será suficiente. Europeus, abri este livro, entrai nele. Depois de alguns passos na noite, vereis estrangeiros reunidos ao pé do fogo, aproximai-vos, escutai; eles discutem a sorte que reservam às vossas feitorias, aos mercenários que as defendem. Eles vos verão talvez, mas continuarão a falar entre si, sem mesmo baixar a voz. Essa indiferença fustiga o coração: os pais, criaturas da sombra, vossas criaturas, eram almas mortas, vós lhes dispensáveis a luz, eles só se dirigiam a vós, e vós não perdíeis tempo em responder a esses zumbis. Os filhos não fazem caso de vós; um fogo os ilumina e aquece, e vós vos sentireis furtivos, noturnos, transidos; a cada um a sua vez; nessas trevas de onde vai surgir uma outra aurora, os zumbis sóis vós. Nesse caso, direis, joguemos este livro pela janela. Por que temos de o ler se não foi escrito para nós? Por dois motivos. O primeiro é que Fanon vos explica a seus irmãos e desmonta para eles o mecanismo de nossas alienações; aproveitai para vos descobrir a vós mesmos em vossa verdade de objetos. Nossas vítimas nos conhecem por suas feridas e seus grilhões; é isto que torna seu testemunho irrefutável. Basta que nos mostrem o que fizemos delas para que conheçamos o que fizemos de nós, Isso é útil? Sim, visto que a Europa está na iminência de rebentar. Mas, direi vós ainda, vivemos na Metrópole e reprovamos os excessos. É verdade: não sois colonos, mas não sois melhores do que eles. São vossos pioneiros, vós os enviastes para o ultramar, eles vos enriqueceram; vós os tínheis prevenido: se fizessem correr muito sangue, vós os reprovaríeis com desdém; da mesma forma, um Estado – qualquer que seja – mantém no estrangeiro uma turba de agitadores, de provocadores e espiões, aos quais reprova quando são apanhados. Vós, tão liberais, tão humanos, que levai os amor da cultura até ao preciosismo, fingis esquecer que tendes colônias e que nelas se praticam massacres em vosso nome. Fanon revela a seus camaradas – a alguns dentre eles, sobretudo, que continuam um pouco ocidentalizados demais –a solidariedade dos “metropolitanos” e seus agentes coloniais. Tende a coragem de o lar, por esta primeira razão de que ele fará com que vos sintais envergonhados, e a vergonha, como disse Marx, é um sentimento revolucionário. Vede: eu também não posso desprender-me da ilusão subjetiva. Eu também vos digo: “Tudo está perdido, a menos que...” Europeu, furto o livro de um inimigo e faço dele um meio de curar a Europa. Aproveitai. Eis o segundo motivo: se rejeitarmos a lenga-lenga fascista de Sorel, veremos que Fanon é o primeiro desde Engels a repor em cena a parteira da história. E não se creia que um sangue demasiado ardente ou desventuras da infância lhe tenham dado para a violência não sei que gosto singular: ele se faz intérprete da situação, nada mais. Mas isso basta para que ele constitua, etapa por etapa, a dialética que a hipocrisia liberal oculta de nós e que nos produziu tanto quanto a ele.

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No século passado a burguesia considerava os operários invejosos, corrompidos por apetites grosseiros, mas teve o cuidado de incluir esses selvagens em nossa espécie: se não fossem homens e livres, como poderiam vender livremente sua força de trabalho? Na França, na Inglaterra, o humanismo pretender ser universal. Com o trabalho forçado, dá-se o contrário; nada de contrato; além disso, é preciso intimidar; patenteia-se portanto a opressão. Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus; uma vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, eles dão por assente que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumaniza-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o medo concluirá o trabalho: assestam-se os fuzis sobre o camponês; vêm civis que se instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter, desintegra-lhe a personalidade. A coisa é conduzida a toque de caixa, por peritos: não é de hoje que datam os “serviços psicológicos”. Nem a lavagem cerebral. E no entanto, malgrado tantos esforços, o objetivo não é atingido em parte nenhuma: no Congo, onde se cortavam as mãos dos negros, nem em Angola onde, bem recentemente, furavam-se os lábios dos descontentes para os fechar com cadeados. E não afirmo que seja impossível converter um homem num animal: digo que não se chaga a tanto sem o enfraquecer consideravelmente; as bordoadas não bastam, é necessário recorrer à desnutrição. É o tédio, com a servidão. Quando domesticamos um membro de nossa espécie, diminuímos o seu rendimento e, por pouco que lhe demos, um homem reduzido à condição de animal doméstico acaba por custar mais do que produz. Por esse motivo os colonos vêem-se obrigados a parar a domesticação no meio do caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena. Derrotado, subalimentado, doente, amedrontado, mas só até certo ponto, tem ele, seja amarelo, negro ou branco, sempre os mesmos traços de caráter: é um preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de nada e só reconhece a força. Pobre colono: eis sua contradição posta a nu. Deveria, dizem, como faz o gênio, matar as vítimas de suas pilhagens. Mas isso não é possível. Não é preciso também que as explore? Não podendo levar o massacre até ao genocídio e a servidão até ao embrutecimento, perde a cabeça, a operação de desarranjo e uma lógica implacável há de conduzi-la até à descolonização. Não de imediato. A princípio o europeu reina: já perdeu mas não se dá conta disso; ainda não sabe que os indígenas são falsos indígenas; atormenta-os, conforme alega, para destruir ou reprimir o mal que há neles. Ao cabo de três gerações, seus instintos perniciosos não renascerão mais. Que instinto? Os que compelem os escravos a massacrar o senhor? Como não reconhece nisto a sua própria crueza voltada contra ele? A selvageria dos camponeses oprimidos, como não reencontra nela sua selvageria de colono, que eles absorveram por todos os poros e de que não estão curados? A razão é simples. Esse personagem arrogante, enlouquecido por todo o seu poder e pelo medo de o perder, já não se lembrar realmente que foi um homem: julga-se uma chibata ou um fuzil; chegou a acreditar que a domesticação das “raças inferiores” se obtém através do condicionamento dos seus reflexos. Negligência a memória humana, as recordações indeléveis; e depois, sobretudo, há isto que talvez ele jamais tenha sabido: nós não nos tornamos o que somos senão pela negação íntima e radical do que fizeram de nós. Três gerações? Desde a segunda, mal abriram os olhos, os filhos viram os pais serem espancados. Em termos de psiquiatria, ei-los “traumatizados”. Para a vida inteira. Mas essas agressões incessantemente renovadas, longe de os induzir à submissão,

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atiram-nos numa contradição insuportável pela qual cedo ou tarde o europeu pagará. Depois disso, o aprendizado a que por sua vez serão submetidos, aprendizado de humilhação, dor e fome, suscitará em seus corpos uma ira vulcânica cujo poder é igual ao da pressão que se exerce sobre eles. Será, dizei vós, que só conhecem a força? Por certo; de início será apenas a do colono e, pouco depois, a deles, isto é, a mesma que recai sobre nós da mesma maneira que o nosso reflexo vem do fundo de um espelho ao nosso encontro. Não nos iludamos; por essa cólera louca, por essa bile e esse fel, por seu desejo permanente de nos matar, pela contração constante de músculos poderosos que têm medo de se esticar, eles são homens: pelo colono, que os quer servos, e contra ele. Cego ainda, abstrato, o ódio é o seu único tesouro. O Patrão provoca-o porque procura bestializá-lo, falha em destruí-lo porque seus interesses o detêm a meio caminho. Assim, os falsos indígenas ainda são humanos, pela força e a impotência do opressor que se transformam neles numa obstinada recusa à condição animal. Quanto ao mais, já se sabe: são preguiçosos, é claro, e isso é sabotagem. Dissimulados, ladrões, sem dúvida; seus pequenos furtos assinalam o começo de uma resistência ainda desorganizada. Isso não basta; para que se afirmem têm de investir desarmados contra os fuzis. Estão os seus heróis, e outros se fazem homens assassinando europeus. São mortos. Bandidos e mártires, seu suplício exalta as massas aterrorizadas. Aterrorizadas, sim. Neste novo momento a agressão colonial se interioriza em Terror entre os colonizados. Não me refiro somente ao temor que experimental diante de nossos inesgotáveis meios de repressão como também ao que lhes inspira seu próprio furor. Estão entalados entre as armas que apontamos contra eles e as tremendas pulsões, os desejos de carnificina que sobem do fundo do coração e que eles sempre reconhecem, porque não é de início a violência deles, mas a nossa, voltada para trás, que se avoluma e os dilacera; e o primeiro movimento desses oprimidos é ocultar profundamente essa cólera inconfessável que a sua moral e a nossa reprovam e que, todavia, é o último reduto de sua humildade. Leiamos Fanon: descobriremos que, no tempo de sua impotência, a loucura sanguinária é o inconsciente coletivo dos colonizados. Essa fúria contida, que não se extravasa, ainda à roda e destroça os próprios oprimidos. Para se livrarem dela, entrematam-se: as tribos batem-se umas contra as outras por não poderem atacar de frente o verdadeiro inimigo – e podemos contar com a política colonial para alimentar essas rivalidades; o irmão, empunhando a faca contra o irmão, acredita destruir, de uma vez por todas, a imagem detestada de seu aviltamento comum. Mas essas vítimas expiatórias não lhes aplacam a sede de sangue. Abstendo-se de marchar contras as metralhadoras, eles se tornarão nossos cúmplices: vão por sua própria autoridade acelerar os progressos dessa desumanização que lhes repugna. Sob o olhar divertido do colono, premunir-se-ão contra eles mesmos com barreiras sobrenaturais, oura reavivando velhos mitos terríveis, ora atando-se fortemente com ritos meticulosos; assim o obsesso livra-se de sua exigência profunda abandonando-se a manias que o solicitam a todo instante. Dançam, e isto os ocupa, aliviando-lhes os músculos dolorosamente contraídos. De resto, a dança exprime por mímica, secretamente, muitas vezes sem que o saibam, o Não que não podem dizer, os homicídios que não se atrevem a cometer. Em certas regiões valem-se deste último recurso: a possessão. O que era outrora o fato religioso em sua simplicidade, uma certa comunicação do fiel com o sagrado, se transforma numa arma contra o desespero e a humilhação; os zars, as loas, os Santos descem neles, governam-lhes a violência e a dissipam em transes até ao esgotamento. Ao mesmo tempo esses altos personagens os protegem; isso quer dizer que os colonizados se defendem da alienação colonial voltando-se para a alienação religiosa. No fim de contas, o único resultado é a acumulação de duas alienações, cada qual reforçada pela outra. Assim, em certas psicoses, cansados de serem insultados todos os dias, os alucinados imaginam de repente ouvir uma voz de anjo que nos cumprimenta; por outro lado, não cessam as graçolas, que dia em diante alternam com a saudação. É uma defesa e é o fim de sua aventura: a pessoa está dissociada, o doente se encaminha para a demência. Acrescentemos, para alguns infelizes rigorosamente

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selecionados, essa outra possessão de que já falei anteriormente: a cultura ocidental. No lugar deles, direis vós, eu preferia meus zars à Acrópole. Bom, compreendestes. Não completamente, porém, porque não estais no lugar deles. Ainda não. De outro modo, saberíeis que não podem escolher e acumulam. Dois mundos, isso faz duas possessões: dançam a noite inteira e de manhã apinham-se na igreja para ouvir missa; a fenda aumenta sem parar. Nosso inimigo trai seus irmãos e se faz nosso cúmplice; seus irmãos fazem outro tanto. O indigenato é uma neurose introduzida e mantida pelo colono entre os colonizadores com o consentimento deles. Reclamar e renegar, a um só tempo, a condição humana: a contradição é explosiva. Efetivamente explode, vem o sabemos. E vivemos no tempo da deflagração: quer o aumento da natalidade amplie a miséria, quer os recém-chegados devam recear viver um pouco mais que morrer, a torrente da violência derruba todas as barreiras. Na Argélia e em Angola os europeus são massacrados onde aparecem. É o momento do bumerangue, o terceiro tempo da violência: ela se volta contra nós, atinge-nos e, como das outras vezes, não compreendemos que é a nossa. Os “liberais” ficam aparvalhados; reconhecem que não fomos bastante polidos com os indígenas, que teria sido mais justo e mais prudente conceder-lhes certos direitos na medida do possível; eles pretendiam apenas ser admitidos em massa e sem padrinhos nesse clube fechadíssimo que é a nossa espécie; e eis que esse desencadeamento bárbaro e louco não os poupa assim como não poupa os maus colonos. A Esquerda Metropolitana inquieta-se: conhece a verdadeira sorte dos indígenas, a opressão impiedosa de que são objeto, não lhes condena a revolta, sabendo que tudo fizemos para provocá-la. Mas, ainda assim pensa ela, há limites: esses guerrilheiros deveriam empenhar-se em mostrar certo cavalheirismo; seria o melhor meio de provar que são homens. Às vezes ela os censura: “Vocês estão se excedendo, não os apoiaremos mais”. Eles não dão bola: ela bem que pode pegar esse apoio e pendurar no pescoço. Desde que sua guerra começou, eles perceberam esta verdade rigorosa: nós todos valemos pelo que somos, todos nos aproveitamos deles, e eles não têm que provar nada, não dispensarão tratamento de favor a ninguém. Um dever único, um único objetivo: combater o colonialismo por todos os meio.s E os mais avisados dentre nós estariam, a rigor, prontos a admiti-lo, mas não podem deixar de ver nessa prova de força o recurso inteiramente desumano de que se serviram os sub-homens para se fazer outorgar uma carta de humanidade: vamos concedê-la o mais depressa possível e que eles tratem então, por métodos pacíficos, de a merecer. Nossa bela alma é racista. Ela só terá a lucrar com a leitura de Fanon. Essa violência irreprimível, ele o demonstra cabalmente, não é uma tempestade absurda nem a ressurreição de instintos selvagens e nem mesmo um efeito do ressentimento; é o próprio homem que se recompõe. Sabíamos, creio eu, e esquecemos esta verdade: nenhuma suavidade apagará as marcas da violência: só a violência é que pode destruí-las. E o colonizado se cura da neurose colonial, passando o colono pelas armas. Quando sua raiva explode, ele reencontra sua transparência perdida e se conhece na medida mesma em que se faz; de longe consideramos a guerra como o triunfo da barbárie; mas ela procede por si mesma à emancipação progressiva do combatente, liquidando nele e fora dele, gradualmente, as trevas coloniais. Uma vez iniciada, é impiedosa. É necessário permanecer aterrorizado ou tornar-se terrível, quer dizer: abandonar-se às dissociações de uma vida falsificada ou conquistar a unidade natal. Quando os camponeses tocam nos fuzis, os velhos mitos empalidecem, e caem por terra, uma a uma, as interdições. A arma do combatente é a sua humanidade. Porque, no primeiro tempo da revolta, é preciso matar; abater um europeu é matar dois coelhos de uma só cajadada, é suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido: restam um homem morto e um homem livre; o sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional sob a planta dos pés. Nesse instante a Nação não se fasta dele; ele a encontra aonde for, onde estiver – nunca mais longe, ela se confunde com sua liberdade. Mas, após a primeira surpresa, o exército colonial reage: então é necessário unir-se ou deixar-se massacrar. As discórdias tribais atenuam-se, tendem a desaparecer em primeiro lugar porque põem em perigo a Revolução e, mais profundamente,

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porque não tinham outra função que desviar a violência para falsos inimigos. Quando continuam – como no Congo – é porque são alimentadas pelos agentes do colonialismo. A Nação põe-se em marcha; para cada irmão ela está em toda a parte onde outros irmãos combatem. Seu amor fraternal é o inverso de ódio que eles nos votam: irmãos pelo fato de que cada um deles matou ou poderia de um instante para outro ter matado. Fanom mostra a seis leitores os limites da “espontaneidade”, a necessidade e os perigos da “organização”. Mas, seja qual for a imensidade da tarefa, a cada desdobramento da empreitada a consciência revolucionária se aprofunda. Desvanecem-se os derradeiros complexos; não nos venham falar no “complexo de dependência” do soldado do Exército de Libertação Nacional. Livre dos seus antolhos, o camponês toma conhecimento das suas necessidades: matavam-no mas ele tentava ignorá-las; descobre-as agora como exigências infinitas. Nessa violência popular – que dura cinco anos, oito anos como no caso dos argelinos – não se podem distinguir as necessidades militares, sociais e políticas. A guerra, suscitando o problema do comando e das responsabilidades, estabelece novas estruturas que serão as primeiras instituições da paz. Eis então o homem instaurado até as tradições novas, filhas futuras de um horrível presente, ei-lo legitimado por um direito que vai nascer, que nasce cada dia no fogo da batalha. Com o último colono morto, reembarcado ou assimilado, a espécie minoritária desaparece, cedendo lugar à fraternidade socialista. E isso ainda não é suficiente: esse combatente queima as etapas; cuidais que ele não arriscará a pele para se reencontrar ao nível do velho homem “metropolitano”. Vede sua paciência: é possível que ele sonhe algumas vezes com um novo Dien-Bien-Phu29; mas ficai certos de que não conta realmente com isto; é um mendigo lutando, em sua miséria, contra ricos poderosamente armados. Esperando as vitórias decisivas e muitas vezes sem nada esperar, atormenta seus adversários até ao enfado. Isso é inseparável de perdas tremendas; o exército colonial torna-se feroz: patrulhas, operações de limpeza, reagrupamentos, expedições punitivas; mulheres e crianças são massacradas. Sabe disto esse homem novo; ele começa sua vida pelo fim; considera-se um morto virtual. Será morto, e não somente aceita o risco mas tem a certeza de que será eliminado. Esse morto virtual perdeu a mulher e os filhos e viu tantas agonias que antes quer vencer que sobreviver; outros aproveitarão a vitória, não ele, que está cansado demais. Contudo, essa fadiga do coração está no princípio de uma coragem inacreditável. Encontramos nossa humanidade do lado de cá da morte e do desespero, ele a encontra do lado de lá dos suplícios e da morte. Fomos os semeadores de ventos; ele é a tempestade. Filho da violência, extrai dela a cada instante a sua humanidade; fomos homens à custa dele; ele se faz homem à nossa custa. Um outro homem, de melhor qualidade. Aqui Fanon faz alto. Mostrou o caminho; porta-voz dos combatentes, reclamou a união, a unidade do continente africano contra todas as discórdias e todos os particularismos. Atingiu seu objetivo. Se quisesse descrever integralmente o fato histórico da descolonização, teria de falar e mós, o que certamente não é seu propósito. Mas o livro, depois que o fechamos, continua a acossar-nos, apesar de seu autor, porque sentimos o vigor dos povos em revolução e respondemos com a força. Há, portanto, um novo momento da violência e é para nós ,desta vez, que temos de nos voltar, porque ela nos está transformando na medida em que o falso indígena se transforma através dela. Cada qual poderá conduzir suas reflexões como quiser. Contanto, porém, que tenha isto em mente: na Europa de hoje, completamente aturdida com os golpes que lhe são desferidos na França, na Bélgica, na Inglaterra, a menor distração do pensamento é uma cumplicidade criminosa com o colonialismo. Este livro não precisava de prefácio, tanto menos porque não se dirige a nós. Contudo, eu lhe fiz um para levar a dialética até ao fim. É necessário que nós, europeus, nos descolonizemos, isto é, extirpemos, por meio de uma operação sangrenta, o colono que há em cada um de nós. Examinemo-nos, se tivermos coragem, e vejamos o que se passa conosco.

29 Batalha de 5 meses ocorrida entre 1953/1954 e que resultou em 7 mil franceses mortos e 11 mil deles, totalmente estropiados, sujeitados aos vietnamitas.

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Encaremos primeiramente este inesperado: o strip-tease de nosso humanismo. Ei-lo inteiramente nu e não é nada belo: não era senão uma ideologia mentirosa, a requintada justificação da pilhagem; sua ternura e seu preciosismo caucionavam nossas agressões. Têm boa aparência os não-violentos: nem vítimas nem verdugos! Vamos! Se não sois vitima,s quando o governo que referendastes num plebiscito e quando o exército em que serviram vossos jovens irmãos levaram a cabo, sem hesitação nem remorso, um “genocício”, sois indubitavelmente verdugos. E se escolheis ser vítimas, arriscar um ou dois dias de cadeia, escolheis simplesmente livrar-vos de uma embrulhada. Mas não vos livrareis; é mister permanecer nela até ao fim. De resto é necessário compreender isto: se a violência tivesse começado esta note, se nunca a exploração nem a opressão tivessem existido na face da terra, talvez a não-violência alardeada pudesse apaziguar a contenda. Mas se o próprio regime e até os vossos não-violentos pensamentos estão condicionados por uma opressão milenar, vossa passividade só serve para vos colocar do lado dos opressores. Sabeis muito vem que somos exploradores. Sabeis que nos apoderamos do ouro e dos metais e, posteriormente, do petróleo dos “continentes novos” e que os trouxemos para as velhas metrópoles. Com excelentes resultados: palácios, catedrais, capitais industriais; e quando a crise ameaçava, estavam ali os mercados coloniais para a amortecer ou desviar. A Europa, empanturrada de riquezas, concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes; entre nós, um homem significa um cúmplice, visto que todos nós lucramos com a exploração colonial. Este continente gordo e lívido acabou por dar no que Fanon chama com justeza o “narcisismo”. Cocteau irritava-se com Paris, “esta cidade que fala o tempo todo de si mesma”. E a Europa, que faz ela? E esse monstro supereuropeu, a América do Norte? Que tagarelice: liberdade, igualdade, fraternidade, amor, honra, pátria, que seu eu? Isso não nos impedia de fazermos discursos racistas, negro sujo, judeu sujo, etc. Bons espíritos, liberais e ternos – neocolonialistas, em suam – mostravam-se chocados com essa inconseqüência; erro ou má-fé: nada mais conseqüente, em nosso meio, que um humanismo racista, uma vez que o europeu só pode fazer-se homem fabricando escravos e monstros. Enquanto houve um indígena, essa impostura não foi desmascarada; encontrávamos no gênero humano uma abstrata postulação de universalidade que servia para encobrir práticas mais realistas: havia, do outro lado dos mares, uma raça de sub-homens que, graças a nós, em mil anos talvez, teria acesso à nossa condição. Em resumo, confundíamos o gênero com a elite. Hoje o indígena revela sua verdade; de repente, nosso clube tão fechado revela sua fraqueza: não passava de uma minoria. Há coisa pior: uma vez que somos os inimigos do gênero humano; a elite exibe sua verdadeira natureza: uma quadrilha de bandidos. Quereis um exemplo? Lembrai-vos destas palavras grandiloqüentes: como é generosa a França! Generosos, nós? E Sétif? E esses oito anos de guerra feroz que custaram a vida da mais de um milhão de argelinos? Mas compreendamos que não nos censuram por termos traído não sei que missão, pela boa razão de que não tínhamos nenhuma. É a própria generosidade que está em causa; essa bela palavra sonora só tem um sentido: estatuto outorgado. Para os novos homens emancipados que nos enfrentam, ninguém tem o poder nem o privilégio de dar nada a ninguém. Cada qual tem todos os direitos. Sobre todos. E nossa espécie, quando um dia se fizer a si mesma, não se definirá como a soma dos habitantes do globo mas como a unidade infinita de suas reciprocidades. Paro aqui. Concluiríeis o trabalho sem dificuldade. Basta que olheis de frente, pela primeira e última vez, as nossas aristocráticas virtudes; elas rebentam, e como sobreviveriam à aristocracia de sub-homens que as engendrou? Há alguns anos, um comentarista burguês – e colonialista – só achou isto para defende o Ocidente: “Nós não somos anjos, mas pelo menos temos remorsos”. Que confissão! Outrora nosso continente tinha outros sustentáculos: o Partenon, Chartres, os Direitos do Homem, a suástica. Sabemos agora o que valem e não pretendemos mais salvar-nos do naufrágio senão pelo sentimento muito cristão de nossa culpabilidade. É o fim, como vedes: a Europa faz água por todos os lados. Que aconteceu então? Simplesmente isto: éramos os sujeitos da história e atualmente somos os objetos. Inverteu-se a correlação de forças, a descolonização está em curso; tudo o

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que nossos mercenários podem tentar é retardar-lhe a conclusão. É preciso ainda que as velhas “Metrópoles” metam o bedelho, empenhando todas as suas forças numa batalha, de antemão, perdida. Essa velha brutalidade colonial, que fez a glória duvidosa dos Bugeaud30,vamos reencontrá-la, no fim da aventura, decuplicada, insuficiente. Envia-se o contingente para a Argélia, e ele lá se mantém há sete anos sem resultado. A violência mudou de sentido; vitoriosos, nós a exercíamos sem que ela parecesse alterar-nos: decompunha os outros e a nós, os homens, mas nosso humanismo continuava intacto; unidos pelo lucro, os metropolitanos batizavam com os nomes de fraternidade e amor a comunidade de seus crimes. Agora, a violência, por toda parte bloqueada, volta-se contra nós através de nossos soldados, interioriza-se e nos possui. Começa a involução: o colonizado se recompõe e nós, fanáticos e liberais, colonos e “metropolitanos”, nós nos decompomos. Já o furor e o medo estão nus; mostram-se a descoberto nas “pexotadas” de Argel. Onde estão agora os selvagens? Onde está a barbárie? Não falta nada, nem mesmo o tantã. As buzinas ritmam “Argélia Francesa” enquanto os europeus queimam vivos os muçulmanos. Não faz muito tempo, lembra Fanon, psiquiatras em Congresso afligiam-se com a criminalidade indígena. Esses homens se entrematam, diziam eles, isso não é normal; o córtex do argelino deve ser subdesenvolvido. Na África Central outros estabeleceram que “o africano utiliza muito pouco seus lobos frontais”. Esses sábios achariam interessante prosseguir hoje sua investigação na Europa e particularmente entre os franceses. Porque nós também, de alguns anos para cá, devemos estar sofrendo de preguiça frontal: Os Patriotas assassinam um pouco os seus compatriotas; em caso de ausência, fazem ir pelos ares o porteiro e a casa. É apenas um início: a guerra civil está prevista para o outono ou a próxima primavera. Nossos lóbulos, porém, parecem em perfeito estado. Não será que, por não poder esmagar o indígena, a violência se concentra, se acumula dentro de nós e procura uma saída? A união do povo argelino produz a desunião do povo francês: em todo o território da ex-metrópole as tribos dançam e preparam-se para o combate. O terror deixou a África para instalar-se aqui, porque há os furiosos que com toda a simplicidade querem obrigar-nos a pagar com nosso sangue a vergonha de termos sido batidos pelo indígena e há também os outros, todos os outros, igualmente culpado - após Bizerta, após os linchamentos de setembro, quem foi à rua para dizer: chega? – mas bem mais sossegados: os liberais, os duros dos duros da Esquerda mole. Neles também a febre sobe. E o mau humor. Mas que cagaço! Mascaram a raiva sob mitos, sob ritos complicados; para retardar o ajuste de contas final e a hora da verdade, puseram à nossa frente um Grande Feiticeiro cuja unção é manter-nos a todo custo na escuridão. Inutilmente; proclamada por uns, recalcada pelos outros, a violência volteia: um dia explode em Metz, no outro em Bordéus; passou por aqui, passará por ali; é o jogo do anel. Por nossa vez, passo a passo, percorremos o caminho que leva ao indigenato. Mas para que nos tornássemos inteiramente indígenas seria necessário que nosso solo fosse ocupado pelos antigos colonizados e que morrêssemos de fome. Isto não acontecerá; não, é o colonialismo decaído que nos possui, é ele que nos cavalgará dentro em breve, decrépito e soberbo; aí estão nosso zar,31 nossa loa. E vós vos persuadireis, lendo o último capítulo de Fanon, que é preferível ser um indígena no pior momento da miséria que um ex-colono. Não é bom que um funcionário da polícia seja obrigado a torturar dez horas por dia; nessa marcha, seus nervos ficam abalados a menos que se proíba aos algozes, em seu próprio interesse, de faze horas suplementares. Quando se quer proteger, com o rigor das leis, o moral da Nação e do Exército, não é bom que esta desmoralize sistematicamente aquela. Nem que um país de tradição republicana confie centenas de milhares de seus jovens a oficiais golpistas. Não é bom, compatriotas, vós que conheceis todos os crimes cometidos em nosso nome, não é realmente bom que não digamos nada a ninguém, nem sequer a nossa alma, por temor de termos que nos julgar. A princípio ignoráveis, concedo, depois tivestes dúvidas,

30 Figura importante na conquista e colonização da Argélia. 31 Dança cerimonial/religiosa do norte da África

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presentemente sabeis, mas continuais calados. Oito anos de silêncio, isto degrada. E em vão: hoje o sol ofuscante da tortura está no zênite, alumia o país inteiro; sob essa luz não há mais um riso que soe justo, um rosto que não tria nossos desgostos e cumplicidades. Basta hoje que dois franceses se encontrem para que haja um cadáver entre eles. E quando eu digo: um... A França, outrora, era o nome de um país; tomemos cuidado para que não seja em 1961 o nome de uma neurose. Nós nos curaremos? Sim. A violência como a lança de Aquiles, pode cicatrizar as feridas que ela mesma fez. Hoje estamos agrilhoados, humilhados, doentes de medo, arruinados. Felizmente isso ainda não é suficiente para a aristocracia colonialista; ela não pode concluir sua missão retardadora na Argélia enquanto não tiver primeiro acabado de colonizar os franceses. Recuamos cada dia diante da luta, mas ficai certos de que não a evitaremos: os matadores precisam dela e vão precipitar-se sobre nós e moer-nos de pau. Assim terminará o tempo dos feiticeiros e dos fetiches: ou nos bateremos ou apodreceremos nas prisões. É o momento final da dialética: condenais esta guerra mas ainda não ousais declarar-vos solidários com os combatentes argelinos; eles vos obrigarão a lutar. Talvez então, levados à parede, desenfreareis enfim essa violência nova que velhos crimes requentados suscitam em vós. Mas isto, como dizem, é outra história. A do homem. Aproxima-se o tempo, estou certo disso, em que nós nos juntaremos àqueles que a fazem. (Setembro de 1961) SARTRE, Jean-Paul. Prefácio. In FANON, Franz. Os condenados da terra. 2 ed. Trad. J. L. de Melo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1979, p. 3-21. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Trecho do Cap. I – Da violência – de Os condenados da terra

Franz Fanon Libertação nacional, renascimento nacional, restituição da nação ao povo. Commonwealth, quaisquer que sejam as rubricas utilizadas ou as novas fórmulas introduzidas, a descolonização é sempre um fenômeno violento. Em qualquer nível que a estudemos – encontros interindividuais, denominações novas dos clubes desportivos, composição humana das cocktails-parties, da polícia, dos conselhos administrativos dos bancos nacionais ou privados – a descolonização é simplesmente a substituição de uma “espécie” de homens por outra “espécie” de homens. Sem transição, há substituição total, completa, absoluta. Sem dúvida poder-se-ia igualmente mostrar o aparecimento de uma nova nação, a instalação de um novo Estado, suas relações diplomáticas, sua orientação política, econômica. Mas nós preferimos falar precisamente desse tipo e tabula rasa que caracteriza de saída toda descolonização. Sua importância invulgar decorre do fato de que ela constitui, desde o primeiro dia, a reivindicação mínima do colonizado. Para dizer a verdade, a prova do êxito reside num panorama social transformado de alto a baixo. A extraordinária importância de tal transformação é ser ela querida, reclamada, exigida. A necessidade da transformação existe em estado bruto, impetuoso e coativo, na consciência e na vida dos homens e mulheres colonizados. Mas a eventualidade dessa mudança é igualmente vivida sob a forma de um futuro terrificante na consciência de uma outra “espécie” de homens e mulheres: os colonos.

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A descolonização, que se propõe mudar a ordem do mundo, é, está visto, um programa de desordem absoluta. Mas não pode ser o resultado de uma operação mágica, de um abalo natural ou de um acordo amigável. A descolonização sabemo-lo, é um processo histórico, isto é, não poder ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna transparente para si mesma senão na exata medida em que se faz discernível o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas que extraem sua originalidade precisamente dessa espécie de substantificação que segrega e alimenta a situação colonial. Sua primeira confrontação se desenrolou sob o signo da violência, e sua coabitação – ou melhor, a exploração do colonizado pelo colono – foi levada a cabo com grande reforço de baionetas e canhões. O colono e o colonizado são velhos conhecidos. E, de fato, o colono tem razão quando diz que “os” conhece. É o colono que fez e continua a fazer o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial. A descolonização jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandiosos pela roda-vida da história. Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é, em verdade, criação de homens novos. Mas esta criação não recebe sua legitimidade de nenhum poder sobrenatural; a “coisa” colonizada se faz no processo mesmo pelo qual se liberta. Há portanto na descolonização a exigência de um reexame integral da situação colonial. Sua definição pode, se queremos descrevê-la com exatidão, estar contida na frase bem conhecida: “Os últimos serão os primeiros”. A descolonização é a verificação desta frase. É por isto que, no plano da descrição toda descolonização é um triunfo. Exposta em sua nudez, a descolonização deixa entrever através de todos os seus poros, granadas incendiárias e facas ensangüentadas. Porque se os últimos devem ser os primeiros isto só pode ocorrer em conseqüência de um combate decisivo e mortal entre dois protagonistas. Esta vontade de fazer chegar os últimos à cabeça da fila, de os fazer subir com cadência (demasiado rápida, dizem alguns) os famosos escalões que definem uma sociedade organizada, só pode triunfar se se lançam na balança todos os meios, inclusive a violência, evidentemente. Não se desorganiza uma sociedade, por mais primitiva que seja, com tal programa se não se está decidido desde o início, isto é, desde a formulação mesma deste programa, a destruir todos os obstáculos encontrados no caminho. O colonizado que resolve cumprir este programa, tornar-se o motor que o impulsiona, está preparado sempre para a violência. Desde seu nascimento percebe claramente que este mundo estreito, semeado de interdições, não pode ser reformulado senão pela violência absoluta. O mundo colonial é um mundo dividido em compartimentos. Sem dúvida é supérfluo, no plano da descrição, lembrar a existência de cidades indígenas e cidades européias, de escolas para indígenas e escolas para europeus, como é supérfluo lembrar o apartheid na África do Sul. Entretanto, se penetrarmos na intimidade desta divisão, obteremos pelo menos o benefício de por em evidência algumas linhas de força que ela comporta. Este enfoque do mundo colonial, de seu arranjo, de sua configuração geográfica, vai permitir-nos delimitar as arestas a partir das quais se há de reorganizar a sociedade descolonizada. O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. Nas colônias o interlocutor legal e institui8cional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado. Nas sociedades de tipo capitalista, o ensino religioso ou leigo, a formação de reflexos morais

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transmissíveis de pai a filho, a honestidade exemplar de operários condecorados ao cabo de cinqüenta anos de bons e leais serviços, o amor estimulado da harmonia e da prudência, formas estéticas do respeito pela ordem estabelecida, criam em torno do explorado uma atmosfera de submissão e inibição que torna consideravelmente mais leve a tarefa das forças da ordem. Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder interpõe-se uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de “desorientadores”. Nas regiões coloniais, ao contrário, o gendarme e o soldado, por sua presença imediata, por suas intervenções diretas e freqüentes mantêm contacto com o colonizado e o aconselham a coronhadas ou com explosões de napalm, a não se mexer. Vê-se que o intermediário não torna mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado. A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos colonos. Estas duas zonas se opõem mas não em função de uma unidade superior. Regidas por uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao princípio da exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos termos é demais. A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixões de lixo regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas. Os pões do colono nunca estão à mostra, salvo talvez no mar, mas nunca ninguém está bastante próximo deles. Pés protegidos por calçados fortes, enquanto que as ruas de sua cidade são limpas, lisas, sem buracos, sem seixos. A cidade do colono é uma cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros. A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina32, a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes. O olhar que o colonizado lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria, um olhar de inveja. Sonhos de posse. Todas as modalidades de posse: sentar-se à mesa do colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher deste, se possível. O colonizado é um invejoso. O colono sabe disto; surpreendendo-lhe o olhar, constata amargamente mas sempre alerta: “Eles querem tomar o nosso lugar”. É verdade, não há um colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em se instalar o lugar do colono. Este mundo dividido em compartimentos, este mundo cindido em dois, é habitado por espécies diferentes. A originalidade do contexto colonial reside em que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não logram nunca mascarar as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não logram nunca mascarar as realidades humanas. Quando se observa em sua imediatidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de mais nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias a infra-estrutura econômica é igualmente uma superestrutura. A causa é conseqüência: o indivíduo é rico porque é branco, é branco porque é rico. É pior isso que as análises marxistas devem ser sempre ligeiramente distendidas cada vez que abordamos o problema colonial. Não há nem mesmo conceito de sociedade pré-capitalista, bem estudado por Marx, que não exigisse ser repensado aqui. O servo é de essência diferente da do cavaleiro, mas uma referência ao direito divino é necessária para legitimar essa diferença estatutária. Nas colônias o estrangeiro vindo de qualquer parte se impôs com o auxílio dos seus canhões e das suas máquinas. A despeito do

32 Cidade árabe ao lado da qual se erguem edificações para europeus

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sucesso da domesticação, malgrado a usurpação, o colono continua sendo um estrangeiro. Não são as fábricas nem as propriedades nem a conto no banco que caracterizam em primeiro lugar a “classe dirigente”. A espécie dirigente é antes de tudo a que vem de fora, a que não se parece com os autóctones, “os outros”. A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial que ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas, que arrasou completamente os sistemas de referências da economia, os modos da aparência e do vestuário, será reivindicada e assumida pelo conolnizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonizada se engolfar nas cidades inrterditas. Fazer explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e que pode ser retomada por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado. Desmanchar o mundo colonial não significa que depois da abolição das fronteiras se vão abrir vias de passagem entre as duas zonas. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-la profundamente no solo ou expulsá-la do território. A discussão do mundo colonial pelo colonizado não é um confronto racional de pontos de vista. Não é um discurso sobre o unviersal., mas a afirmação desenfreada de uma simgularidade admitida como absoluta. O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colono limitar fisicamente, com o auxíli de sua política e de sua gendarmaria, o espaço do colonizado. Como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécide de quintessência do mal33 . A sociedade colonizada não é apenas descrita como uma sociedade sem valores. Não basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor, jamais, habitaram o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética, ausência e valores, como também negação de valores. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos valores. Nesse sentido, é o mal absoluto. Elemento corrosivo, que destrói tudo o que dele se aproxima, elemento deformador, que desfigura tudo o que se refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas. E M. Meyer podia afirmar solemente perante a Assembléia Nacional Francesa que não era necessário prostituir a República fazendo penetrar nela o povo argelino. Os valores, com efeito, se tornam irreversivelmente envenenados e pervertidos desde que entram em contato com a população colonizada. Os costumes do colonizado, suas tradições, seus mitos, sobretudo os seus mitos, são a própria marca desta indigência, desta depravação constitucional. Por isso é preciso colocar no mesmo plano o DDT que destrói os parasitas, portadores de doença, e a religião cristã que combate no nascedouro as heresias, os instintos, o mal. O retrocesso da febre amarela e os progressos da evangelização fazem parte do mesmo balanço. Mas os comunicados triunfantes das missões informam, na realidade, sobre a importância dos fermentos de alienação introduzidos no seio do povo colonizado. Falo da religiã cristã e ninguém tem o direito de se espantar. A Igreja nas colônias é uma Igreja de Brancos, uma igreja de estrangeiros. Não chama o homem colonizado para a via de Deus mas para a via do Branco, a via do patrão, a via do opressor. E como sabemos, neste negócio são muitos os chamados e poucos os escolhidos. FANON, Franz. Os condenados da terra. 2 ed. Trad. J. L. de Melo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1979, p. 25-30.

33 Mostramos em Peau Noire, Masques Blancs (edição de Seuil) , o mecanismo desse mundo maniqueísta.

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(Fragmento de ensaio) - Eu e o outro – O Invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto

Manuel Rui

Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores, paralelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido e visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegastes! Mas não! Preferiste disparar os canhões. A partir daí, comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro, por me parecer difícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse projeto de chegar e bombardear o meu texto. Mas tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que também sistematicamente no texto que fazias escrito intentavas destruir o meu texto ouvido e visto. Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence. Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão, desmonta-lo peça a peça, refazê-lo e disparar ao contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte que me agride. Afinal assim identifico-me sempre eu/até posso ajudar-te à busca de uma identidade em que sejas tu quando eu te olho/em vez de seres o outro. Mas para fazer isto eu tenho que transformar e transformo-me. Assim na minha oratura para além das estórias antigas na memória do tempo eu vou passar a incluir-te. Vou inventar novas estórias. Por exemplo o espantalho silenciosos que coloco na lavra para os pássaros não me comerem a massambala passa a ser o outro que não fazia parte do texto. Também vou substituir a surucucu cobra maldita. Surucucu passa a ser o outro. E cobra no meu texto inventado agora passa a ser bela e pacífica se morder o outro com o seu veneno mortal. E agora o meu texto se ele trouxe a escrita? O meu texto tem que se manter assim oraturizado e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta. Ah! Não tinha reparado. Afinal isto é uma luta. E eu não posso retirar do meu texto a arma principal. A identidade. Se o fizer deixo de ser eu e fico outro, aliás como o outro quer. E agora? Vou passar o meu texto oral para a escrita? Não. É que a partir do momento em que eu o transferir para o espaço da folha branca, ele quase morre. Não tem árvores. Não tem ritual. Não tem as crianças sentadas segundo o quadro comunitário estabelecido. Não tem som. Não tem dança. Não trem braços. Não tem olhos. Não tem bocas. O texto são bocas negras na escrita quase redundam num mutismo sobre a folha branca. O texto oral tem vezes que só pode ser falado por alguns de nós. E há palavras que só alguns de nós podem ouvir. No texto escrito posso liquidar este código aglutinador. Outra arma secreta para combater o outro e impedir que ele me descodifique para depois me destruir. Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor do código que a escrita já

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composta? Isso não. No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro, descrevo para que eu conquiste a partir do instrumento escrita um texto escrito meu, da minha identidade. Os personagens do meu texto têm de se movimentar como no outro texto inicial. Têm de cantar. Dançar. Em suma, temos de ser nós. “Nós mesmos”. Assim reforço a identidade com a literatura. Só que agora porque o meu espaço e tempo foi agredido para o defender por vezes dessituo do espaço e tempo e tempo mais total. O emendo não sou eu só. O mundo somos nós e os outros. E quando a minha literatura transborda a minha identidade é arma de luta e deve ser ação de interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo universal. Escrever então é viver. Escrever assim é lutar. Literatura e identidade. Princípio e fim. Transformador. Dinâmico. Nunca estático para que além da defesa de mim me reconheça sempre que sou eu a partir de nós também para a desalienação do outro até que um dia virá e “os portos do mundo sejam portos de todo o mundo”. Até lá não se espantem. É quase natural que eu escreva também ódio por amor ao amor! (São Paulo, 23/05/1985) RUI, Manuel. Eu e o outro – O Invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto. In MEDINA, Cremilda. Sonha Mamana África. São Paulo: Epopéia, 1987.

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AGOSTINHO NETO ASPIRAÇÃO Ainda o meu canto dolente e a minha tristeza no Congo, na Geórgia, no Amazonas Ainda o meu sonho de batuque em noites de luar ainda os meus braços ainda os meus olhos ainda os meus gritos Ainda o dorso vergastado o coração abandonado a alma entregue à fé ainda a dúvida E sobre os meus cantos os meus sonhos os meus olhos os meus gritos sobre o meu mundo isolado o tempo parado Ainda o meu espírito ainda o quissange a marimba a viola o saxofone ainda os meus ritmos de ritual orgíaco Ainda a minha vida oferecida à Vida ainda o meu desejo Ainda o meu sonho o meu grito o meu braço a sustentar o meu Querer E nas sanzalas nas casas no subúrbios das cidades para lá das linhas nos recantos escuros das casas ricas onde os negros murmuram: ainda O meu desejo transformado em força inspirando as consciências desesperadas. (Sagrada esperança)

CRIAR Criar criar criar no espírito criar no músculo criar no nervo criar no homem criar na massa criar criar com os olhos secos Criar criar sobre a profanação da floresta sobre a fortaleza impúdica do chicote criar sobre o perfume dos troncos serrados criar criar com os olhos secos Criar criar gargalhadas sobre escárneo da palmatória coragem na ponta da bota roceiro força no esfrangalho das portas violentadas firmeza no vermelho sangue da insegurança criar criar com os olhos secos Criar criar estrelas sobre o camartelo guerreiro paz sobre o choro das crianças paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato paz sobre o ódio criar criar paz com os olhos secos Criar criar criar liberdade nas estradas escravas algemas de amor nos caminhos paganizados do amor sons festivos sobre o balanceio dos corpos em formas simuladas criar criar amor com os olhos secos.

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AGOSTINHO NETO

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O CAMINHO DAS ESTRELAS Seguindo o caminho das estrelas pela curva ágil do pescoço da gazela sobre a onda sobre a nuvem com as asas primaveris da amizade Simples nota musical indispensável átomo da harmonia partícula germe cor na combinação múltipla do humano Preciso e inevitável como o inevitável passado escravo através das consciências como o presente Não abstrato incolor entre idéias sem cor sem ritmo entre as arritmias do irreal inodoro entre as selvas desaromatizadas de troncos sem raiz Mas concreto vestido do verde do cheiro novo das florestas depois da chuva da seiva do raio do trovão as mãos amparando a germinação do riso sobre os campos de esperança A liberdade nos olhos o som nos ouvidos das mãos ávidas sobre a pele do tambor num acelerado e claro ritmo de Zaires Caláaris montanhas luz vermelhas de fogueiras infinitas nos capinzais violentados harmonia espiritual de vozes tam-tam num ritmo claro de África Assim o caminho das estrelas pela curva ágil do pescoço da gazela para a harmonia do mundo.

MUSSUNDA AMIGO Para aqui estou eu Mussunda amigo Para aqui estou eu. Contigo. Com a firme vitória da tua alegria e da tua consciência - o ió Kalunga ua mu bangele-le-lelé! o ió Kalunga ua mu bangele-le-lelé. Lembras-te? Da tristeza daqueles tempos em que íamos comprar mangas e lastimar o destino das mulheres da Funda, dos nossos cantos de lamento, dos nossos desesperos e das nuvens dos nossos olhos. Lembras-te? Para aqui estou eu Mussunda amigo A vida, a ti a devo à mesma dedicação, ao mesmo amor com que me salvaste do abraço da jibóia à tua força que transforma os destinos dos homens. A ti amigo Mussunda, a ti devo a vida. E escrevo versos que tu não entendes! Compreendes a minha angustia? Para aqui estou eu Mussunda amigo escrevendo versos que tu não entendes. Não era isto o que nós queríamos, bem sei mas no espírito e na inteligência nós somos. Nós somos Mussunda amigo Nós somos! Inseparáveis caminhando ainda para o nosso sonho.

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AIRES DE ALMEIDA SANTOS

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A MULEMBA SECOU A mulemba secou. No barro da rua, Pisadas Por toda a gente, Ficaram as folhas Secas, amareladas A estalar sob os pés de quem passava. Depois o vento as levou... Como as folhas da mulemba Foram-se os sonhos gaiatos Dos miúdos do meu bairro. (De dia, Espalhavam visgo nos ramos E apanhavam catituis, Viúvas, siripipis Que o Chiquito da Mulemba Ia vender no Palácio Numa gaiola de bimba. De noite, Faziam roda, sentados, A ouvir, De olhos esbugalhados A velha Jaja a contar Histórias de arrepiar Do feiticeiro Catimba.) Mas a mulemba secou E com ela, Secou também a alegria Da miudagem do bairro: O Macuto da Ximinha Que cantava todo o dia Já não canta. O Zé Camilo, coitado, Passa o dia deitado A pensar em muitas coisas. E o velhote Camalundo, Quando passa por ali, Já ninguém o arrelia, Já mais ninguém lhe assobia, Já faz a vida em sossego. Como o meu bairro mudou, Como o meu bairro está triste Porque a mulemba secou... Só o velho Camalundo Sorri ao passar por lá!...

MEU AMOR DA RUA ONZE Tantas juras nos trocamos, Tantas promessas fizemos, Tantos beijos roubamos, Tantos abraços nos demos. Meu amor da Rua Onze, Meu amor da Rua Onze, Já não quero Mais mentir. Meu amor da Rua Onze, Meu amor da Rua Onze, Já não quero Mais fingir. Era tão grande e tão belo Nosso romance de amor Que ainda sinto o calor Das juras que nos trocamos. Era tão bela, tão doce Nossa maneira de amar Que ainda pairam no ar As promessas que fizemos. Nossa maneira de amar era tão doida, tão louca Qu'inda me queimam a boca Os beijos que nos roubamos. Tanta loucura e doidice Tinha o nosso amor desfeito Que ainda sinto no peito Os abraços que nos demos. E agora Tudo acabo. Terminou Nosso romance. Quando te vejo passar Com o teu andar Senhoril, Sinto nascer E crescer Uma saudade infinita Do teu corpo gentil De escultura Cor de bronze, Meu amor da Rua Onze.

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ANTONIO JACINTO

CARTA DE UM CONTRATADO

Eu queria escrever-te uma carta amor, uma carta que dissesse deste anseio de te ver deste receio de te perder deste mais que bem querer que sinto deste mal indefinido que me persegue desta saudade a que vivo todo entregue... Eu queria escrever-te uma carta amor, uma carta de confidências íntimas, uma carta de lembranças de ti, de ti dos teus lábios vermelhos como tacula dos teus cabelos negros como dilôa dos teus olhos doces como macongue dos teus seios duros como maboque do teu andar de onça e dos teus carinhos que maiores não encontrei por aí... Eu queria escrever-te uma carta amor, que recordasse nossos dias na capôpa nossas noites perdidas no capim que recordasse a sombra que nos caía dos jambos o luar que se coava das palmeiras sem fim que recordasse a loucura da nossa paixão e a amargura da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta amor, que a não lesses sem suspirar que a escondesses de papai Bombo que a sonegasses a mamãe Kiesa que a relesses sem a frieza do esquecimento uma carta que em todo o Kilombo outra a ela não tivesse merecimento... Eu queria escrever-te uma carta amor, uma carta que ta levasse o vento que passa uma carta que os cajus e cafeeiros que as hienas e palancas que os jacarés e bagres pudessem entender para que se o vento a perdesse no caminho os bichos e plantas compadecidos de nosso pungente sofrer de canto em canto de lamento em lamento de farfalhar em farfalhar te levassem puras e quentes as palavras ardentes as palavras magoadas da minha carta que eu queria escrever-te amor... Eu queria escrever-te uma carta... Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender por que é, por que é, por que é, meu bem que tu não sabes ler e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também! (Poemas)

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ANTONIO JACINTO MONANGAMBA Naquela roça grande não tem chuva é o suor do meu rosto que rega as plantações: Naquela roca grande tem café maduro e aquele vermelho-cereja são gotas do meu sangue feitas seiva. O café vai ser torrado pisado, torturado, vai ficar negro, negro da cor do contratado. Negro da cor do contratado! Perguntem às aves que cantam, aos regatos de alegre serpentear e ao vento forte do sertão: Quem se levanta cedo? quem vai à tonga? Quem traz pela estrada longa a tipóia ou o cacho de dendém? Quem capina e em paga recebe desdém fuba podre, peixe podre, panos ruins, cinqüenta angolares "porrada se refilares"?

Quem? Quem faz o milho crescer e os laranjais florescer - Quem? Quem dá dinheiro para o patrão comprar maquinas, carros, senhoras e cabeças de pretos para os motores? Quem faz o branco prosperar, ter barriga grande - ter dinheiro? - Quem? E as aves que cantam, os regatos de alegre serpentear e o vento forte do sertão responderão: - "Monangambééé..." Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras Deixem-me beber maruvo, maruvo e esquecer diluído nas minhas bebedeiras - "Monangambééé..." (Poemas)

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ARNALDO SANTOS

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A MENINA VITÓRIA

Transferiram-no no meio do ano letivo para o colégio do Pucha Beatas, por causa dos piolhos da Escola 8 e da prosódia, em que os professores o achavam muito fraco.

O Sr. Sílvio Marques, embora pouco exigente consigo em relação à pronúncia – trocava amiúde os vv pelos bb -, era no entanto muito cuidadoso a fechar as vogais. Ralhava severamente o Gigi sempre que lhe ouvisse algum desconchavo, ou então abria-lhe muito os olhos, o que significava o mesmo. Também os amigos dele, aos domingos, debaixo da mulembeira e entre uma ou outra jogada de sueca, comentavam as incorreções do Gigi. E sibilavam (alguns eram da Beira Alta), lamentando que a pronúncia do garoto se estragava, que era preciso afasta-lo da companhia dos criados e dos colegas dos musseques. Todos concordavam que era pena, porque ele já se podia considerar como um branco, embora D. Angelina fosse mulata, mas enfim... era senhora de princípios. O Sr. Sílvio ouvia-os atento, w considerava conscienciosamente a crítica, porque afinal se tratava do futuro do seu secretário, como dizia referindo-se ao filho.

Assim, embora com sacrifício, porque o colégio era caro, a transferência teve que se fazer. Mas valia a pena, anunciara a mão às vizinhas. “Aqueles meninos muito arranjadinhos, levados pela mão dos criados, e alguns até de carro...! Que diferença!” – exclamava, não escondendo a vaidade, no dia em que o levou ao colégio.

Gigi ganhou roupa nova, uma sacola bordada e muitos conselhos de D. Angelina, que se afligia com a sua aparência. Mas da mudança mesmo o que o Gigi mais gostou foi dos passeios na moto com carro lateral, em que o pai o levava ao colégio. O assento era tão baixo que, pelo trajeto, ele podia apanhar pequenos tufos de capim. Isso passou a ser a sua única alegria, porque o Gigi estranhou o colégio.

A professora da 3ª classe, a menina Vitória, era uma mulatinha fresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole. /Renovava o pó-de-arroz nas faces sempre que tivesse um momento livre, e durante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos cabelos alourados e sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeiras filas.

Olhou-o com desconfiança e depois do primeiro exame mandou-o para uma carteira do fundo da aula, junto de um menino com cara de puco, a quem chamavam cafuzo, por ser muito escuro. Mas o menino cafuzo chamava-se Matoso, o que, de início, pareceu ao Gigi insuficiente para justificar o seu mutismo. Vergado na cadeira, não tirava os olhos do livro, nem mesmo quando a menina Vitória se referia a ele, quase sempre com desprezo, ao recriminar outro aluno. “Pareces o Matoso a falar...”, “Sujas a bata como o Matoso...”, “Cheiras a Matoso...” – e ele guardava-se cada vez mais à carteira, transido por aqueles comentários impiedosos.

Fora também transferido de Escola 8 e, mesmo no dia da apresentação, a menina Vitória não escondera a sua má impressão, com alusões veladas à sua bata de brim grosso. Porém o seu azedume cresceu quando, tempos depois, o Matoso lhe responde distraidamente em quimbundo. “O quê, julgas que eu sou da tua laia...!?” Daí por diante o seu nome era jogado pela aula com crueza, criando um símbolo maldito, que o Gigi mais tarde, atemorizado, reconheceu facilmente. Era uma imagem familiar. Estava muito perto de si e dos seus companheiros do Kinaxixe. Mas por que ele irritava tanto a professora e lhe merecia aquela troça? O Gigi retraiu-se. Olhava os colegas de soslaio, inseguro. Eles iriam troçar também dele, da sua bata modesta de brim, dos seus sapatos puídos, quase rotos? E não respondia quando da menina Vitória o chamava à lição, receando um despropósito que o identificasse com o Matoso. “Vêm para aqui neste estado e depois querem milagres!” – suspirava a professora. Era com certeza do método de ensino da Escola 8, ou da sua influência perniciosa. Mas tolerava-o lá no fundo da aula. E o Gigi diminuía-se ainda mais para não se tornar notado, esforçando-se num mimetismo impotente por imitar os gestos dos meninos da baixa. Tenho que ser como eles, refletia no recreio, afastando-se dos alunos da 4ª classe, que eram, na maioria, os seus companheiros de vadiação do Kinaxixe. Ficava então a jogar os estames dos botões que caíam das acácias, e reprimia a vontade de trepar ao cima delas, para colher os botões compridos de estames longos e curvos, que venciam todos os outros.

Nas suas redações vagueava então tímido sobre as coisas, com medo de poisar nelas,

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decorava nomes das árvores, das aves, dos jogos descritos no seu livro de leitura. Procurava esquecer o colorido vivo das penas dos maracachões, dos gungos, dos rabos-de-junco que ele perseguia na floresta e cujo canto escutava. Imitava passivamente a prosa certinha do gosto da menina Vitória. Esvaziava-a das pequeninas realidades insignificantes que ele vivia, das suas emocionantes experiências de menino livre, agora proibidas e imprestáveis. Quando o Matoso lia submisso a sua redação, onde pintassilgos gorjeavam e debicavam cerejas amarelas (o Matoso explicara-lhe num recreio que as cerejas eram as gajajas do puto), intimamente o Gigi perguntava-se onde é que ele tinha descoberto tudo aquilo. “Cada vez pior!...” – rezingava a menina Vitória, que não se compadecia com os enganos. E continuava a erguer à volta do Matoso, implacavelmente, um círculo intransponível de desprezo, onde ele já não se debatia, nem chorava. Apenas no rosto as suas feições endureciam sob a pressão dos maxilares contraídos. Exasperava-a. Tenho que anda pouco com ele, pensava preocupado o Gigi. A professora pode virar-se contra mim. E fugia, afastava-se também da sua companhia, deixando-o abatido, solitário, dentro das suas ruínas. Tinha medo de enfrenta-la. Precisava de esconder o segredo ilegítimo do seu passado igual. Precisava de o dissimular para que não fosse destruído. “Mulatona... nem cabrita é...” – insultava-a furioso à tardinha quando regressava a casa. E até a noite, descalço, gritava pelo bairro junto dos seus camaradas do Kinaxixe a sua juventude ameaçada, correndo, bassulando, assaltando as quitandeiras de quitetas. “Restos dos maus hábitos...” – lamentava-se D. Angelina. A gradual sisudez começava a animá-la e por isso não compreendia aquelas súbitas irrupções de revolta.. “mas... o colégio leva-o à ordem! – confiava. Realmente a menina Vitória, como uma jibóia enlaçada em cima da árvore, vigiava-lhe os mais pequenos movimentos. - Higino, a tua redação? O Gigi naquele dia estava contente com o seu trabalho. O tema era sobre uma figura importante do governo e ele não esquecera os adjetivos mais expressivos que na véspera a professora tinha proferido. Embora confiante, o Gigi estremeceu ao ouvir o seu nome. Que diria ela, pensava agitado, depois de lhe ter estendido timidamente o caderno. - Com que então pretender brincar comigo...? – ela falava-lhe friamente... Gigi empalideceu. Alguma coisa tinha falhado. Mas o que é que poderia ter sido? Estavam lá todos os louvores pelas pontes e estradas que ele construíra. Ter-se-ia esquecido de algum fato importante? Olhou o caderno que ela lhe devolvera, aberto nas mãos, mas não distinguiu as letras subitamente misturadas. A acusação, porém, veio sem tardar, inexorável, imprevisível. Como é que ele se atrevera a trata-lo por tu! Como é que ele tivera o arrojo de o nomear com um simples artigo definido!? - Ouve lá... tu julgas que ele anda sujo e roto como tu, e como funje na sanzala...? - Não... não... não é... – gemia o Gigi, desnorteado, tentando estancar o fluxo daquelas insinuações que ele temia. De repente exibia-se aos olhos dos colegas deformado como uma caricatura, o compromisso irrecusável que circulava no seu sangue e que até ali inutilmente escondera. Uma vaga de calor inundou-lhe o rosto e invadiu-o levemente uma sensação entorpecente. Os seus ombros encurvaram-se. Sentiu-se muito fraco. Já nada tinha que disfarçar, mas estava triste perante a luta que pressentia. Mas porque, porque que ela, logo ela, o queria humilhar? Ela que tinha carapinha. Ela que era filha de uma negra, pensou com furor. Os seus músculos crisparam-se e o caderno começou a amarrotar-se-lhe nas mãos. Depois mal sentiu a violência da palmatória. Só nas faces a queimadura viva da humilhação, só nos ombros a responsabilidade da sua condição que ele não tinha culpa, mas que queria aceitar mesmo dolorosa como as pulsações que lhe ressoavam nas palmas das mãos inchadas. E na carteira chorou. Chorou de raiva, da dor que lhe nascia da piedade dos colegas e da vergonha de não poder esconder a sua angústia, com os olhos secos, enxutos, e orgulhosamente raiados de sangue, como os do Matoso. (Kinaxixe e outras prosas)

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BOAVENTURA CARDOSO

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NOSTEMPO DE MIÚDO CARDOSO, Boaventura. Dizanga dia Muenhu. São Paulo: Ática, 1982, p. 27-30 Manecas na baliza imobilizou o avanço. Bola marchando, Pedrito puxa para Lito, este corre já em direção à linha divisória, entretanto, o sete recebe-lhe o esférico, finta brasadamentc, tenta distribuir o jogo, corta agora Nené Gordo, miá, Cachaça dono do esférico, vai agora! remata rasteiro para Zeca em progressão, estica para o lado direito e a bola lateralmente fugindo. Pontapé no canto. Zero zero, tabuada em branco. Pernas velozes pisávamos espaço retangular, suarentas catingas, transpirávamos, nós camisolados, eles costas reluzentes. Na corrida outra vez, jogada agora no campo de lá, avança Totoxe (tem Xaxa - do nome dele outro), corta, miá, miá, mialalá*, Paulo aparecendo leva faiscadamente o esférico, atenção!, jogada lixada, defensiva formada na batiza azarenta, e remata por cima da trave! Jogo renhido no Campo da Companhia Indígena. Trumuno* com altos e baixos, ninguém que tinha tempo para descansar só. Bola que andava já, jogo ainda em campo metade, o cinco dominando a situação, tenta passar para o oito, surge Paulo, não consegue, jogo então veio no nosso campo. Bucho se defende, Quinzé secunda, faz uma revienga*, miá, dá para Rataças. É pontapé de baliza. Maxinde contra Quinze de Agosto. Defensiva preparada, Zeca capitão da turma na voz de comando. Suor banhando corpos movimentados. Rasteiradamente a bola corre a nos trazer azar, mas surge Manecas ... Boa defesa! Jogávamos esquecidos de tudo, até dos exames que estavam vizinhos. Traquinice nos tempo de miúdo. Paramos e olhamos. Respiração batucante ainda. Manecas traz a bola! - vozeamos. Guardião na fuga rápida com o esférico de borracha. A interrogação prendia nossos pensamentos. Ó Manecas, traz a bola! - vozeamos juntamente. Olhares de pergunta nos outros. Rataças, corpo mosquito, dá também de correr. Corre! Lhe agarra mesmo! - dissemos no íntimo.de cada um. Nos enganamos. Pedrito, Lito, Totoxe, quê que há?, também no ensaio do passo corrido. Companhia Indígena toda, cinturões desapertados, eué!, no cerco do retângulo. Vão nos agarrar! Manecas foi o primeiro quem lhes topou na preparação do cerco. Desafio suspenso no campo dá desafio fora do jogo, sem penalidade. A velocidade nos pés era grande, nem mesmo que compreendíamos só como é que estávamos a correr então. Nené Gordo empalitava maravilhosamente na berrida. Muros altos eram terra plana em nossas pernas correndo. Soldados disparados atrás de nós, cavalgando metros. Que que foi, meninos? - Tia Cristina pegou susto. A resposta ninguém que dava. Nem já só fala para falar. Nada. Cada um na busca de lugar seguro. Ouvimos então as vozes e os passos soldadescos. Aí o coração que se ia lixando. No entendimento da nossa aflição, Tia Cristina lhes esperou mesmo lá fora. Aqui? Não, senhor, não vi meninos entrar. Traquinice nos tempo das férias? Eh! Se vos conto, me pagas quê então? Bem. Era uma vez ... , não me lembro mais. Ih! Não faz mais truques, pá. Conta lá, pá. Gente de paz, é a história que vou pôr. Aconteceu nos tempo das confusões um dia; palavra d'honra. Ninguém si ri. Já nos tinham avisado. Seis horas recolher. Patrulha atirar só. Sessenta e um * quente. Cuidado! Pimentel barbudo sanguinário, olhos na mira fúnebre. Sô Rocha nacionalista fogoso já lhe mataram então. Cuidado! Seis horas recolher. Patrulha atirar só. Sessenta e um quente. Vínhamos andando assustados. Nove horas da noite, a corneta tocara fazia tempo. Maxinde-Katepa parecia tinha distância. Na porta d'armas ainda que passamos bem. Sentinela só nos olhou mau. Fomos andando, andando. Silêncio, ninguém que passava só. Capim alto era surpresa escondida no caminho da noite. Zeca (pai dele lhe chamavam Canhoto) me deu coragem: "Se nos perguntarem quem vem

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aí, vamos falar é gente de paz. Em Luanda uma vez ma safei assim". Nem lhe ouvi mais. Podia? O medo sempre comigo. Caminho andado com a vizinhança do perigo. Vontade de falar perdemos. Ouvíamos só nossos passos e o vento cortante nas árvores nos punha susto. Segurei na mão de Zeca. Cuidado! Sessenta e um quente. Seis horas recolher. Vamos morrer! Quem vem ai? - a pergunta sinistra que esperávamos. Paramos. Quietos. Nem mais um passo. Zeca falou baixo: "Vamos falar é gente de paz. Anda!" Fala está onde então? Minhas pernas desmaiando. Quem vem ai? Arma. fogando já quase. Coração frio, sangue glacial. Encontro com a morte certa. Gente de paz!!! - Zeca gritou com toda a força. Não queria morrer. Pópilas* a vida é só uma! Em sentido. Ali. Estávamos. Quietos. Nem mais um passo. Vamos morrer! Minha mão na mão de Zeca. Selagem fraterna. "Nossa mãe está doente, fomos na farmácia" - o guarda queria saber adonde vínhamos. Foi Zeca que conseguiu responder. "Meninos, tenham cuidado, não são horas de andar. Podem passar." Chui* ainda tinha coração dele bom. Nossa sorte. Começamos então a sentir a vida renovada. Andamos só um bocado e a morte outra vez ali perto. Paramos. Nem mais um passo. Nosso guarda atira? - bala na câmara, ximba perguntou. Nosso guarda atira?! O guarda não estava ouvir. Vamos morrer desta vez. Nosso guarda atira? Bala na câmara faltava pouco para sair a nos matar. A morte e a vida em luta. Já nos tinham avisado. Sessenta e um quente. Seis horas recolher. "Não, deixa passar!" Estávamos safos. Corrida louca começamos já. Mas ... no escuro da noite ameaçando furar nossas barrigas, uma baioneta. Zeca bravou: "Nosso guarda já nos disse para passar, ximba * dum raio, mé". "Eu ximba? Eu ximba?" - a mão da morte fazia-nos recuar. De repente alguém gritou a ordem de passagem. Nem já as poças d'água chuvosa se víamos. Era só correr. Sempre em frente. Já nos tinham avisado. Seis horas recolher. Patrulha atirar só. Sessenta e um quente. Cuidado! Pimentel barbudo sanguinário, olhos na mira fúnebre. Sô Rocha nacionalista fogoso já lhe mataram. Cuidado! Seis horas recolher. Sessenta e um quente. Vocabulário Chui - policial Miá, miá, mialalá - torcida (N. E.) Pópilas - exclamação equivalente a "ora bolas!" (N. E.) Revienga - finta, drible (N. E.) Sessenta e um – 1961, ano em que tiveram início as ações armadas nacionalistas contra o colonialismo (N.E.) Trumuno - desafio de futebol (N. E.) Ximba (cipaio)– policial angolano a serviço da repressão colonial portuguesa (N.E.)

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COSTA ANDRADE

EMBOSCADA O dia estranhamente frio o tempo estranhamento lento a vegetação estranhamente densa a estrada estranhamente clara todos estranhamente mudos placados e estranhamente à espera. Um tiro e as rajadas uns segundos até que estranhamente duro o silêncio comandou de novo os movimentos. talvez fossem homens bons os que caíram mas cumpriram estranhamente o crime de assassinar a pátria alheia que pisavam.

(FALO DE AMOR POR FALAR) 19

O amor é amor não se limita à nuvem das palavras, e não cega e não se nega e não domina nem oprime o amor amado. O amor é amor

após a luta por amar. O amor é amor quando ilumina e dulcifica as mãos que endurecidas amassam o pão de amor de todos os homens.

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MULATO

Pertenço à geração que há-de vencer E tenta abrir novas estradas Sobre o mundo. Não paro nem me canso Nem me assusto Nem mesmo grito já As vozes que o silêncio enrouqueceu. Nasci igual a uma mensagem Com raízes em todos os continentes... Fizeram-me capaz de amar E de criar Carregaram-me os ombros De certezas E deram-me a coragem de transpor Impedimentos. Mas sou apenas Homem. Igual a ti irmão de todas as europas E a ti irmão que transpareces Às áfricas futuras.

(Terra das acácias rubras, 1961)

LUANDA

Luanda é também Uma quimera Sonhos deslocados pela guerra Tenda rasgada pelo sol e pela chuva Crianças que dormem ao relento Muitas são homens verticais de palmo e meio Bimbas a flutuar no mar da fome Também os há que a rua transformou Em rostos surdos e duros para sempre Mesmo se uma rosa de porcelana desabrocha E a flor do maracujá beija a passagem (Luanda. Poema em movimento marítimo, 1997)

JOSÉ LUÍS MENDONÇA

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POESIA VERDE para Carlos Drummond de Andrade No meio do caminho nunca houve uma só pedra As pedras nascem na boca e a boca é o seu caminho Das pedras que comemos as cidades ainda falam pelos cotovelos da noite Não eram pedras eram pedras com cabeça tronco e sexo Pariram fábricas de pedras montadas sobre a língua E as pedras comeram a pedra que restou no meio do caminho

ODE À GOIABA Goiabas surgindo como um rio amarelo o perfume delas rico de sínteses das madrugadas encerradas na penugem dos Katetes. E o sol também o sol camarada e operário doirando a cabeça das árvores quando os montes além fecundam as ventanias no sangue maternal das tardes. Tudo isso é pouco p'ra caber numa goiaba. Falta o sonho da palma da mão no começo da seca estação. (Chuva novembrina)

TEU SER Teu ser modelado a barro vivo é de um breve negro quando te sentas no chão Escrava dos minutos infinitos teu ângulo de água aberta aquece luas remotas. (Palavra de poeta - Antologia)

SUBPOESIA Subsaarianos somos sujeitos subentendidos subespécies do submundo subalimentados somos surtos de subepidemias sumariamente submortos do subdólar somos subdesenvolvidos assuntos de um sul subserviente (Chuva novembrina)

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JOSÉ DA SILVA MAIA FERREIRA

À MINHA TERRA

(No momento de avistá-la depois de uma viagem) Dedicação

Ao meu compatriota O Ilmo. Sr. Joaquim Luis Bastos De leite e mar – lá desponta Entre as vagas sussurando A terra em que cismando Vejo ao longe branquejar! É baça e proeminente, Tem da África o sol ardente, Que sobre a areia fervente Vem-me a mente acalentar. Debaixo do fogo intenso, Onde só brilha formosa, Sinto na alma fervorosa O desejo de a abraçar: É minha terra querida, Toda da alma, - toda-vida, - Que entre gozos foi fruídas Sem temores, nem pesar. Bendita sejas, ó terra, Minha terra primorosa, Despe as galas – que vaidosa Ante mim queres mostrar: Mesmo simples tens fulgores, Os teus montes têm primores, Que às vezes falam de amores A quem os sabe adorar!

Navega pois, meu madeiro, Nestas águas de esmeraldas, Vai junto do monte às faldas Nessas praias a brilhar! Vai mirar a natureza, Da minha terra a beleza, Que é singela, e sem fereza Nesses plainos de além-mar Da leite o mar, - eis desponta Lá na estrema do horizonte, Entre as vagas – alto monte Da minha terra natal; É pobre, - mas tão formosa Em alcantis primorosa, Quando brilha radiosa, No mundo não tem igual! Espontaneidades da minha alma 1949

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PAULA TAVARES (SEM TÍTULO)

As coisas delicadas tratam-se com cuidado

(Filosofia cabinda) Desossaste-me

cuidadosamente inscrevendo-me

no teu universo como uma ferida uma prótese perfeita maldita necessária

conduziste todas as minhas veias para que desaguassem nas tuas

sem remédio meio pulmão respira em ti o outro, que me lembre

mal existe

Hoje levantei-me cedo pintei de tacula e água

fria o corpo aceso

não bato a manteiga não ponho o cinto

VOU para o sul saltar o cercado (Ritos de passagem, 1985)

A MANGA Fruta do paraíso companheira dos deuses as mãos tiram-lhe a pele dúctil como, se de mantos se tratasse surge a carne chegadinha fio a fio ao coração leve morno mastigável o cheiro permanece para que a encontrem os meninos pelo faro (Ritos de passagem, 1985)

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PAULA TAVARES

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A MÃE E A IRMÃ A mãe não trouxe a irmã pela mão viajou toda a noite sobre os seus próprios [passos toda a noite, esta noite, muitas noites A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe [fumado a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco [ das espigas vermelhas A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites todas as noites com os seus pés nus subiu a montanha pelo [ leste e só trazia a lua em fase pequena por [companhia e as vozes altas dos mabecos. A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de [proteção no pano mal amarrado nas mãos abertas de dor estava escrito: meu filho, meu filho único não toma banho no rio meu filho único foi sem bois para as pastagens do céu que são vastas mas onde não cresce o capim. A mãe sentou-se fez um fogo novo com os paus antigos preparou uma nova boneca de casamento. Nem era trabalho dela mas a mãe não descurou o fogo enrolou também um fumo comprido para o [cachimbo. As tias do lado do leão choraram duas vezes e os homens do lado do boi afiaram as lanças. A mãe preparou as palavras devagarinho mas o que saiu da sua boca não tinha sentido. A mãe olhou as entranhas com tristeza espremeu os seios murchos ficou calada no meio do dia.

AMARGOS COMO OS FRUTOS "Dizes-me coisas tão amargas como os frutos..." Kwanyama Amado, porque voltas com a morte nos olhos e sem sandálias como se um outro te habitasse num tempo para além do tempo todo Amado, onde perdeste tua língua de metal a dos sinais e do provérbio com o meu nome inscrito onde deixaste a tua voz macia de capim e veludo semeada de estrelas Amado, meu amado o que regressou de ti é tua sombra dividida ao meio é um antes de ti as falas amargas como os frutos (Dizes-me coisas amargas como os frutos)

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(Dizes-me coisas amargas como os frutos)

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NÃO CONHEÇO NADA DO PAÍS DO MEU AMADO Não conheço nada do país do meu amado Não sei se chove, nem sinto o cheiro das laranjas. Abri-lhe as portas do meu país sem perguntar nada Não sei que tempo era O meu coração é grande e tinha pressa Não lhe falei do país, das colheitas, nem da seca Deixei que ele bebesse do meu país o vinho o mel a carícia Povoei-lhe os sonhos de asas, plantas e desejo O meu amado não me disse nada do seu país Deve ser um estranho país o país do meu amado pois não conheço ninguém que não saiba a hora da colheita o canto dos pássaros o sabor da sua terra de manhã cedo Nada me disse o meu amado Chegou Mora no meu país não sei por quanto tempo É estranho que se sinta bem e parta. Volta com um cheiro de país diferente Volta com os passos de quem não conhece a pressa. (O lago da lua)

CERIMÔNIA DE PASSAGEM "a zebra feriu-se na pedra a pedra produziu lume" a rapariga provou o sangue o sangue deu fruto a mulher semeou o campo o campo amadureceu o vinho o homem bebeu o vinho o vinho cresceu o canto o velho começou o círculo o círculo fechou o princípio "a zebra feriu-se na pedra a pedra produziu lume" (Ritos de passagem)

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RUY DUARTE DE CARVALHO

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(Sem título) Ndapewa oilonga idiu kombala Okuhondya omufya wediva Okuhumbata omeva m’osimbale Okutoma ongobe n’onyala Okuka omuti n’enyala Okunyaneka oufila k’ombada yomeva

Os duros trabalhos que lhe foram dados para fazer na ombala: Vedar com uma linha um rombo num tanque Varrer as macutas sem usar vassoura Com a ajuda de um cesto transporta a água Abater um boi apenas com as mãos Derrubar um pau só com as próprias unhas Secar a farinha espalhando-a na água. abater um boi com a ajuda de um cesto derrubar um pau sem usar vassoura secar a farinha apenas com as unhas transportar a água espalhando-a na água varrer as macutas servido de agulha derrubar as águas sem usar as unhas vedar com uma linha um rombo nas mãos abater macutas com a ajuda de um cesto com a ajuda de um boi abater um tanque transportar um boi esfolado com as unhas derrubar as unhas apenas com as mãos derrubar a água secar a farinha transportar as unhas espalhar as agulhas abatendo os cestos

varrer as vassouras servido de um tanque com a ajuda dos rombos.

Vedar a farinha Derrubar as unhas esfolar as agulhas abater os tanques transportar os rombos varrer as ajudas secar os apenas derrubar as linhas derrubar as linhas derrubar as linhas derrubar as linhas. (Hábito da terra)

NYANEKA Não espanta o gado, a palavra Quando é boa Nem apodrece Quando exposta ao tempo... Herdei-a sozinho Não a como assim: O dar não molesta o braço nem dorme com espinho a mão que afagou durante o dia. Zebras sem guiam perdidas na corrida.... Raia o sol, continuamente E o povo pensa que há contentamento. Mas não nos surge a lua Destroçada A renovar-se sempre Mutilada? Hás os limites, bem sei Do céu e da terra... Quem os conhece? (Ondula, savana branca, 1989, p. 38)

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Ferreiro e então pensei: este ferreiro aqui a trabalhar o ferro, senta-se assim numa pedrita baixa e tem dois foles mesmo à sua frente, sai-lhe das pernas um canal comprido, maneja as varas para empurrar o vento, o ar circula pelo tubo adentro e vai verter-se na fornalha acesa, eis um ferreiro entregue ao seu labor, eis uma coisa antiga, sim senhor. e então pensei: este ferreiro assim na posição que tem, sai-lhe das pernas um canal comprido, masturba as varas para empurrar o vento, verte-o - de que linhagem vens? e ele respondeu, de costas: - o meu sopro é o do metal. afasta-te, mulher, que uma palavra minha pode gerar-te um crime. postou-se nu perante a tempestade para embeber-se do poder do fogo. e ouviu a voz de um morto que dizia: - o teu desejo pede mais que a carne. extinguiu-se em ti a exaltação das virilhas. és aprendiz de Deus, semearás pelo verbo. o pensamento, em ti, há-de escorrer pelos braços e ele é tão puro que incandesce a terra. trabalha a pedra. da tua entrega acordarás fecundo para inaugurar uma linguagem nova. (Sinais misteriosos... Já se vê...)

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Trecho de “MESTRE” TAMODA

Uanhenga Xitu

À memória do saudoso e malogrado meu compadre Kamundongo (Higino Aires Alves de Sousa Viana e Almeida), falecido em 11/1/1970, num domingo. Morreu o Higino Aires!!!...

Tamoda, muito novo, dirigiu-se à cidade de Luanda, onde viveu muitos anos. Nesta, trabalhava e estudava nas horas vagas, com os filhos dos patrões e com os criados do vizinho do patrão. Assim, conseguiu aprender a fazer um bilhete e uma cartinha que se compreendia. No último emprego, na casa de um Doutro que vivia solteiro, quando o patrão se ausentava para o serviço passava otempo a decorer e a copiar os vocábulos do dicionário. Aqueles vocábulos que lhe soavam bem. Já homem e na idade de casar abandonou a cidade e o emprego e voltou à sanzala que o viu nascer. Quando desembarcou na estação dos Caminhos de Ferro sobraçava dois volumosos calhamaços e uma pasta de arquivo na mão. Duas maletas e um saco de pano vbranco que, além de outros volumes, foram levados pelos parentes que nesse dia iam ao seu encontro. Em casa, na presença daqueles que o iam saudar, abriu a mala que trazia muitos romances velhos, entre eles um dicionário usado e já carcomido, algumas folhas soltas de dicionários, um livro de Como se escrevem cartas de amor, outro de Manual de correspondência familiar e alguns volumes de leis.

* * *

O novo intelectual, no meio da uma sanzala em que quase todos os seus habitantes falavam quimbundo e só em casos especiais usavam o português, achou-se uma sumidade da língua de Camões. Ao dicionário apelidade: o ndunda – aliás, termo também aplicado, em quimbundo, a qualquer livro volumoso e de consulta. Nas reuniões em que estivesse com os seus contemporâneos, bundava34 , sem regra, palavras caras e difícies de serem compreendidas, mesmo por aqueles que sabiam mais do que ele e que eram portadores de algumas habilitações lite´rarias. Quando em conversa com moças analfabetas e que mal pronunciavam uma palavra em português, o “literato”, de quando em vez, lozava 35os seus putos. Porém, alguns deles nem constavam nos dicionários da época. Era um “etimologista”, um “dicionarista”, que tinha descido na sanzala! Quem o aturou mais, nessa sua maneira de se expressar em putos caros, em público, foi a namorada Mufula, com quem mais tarde veio a casar-se. 34 Intercalava, interpunha 35 Intercalava, interpunha

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* * *

Como da cidade trazia dinheiro e poda pagar a alguém que lhe fizesse o trabalho de obrigação a que certo “morador” estava sujeito a prestar nas lavras dos sobas e de outras autoridades, o “dicionarista” tinha tempo de exibir os seus fatos, trazidos da cidade. A exibição era feita pelo período da tarde, quando regressava da lavra dos seus pais, e na altura em que, geralmente, todos os lavradores estão de volta dos campos. Granejava bastante simpatia dos jovens estudantes. E é nesta classe de “moradores” em que os seus putos tiveram terreno propício. Aguardava pela passagem dos moços quando voltavam da escola. Os garotos ouviam o mestre Tamoda com grande interesse. Alguns deles tomavam notas nas ardósias e nas capas dos cadernos do vocabulário que o “mestre” ia ditando. Nem sempre havia tempo de tirar o material para tomar nota dos apontamentos, o que os alunso faziam nas suas coxas ou nos antebraços negros como a cor da ardósia. O ditado era rápido. Nas reuniões juvenis, cada garoto, para mostrar a sua capacidade intelectual, de vez em quando intercalava um vocábulo na conversa, quer tivesse ou não relação com o assunto. Porém a confusão era tanta que cada um só sabia o que continha a sua folha. A fama do Tamoda, difundida pelos garotos, dominava as povoações, incluindo gente feminina, que, geralmente, na ofrequentava a escola. Distribuía folhas soltas de dicionário, para serem decoradas pelos miúdos e eram encaixadas com mais facilidade que o ditongo, sílaba e adjectivo do professor oficial. O mestre era tão querido pelos seus petizes que quando passava, todo ele janota, vestido de calções e camisa bem branca, meias altas e capacete também da mesma cor do fato, sapatos à praia com lixa, ouvia-se o coro dos rapazes que tributavam ao Tamoda: - Lungula, Tamoda!... Lungula, Tamoda! 36 Tamoda, na cadência das vozes e do sapato a chiar, ia marcxando o ritmo com a cabeça e os ombros, muito esticado e sorridente, e lungulava como um kingungu-a-xitu:37 “...ié-ié, ié-ié, ié-ié (o chiar do sapato)... ié-ié, ié-ié, ié-ié, que era correspondido com o vozearia dos garotoas: “Lungula, Tamoda! Lungula, Tamoda! Lungula, Tamoda!” O “mestre” volteava-se cerimoniosamente para os seus fans, com o sorriso a relancear-se-lhe na face, e repetia pausadamente, em sua voz grossa, as palavras gritadas: “Lungula, Tamoda!” – ao mesmo tempo que, com o capacete entre os dedos e mal pousado na cabeça, fazia com garbo uma vênia de diplomata. Os garotos, radiantes com a saudação, mais gritavam: - Lungula, Tamoda! Lingula, Tamoda!... Às vezes, os garotos acompanhavam o chio dos sapatos com o estribilho de “uá, uákala, uá! Uá-uá, uákala-uá ngasumbile kiá jakuké...” Tamoda, com uma mão no kimokoto 38 e outra no capacete, girava sobre si e encarava a rapaziada, todo radiante, ao mesmo tempo que estremecia o pé e cumbuacumbuava39 a cabeça sorrindo. No lar e na rua os resmungos dos miúdos eram feitos em português do Tamoda, o que criava dissabores aos "estudantes". Porque os pais e manos que não compreendiam o 36 Ginga (Kulungula – gingar) 37 Grande pássaro do mato, conhecido também por peru do mato (kingunguaxitu ou kingungu) 38 Ilharga 39 Meneava

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significado da palavra interpretavam-na como asneira, o que se pagava com uns bons açoites. - Mano Tamoda, a gente quer saber o feminino de muchacho! perguntaram dois garotos duvidosos e na altura em que o "mestre" saía da cacimba de banho. - O feminino de muchacho é "muchachala"! -- respondeu prontamente o "mestre", senhor de si e o único a quem se podia consultar nas dúvidas. Os garotos, Kidi e Kuzela, saíram a correr, satisfeitos, para divulgarem o novo vocábulo, a acrescentar aos outros como: - "Mucama, embasbacado, cavalgadura, cavaldagem, mequetrefe, caviloso, sundéifulo, carabaixa, bajoujo, gentiga, jocoso, grageu, vasca, zoomorfo, zornar, lamecha, xucro, xéta, caduco, panhonho, pacóvio, larápio, manganar, biltre, basbaque, vagabundo..." Porém, o novo vocábulo de "muchachala" não vigorou muitos dias, porque é parecido com uma palavra em quimbundo: muxaxala, que significa sulco nadegueiro ou via retal. As rapariguinhas que eram tratadas por "muchachalas" com o significado de moça, jovem, corriam para se queixarem aos pais, quando elas não podiam sovar os novos "acadêmicos". Os pais ou manos daquelas não tardavam a aparecer, para fazer contas com os discípulos do Tamoda. - Muxaxa uanhi, inn?! Já Tamoda-zé!?... Kiene?... 40-- inquiriam os pais das garotas. Em seguida, puxãozinho de orelhas, palmadas e umas chicotadinhas bastavam para fazer esquecer o feminino de muchacho. Os moços estavam tão interessados em decorar o dicionário que, na sanzala, as folhas soltas de jindunda41 eram procuradas a todo o custo. Muitos pais ficaram com os dicionários incompletos, nesta gana de aprender, porque os filhos arrancavam as folhas para as trocar, por 50 a 100 castanhas de caju cada folha, aos outros que andavam à procura. (XITU, Uanhenga. “Mestre” Tamoda e outros contos. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 9-16)

40 Muxaxala de queê, hem?! São os putos do Tamoda, não é?! 41 Dicionário

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VIRIATO DA CRUZ

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NAMORO Mandei-lhe uma carta em papel perfumado e com letra bonita eu disse ela tinha um sorrir luminoso tão quente e gaiato como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas espalhando diamantes na fímbria do mar e dando calor ao sumo das mangas Sua pele macia - era sumaúma... Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo tão rijo e tão doce - como o maboque... Seus seios, laranjas - laranjas do Loje seus dentes... - marfim... Mandei-lhe essa carta e ela disse que não. Mandei-lhe um cartão que o amigo Maninho tipografou: "Por ti sofre o meu coração" Num canto - SIM, noutro canto - NÃO E ela o canto do NÃO dobrou Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete pedindo, rogando de joelhos no chão pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigenia, me desse a ventura do seu namoro... E ela disse que não. Levei À Avo Chica, quimbanda de fama a areia da marca que o seu pé deixou para que fizesse um feitiço forte e seguro que nela nascesse um amor como o meu... E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, á porta da fabrica, ofertei-lhe um colar e um anel e um broche, paguei-lhe doces na calçada da Missão, ficamos num banco do largo da Estátua, afaguei-lhe as mãos... falei-lhe de amor... e ela disse que não. Andei barbudo, sujo e descalço, como um mona-ngamba. Procuraram por mim "-Não viu...(ai, não viu...?) não viu Benjamim?" E perdido me deram no morro da Samba. Para me distrair levaram-me ao baile do Sô Januario mas ela lá estava num canto a rir contando o meu caso as moças mais lindas do Bairro Operário. Tocaram uma rumba - dancei com ela e num passo maluco voamos na sala qual uma estrela riscando o céu! E a malta gritou: "Aí Benjamim !" Olhei-a nos olhos - sorriu para mim pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim. 1961

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SERÃO DE MENINO

Na noite morna, escura de breu, enquanto na vasta sanzala do céu, de volta de estrelas, quais fogaréus, os anjos escutam parábolas de santos... na noite de breu, ao quente da voz de suas avós, meninos se encantam de contos bantos... “Era uma vez uma corça dona de cabra sem macho... ....................................... ... Matreiro, o cágado lento tuc...tuc... foi entrando para o concelho animal... (“- Tão tarde que ele chegou!”) Abriu a boca e falou - deu a sentença final: “-Não tenham medo da força! Se o leão o alheio retém - luta ao Mal! Vitória ao Bem! tire-se ao leão, dê-se à corça.” Mas quando lá fora o vento irado nas frestas chora e os ramos xuaxalham de altas mulembas e portas bambas batem em massembas (*) os meninos se apertam de olhos abertos: - Eué É casumbi... (*) E a gente grande - bem perto dali feijão descascando para o quitande - (*) a gente grande com gosto ri... Com gosto ri, porque ela diz que o casumbi males só faz a quem não tem amor, aos mais seres buscam, em negra noite, essa outra voz de casumbi essa outra voz - Felicidade... (*) Onomatopéia. O barulho do vento na copa das árvores (*) Massembas- umbigada (*) Kazumbi – Fantasma (*)Quitande: purê de feijão

MAKEZU - “Kuakié!...Makèzù, Makèzù...” O pregão da avó Ximinha É mesmo como os seus panos, Já não tem a cor berrante Que tinha nos outros anos Avó Xima está velhinha Mas de manhã, manhãzinha, Pede licença ao reumático E num passo nada prático Rasga estradinhas na areia... Lá vai para um cajueiro Que se levanta altaneiro No cruzeiro dos caminhos Das gentes que vão p’ra Baixa. Nem criados, nem pedreiros Nem alegres lavadeiras Dessa nova geração Das “venidas de alcatrão” Ouvem o fraco pregão Da velhinha quitandeira. “Kuakié!...Makèzù, Makèzù...” “Antão, véia, hoje nada?” “Nada, mano Filisberto... Hoje os tempo tá mudado...” “Mas tá passá gente perto... Como é aqui tás fazendo isso?” - Não sabe?! Todo esse povo Pegô um costume novo Qui diz qué civrização: Come só pão com chouriço Ou toma café com pão... E diz ainda pru cima, (Hum... mbundo kène muxima...) Qui o nosso bom makèzù É pra veios como tu” Eles não sabe o que diz... Pru qué qui vivi filiz E tem cem ano eu e tu? “É pruquê nossas raiz Tem força do makèzù...”

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VIRIATO DA CRUZ

Sô Santo Lá vai o sô Santo... Bengala na mão Grande corrente de ouro, que sai da lapela Ao bolso... que não tem um tostão. Quando sô Santo passa Gente e mais gente vem à janela: - "Bom dia, padrinho..." - "Olá!..." - "Beçá cumpadre..." - "Como está?..." - "Bom-om di-ia sô Saaanto!..." - "Olá, Povo!..." Mas por que é saudado em coro? Porque tem muitos afilhados? Porque tem corrente de ouro A enfeitar sua pobreza?... Não me responde, avó Naxa? - "Sô Santo teve riqueza... Dono de musseques e mais musseques... Padrinho de moleques e mais moleques... Macho de amantes e mais amantes, Beça-nganas bonitas Que cantam pelas rebitas:

“Muari-ngana Santo dim-dom ualó banda ó calaçala dim-dom chaluto mu muzumbo dim-dom...” Sô Santo... Banquetes p´ra gentes desconhecidas Noivado da filha durando semanas Kitoto e batuque pró povo cá fora Champanha, ngaieta tocando lá dentro... Garganta cansado: 'Coma e arrebenta e o que sobra vai no mar...' Hum-hum Mas deixa... Quando Sô Santo morrer, Vamos chamar um Kimbanda Para ngombo nos dizer Se a sua grande desgraça Foi desamparo de Sandu Ou se é já própria da Raça..." Lá vai... descendo a calçada A mesma calçada que outrora subia Cigarro apagado Bengala na mão... ... Se ele é o símbolo da Raça ou a vingança de Sandu... 1961

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NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

Antonio AGOSTINHO NETO - (*Kaxikane, 1922 - + Moscou, 1979) Médico, foi presidente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e primeiro presidente da República Popular de Angola. Publicou: Poemas (1961); Sagrada esperança (1974); …e ainda o meu sonho (1978). A renúncia impossível (edição póstuma) AIRES da Silva ALMEIDA SANTOS (*Chinguar, 1922 - + Benguela, 1992). Poeta, contabilista e jornalista, com intensa militância política. Publicou: Meu amor da rua onze (1991). ANTONIO JACINTO do Amaral Martins (*Luanda, 1924 - + Luanda, 1991). Usou também como contista o pseudônimo de Orlando Távora. Participou ativamente da luta de libertação nacional, tendo ficado preso por 14 anos no campo de concentração do Tarrafal, Cabo Verde. Após a independência de Angola, exerceu vários cargos públicos, entre os quais o de Ministro da Educação e Cultura da República de Angola. Publicou: Poemas (1961), Vovô Bartolomeu (1979), Sobreviver em Tarrafal de Santiago (1991) ARNALDO SANTOS (*Luanda, 1935) Fez os estudos primários e secundários em Luanda. Na década de 50 integrou o chamado "grupo da Cultura". É membro fundador da UEA. Passou a infância e a adolescência no bairro do Kinaxixi, topónimo que ocupa um lugar privilegiado na sua produção narrativa. Publicou Fuga (1960, poemas); Quinaxixe (1965); Tempo do Munhungo (1968); Poemas no tempo (1977); Prosas (1977); Kinaxixe e outras prosas; Na Mbanza do Miranda (1985); Cesto de Katandu e outros contos (1986); Nova memória da terra e dos homens (1987) A Boneca de Quilengues (1991). A casa velha das margens (1999); Crônicas ao sol e à chuva (2002); O brinde seguido de A palavra e a máscara (2004); O vento que desorienta o caçador (2006). JOSÉ LUIS MENDOÇA (Golungo Alto, 1955, no Golungo Alto). Jornalista e poeta, é funcionário da UNICEF Angola, onde atualmente exerce as funções de assistente de informação. Escreve para diversos órgãos de informação angolanos e para o JL - Jornal de Letras, Artes e Idéias, de Portugal. Ingressou na União dos Escritores Angolanos em 1984. Publicou: Chuva Novembrina (1981); Gíria de Cacimbo (1987); Respirar as Mãos na Pedra (1991); Quero Acordar a Alva (1996); Se a Água Falasse (1997); Logaríntios da Alma (1998); Ngoma do Negro Metal (2000); Cal & Grafia (2002); Um canto para Mussuemba (2002); Gramática do amor contemporâneo (2002); Nua maresia (2005); Um vôo de borboleta no mecanismo inerte do tempo (2005) JOSÉ DA SILVA MAIA FERREIRA (Angola, junho de 1827 - Angola, séc.XX - 1867 ou 1881). Tendo estudado na cidade de Lisboa, possívelmente obteve instrução superior à primária. Teria vivido, na infância, alguns anos no Brasil, para onde voltaria, mais tarde (1847-1849), Amanuense da Secretaria do Governo Geral de Angola, tesoureiro da alfândega de Benguela, oficial da Secretaria do Governo de Benguela, esteve por alguns meses no Brasil. Candidato às eleições para senadores e deputados, realizadas em 1839. Colaboração no Almanach de Lembranças, Lisboa, 1879. Publicou, pelo menos: Espontaneidades da minha alma / As senhoras africanas, Luanda, 1849. MANUEL RUI Alves Monteiro (*Huambo, 1941) Advogado. Poeta, prosador e letrista de

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música popular. Também escreveu para crianças. Atuou na Casa dos Estudantes do Império. Membro do corpo editorial da revista Vértice. Publicou: Poesia sem notícias (1966), Regresso adiado (1973), A onda (1973), Memória de mar (1980), Quem me dera ser onda (1982), Cinco vezes onze (Poemas em novembro) (1985), Crônica de um mujimbo (1989), Um morto e os vivos (1992), Rioseco (1997), Da palma da mão (1998), Saxofone e metáfora (2002); Um anel da areia (2002), Maninha (2002); Nos brilhos (2002); O manequim e o piano (2005); A caso do rio (2007); Ombela (2007), A janela de Sílvia (2009). Ana PAULA TAVARES (*Huíla, 1953) Poeta. Doutora em História. Professora. Publicou: Ritos de passagem (1985), O sangue da buganvília (1998), O lago da lua (1999), Dize-mes coisas amargas como os frutos (2001), Ex-votos (2003), A cabeça de Salomé (2004); Os olhos do homem que chorava no rio (2005); Manual para amantes desesperados (2007). RUY Alberto Duarte Gomes DE CARVALHO (*Santarém, 1941). Poeta, contista, artista plástico, cineasta, antropólogo. Fez curso de Regente Agrícola, tendo sido técnico de café e de bovinos no sul de Angola. Durante 1973 frequentou a London Film and Television Academy. É Doutor, pela Sorbonne, em Antropologia. Professor da Universidade Agostinho Neto, em Angola. Publicou: Chão de oferta (1972), A decisão da idade (1976), Como se o mundo não tivesse leste (1977), Exercícios de crueldade (1978), Sinais misteriosos…já se vê…(1980), Ondula, savana branca (1982), Lavra paralela, (1987), O camarada e a câmera (1984), Lavra paralela (1987), Hábito da terra (1988), Ordem do esquecimento (1997), Ana a Manda, os filhos da rede (1990), Vou lá visitar pastores (1999), Os papéis do inglês (2000); Observação directa (2000), Actas da Maianga (2003); Lavra (2005); Desmedida (2006). UANHENGA XITU (Agostinho Mendes de Carvalho) (*Calomboloca, Icolo e Bengo, 1924). Prosador. Enfermeiro, estudou mais tarde Ciências Políticas. Foi Governador de Luanda, Ministro da Saúde, Embaixador na Alemanha e Deputado à Assembleia Nacional. Publicou: Meu Discurso (1974); Mestre Tamoda (1974); Bola com Feitiço (1974); Manana (1974); Vozes na Sanzala-Kahitu (1976); Os Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem (1980); Os Discursos de Mestre Tamoda (1984); O Ministro (1989); Cultos. VIRIATO Clemente DA CRUZ (*Amboim, 1928 - +Pequim, 1973). Membro fundador e Primeiro Secretário-Geral do MPLA. Um dos promotores do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola. Publicou: Poemas (1961).