Apostila minicurso clssicas

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Universidade Federal da Paraíba (UFPB) João Pessoa, 20 a 22 de junho de 2012 MINICURSO O jogo intertextual e a literatura latina: uma leitura comparativa entre os Tristes de Ovídio e a Eneida de Virgílio Ministrante: Profa. Dra. Patricia Prata (IEL / Unicamp)

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Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

João Pessoa, 20 a 22 de junho de 2012

MINICURSO

O jogo intertextual e a literatura latina: uma leitura comparativa

entre os Tristes de Ovídio e a Eneida de Virgílio

Ministrante: Profa. Dra. Patricia Prata (IEL / Unicamp)

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Introdução aos Tristes ovidianos

I. Ovídio: vida e obra

1.1. Dados biográficos (cf. Conte 1994, p. 340-366)

- Publius Ovidius Naso, nasceu em 43 a.C. em Sulmo (atual Sulmona), nos apeninos

italianos. Foi exilado pelo imperador Augusto em 8 d.C na cidade de Tomos (atual

Constanza, na Romênia), na costa ocidental do Ponto Euxino (hoje, Mar Negro), vindo a

falecer nesse local em 17 ou 18 d.C.

1.2. Obras

a) Anteriores ao exílio

- Amores

- Heroides

- Medea (tragédia perdida)

- Ars Amatoria

- Remedia Amoris

- Medicamina Faciei Feminae

- Methamorphoseon Libri

- Fasti

b) Posteriores ao exílio

- Tristium (Tristia)

- Epistulae ex Ponto

- Ibis

- Poemas de autoria duvidosa, atribuídos a Ovídio

- Halieutica – poema didático sobre pesca, em hexâmetro

- Consolatio ad Liviam e a elegia Nux (poemas certamente espúrios)

- Textos perdidos

- dois breves poemas em homenagem a Augusto, um deles escrito em geta - língua franca

falada em Tomos, "enxertada de grecismos e latinismo barbarizados", segundo José Paulo

Paes (1997, p. 17).

II. O exílio do poeta: discussão de possíveis causas de sua condenação

Obs: O desterro de Ovídio não se configura como um exilium, mas sim como uma

relegatio, uma vez que o poeta não perdeu sua cidadania e seus bens não foram

confiscados.

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a) Causa literária: Ars Amatoria

b) Causas de ordem política, religiosa ou moral:

- Conte (1994, 340): envolvimento de Ovídio no escandaloso adultério de Júlia Menor, neta

de Augusto, com Decimus Junius Silanus;

- José Paulo Paes (1997, 16): além do motivo acima citado, apresenta duas outras razões:

ou Ovídio teria assistido às escondidas a uma cerimônia do culto de Ísis, vedado aos

homens, e Lívia, mulher de Augusto, iniciada nos mistérios da deusa, teria pedido uma

punição a esse ato; ou Ovídio estaria cultivando amizades favoráveis à sucessão de Agripa

Póstumo ao trono de Augusto, seu avô;

- Della Corte (1973): discute os motivos da relegatio a partir da caracterização da culpa

apresentada por Ovídio ao longo de seus livros, sobretudo nos Tristes II, 207: os duo

crimina, carmen et error. Della Corte, então, atribui as causas à produção poética -

sobretudo a Ars Amatoria - e ao error, fato difícil de estabelecer e precisar. O latinista

italiano apresenta algumas hipóteses retiradas de textos do próprio Ovídio, de Suetônio, de

Tácito e do codex Galeanus do séc. XII (p.53):

a) Ovídio surpreende Augusto em relação incestuosa com a filha (Suet. Cal. 23), ou com a

neta, ou em atos obscenos;

b) Ovídio vê a imperatriz Lívia nua no banho (Tr., II, 103 ss.);

c) Ovídio profana o simulacro da deusa Ísis (ex P. I, 1);

d) Ovídio comete adultério com Lívia (cod. Galeanus, sec.XII);

e) Ovídio escreve um epigrama ou um gracejo poético, sem se revelar o autor, para

ridicularizar Augusto (Suet. Aug. 70);

f) Ovídio foi obrigado por Corina-Júlia a retocar, reduzindo a três livros, o argumento dos

cinco livros dos Amores, inserindo alusões a Tibério, que ela detestava (Tac. An. I, 53);

g) Ovídio participou de uma conspiração para tornar Agripa Póstumo sucessor de Augusto

(Tac. An. I, 5).

III. Apresentação dos Tristes

a) Motivação da análise biografista

- Os Tristes contêm informações sobre a vida do poeta antes e durante o desterro: detalhes

sobre sua família, seus casamentos, suas viagens, estudos, entre outras coisas;

- O fato de a obra ter sido escrita em primeira pessoa.

b) Leitura intertextual e seus ganhos: crítica à análise biografista

- Os Tristes, antes de serem um tipo de autobiografia, são poesia e é difícil discutir a

relação que possa haver entre a personagem criada nas elegias e o próprio autor, pois essa

questão tão delicada implica conhecimento irrestrito da vida de Ovídio, impossibilitado

pela grande distância de tempo que nos separa dele;

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- Virgílio é para Ovídio mais que um modelo imediato, é um desafio, pois o autor elegíaco

tenta, a todo momento, igualá-lo, mas em um campo diverso (Michael von Albrecht,

verbete Ovídio, Enciclopedia Virgiliana vol. III, 1987, p. 907-909):

Tantum se nobis elegi debere fatentur,

Quantum Virgilio nobile debet epos (Rem. Am., 395-396) ["As elegias reconhecem que nos devem/ tanto quanto a epopéia deve ao nobre Virgílio."]

- Albrecht (ibid.) diz que Ovídio não apenas se esmera para compor o gênero elegíaco, mas

também tenta transcendê-lo, ao criar um confronto entre gêneros. A Eneida está presente

em muitos escritos do autor: na Arte de Amar (v.337 ss.) apresenta-se como a mais

grandiosa do Lácio; nos Amores, a palavra arma e o "desejo" expresso pelo poeta de

escrever épica marca a ligação com o texto virgiliano; nos livros XIII e XIV das

Metamorfoses a personagem Enéias é o fio condutor da ação...

- Também na poesia do exílio a épica virgiliana se faz presente, pois o autor elegíaco se

compara a todo momento a Enéias e traça ligações entre o seu infortúnio e o do herói:

Si licet exemplis in paruo grandibus uti,

Haec facies Troiae, cum caperetur, erat (I, 3, 25-16)

IV. Leitura das elegias I, 2, 3 e 4 (ver anexo)

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Intertextualidade e os Estudos Clássicos

I. Plágio vs. imitatio

1.1 Sobre o termo plágio

- O vernáculo plágio, através do latim plagium, provém do grego plágios ou plágion. Na

origem, plágios tem o significado de oblíquo, transversal, tortuoso, ambíguo, astucioso e

doloso. Posteriormente, no direito romano, plagium passou a significar seqüestro,

ocultação, doação, compra e venda de escravo alheio sem autorização do dono, bem como

o ato consciente de manter em servidão um homem livre: "era um crime de corrupção, de

simulação de propriedade, mediado por interesses diversos e realizado de diversas formas,

sempre envolvendo apropriação desonesta, fraudulenta" (Christofe ,1996, 20-21).

- Marcial foi o primeiro a associar o ato de plágio ao roubo de textos escritos

I, 53

Commendo tibi, Quintiane, nostros -

Nostros dicere si tamen libellos

possum, quos recitat tuus poeta -:

Si de seruitio graui queruntur,

Adsertor venias satisque praestes

Et, cum se dominum uocabit ille,

Dicas esse meos manuque missos

Hoc si terque quaterque clamitaris

Impones plagiario pudorem. (o grifo é meu)

[“Confio a ti, Quintiano, os nossos -

Se nossos ainda posso chamar

Os livros que recita teu poeta -:

Se se queixam de onerosa servidão,

Vem como defensor e lhes preste toda assistência.

E, quando aquele se disser o senhor deles,

Dize serem meus e manumissos.

Isto, se, ou três ou quatro vezes, gritares,

Imporás ao plagiário pudor.”]

Veja também o epigrama I, 54

Una est in nostris tua, Fidentine, libellis

Pagina, sed certa domini signata figura,

Quae tua traducit manifesto carmina furto,

Sic interpositus villo contaminat uncto

Urbica Lingonicus Tyrianthina bardocucullus.

Sic Aretinae violant crystallina testae.

Sic niger, in ripis errat cum forte Caystri,

Inter Ledaeos ridetur corvus olores.

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Sic ubi multisona fervet sacer Atthide lucus,

Improba Cecropias offendit pica querelas.

Indice non opus est nostris,nec uindice libris.

Stat contra dicitque tibi tua pagina: “Fur es.” (o grifo é meu)

[Há, em nossos livros, Fidentino, uma única página

Tua, mas com o retrato claramente assinalado de seu dono,

Que acusa teus versos de furto evidente.

Assim, interposta, contamina com seu pêlo ungido

A capa ligônica1 as purpúreas vestes citadinas.

Assim, as arentinas2 bilhas denigrem os vasos de cristal.

Assim, ri-se do negro corvo, quando às vezes erra

Nas margens do Caístro3, entre os cisnes ledeus4.

Assim, onde o bosque sagrado se alvoroça com rouxinol multissonoro,

A infame pega ofende as querelas cecrópias5.

Meus livros não precisam de acusador nem de defensor,

Levanta-se contra ti tua própria página e diz: “És ladrão”.]

1.2. Imitatio

- Sêneca, o Retor (séc. I d.C.), comenta uma retomada de Virgílio feita por Ovídio:

non subripiendi causa sed palam mutuandi, hoc animo ut uellet agnosci. (Suas. 3, 7) [“Não para surrupiar, mas para tomar emprestado às claras, com a intenção de que houvesse o

reconhecimento.”]

- Sêneca, o filósofo estóico, compartilha da mesma opinião quando diz a seu discípulo

Lucílio:

condicio optima est ultimi: parata uerba inuenit, quae aliter instructa nouam faciem

habent. Nec illis manus inicit tamquam alienis; sunt enim publica.

(Epist. Mor. ad Luc., 79, 6)

[“A melhor situação é a do último: encontra palavras já prontas, que, construídas de outra forma, adquirem

novo aspecto. E não lança mão delas como de algo alheio, pois são de domínio público.” (trad.: Vasconcellos,

retirada de um handout distribuído durante curso de pós-graduação em 1999 no IEL/UNICAMP)]

- Horácio, em sua Arte Poética, também faz algumas referências a tal processo:

Aut famam sequere aut sibi conuenientia finge

scriptor. (...)

1 Os lingões são um povo da Gália céltica, hoje região de Langres.

2 Arécio era uma cidade da Etrúria (Itália), hoje Arezzo, na Toscana.

3 Caístro era um rio da Lídia famoso por seus cisnes, hoje é chamado de Karasu.

4 Leda é filha do rei da Etólia, Téstio, e de Eurítemis. Foi desposada por Tíndaro quando esse, expulso de

Lacedémon por Hipocoonte e seus filhos, buscou refúgio na Etólia. Júpiter enamorou-se por Leda e para que

sua conquista tivesse bom êxito transformou-se em cisne. Leda teve quatro filhos, encerrados em dois ovos

divinos. Desses nasceram Pólux e Helena, considerados filhos de Júpiter, e Castor e Clitemnestra, filhos de

Tíndaro. (cf. Commelin, 1955, 302 e Grimal, 1997, 371b-372a). 5 De Atenas, atenienses, Cecrópia é uma cidade de Atenas.

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nec uerbo uerbum curabis reddere fidus

interpres (...)

(...). Vos exemplaria Graeca

nocturna uersate manu, uersate diurna. (vv.119-120; 133-134; 268-269) [“Ou, sendo escritor, segue a tradição, ou cria de acordo com ela. (...)/ Não te preocuparás em verter palavra

por palavra como um fiel/ tradutor (...)/ Vós, os modelos gregos/ de noite folheai, folheai de dia.”]

- Na Institutio Oratoria de Quintiliano, aparece uma lista detalhada dos autores mais

profícuos, acompanhada de uma reflexão geral sobre imitatio:

Neque enim dubitari potest, quin artis pars magna contineatur imitatione. Nam ut inuenire

primum fuit estque praecipuum, sic ea, quae bene inuenta sunt, utile sequi.

(Inst. Or., X, 2, 1) [“Nem se pode duvidar que grande parte da arte (retórica) consiste na imitação. De fato, assim como inventar

foi o principal e continua sendo o mais importante, é útil seguir o que foi bem inventado.”]

- Longino, em Do sublime, afirma ser a imitatio (em seu texto, em grego, aparece o termo

mimesis) um elemento essencial da composição poética e retórica:

"2 - (...) existe, além desses que já indicamos, ainda um outro caminho que leva

ao sublime. Qual é sua qualidade e sua natureza? É a imitação dos grandes escritores e

poetas do passado e com eles o espírito de emulação. E precisamente esse objetivo, caro

amigo, nós devemos conservar firmemente. Pois muitos são transportados por um sopro

estranho, da mesma forma que, segundo se conta, a Pítia, quando se aproxima do tripé;

há ali uma fenda na terra que exala, diz-se, um sopro divino; desde então, feita prenhe da

potência divina, ela imediatamente passa a profetizar por inspiração. Assim da grande

natureza dos antigos para as almas de seus êmulos, como de aberturas sagradas, sobem

os eflúvios; penetrados por seu sopro, mesmo os menos capazes de profetizar se

entusiasmam ao mesmo tempo sob o efeito da grandeza dos outros.

3 - Foi Heródoto o único a tornar-se o mais homérico? Estesícoro antes dele,

Arquíloco, e mais que todos Platão, que dessa fonte homérica fez derivar para si

milhares de riachos. (...)

4 - A imitação não é um roubo; mas é como um decalque de belos caracteres, de

belas obras de arte, ou de objetos bem trabalhados. E Platão, parece-me, não teria

florescido com tão belas flores sobre os dogmas da filosofia, nem se teria aventurado tão

freqüentemente pelas florestas poéticas e expressões, se não fosse por Zeus [sic], para

disputar o primeiro lugar, com toda coragem, contra Homero, como um jovem rival

contra um homem já admirado, talvez com mais ardor e como um lutador de lanças, mas

não sem proveito! Pois, segundo Hesíodo, “ela é sã, essa rivalidade para os mortais”

(Hes. Opp. 24). E, na verdade, é um combate e uma coroa de qualidade e das mais

dignas de glória, quando, na luta contra os antigos, mesmo a derrota não é uma desonra."

(Do Subl., XIII; trad.: Filomena Hirata, 1996, 65-66)

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II. Imitatio e “arte alusiva”

- Pasquali, em seu artigo intitulado “Arte Allusiva”, publicado inicialmente em 1942,

considera o termo alusão mais propício à caracterização do processo imitativo:

"(...) em poesia culta, douta, eu procuro o que de uns anos para cá não chamo mais

reminiscências, mas alusões, e de bom grado diria evocações e, em certos casos, citações.

As reminiscências podem ser involuntárias; as imitações, o poeta pode desejar que passem

despercebidas ao público; as alusões não produzem o efeito desejado senão sobre um leitor

que se recorda claramente do texto ao qual se refere.” (1968, p. 275)

- Por que a preferência pelo termo alusão?

- isento de qualquer sentido pejorativo: elimina possíveis confusões que possa haver com o

uso do vocábulo imitação;

- elimina o caráter involuntário que carrega o termo reminiscências;

- põe em foco o jogo que se estabelece entre o texto alusivo e seus modelos, o qual,

segundo o filólogo italiano, é produzido intencional e conscientemente pelo autor e só pode

entrar em funcionamento quando as alusões são percebidas pelo leitor capaz de decodificá-

las;

- traz para o centro da cena o autor (intencional e consciente), bem como o leitor (leitor-

decodificador, segundo Vasconcellos 2001, p. 28).

III. Arte alusiva e intertextualidade

- O termo alusão acarreta um problema: a intencionalidade do autor.

- O termo intertextualidade foi utilizado pela primeira vez por Kristeva, em seu ensaio "A

palavra, o diálogo e o romance" (in: Introdução à semanálise, 1974), escrito a partir de

Problemas da poética de Dostoiévski e A cultura popular na Idade Média e no

Renascimento: o contexto de François Rabelais de Mikhail Bakhtin, para caracterizar as

noções de dialogismo e polifonia formuladas pelo escritor russo. Kristeva afirma que

Bakhtin foi o primeiro a introduzir na teoria literária a noção de que

"(...) todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é a absorção e

transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de

intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla" (1974, p. 64).

- a intertextualidade descarta o que não se pode alcançar: a intenção do autor.

- Mesmo o termo intertextualidade, independente das mudanças que acarreta em relação ao

vocábulo alusão, causa desagrados e discussão sobre sua importância e inovação:

“Ainda estou convencido de que uma grande quantidade de trabalhos modernos com base

teórica que não tem nos ajudado de forma alguma a entender os textos (...) lidam com a

intertextualidade. No estudo da literatura latina não se produziu nenhum conhecimento

novo, mas tão somente novos termos para descrever velhas práticas e com eles, obscuridade

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e banalidade, escrita pretensiosa e leitura penitente. Meu conselho aos jovens seria jogar

fora a teoria e lidar com o mundo real nos textos, monumentos, objetos sobreviventes, a

evidência.”

(WEST, D. Cast Out Theory. Classical Association Presidential Address, 1995, pp. 16-17 -

trad. Francisco de Fátima da Silva)

- Como afirma Fowler (2000, p. 116), os estudiosos da Antigüidade Clássica sempre se

preocuparam “com os ‘paralelos’ - com aquilo que está por trás da palavra ‘cf.’”, mas

nunca ficou claro, com os estudos tradicionais, aonde se quer chegar com a constatação de

passagens semelhantes, paralelas, uma vez que não se dava foco ao ponto central da

atividade: “como os paralelos afetam a interpretação do texto” (p. 116):

“Não se lê um texto de forma isolada, mas dentro de uma matriz de possibilidades,

constituída por textos já existentes, que funciona da mesma forma que a langue com

relação à parole na produção textual individual: sem esse pano de fundo, o texto seria

literalmente ilegível, assim como também não haveria possibilidades de sentido. Ler um

texto, com isso, envolve um processo de estágio duplo: uma reconstrução da matriz que lhe

dá significado e a produção do significado pelo ato de relacionar textos de partida e textos

de chegada. A explicação racional do ‘cf.’ agora está clara: os ‘paralelos’ constituem o

sistema no qual o texto é lido.” (p. 117). (Trad. Francisco de Fátima da Silva)

- Fowler (p. 117) resume as mudanças que acarretaram as transformações na forma de ver a

relação entre textos:

Alusão Intertextualidade

Na mente do autor No (sistema do[s]) texto (s)

Particular Pública

Singular Múltipla

Item adicional Elemento imprescindível

Característica especial da literatura Característica geral da linguagem e

outros sistemas semióticos

Diferença do modelo significativo Diferença e similaridade (“rastros”)

significantes

Ato extratextual (render homenagens, etc.) Ato intratextual (criar significados)

(Trad. Francisco de Fátima da Silva)

- Implicações/conseqüências do termo intertextualidade:

1) descarta ou não o Autor?

- O autor continua existindo, mas ele não é o sujeito intencional e gerador do processo

alusivo, mas sim uma construção do próprio sistema do texto.

- A questão do autor é também um dos assuntos abordados por Barchiesi em seu artigo

intitulado “Otto punti su una mappa dei naufragi” (1997, p. 211):

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“a) a falta de documentos autênticos (material biográfico, autógrafos, epistolários,

anotações) enfraquece o papel do autor na filologia clássica;

b) a intenção do autor é um componente em jogo de força que inclui também a recepção

‘prevista’ pelo autor: ambas são somente estratégias de leitura, não metas finais.”

- Para Fowler (2000) e Barchiesi (1997), o autor não é um sujeito voluntarioso e consciente,

mas sim uma função que nasce com o próprio texto e que lhe dá unidade significativa, um

parâmetro para se construir a significação do texto.

2) caráter público e múltiplo

- “Se a intertextualidade é uma propriedade do sistema literário, então é pública, não

privada, e, se percebemos uma determinada semelhança entre dois textos suficientemente

marcada como uma alusão, isto se deve a uma competência que é comum aos leitores, não

ao pensamento particular de um escritor.” (Fowler, 2000, 118 - trad. Francisco de Fátima da

Silva)

- “Da mesma forma, se a intertextualidade implica em reconhecer que interpretar um

determinado texto significa lê-lo, tendo como pano de fundo muitos outros textos que

constituem o sistema literário, então é um processo inerentemente múltiplo” (id., ibid.).

- Parafraseando Barchiesi (1997, p. 212),

a) o estudo intertextual é freqüentemente acusado de exageros: o que é verdadeiro com

relação aos textos que temos, mas as novas descobertas de papiros mostram que as alusões

e influências a nós visíveis são apenas uma parte da realidade;

b) como toda atividade humanística, o estudo intertextual não é objetivo, mas impreciso,

conjectural, retórico e subjetivo, o que não deve ser motivo de desespero para os críticos.

- põe em foco o leitor

3) elemento imprescindível:

- é uma propriedade geral da linguagem, do sistema literário e não um elemento extra,

especial da literatura como a alusão, dado o seu caráter de figura de linguagem;

-Tal mudança pressupõe a que segue:

4) característica geral da linguagem

-“A alusão era representada como um “acessório”, adicionado a tipos especiais de textos

por um autor que quisesse apontar um ponto especial; a intertextualidade, por outro lado, é

simplesmente a forma na qual os textos – todos os textos – significam. O sistema textual

existe antes de qualquer texto, e os textos nascem sempre dentro desse sistema, queira ou

não. Assim como ninguém escapa de sua situação histórica, nenhum texto pode existir,

exceto se estiver de acordo com as matrizes de possibilidades criadas por aqueles textos

pré-existentes” (Fowler, 2000, p. 119).

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5) ato intratextual, gerador de sentidos

- o estudo da alusão pauta suas análises na busca de respostas para questões relativas à

função de uma dada referência em textos: seria para demonstrar conhecimento? render

homenagens? superar um modelo? reconhecer uma dívida com algum autor?

- a intertextualidade focaliza a criação de significados:

“o foco tem sido ultimamente na forma em que a intertextualidade cria significados nos

textos através de uma dialética entre semelhança e diferença. Embora a diferença

permaneça altamente significativa, houve uma mudança importante na forma em que os

textos de partida são vistos, como textos que deixam rastros de si mesmos no texto de

chegada” (Fowler, 2000, p. 121).

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Uma leitura intertextual dos Tristes

I. Presença da épica virgiliana nos Tristes

1.1. A tempestade: Tr. I, 2 e 4 e En. I e III:

Elegia I, 2

a) Início in medias res, como no canto I

Nec reditum Diomedis ab interitu Meleagri,/

nec gemino bellum Troianum orditur ab ouo;/

semper ad euentum festinat et in medias res/

non secus ac notas auditorem rapit, (...)

(Hor., Art. poet., 146-149; os grifos são meus) “Nem o regresso de Diomedes inicia pela morte de Meléagro,/ nem a guerra de Tróia pelo par de ovos;/

sempre se apressa para o desenlace e em meio aos fatos,/ como se fossem já conhecidos, lança o ouvinte”

b) Súplica de Ovídio: alusão tanto à invocação de Enéias aos deuses (II, 94-101), quanto ao

jogo de forças entre os deuses que se instaura na Eneida:

Dis maris et caelis - quid enim nisi uota supersunt? -

Soluere quassatae parcite membra ratis!

Neue, precor, magni subscribite Caesaris irae!

Saepe premente deo fert deus alter opem.

Mulciber in Troiam, pro Troia stabat Apollo;

Aequa Venus Teucris, Pallas iniqua fuit;

Oderat Aeneam propior Saturnia Turno;

Ille tamen Veneris numine tutus erat.

(...)

Et nobis aliquod, quamuis distamus ab illis

Quis uetat irato numen adesse deo? (Tr. I, 2, 1-8; 11-12)

“Deuses do mar e do céu - pois o que, senão súplicas, me restam?

Parai de destroçar os membros desta nau abalada!

E não vos associeis, suplico, à ira do grande César!

Muitas vezes, quando um deus persegue, um outro deus vem em socorro.

Vulcano estava contra Tróia, Apolo, a seu favor;

Vênus foi favorável aos Teucros, Palas, contrária.

Satúrnia propiciava Turno e odiava Enéias;

Ele, contudo, era protegido pelo nume de Vênus.

(...)

Também a nós, ainda que inferior a eles,

Quem impede que algum nume proteja contra a ira do deus?”

(...) O terque quaterque beati,

quis ante ora patrum Troiae sub moenibus altis

contigit oppetere! o Danaum fortissime gentis

Tydide, mene Iliacis occumbere campis

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non potuisse tuaque animam hanc effundere dextra,

saeuos ubi Aecidae telo iacet Hector, ubi ingens

Sarpedon, ubi tot Simois correpta sub undis

scuta uirum galeasque et fortia corpora uoluit! (En. I, 94-101)

“(...) Oh, três vezes e quatro felizes

os que morreram à vista dos pais, sob os muros de Tróia!

Ó tu, valente Tidida, o mais forte dos filhos de Dânao!

Não ter eu tido a ventura, ao lutar nas campinas de Tróia

de perecer sob os golpes dos teus fulminantes ataques,

no mesmo ponto em que Heitor sucumbiu sob a lança de Aquiles,

onde Sarpédone ingente, onde tantos escudos lascados

e capacetes e corpos de heróis o Simoente carrega!” (trad.: Carlos Alberto Nunes, 1983, 11)

c) Interrupção da súplica de Ovídio e Enéias, causada pela intervenção dos ventos

Verba miser frustra non proficientia perdo;

Ipsa graues spargunt ora loquentis aquae,

Terribilisque Notus iactat mea dicta precesque

Ad quos mittuntur non sinit ire deos. (Tr. I, 2, 13-16 - o grifo é meu)

“Em vão perco, infeliz, minhas palavras inúteis;

As enormes ondas lambem os lábios do que fala

E o terrível Noto dispersa minhas palavras e, que as súplicas

Cheguem aos deuses aos quais são enviadas, não permite.”

Talia iactanti stridens Aquilone procella

uelum aduersa ferit, fluctusque ad sidera tollit. (En. I, 102-103 - o grifo é meu)

“Ao proferir tais coisas, uma procela estridente pelo Aquilão

na vela bate de frente e a onda aos astros lança.”

“Não acabara, e o violento Aquilão em reforço à tormenta/ bate de frente na vela maior e até aos astros a

atira” (trad.: Carlos Alberto Nunes, 1983, 11)

d) Referência de Ovídio à sua esposa:

Nescit in inmenso iactari corpora ponto,

nescit agi uentis, nescit adesse necem (Tr. I, 2, 39-40 - o grifo é meu)

“Não sabe que meu corpo é um joguete deste imenso mar,

Não sabe que sou impelido pelos ventos, não sabe que a morte está próxima.”

e) Referência de Ovídio à morte em meio ao oceano

Nec letum timeo, genus est miserabili leti.

Demite naufragium, mors mihi munus erit.

Est aliquid fatoque suo ferroque cadentem

In solita moriens ponere corpus humo

Et mandare suis aliqua et sperare sepulcrum

Et non aequoris piscibus esse cibum. (Tr. I, 2, 51-56)

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“Não temo a morte, infeliz é o aspecto desta morte.

Afastai o naufrágio, a morte ser-me-á um benefício.

Já é alguma coisa, ao sucumbir-se ou pelo próprio fado ou pelo ferro,

Em terra sólita repousar o corpo moribundo

E fazer recomendações aos seus e esperar o sepulcro

E não ser dos peixes marinhos o alimento.”

f) Outra invocação de Ovídio aos deuses

Pro superi uiridesque dei quibus aequora curae (Tr. I, 2, 59)

“Ó deuses olímpicos e marinhos, que tendes o governo das águas.”

b) Elegia I, 4

a) relação intratextual com a elegia I, 2

- O desespero do protagonista diante da tempestade, agora em meio ao mar Jônio (I, 4, 3):

Me miserum! Quantis increscunt aequora uentis, (I, 4, 5 - os grifos são meus)

“Oh, como sou infeliz! Com que impetuosos ventos se encapelam os mares”

Me miserum! Quanti montes uoluuntur aquarum!

Quantae diducto subsidunt aequore ualles (Tr. I, 2, 19 e 21)

“Oh, como sou infeliz! Que montanhas de água se alevantam!

Quantos abismos se formam ao se separarem as águas!”

- o descontrole do piloto da nau:

Nauita confessus gelidum pallore timorem,

Iam sequitur uictus, non regit arte ratem

Vtque parum ualidus non proficientia rector

Ceruicis rigidae frena remittit equo,

Sic, non quo uoluit, sed quo rapit impetus undae,

Aurigam uideo uela dedisse rati. (Tr. I, 4, 11-16) “O piloto, confessando um gélido temor com a palidez,

Já segue vencido, não mais comanda com arte a nau.

E como um pouco valoroso cavaleiro que as inúteis

Rédeas afrouxa do cavalo de pescoço rijo,

Assim, não para onde quis, mas para onde arrasta o ímpeto da onda,

Vejo o piloto as velas largar à nau.”

Rector in incertum est nec quid fugiatue petatue

Inuenit: ambiguis ars stupet ipsa malis. (Tr. I, 2, 31-32)

“O piloto está incerto, não sabe para onde fugir

Ou o que buscar: sua própria arte se entorpece ante os ventos contrários.”

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- os ventos impelem o protagonista a vagar pelas redondezas da Itália muito longe do porto

que deve ser alcançado pelo desterrado:

Quod nisi mutatas emiserit Aeolus auras,

In loca iam nobis non adeunda ferar;

Nam procul Illyriis laeua de parte relictis

Interdicta mihi cernitur Italia.

Destinat in uetitas, quaeso, contendere terras,

Et mecum magno pareat aura deo! (Tr. I, 4, 17-22)

“Vejo o piloto as velas largar à nau.

Se não enviar Éolo ventos contrários,

A locais, que já não devem ser por mim tocados, serei levado;

Pois, ao longe, deixada do lado esquerdo a Ilíria,

A interdita Itália é por mim avistada.

Que desista de me arremessar, rogo, a lugares proibidos

E que, comigo, o vento seja submisso ao magno deus!”

Ferte - quid hic facio? - rapidi mea corpora, uenti!

Ausonios fines cur mea uela uolunt?

Noluit hoc Caesar. Quid, quem fugat ille, tenetis?

Aspiciat uultus Pontica terra meos.(Tr. I, 2, 91-94)

“Carregai - que faço aqui? - ó velozes ventos, meu corpo!

Por que minhas velas desejam os limites ausônicos?

Não o queria César. Por que, a quem ele expulsou, retendes?

Que a terra pôntica veja minha face.’

- Ovídio invoca, na elegia I, 4, os deuses e estabelece um símile direto entre Júpiter e

Augusto e retoma o exordium da elegia I, 2, que, por sua vez, alude às forças divinas que

socorreram e perseguiram Enéias ao longo da Eneida:

Parcite, caerulei, uos parcite, numina ponti,

Infestumque mihi sit satis esse Iouem! (Tr. I, 4, 25-26 - o grifo é meu)

“Poupai-me, vós, poupai-me, ó numes do cerúleo mar,

E que me baste ser Júpiter hostil!’

- Após esse apelo aos deuses, Ovídio retoma o tema da morte presente na elegia I, 2:

Vos animam saeuae fessam subducite morti

Si modo, qui periit, non periisse potest! (Tr. I, 4, 27-28)

“Vós, meu espírito fatigado privai de uma morte atroz,

Se, todavia, quem já morreu, não ter morrido pode!’”

Nec tamen, ut cuncti miserum seruare uelitis,

Quod periit saluum iam caput esse potest. (Tr. I, 2, 71-72) “Não pode ser salva a vida que já se extinguiu.

Ainda que o mar se acalme e que goze de ventos favoráveis”

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b) alusões ao canto I

- descrição do ímpeto dos ventos ao revolverem o mar, uma vez que até suas entranhas são

expostas e revolvidas pelo turbilhão de águas:

Me miserum! Quantis increscunt aequora uentis

Erutaque ex imis feruet arena uadis!

(Tr. I, 4, 5-6) “Oh, como sou infeliz! Com que impetuosos ventos se encapelam os mares,

E a areia dos profundos vaus arrancada ferve!”

Incubuere mari totumque a sedibus imis

una Eurusque Notusque ruont creberque procellis

Africus (...)

(...) his unda dehiscens

terramque inter fluctus aperit, furit aestus harenis

(En. I, 84-86; 106-107 - os grifos são meus)

““E Euro e Noto e Áfrico, fecundo em tempestades, atiraram-se juntamente sobre o mar e revolvem-no todo,

desde as sedes mais profundas (...) para outros a onda abrindo-se mostra a terra por entre as águas; o turbilhão

enfurece-se com as areias.”

“Noto mais Euro potentes e, fértil em grandes procelas,/ Áfrico. Em rolos seguidos as ondas às praias

investem.” (Trad. Carlos Alberto Nunes, 1983, p. 11)

- descrição das ondas

Monte nec inferior prorae puppiue recuruae

Insilit et pictos uerberat unda deos,

Pinea texta sonant, pulsi stridore rudentes,

Ingemit et nostris ipsa carina malis.

(...)

Increpuit quantis uiribus latus!

(Tr. I, 4, 7-10; 24 - os grifos são meus)

“Não menor do que a montanha, à proa e à popa recurva,

Lança-se a onda e açoita os deuses pintados.

Os pinhos entretecidos rangem; os calabres se agitam com um ruído estridente,

E geme por meus males a própria nau. (...)

Fez estrondar com imensa força a onda ao flanco!”

insequitur clamorque uirum stridorque rudentum.

(...)

franguntur remi, tum prora auertit et undis

dat latus, insequitur cumulo praeruptus aquae mons;

(...)

(...)ingens a uertice pontus

in puppim ferit; (...). (En. I, 87; 104-105; 114-115 - os grifos são meus) “Eis se levanta a celeuma dos nautas; enxárcias sibilam.

(...)

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Quebram-se os remos; a proa se volta, deixando os costados / à merê d’água. Montanha escarpada desfaz-se

nos mastros.

(...)

(...) uma onda o navio surpreende/ do fido Oronte e seus lícios, caindo de cheio na popa.”

(trad.: Carlos Alberto Nunes, 1983, 12)

c) alusões ao canto III

- Enéias padece algumas desventuras em meio ao mar. A primeira delas ocorre quando os

troianos partiam de Creta em demanda da Itália. A tempestade que se forma desvia-os de

sua rota, arremessando-os às ilhas onde vivem as harpias:

tum mihi caeruleus supra caput astitit imber

noctem hiememque ferens et inhorruit unda tenebris.

Continuo uenti uoluont mare magnaque surgunt

aequora, dispersi iactamur gurgite uasto;

inuoluere diem nimbi et nox umida caelum

abstulit, ingeminant abruptis nubibus ignes;

excutimur cursu et caecis erramus in undis.

Ipse diem noctemque negat discernere caelo

nec meminisse uiae media Palinurus in unda. (En. III,. 194-202)

“surge por cima de minha cabeça uma nuvem cerúlea, / com a noite escura e tormentas. As trevas as ondas

cobriram; / o vento as águas agita, para o alto atirando ondas grandes. / Dispersa a armada, jogados nos vimos

de um lado para outro. / A cerração cobre o dia; do céu nos afasta o aguaceiro; / ininterruptos relâmpagos

traçam seus riscos nas nuvens. / Deixando o rumo sabido, no mar tenebroso vogamos. / Nem Palinuro

consegue saber quando é dia ou se é noite, / nem do roteiro podia lembrar-se no meio das ondas.”

(trad.: Carlos Alberto Nunes, 1983, 56)

- nesse momento aparece Palinuro, piloto da nau de Enéias, não mencionado no canto I.

- A outra adversidade sobrevém quando Enéias e sua frota já estavam próximos ao litoral

da Itália, depois de deixarem o reino de Heleno no Epiro. A tripulação troiana vê-se

novamente obrigada a enfrentar um mar bravio por causa da forte viração:

Tum procul e fluctu Trinacria cernitur Aetna,

et gemitum ingentem pelagi pulsataque saxa

audimus longe fractasque ad litora uoces,

exsultantque uada atque aestu miscentur harenae.

(En. III, .554-557)

“O Etna avista-se ao longe da praia, na bela Trinácria. / Bramidos fortes do mar enraivado à

distância se escutam, / vozes das penhas batidas das ondas em luta perene. / Ferve o mar

fundo; as areias sem pausa a girar, turbilhonam.” (trad.: Carlos Alberto Nunes, 1983, 65)

Erutaque ex imis feruet arena uadis, (Tr. 1, 4, 6)

“E a areia dos profundos vaus arrancada ferve!”

- semelhança no movimento de elevação e rebaixamento das ondas

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Haud minus ac iussi faciunt, primusque rudentem

contorsit laeuas proram Palinurus ad undas;

laeuam cuncta cohors remis uentisque petiuit.

Tollimur in caelum curuato gurgite, et idem

subducta ad manis imos desedimus unda.

Ter scopuli clamorem inter caua saxa dedere,

ter spumam elisam et rorantia uidimus astra.

(En. III, 561-567 - os grifos são meus) “Obedecemos-lhe de pronto. Sem mais, Palinuro se apresta / para cortar o mar bravo à sinistra da proa

recurva; / todos, à esquerda, com remos e vela à porfia se esforçam. / Uma onda grande até os astros nos leva;

depois, rebaixada, / faz-nos descer num momento às moradas dos mares profundos. / Três vezes soa nas

pedras de baixo o clamor das cavernas, / três mil partiram-se as ondas, rociados de pingos os astros.”

(trad.: Carlos Alberto Nunes, 1983, 65)

Iam iam tacturos sidera summa putes.

Iam iam tacturas Tartara nigra putes

(Tr. I, 2, 20 e 22)

“Já já tocarão os mais altos astros, crerias

Quantos abismos se formam ao se separarem as águas!

Já já tocarão o negro Tártaro, crerias.”

Quantis increscunt aequora uentis,

Erutaque ex imis feruet arena uadis,

(Tr. 1, 4, 5-6)

“Oh, como sou infeliz! Com que impetuosos ventos se encapelam os mares,

E a areia dos profundos vaus arrancada ferve!”

1.2. A lembrança da última noite antes do exílio: Tr. I, 3 e En. II

a) Símile que compara a última noite de Ovídio em Roma antes do exílio com a

tomada de Tróia pelos gregos

Si licet exemplis in paruo grandibus uti,

Haec facies Troiae, cum caperetur, erat (Tr. I, 3, 25-26)

““Se é licito servir-se de grandes exemplos no pequeno,

Este era o aspecto de Tróia quando capturada”

b) Semelhança entre os textos: presença do narrador-personagem que discorre sobre

uma lembrança tristíssima

Cum subit illius tristissima noctis imago

Qua mihi supremum tempus in urbe fuit,

Cum repeto noctem, qua tot mihi cara reliqui,

Labitur ex oculis nunc quoque gutta meis.

(Tr. I, 3, 1-4 - os grifos são meus)

““Quando me vem à mente a imagem tristíssima daquela noite

Que foram meus últimos momentos na cidade,

Quando relembro a noite na qual abandonei tantas coisas a mim caras,

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Ainda agora, escorre uma lágrima de meus olhos.”

“Infandum, regina, iubes renouare dolorem, (...)

sed si tantus amor casus cognoscere nostros

et breuiter Troiae supremum audire laborem,

quamquam animus meminisse horret luctuque refugit,

incipiam. (...) (En. II, 3; 10-13 - os grifos são meus)

“Ordenas, rainha, que eu relembre uma dor inenarrável(...)

Mas se tanto desejo tens de conhecer nossas desventuras

e brevemente ouvir os últimos sofrimentos de Tróia

embora meu espírito se horrorize e recuse lembrar por causa da dor, iniciarei”.

– Contraste entre as dores das recordações de Ovídio e Enéias

Labitur ex oculis nunc quoque gutta meis (Tr. I, 3, 4)

“Ainda agora, escorre uma lágrima de meus olhos”

(...) Quis talia fando

Myrmidonum Dolopumve aut duri miles Ulixi

temperet a lacrimis? (...) (En. II, 6-8)

“(...) Quem, ao dizer tais desgraças,

mirmídones ou dólopes ou o cruel soldado de Ulisses,

conteria as lágrimas? (...)”

c) Presença de marcadores épicos na elegia ovidiana

– Advérbio iam: semelhanças e contrastes entre a marcação temporal da elegia I, 3 e

do canto II

1.

Iam prope lux aderat, cum discedere Caesar (Tr. I, 3, 5) “Já se aproximava a luz do dia, quando César ordenara que me afastasse”

(....) et iam nox umida caelo

praecipitat (...) (En. II, 8) “E já a noite úmida do céu/ Precipita (...)”

2.

Iamque quiescebant uoces hominumque canumque

Lunaque nocturnos alta regebat equos (o grifo é meu)

(Tr. I, 3, 27-28) “E já as vozes de homens e de cães se aquietavam

E a altiva lua guiava os cavalos noturnos:”

Et iam Argiua phalanx instructis nauibus ibat

a Tenedo tacitae per amica silentia Lunae (o grifo é meu)

(En. II, 254-255)

“E já a Argiva falange partia de Tênedo com as naus equipadas

através dos silêncios amigos da Lua tácita.”

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3.

Iamque morae spatium nox praecipitata negabat (Tr. I, 3, 47) E já a noite avançada impedia a demora”.

Dum loquor et flemus, caelo nitidissimus alto

Stella grauis nobis Lucifer ortus erat (Tristia I, 3, 71-72) “Enquanto falo e choramos, Lúcifer, a funesta estrela para nós,

Nascia mais resplandecente no alto céu”

Iamque iugis summae surgebat Lucifer Idae (Tr. I, 3, 801) “E já Lúcifer surgia nos cumes do altíssimo Ida”

– Presença da anáfora épica ter ... ter

Ter limen tetigit, ter sum reuocatus

(Tr. 1, 3, 55)

“Três vezes toquei a porta, três vezes fui convidado a voltar”

Ter conatus ibi collo dare bracchia circum;

ter frustra comprensa manus effugit imago, (En. III, 792-793) “Três vezes, ali, tentei lançar em volta do colo os braços

três vezes, inutilmente retida, fugiu-me das mãos a imagem.”

Egredior, siue illud erat sine funere ferri (Tr. 1, 3, 89)

“Parto, ou melhor, isto era ser levado à cova sem estar morto”

– Presença de expressão tum uero

Tum uero exoritur clamor gemitusque meorum

Et feriunt maestae pectora nuda manus;

Tum uero coniux umeris abeuntis inhaerens

Miscuit haec lacrimis tristia uerba meis: (os grifos são meus) (Tr. I, 3, 77-80) “É então que se erguem os gritos e os gemidos dos meus,

E as mão aflitas ferem o peito nu.

É então que a esposa agarrando os ombros daquele que parte

Juntou estas tristes palavras às minhas lágrimas”.

d) Presença da personagem feminina em ambos os textos

– Semelhança e contraste entre a esposa de Nasão e a de Enéias

“Non potes auelli; simul hinc, simul ibimus, inquit,

Te sequar et coniux exulis exul ero.

Et mih facta uia est et me capit ultima tellus:

Accedam profugae sarcina parua rati.

Te iubet e patria discedere caesaris ira,

Me pietas: pietas haec mihi Caesar erit.”

(Tr. 1, 3, 81-86) “ ‘Não podes ser separado violentamente de mim, juntos iremos daqui’, disse,

‘Seguir-te-ei e serei a esposa exilada do exilado.

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O caminho também é feito para mim e a terra mais remota me acolhe:

Juntar-me-ei como pequena bagagem ao navio prófugo.

A ira de César ordena que tu deixes a Pátria,

A mim o zelo familiar ordena: este zelo será meu César.’”

“Si periturus abis, et nos rape in omnia tecum;

sin aliquam expertus sumptis spem ponis in armis,

hanc primum tutare domum. Cui parvus Iulus,

cui pater, et coniunx quondam tua dicta relinquor?”

(En., II, 675-678) “‘Se estás prestes a ir para a morte, leva-nos contigo para onde fores

mas se, já experiente, alguma esperança ainda depositas nas armas tomadas,

cuida primeiro desta casa. Aquem o pequeno Iulo,

a quem o pai e eu, que outrora era nomeada tua esposa, sou confiada?’”

e) Uso de imagens épicas na composição do protagonista da elegia I, 3

– Símile vv. 25-26

– Súplica de Ovídio

“Numina uicinis habitantia sedibus, inquam,

Iamque oculis nunquam templa uidenda meis

Dique reliquendi quos urbs habet alta Quirini,

Este salutati tempus in omne mihi!

Et quanquam sero clipeum post uulnera sumo,

Attamen hanc odiis exonerate fugam

Caelestique uiro quis me deceperit error

Dicite, pro culpa ne scelus esse putet,

Vt, quod uos scitis, poenae quoque sentiat auctor:

Placato possum non miser esse deo.

(Tr. 1, 3, 31-40) “‘Divindades habitantes da casa vizinha,’ disse,

‘Templos que pelos meus olhos jamais serão vistos de novo,

E deuses a serem abandonados, os quais a cidade alta de Quirino possui,

Sede saudados por mim para todo o sempre!

E, ainda que eu tome do escudo tardiamente, depois das feridas,

Todavia, livrai este exílio de ódios,

Dizei ao homem celestial que erro me enganou,

Para que não julgue haver crime ao invés do erro,

Para que o que vós sabeis também saiba o autor do castigo,

Aplacado o Deus, posso não ser miserável.’ ”

Hinc ferro accingor rursus clipeoque sinistra

insertabam aptans meque extra tecta ferebam (En. II, 671-672) “Em seguida, cinjo-me novamente com o ferro e, ajustando,

introduzia a sinistra no escudo e me encaminhava para fora da casa.”

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– Denominação do exílio na elegia 1, 3: o substantivo fuga

A Attamen hanc odiis exonerate fugam (Tr. I, 3, 36) “Todavia, livrai este exílio de ódios”

Vltima sed iussae nox erat illa fugae (Tr. I, 3, 50) “Mas aquela era a última noite antes do exílio”

Heitor - “Heu, fuge, nate dea, teque his” ait “eripe flammis - (En. II, 289) “Ai, foge, filho da deusa, e livra-te destas chamas”

Vênus - Eripe, nate, fugam finemque impone labori - (En. II, 619) “Apressa, filho, a fuga e põe termo ao teu labor”

Anquises - uos agitate fugam - (En. II, 640) “vós, preparai a fuga.”

prospiciens “Nate” exclamat, “fuge, nate; propinquant - (En. II, 733) [Anquises], olhando ao longe, exclama ‘Filho, foge, filho, aproximam-se”

1.3 Mais um dado alusivo: a disposição das elegias nos livros

- Ovídio retoma ordenadamente os três livros da Eneida: a elegia 2 é construída de acordo

com a estrutura proposta no canto I, a 3 também é organizada como o canto II e,

finalmente, a 4, cujo tema ocupa posição semelhante ao canto III.

II. Ovídio como um alter Aeneas às avessas?

a) aproximação da sorte dos protagonistas:

Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris

Italiam, fato profugus, Laviniaque uenit

litora. Multum ille iactatus et terra et alto

(En. I, 1-4) “Canto as armas e o varão, que, impelido pelos fados,

Por primeiro, das praias/plagas de Tróia para a Itália

E para os litorais lavínios veio. Há muito lançado/atirado por terra e mar”

Talia iactanti stridens Aquilone procella

uelum aduersa ferit, fluctusque ad sidera tollit (En. I, 102-103 - o grifo é meu) “A quem dizia tais coisas uma tempestade estridente pelo Aquilão

Fere a vela pela frente e levanta as vagas para os astros.”

Non aptae profugo uestis opisue fuit (Tr. I, 3, 10) “Nem roupa nem riqueza necessárias ao desterrado.”

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Verba miser frustra non proficientia perdo;

Ipsa graues spargunt ora loquentis aquae,

Terribilisque Notus iactat mea dicta precesque

Ad quos mittuntur non sinit ire deos.

Ergo idem uenti, ne causa laedar in una,

Velaque nescio quo uotaque nostra ferunt. (Tr. I, 2, 13-18 - o grifo é meu)

“Em vão perco, infeliz, minhas palavras inúteis;

As enormes ondas lambem os lábios do que fala

E o terrível Noto dispersa minhas palavras e, que as súplicas

Cheguem aos deuses aos quais são enviadas, não permite.

Assim, os próprios ventos, para que não seja ferido de uma única forma,

Levam, não sei para onde, as velas e minhas súplicas.”

Nescit in inmenso iactari corpora ponto,

nescit agi uentis, nescit adesse necem (Tr. I, 2, 39-40)

“Não sabe que meu corpo é um joguete deste imenso mar,

Não sabe que sou impelido pelos ventos, não sabe que a morte está próxima.”

b) O desejo de uma morte “heróica”:

- uso de vocábulos que fazem referência ao universo bélico

Nec letum timeo, genus est miserabili leti.

Demite naufragium, mors mihi munus erit.

Est aliquid fatoque suo ferroque cadentem

In solita moriens ponere corpus humo

Et mandare suis aliqua et sperare sepulcrum

Et non aequoris piscibus esse cibum. (Tr. I, 2, 51-56) “Não temo a morte, infeliz é o aspecto desta morte.

Afastai o naufrágio, a morte ser-me-á um benefício.

Já é alguma coisa, ao sucumbir-se ou pelo próprio fado ou pelo ferro,

Em terra sólita repousar o corpo moribundo

E fazer recomendações aos seus e esperar o sepulcro

E não ser dos peixes marinhos o alimento.”

(...) O terque quaterque beati,

quis ante ora patrum Troiae sub moenibus altis

contigit oppetere! o Danaum fortissime gentis

Tydide, mene Iliacis occumbere campis

non potuisse tuaque animam hanc effundere dextra,

saeuos ubi Aecidae telo iacet Hector, ubi ingens

Sarpedon, ubi tot Simois correpta sub undis

scuta uirum galeasque et fortia corpora uoluit! (En. I, 94-101) “(...) – Oh, três e quatro vezes felizes / os que morreram à vista dos pais, sob os muros de Tróia! / Ó tu,

valente Tidida, o mais forte dos filhos de Dânao! Não ter eu tido a ventura, ao lutar nas campinas de Tróia /

de perecer sob os golpes dos teus fulminantes ataques, no mesmo ponto em que Heitor sucumbiu sob a lnaça

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de Aquiles, onde Sarpédone ingente, onde tantos escudos lascados / e capacetes e corpos de heróis o Simeonte

carrega.” (trad.: Carlos Alberto Nunes, 1983, 11)

“Numina uicinis habitantia sedibus, inquam,

Iamque oculis nunquam templa uidenda meis

Dique reliquendi quos urbs habet alta Quirini,

Este salutati tempus in omne mihi!

Et quanquam sero clipeum post uulnera sumo,

Attamen hanc odiis exonerate fugam

Caelestique uiro quis me deceperit error

Dicite, pro culpa ne scelus esse putet,

Vt, quod uos scitis, poenae quoque sentiat auctor:

Placato possum non miser esse deo.”

(Tr. I, 3, 31-40) “Divindades habitantes da casa vizinha,” disse,

“Templos que pelos meus olhos jamais serão vistos de novo,

E deuses a serem abandonados, os quais a cidade alta de Quirino possui,

Sede saudados por mim para todo o sempre!

E, ainda que eu tome do escudo tardiamente, depois das feridas, 35

Todavia, livrai este exílio de ódios

E dizei ao homem celestial que erro me enganou,

Para que não julgue haver crime ao invés do erro,

Para que o que vós sabeis também saiba o autor do castigo,

Aplacado o Deus, posso não ser miserável.”

Hinc ferro accingor rursus clipeoque sinistra

insertabam aptans meque extra tecta ferebam.

(En. II, 671-672) “Daí, cinjo-me novamente com o ferro e, ajustando,

Introduzia a sinistra no escudo e me encaminhava para fora da casa.”

c) Augusto comparado a Júpiter

Neue, precor, magni subscribite Caesaris irae!

(...)

Pro superi uiridesque dei quibus aequora curae,

Vtraque iam uestras sistite turba minas

Quamque dedit uitam mitissima Caesaris ira,

Hanc sinite infelix in loca iussa feram!

(...)

Mittere me Stygias si iam uoluisset in undas

Caesar, in hoc uestra non eguisset ope

Est illi nostri non inuidiosa cruoris

Copia, quodque dedit, cum uolet, ipse feret.

(...)

Nec tamen, ut cuncti miserum seruare uelitis,

Quod periit saluum iam caput esse potest

(Tr. I, 2, 3; 59-62; 65-68; 71-72)

“E não vos associeis, suplico, à ira do grande César!

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(...)

Ó deuses olímpicos e marinhos, que tendes o governo das águas,

Uns e outros, cessai já vossas ameaças

E permiti que eu, infeliz, leve esta vida, concedida pela

Brandíssima ira de César, ao local determinado!’]

(...)

Se enviar-me às águas estígias6 já tivesse desejado

César, para isto não precisaria de vosso auxílio.

Ele tem poder, não odioso, sobre minha vida

E, o que deu, quando desejar, ele mesmo tirará.

(...)

Todavia, mesmo que todos desejais salvar um infeliz,

Não pode ser salva a vida que já se extinguiu.”

Parcite, caerulei, uos parcite, numina ponti,

Infestumque mihi sit satis esse Iouem!

(Tr. I, 4, 25-26 - o grifo é meu)

“Poupai-me, vós, poupai-me, ó numes do cerúleo mar,

E que me baste ser Júpiter hostil!”

d) Exílio comparado à morte

Nec tamen, ut cuncti miserum seruare uelitis,

Quod periit saluum iam caput esse potest

(Tr. I, 2, 71-72) “Todavia, mesmo que todos desejais salvar um infeliz,

Não pode ser salva a vida que já se extinguiu.”

Vos animam saeuae fessam subducite morti,

Si modo, qui periit, non periisse potest!

(Tr. I, 4, 27-28) “Vós, meu espírito fatigado privai de uma morte atroz,

Se, todavia, quem já morreu, não ter morrido pode!”

Nec letum timeo; genus est miserabile leti;

(Tr. I, 2, 51) “Não temo a morte, infeliz é o aspecto desta morte.”

e) a pietas ovidiana

Si tamen acta deos nunquam mortalia fallunt,

A culpa facinus scitis abesse mea.

Immo ita, si scitis, si me meus abstulit error

Stultaque mens nobis, non scelerata fuit,

Quod licet et minimis, domui si fauimus illi,

Si satis Augusti publica iussa mihi,

Hoc duce si dixi felicia saecula proque

6 O Estige é um dos rios dos Infernos.

Page 26: Apostila minicurso clssicas

26

Caesare tura pius Caesaribusque dedi,

Si fuit hic animus nobis, ita parcite, diui!

Si minus, alta cadens obruat unda caput! (I, 2, 97-106)

“Se, todavia, os atos dos mortais nunca aos deuses enganam,

Sabeis que do meu erro ausenta-se o crime.

Ora pois, se sabeis que é assim, se meu erro arrebatou-me

E meu espírito foi insensato, não criminoso:

Se, o que é permitido até aos mais humildes, dediquei-me àquela casa,

Se as ordens de Augusto para mim eram lei,

Se disse que, sob seu império, eram venturosos os séculos

E a César e aos Césares, pio, ofereci incenso,

Se foi esta minha intenção, poupai-me, ó deuses!

Se não, ao precipitar-se, cubra a imensa onda minha cabeça!

Engano-me ou começam a se dissipar as densas nuvens”

“Iuppiter omnipotens, precibus si flecteris ullis,

aspice nos, hoc tantum, et, si pietate meremur,

da deinde auxilium, pater, atque haec omina firma.” (En., II, 689-691) “Júpiter onipotente, se te abrandam algumas preces,

Olha-nos, somente isso, e, se pela piedade merecemos,

Dá-nos, então, auxílio, pai, e estes presságios confirma.”

f) o caráter de sua esposa:

- elegias I, 6, IV, 3, V, 5

- Ovídio coloca sua mulher ao lado de figuras femininas presentes na epopéia homérica e

virgiliana.

II. Elegia vs. Épica nos Tristes

2.1 Presença da épica, sobretudo virgiliana

- a Musa do poeta lhe dá armas e forças para lutar: (Pierides uires et sua tela dabunt, V, 9,

16),

- o lugar em que se encontra só pode lhe oferecer armas como assunto (Hic mihi praebebit

carminis arma locus, V, 12, 53 - o grifo é meu; “Este lugar fornecerá armas para meus

versos.”),

- o poeta lamenta não ter cantado novamente Tróia em seus versos (V, 17-18).

- aproximação, já vista, entre o protagonista dos Tristes e o da Eneida

2.2 Contudo,

- Ovídio, não segue Virgílio no ponto decisivo, isto é, Ovídio retoma Virgílio, mas se

mantém fiel a seus propósitos. O autor elegíaco não se envereda pelos gêneros cultivados

pelo seu predecessor, mas sim os recria.

Page 27: Apostila minicurso clssicas

27

2.3 sobreposição dos gêneros:

- “como” a personagem é construída nos Tristes nos leva a uma leitura que sobrepõe o

gênero épico ao elegíaco, contrastando-os e (con)fundindo-os simultaneamente

Page 28: Apostila minicurso clssicas

28

Bibliografia

I. Textos latinos, traduções e comentários dos Tristes OVID. Sorrows of an Exile. Tristia. Translated by E. J. Kenney. Oxford, Oxford University

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OVIDE. Tristes. Texte établi et traduit par Jacques André. Paris, Les Belles Lettres, 1987.

OVIDIO. Il Tristia. Volume primo. Traduzione di Francesco Della Corte. Genova-Sestri,

Tilgher-Genova s.a.s., 1972.

_______. Tristezze. Introduzione, traduzione et note di Francesca Lechi. Milano, BUR,

1993.

_______. Tristium. lib. I e II. Illustr. da G. Ferrara. Torino, 1944.

OVÍDIO. Tristium. Tradução de Augusto Velloso. Rio de Janeiro, Organização Simões,

1952.

_______. Poemas da Carne e do Exílio. Seleção, tradução, introdução e notas de José Paulo

Paes. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

II. Outros textos clássicos e traduções:

ARISTÓTELES. A Poética Clássica. Aristóteles, Horácio, Longino. Introdução por

Roberto de Oliveira Brandão; tradução direto do grego e do latim por Jaime Bruna. 2ª

ed. São Paulo, Cultrix, 1985.

______________. Poética. Tradução de Baby Abrão. Coleção Os Pensadores. São Paulo,

Editora Nova Cultural ltda, 1999, pp.34-75.

HORACE. Épitres. Texte établi et traduit par François Villeneuve. Paris, Les Belles

Lettres, 1955.

LONGINO. Do Sublime. Tradução Filomena Hirata. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

MARTIAL. Les Épigrammes de Martial. Tome Premier - Livres I-VII. Texte étabili, traduit

et annoté par Pierre Richard. Paris, Librairie Garnier Frères, 1931.

ODORICO MENDES, M. Virgílio Bazileiro. Tradução da Eneida. Rio de Janeiro, Garnier,

1858.

QUINTILIEN. Institution oratoire. Texte établi et traduit par Jean Cousin. Paris: Belles

Lettres, 1975-1980, 7 vols.

VERGÍLIO. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Brasília: Editora Universidade de

Brasília; São Paulo, A Montanha, 1983.

VIRGILE. Énéide. Texte établi et traduit par Jacques Perret. Paris, Les Belles Lettres,

1981.

III. Estudos sobre intertextualidade, arte alusiva e Ovídio

BARCHIESI, A. “Otto punti su una mappa dei naufragi”, in: Materiali e discussioni per

l’analisi dei testi classici, 39, 1997, pp. 209-226.

CHRISTOFE, L. Intertextualidade e Plágio: questões de linguagem e autoria. Tese de

doutorado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP,

1996.

CONTE, G. B. The rhetoric of imitation. Genre and poetic memory in Virgil and other

Latin poets. Ithaca and London: Cornell University, 1996.

Page 29: Apostila minicurso clssicas

29

_____. “Ovid” in: Latin Literature: a History. Baltimore and London, The Johns Hopkins

University Press, 1994.

CORTE, F. della. Ovidio. I Tristia. Volume secondo. Genova-Sestri: Tilgher-Genova,

1973.

CORTE, F. (della). Enciclopedia Virgiliana. Roma, Enciclopedia Italiana, 1987.

FOWLER, D. “On the shoulders of giants: intertextuality and classical studies”, in: Roman

constructions. Readings in postmodern Latin. Oxford: Oxford University, 2000.

GENETTE, G. Palimpsestes. La litteráture au second degré. Paris: Seuil, 1982.

KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São

Paulo: Perspectiva, 1974.

PASQUALI, G. “Arte allusiva”, in: Pagine stravaganti. Firenze: Sansoni, 1968, v. II.

PRATA, P. O caráter intertextual dos “Tristes” de Ovídio: uma leitura intertextual do

livro I. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem

(IEL) da UNICAMP, 2002.

_____. O caráter intertextual dos “Tristes” de Ovídio: uma leitura dos elementos épicos

virgilianos. Tese de doutorado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

da UNICAMP, 2007.

RUSSELL, D. A. “De Imitatione” in: Creative Imitation and Latin literature. Organizado

por D. A. West & A. J. Woodman. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

VASCONCELLOS, P. S. de. Efeitos intertextuais na “Eneida” de Virgílio. São Paulo:

Humanitas/Fapesp, 2001.

Rupture. Paris: Klincksieck, 1991.

Page 30: Apostila minicurso clssicas

30

Anexo

TRISTIUM

LIBER PRIMUS

2

Di maris et caeli – quid enim nisi uota supersunt? –

Soluere quassatae parcite membra ratis!

Neue, precor, magni subscribite Caesaris irae!

Saepe premente deo fert deus alter opem.

Mulciber in Troiam, pro Troia stabat Apollo; 5

Aequa Venus Teucris, Pallas iniqua fuit;

Oderat Aenean propior Saturnia Turno;

Ille tamen Veneris numine tutus erat.

Saepe ferox cautum petiit Neptunus Ulyxem,

Eripuit patruo saepe Minerua suo. 10

Et nobis aliquod, quamuis distamus ab illis,

Quis uetat irato numen adesse deo?

Verba miser frustra non proficientia perdo;

Ipsa graues spargunt ora loquentis aquae,

Terribilisque Notus iactat mea dicta precesque 15

Ad quos mittuntur non sinit ire deos.

Ergo idem uenti, ne causa laedar in una,

Velaque nescio quo uotaque nostra ferunt.

Me miserum! Quanti montes uoluuntur aquarum!

Iam iam tacturos sidera summa putes. 20

Quantae diducto subsidunt aequore ualles!

Iam iam tacturas Tartara nigra putes.

Quocumque aspicio, nihil est nisi pontus et aer,

Fluctibus hic tumidus, nubibus ille minax.

Inter utrumque fremunt inmani murmure uenti. 25

Nescit cui domino pareat unda maris:

Nam modo purpureo uires capit Eurus ab ortu,

Nunc Zephyrus sero uespere missus adest,

Nunc sicca gelidus Boreas bacchatur ab Arcto,

Nunc Notus aduersa proelia fronte gerit. 30

Rector in incerto est nec quid fugiatue petatue

Inuenit: ambiguis ars stupet ipsa malis.

Scilicet occidimus, nec spes est ulla salutis,

Dumque loquor, uultus obruit unda meos.

Opprimet hanc animam fluctus frustraque precanti 35

Ore necaturas accipiemus aquas.

At pia nil aliud quam me dolet exule coniux;

Hoc unum nostri scitque gemitque mali.

Page 31: Apostila minicurso clssicas

31

Nescit in inmenso iactari corpora ponto,

Nescit agi uentis, nescit adesse necem. 40

O bene quod non sum mecum conscendere passus,

Ne mihi mors misero bis patienda foret!

At nunc, ut peream, quoniam caret illa periclo,

Dimidia certe parte superstes ero.

Ei mihi, quam celeri micuerunt nubila flamma! 45

Quantus ab aetherio personat axe fragor!

Nec leuius tabulae laterum feriuntur ab undis

Quam graue balistae moenia pulsat onus.

Qui uenit hic fluctus, fluctus supereminet omnes:

Posterior nono est undecimoque prior. 50

Nec letum timeo; genus est miserabile leti;

Demite naufragium, mors mihi munus erit.

Est aliquid fatoque suo ferroue cadentem

In solida moriens ponere corpus humo

Et mandare suis aliqua et sperare sepulcrum 55

Et non aequoreis piscibus esse cibum.

Fingite me dignum tali nece, non ego solus

Hic uehor: inmeritos cur mea poena trahit?

Pro superi uiridesque dei quibus aequora curae,

Vtraque iam uestras sistite turba minas 60

Quamque dedit uitam mitissima Caesaris ira,

Hanc sinite infelix in loca iussa feram!

Si quoque quam merui poenam me pendere uultis,

Culpa mea est ipso iudice morte minor.

Mittere me Stygias si iam uoluisset in undas 65

Caesar, in hoc uestra non eguisset ope.

Est illi nostri non inuidiosa cruoris

Copia, quodque dedit, cum uolet, ipse feret.

Vos modo, quos certe nullo puto crimine laesi,

Contenti nostris iam, precor, este malis! 70

Nec tamen, ut cuncti miserum seruare uelitis,

Quod periit saluum iam caput esse potest.

Vt mare considat uentisque ferentibus utar,

Vt mihi parcatis, non minus exul ero.

Non ego diuitias auidus sine fine parandi 75

Latum mutandis mercibus aequor aro;

Nec peto, quas quondam petii studiosus, Athenas,

Oppida non Asiae, non loca uisa prius;

Non ut Alexandri claram delatus in urbem

Delicias uideam, Nile iocose, tuas. 80

Quod faciles opto uentos – quis credere posset? –

Sarmatis est tellus quam mea uela petunt;

Obligor ut tangam laeui fera litora Ponti

Quodque sit a patria tam fuga tarda, queror;

Néscio quo uideam positos ut in orbe Tomitas, 85

Page 32: Apostila minicurso clssicas

32

Exilem facio per mea uota uiam.

Seu me diligitis, tantos conpescite fluctus

Pronaque sint nostrae numina uestra rati;

Seu magis odistis, iussae me aduertite terrae:

Supplicii pars est in regione mei. 90

Ferte – quid hic facio? – rapidi mea corpora, uenti!

Ausonios fines cur mea uela uolunt?

Noluit hoc Caesar. Quid, quem fugat ille, tenetis?

Aspiciat uultus Pontica terra meos.

Et iubet et merui; nec quae damnauerit ille 95

Crimina defendi fasque piumque puto.

Si tamen acta deos numquam mortalia fallunt,

A culpa facinus scitis abesse mea.

Immo ita, si scitis, si me meus abstulit error

Stultaque mens nobis, non scelerata fuit, 100

Quod licet et minimis, domui si fauimus illi,

Si satis Augusti publica iussa mihi,

Hoc duce si dixi felicia saecula proque

Caesare tura pius Caesaribusque dedi,

Si fuit hic animus nobis, ita parcite, diui! 105

Si minus, alta cadens obruat unda caput!

Fallor an incipiunt grauidae uanescere nubes,

Victaque mutati frangitur ira maris?

Non casu, uos sed sub condicione uocati,

Fallere quos non est, hanc mihi fertis opem. 110

Page 33: Apostila minicurso clssicas

33

3

Cum subit illius tristissima noctis imago

Qua mihi supremum tempus in urbe fuit,

Cum repeto noctem, qua tot mihi cara reliqui,

Labitur ex oculis nunc quoque gutta meis.

Iam prope lux aderat, cum me discedere Caesar 5

Finibus extremae iusserat Ausoniae.

Nec spatium fuerat nec mens satis apta parandi:

Torpuerant longa pectora nostra mora;

Non mihi seruorum, comites non cura legendi,

Non aptae profugo uestis opisue fuit. 10

Non aliter stupui quam qui Iouis ignibus ictus

Viuit et est uitae nescius ipse suae.

Vt tamen hanc animi nubem dolor ipse remouit

Et tandem sensus conualuere mei,

Adloquor extremum maestos abiturus amicos, 15

Qui modo de multis unus et alter erat.

Uxor amans flentem flens acrius ipsa tenebat

Imbre per indignas usque cadente genas.

Nata procul Libycis aberat diuersa sub oris

Nec poterat fati certior esse mei. 20

Quocumque aspiceres, luctus gemitusque sonabant

Formaque non taciti funeris intus erat.

Femina uirque meo pueri quoque funere maerent

Inque domo lacrimas angulus omnis habet.

Si licet exemplis in paruo grandibus uti, 25

Haec facies Troiae, cum caperetur, erat.

Iamque quiescebant uoces hominumque canumque

Lunaque nocturnos alta regebat equos:

Hanc ego suspiciens et ad hanc Capitolia cernens

Quae nostro frustra iuncta fuere Lari, 30

“Numina uicinis habitantia sedibus, inquam,

Iamque oculis numquam templa uidenda meis

Dique relinquendi quos urbs habet alta Quirini,

Este salutati tempus in omne mihi!

Et quamquam sero clipeum post uulnera sumo, 35

Attamen hanc odiis exonerate fugam

Caelestique uiro quis me deceperit error

Dicite, pro culpa ne scelus esse putet,

Vt, quod uos scitis, poenae quoque sentiat auctor:

Placato possum non miser esse deo.” 40

Hac prece adoraui superos ego, pluribus uxor

Singultu medios impediente sonos.

Illa etiam ante Lares passis adstrata capillis

Contigit extinctos ore tremente focos

Multaque in aduersos effudit uerba Penates 45

Page 34: Apostila minicurso clssicas

34

Pro deplorato non ualitura uiro.

Iamque morae spatium nox praecipitata negabat

Versaque ab axe suo Parrhasis Arctos erat.

Quid facerem? Blando patriae retinebar amore,

Vltima sed iussae nox erat illa fugae. 50

A! quotiens aliquo dixi properante: “Quid urges?

Vel quo festinas ire uel unde, uide.”

A! quotiens certam me sum mentitus habere

Horam propositae quae foret apta uiae.

Ter limen tetigi, ter sum reuocatus et ipse 55

Indulgens animo pes mihi tardus erat.

Saepe “uale” dicto rursus sum multa locutus

Et quasi discedens oscula summa dedi.

Saepe eadem mandata dedi meque ipse fefelli

Respiciens oculis pignora cara meis. 60

Denique: “Quid propero? Scythia est quo mittimur, inquam,

Roma relinquenda est: utraque iusta mora est.

Uxor in aeternum uiuo mihi uiua negatur

Et domus et fidae dulcia membra domus,

Quosque ego dilexi fraterno more sodales, 65

O mihi Thesea pectora iuncta fide!

Dum licet, amplectar; numquam fortasse licebit

Amplius; in lucro est quae datur hora mihi.”

Nec mora, sermonis uerba inperfecta relinquo

Complectens animo proxima quaeque meo. 70

Dum loquor et flemus, caelo nitidissimus alto

Stella grauis nobis Lucifer ortus erat.

Diuidor haud aliter quam si mea membra relinquam

Et pars abrumpi corpore uisa suo est.

Sic doluit Mettus, tum cum in contraria uersos 75

Vltores habuit proditionis equos.

Tum uero exoritur clamor gemitusque meorum

Et feriunt maestae pectora nuda manus;

Tum uero coniux umeris abeuntis inhaerens

Miscuit haec lacrimis tristia uerba meis: 80

“Non potes auelli; simul hinc, simul ibimus, inquit,

Te sequar et coniux exulis exul ero.

Et mihi facta uia est et me capit ultima tellus:

Accedam profugae sarcina parua rati.

Te iubet e patria discedere Caesaris ira, 85

Me pietas: pietas haec mihi Caesar erit.”

Talia temptabat, sicut temptauerat ante,

Vixque dedit uictas utilitate manus.

Egredior, siue illud erat sine funere ferri,

Squalidus, inmissis hirta per ora comis. 90

Illa dolore amens tenebris narratur obortis

Semianimis media procubuisse domo,

Page 35: Apostila minicurso clssicas

35

Vtque resurrexit foedatis puluere turpi

Crinibus et gelida membra leuauit humo,

Se modo, desertos modo complorasse penates, 95

Nomen et erepti saepe uocasse uiri,

Nec gemuisse minus quam si nataeque uirique

Vidisset structos corpus habere rogos,

Et uoluisse mori, moriendo ponere sensus,

Respectuque tamen non periisse mei. 100

Viuat et absentem, quoniam sic fata tulerunt,

Viuat ut auxilio subleuet usque suo!

Page 36: Apostila minicurso clssicas

36

4

Tingitur oceano custos Erymanthidos ursae

Aequoreasque suo sidere turbat aquas;

Nos tamen Ionium non nostra findimus aequor

Sponte, sed audaces cogimur esse metu.

Me miserum! Quantis increscunt aequora uentis, 5

Erutaque ex imis feruet arena uadis!

Monte nec inferior prorae puppique recuruae

Insilit et pictos uerberat unda deos.

Pinea texta sonant, pulsi stridore rudentes,

Ingemit et nostris ipsa carina malis. 10

Nauita confessus gelidum pallore timorem,

Iam sequitur uictus, non regit arte ratem

Vtque parum ualidus non proficientia rector

Ceruicis rigidae frena remittit equo,

Sic, non quo uoluit, sed quo rapit impetus undae, 15

Aurigam uideo uela dedisse rati.

Quod nisi mutatas emiserit Aeolus auras,

In loca iam nobis non adeunda ferar;

Nam procul Illyriis laeua de parte relictis

Interdicta mihi cernitur Italia. 20

Desinat in uetitas, quaeso, contendere terras,

Et mecum magno pareat aura deo!

Dum loquor, et timeo pariter cupioque repelli,

Increpuit quantis uiribus unda latus!

Parcite, caerulei, uos parcite, numina ponti, 25

Infestumque mihi sit satis esse Iouem!

Vos animam saeuae fessam subducite morti,

Si modo, qui periit, non periisse potest!

* in: OVIDE. Tristes. Texte établi et traduit par Jacques Andre. Paris: Société D’Édition

Les Belles Lettres, 1987.

Page 37: Apostila minicurso clssicas

37

TRISTES

LIVRO I

2

Deuses do mar e do céu - pois o que me restam, senão súplicas?

Parai de destroçar os membros desta nau abalada!

E não vos associeis, suplico, à ira do grande César!

Muitas vezes, quando um deus persegue, um outro deus vem em socorro.

Vulcano estava contra Tróia, a favor de Tróia, Apolo;7 5

Vênus foi favorável aos Teucros, Palas, contrária.8

Odiava a Enéias Satúrnia propícia a Turno;9

Ele, contudo, era protegido pelo nume de Vênus.

Muitas vezes o feroz Netuno perseguiu o cauto Ulisses;

Minerva, muitas vezes, arrebatou-o de seu tio paterno.10

10

Também a mim, ainda que inferior a eles,

Quem impede que algum nume proteja contra a ira do deus?”11

Em vão perco, infeliz, minhas palavras inúteis;

As enormes ondas lambem os lábios do que fala

E o terrível Noto12

dispersa minhas palavras e, que as súplicas 15

Cheguem aos deuses aos quais são enviadas, não permite.

Assim, os próprios ventos, para que não seja ferido de uma única forma,

Levam, não sei para onde, as velas e minhas súplicas.

Oh, como sou infeliz! Que montanhas de água se alevantam!

Já já tocarão os mais altos astros, crerias13

20

Quantos abismos se formam ao se separarem as águas!

Já já tocarão o negro Tártaro,14

crerias.

7 Vulcano, deus do fogo e dos metais, forjou as armas de Aquiles a pedido de Tétis (cf. Hom., Il., XVII, 395);

Apolo combateu os gregos ao lado dos troianos (cf. Hom., Il., I; VII; XXI e outros) e, além disso, atribui-se à

sua intervenção, direta ou indireta, a morte de Aquiles (cf. Grimal, 1997, p. 34a). 8 Vênus era mãe de Enéias e protetora dos Teucros (troianos) e Palas Atena (Minerva), protetora de Ulisses.

9 Satúrnia é Juno (Hera), filha de Saturno (Cronos) e Réia. Odeia profundamente os troianos e, de acordo com

a Eneida (I, 12-33), são três os motivos: sua predileção por Cartago que, conforme os fados, seria destruída

pelos descendentes de Enéias; seu rancor ao troiano Páris que, como juiz, elegeu Vênus a mais bela do

concurso de beleza, do qual participavam também Juno e Minerva, e seu ciúme do troiano Ganimedes que,

por causa de sua beleza, foi raptado por Júpiter e levado ao Olimpo para servi-lo. Por isso, desde a guerra de

Tróia tenta extinguir todos os troianos da face da terra para que possa se sentir vingada. No canto VII da

Eneida, Juno incita, através de Alecto (uma das Fúrias), Turno, rei do rútulos (ver nota a I, 5, 24) e

pretendente de Lavínia, que seria desposada por Enéias, a declarar guerra contra os troianos. 10

Minerva era filha de Júpiter, por isso, sobrinha de Netuno (Posídon). 11

Ovídio, nesse verso, compara César a deus. 12

Vento quente e tempestuoso, por isso contrário à navegação, que sopra do sul, também chamado de Austro . 13

Utilizo, neste verso e no 24, a segunda pessoa do singular para indeterminar, semanticamente, o sujeito,

visto ser esse o procedimento do verso latino - Iam iam tacturos sidera summa putes /(...)/ Iam iam tacturas

Tartara nigra putes. Normalmente, em língua portuguesa, indetermina-se o sujeito com a terceira pessoa do

plural ou do singular mais o índice “se”, mas é possível também indeterminá-lo utilizando a segunda pessoa

(você ou tu) sem referência determinada, que poderá, então, ser preenchida por qualquer sujeito.

Page 38: Apostila minicurso clssicas

38

Para onde quer que se olhe, nada há senão céu e mar;

Este intumescido pelas ondas, aquele ameaçador pelas nuvens.

E entre ambos fremem os ventos com medonhos murmúrios. 25

A onda do mar não sabe a que senhor obedecer:

Pois ora Euro15

ganha força do oriente purpúreo,

Ora Zéfiro16

sopra, enviado do remoto ocidente,

Ora o gélido Bóreas se enfurece, como as Bacantes, da região da seca Ursa,17

Ora Noto combate do lado oposto. 30

O piloto está incerto, não sabe para onde fugir

Ou o que buscar: sua própria arte se entorpece ante os ventos contrários.

Sem dúvida é nosso fim, não há esperança alguma de salvação,

E enquanto falo uma onda encobre meu rosto.

A vaga sufocará minha respiração e, pela boca, em vão 35

Suplicante, tomaremos as águas mortais.

Mas a pia esposa18

não se lamenta com nada senão comigo, exilado:

Somente essa minha desventura conhece e lamenta.

Não sabe que meu corpo é um joguete deste imenso mar,

Não sabe que sou impelido pelos ventos, não sabe que a morte está próxima. 40

Ainda bem que não lhe permiti embarcar comigo,

Para eu não padecer, infeliz, de uma dupla morte!

Mas agora, apesar de perecer, porque ela está livre do perigo,

Certamente, pela metade sobreviverei.

Ai de mim, em que rápido clarão resplandeceram as nuvens! 45

Que estrondo retumba do etéreo eixo!

Não são mais levemente batidos os flancos da nau pelas ondas

Que o grande peso da balista ao abalar as muralhas.

Esta onda que chega excede a todas as outras ondas:

À nona é posterior e, à undécima, anterior.19

50

Não temo a morte, infeliz é o aspecto desta morte.

Afastai o naufrágio, a morte ser-me-á um benefício.

Já é alguma coisa, ao sucumbir-se ou pelo próprio fado ou pelo ferro,

Em terra sólita repousar o corpo moribundo

E fazer recomendações aos seus e esperar o sepulcro 55

E não ser dos peixes marinhos o alimento.

Suponde-me digno de tal morte, mas não sou o único

Aqui conduzido: por que meu castigo arrasta os inocentes?

14

O Tártaro é a região mais profunda do mundo, situada sob os próprios Infernos: a distância entre o Hades e

o Tártaro é a mesma do Céu e da Terra, por isso, constitui as próprias fundações do Universo. Esse era o lugar

em que as diferentes gerações divinas encarceravam os seus inimigos (cf. Grimal, 1997, p. 429b). 15

Vento que sopra do oriente, descrito por Horácio como impetuoso. 16

Vento que sopra do ocidente, região das trevas. 17

Vento do norte, da região da constelação da Ursa, que é chamada de “seca” porque não se põe no horizonte,

logo, não se banha no mar (cf. G. Ferrara, 1944, p. 17 e Lechi, 1993, p. 76). De acordo com as Metamorfoses

de Ovídio, foi Juno que, inflamada de ciúme, intercedeu junto a Tétis e a Netuno para que impedissem a Ursa

Maior de se banhar nas águas (cf. II, 508-530 - ver nota a I, 3, 48). 18

Fábia. 19

Conforme G. Ferrara (1944, p. 18), André (1987, p. 9) e Lechi (1983, p. 77), acreditava-se que a última

onda de uma série de dez fosse a mais violenta e perigosa.

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39

Ó deuses olímpicos e marinhos, que tendes o governo das águas,

Uns e outros, cessai já vossas ameaças 60

E permiti que eu, infeliz, leve esta vida, concedida pela

Brandíssima ira de César, ao local determinado!

Se também desejais que eu sofra o merecido castigo,

Minha culpa é, para o próprio juiz, menor que a morte.

Se enviar-me às águas estígias20

já tivesse desejado 65

César, para isto não precisaria de vosso auxílio.

Ele tem poder, não odioso, sobre minha vida

E, o que deu, quando desejar, ele mesmo tirará.

Então vós que não ultrajei, julgo, com nenhuma ofensa,

Contentai, agora, suplico, com meus males. 70

Todavia, mesmo que todos desejais salvar um infeliz,

Não pode ser salva a vida que já se extinguiu.21

Ainda que o mar se acalme e que goze de ventos favoráveis,

Que me poupeis, não menos exilado serei.

Não sulco, ávido por adquirir, sem limite, riquezas, 75

O imenso mar para barganhar mercadorias;

Nem me dirijo a Atenas, que outrora procurei como estudioso,

Nem às cidades da Ásia, nem a locais antes vistos;

Nem à famosa cidade de Alexandre sou levado,

Para que veja, ó alegre Nilo, tuas delícias.22

80

Isto desejo, ventos favoráveis - quem poderia acreditar? -

A Sarmácia23

é a terra que minhas velas buscam.

Sou obrigado a atingir os inóspitos litorais do lado sinistro do Ponto24

E me queixo que seja tão lento o desterro da pátria;

Para que veja os tomitas,25

situados em não sei que parte do mundo, 85

Torno, por meus votos, o trajeto breve.

Se me amais, acalmai as imensas vagas

E favoráveis sejam vossos numes à nossa embarcação;

Mas se me odiais, volvei-me à terra determinada:

Parte de meu suplício está nessa região. 90

Carregai - que faço aqui? - ó velozes ventos, meu corpo!

Por que minhas velas desejam os limites ausônicos?26

20

O Estige é um dos rios dos Infernos. 21

Ovídio, nesse verso, faz referência ao exílio através da metáfora da morte física, visto esse ser considerado

pelos romanos como uma morte em vida, pois pressupõe a perda de todos os direitos civis. Além disso, o

protagonista estabelece, entre os versos 59 a 72 desta elegia, um paradoxo, pois a súplica que faz aos deuses

em prol de sua vida contrapõe-se ao fato dela já ter se extinguido. 22

Alexandria era famosa pelo luxo excessivo, por seu centro cultural e pelos divertimentos. 23

A Sarmácia era uma vasta região ao norte da Europa que se estendia até os limites conhecidos da Ásia. 24

O exilado tem que atingir a margem esquerda (em relação a quem navega do estreito de Bósforo para cima)

do Ponto Euxino (atual Mar Negro). Além dessa indicação geográfica, o adjetivo laeuus, aqui traduzido por

“sinistro”, significa “de mau agouro”, “funesto”. Então, alude tanto à localização geográfica quanto ao trágico

destino de Ovídio (ver I, 11, 31 e nota). 25

Moradores de Tomos (atual Constanza na Romênia), cidade que ficava na região do Ponto Euxino, próxima

à Sarmácia, para onde Ovídio fora exilado. 26

Ausônia é um termo poético para designar a Itália (cf. Oxford Latin Dictionary, 1969 - ver nota a I, 3, 6).

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Não o queria César. Por que, a quem ele expulsou, retendes?

Que a terra pôntica veja minha face.

Não só ele ordena, como também mereci; nem julgo 95

Ser justo e pio defender-se de crimes que ele condenou.

Se, todavia, os atos dos mortais nunca aos deuses enganam,

Sabeis que do meu erro ausenta-se o crime.

Ora pois, se sabeis que é assim, se meu erro arrebatou-me

E meu espírito foi insensato, não criminoso: 100

Se, o que é permitido até aos mais humildes, dediquei-me àquela casa,

Se as ordens de Augusto para mim eram lei,

Se disse que, sob seu império, eram venturosos os séculos

E a César e aos Césares, pio, ofereci incenso,

Se foi esta minha intenção, poupai-me, ó deuses! 105

Se não, ao precipitar-se, cubra a imensa onda minha cabeça!

Engano-me ou começam a se dissipar as densas nuvens,

E a ira aplacada do mar mudado se enfraquece?

Não pelo acaso, mas vós, invocados sob esta condição,

Aos quais não se pode enganar, a mim trazeis este auxílio. 110

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41

3

Quando me vem à mente a imagem tristíssima daquela noite

Que foram meus últimos momentos na cidade,

Quando relembro a noite na qual abandonei tantas coisas a mim caras,

Ainda agora, escorre uma lágrima de meus olhos.

Já se aproximava a luz do dia em que César ordenara que partisse 5

Dos limites extremos da Ausônia.27

Não houvera tempo, nem disposição suficiente para preparar o necessário:

Meu peito entorpecera pela longa demora.

Não me preocupei em escolher escravos nem companheiros,

Nem roupa nem riqueza necessárias ao desterrado. 10

Fiquei entorpecido tanto quanto quem é atingido pelos fogos de Júpiter

E continua vivo, não estando consciente de sua própria vida.

Mas, quando a própria dor removeu esta nuvem de desgraça de meu espírito,

E, finalmente, meus sentidos restabeleceram-se,

Prestes a ir, dirijo-me pela última vez a meus tristes amigos, 15

Que, de muitos, eram apenas um e outro.

A esposa amorosa abraçava-me choroso, ela própria chorando mais fortemente,

Caíam-lhe, ininterruptamente, rios de lágrimas pelas faces que não mereciam.

A minha filha estava longe, na costa Líbica,28

E não pudera ser informada de meu destino. 20

Para qualquer lugar que olhasses, as lamentações e os gemidos ressoavam,

A imagem era a de um funeral não tácito.

Mulher, homem, também crianças se entristecem com o meu funeral,

E há lágrimas por todos os cantos da casa.

Se é licito servir-se de grandes exemplos no pequeno, 25

Este era o aspecto de Tróia quando capturada.

E já as vozes de homens e de cães se aquietavam

E a altiva lua guiava os cavalos noturnos:

Erguendo os olhos a ela e distinguindo o Capitólio29

à sua luz,

Que inutilmente ficava próximo ao nosso lar, 30

“Divindades habitantes da casa vizinha,” disse,

“Templos que pelos meus olhos jamais serão vistos de novo,

E deuses a serem abandonados, os quais a cidade alta de Quirino30

possui,

Sede saudados por mim para todo o sempre!

E, ainda que eu tome do escudo tardiamente, depois das feridas, 35

Todavia, livrai este exílio de ódios

E dizei ao homem celestial que erro me enganou,

Para que não julgue haver crime ao invés do erro,

27

Como Ovídio fala da extremae...Ausoniae, presume-se que tenha embarcado no porto de Brindes. 28

A filha de Ovídio, que era esposa de Fido Cornélio, naquele ano procônsul na África (cf. G. Ferrara, 1944,

p. 25). 29

Monte de Roma em que estava o templo de Júpiter. 30

Quirino é um dos deuses mais antigos, uma das três divindades arcaicas, cujo culto constitui a base indo-

européia da religião romana. É um deus guerreiro, de origem sabina, que ocupa o último lugar na tríada

formada por Júpiter, Marte e ele (cf. Grimal, 1997, p. 403a).

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Para que o que vós sabeis também saiba o autor do castigo,

Aplacado o Deus, posso não ser miserável.” 40

Eu, por esta prece, adorei os deuses, com muitas mais minha esposa,

Entrecortando o soluço suas palavras.

Além disso, ela, estendida ante os Lares31

com cabelos desgrenhados,

Tocou os fogos extintos com lábios trementes,

E dirigiu em profusão suas palavras aos Penates32

adversos, 45

Que nada valeriam em favor do desgraçado marido.

E já a noite avançada impedia a demora,

E a Ursa Parráside33

já tinha se voltado em seu eixo.

Que fazer? O doce amor da pátria retinha-me,

Mas aquela era a última noite antes do exílio. 50

Ah! Quantas vezes eu disse para aquele que me apressava: “Por que me apressas?”

Vê de onde devo partir e para onde me apressas em ir.”

Ah! Quantas vezes eu menti ter o momento certo

Que fosse conveniente para o caminho a seguir.

Três vezes toquei a porta, três vezes fui convidado a voltar; 55

O meu pé, complacente com meu espírito, era vagaroso.

Muitas vezes dito “adeus”, ainda uma vez falei muitas coisas

E, como que partindo, dei os últimos beijos.

Muitas vezes dei as mesmas recomendações e enganei-me a mim mesmo,

Observando a cara prole com meus olhos. 60

Finalmente: “Por que me apresso? É para Cítia34

que somos mandados”, disse,

“Roma tem de ser abandonada: uma e outra demora é justa.

A esposa viva é negada a mim, vivo, por todo o sempre

E a casa e os doces membros de um lar fiel

E os amigos que amei fraternalmente. 65

Oh! corações unidos a mim pela fidelidade digna de Teseu!35

Enquanto me é permitido, hei de abraçá-los: talvez nunca mais seja permitido;

É lucro a hora que me é dada.”

31

Eram deuses domésticos, protetores da família e da casa. Originariamente havia apenas dois Lares, filhos de

Lara e de Mercúrio, mas com o tempo, esse número cresceu e cada família passou a ter os seus próprios

Lares. Eram representados sob a figura de pequenos bonecos de prata, marfim, madeira ou qualquer outro

material. (cf. Spalding, 1993,p. 82). 32

Eram deuses protetores da família que, quase sempre, se confundiam com os lares. Seu culto privado

tornou-se público e, por isso, Roma também tinha seus Penates. Conforme a tradição, foram trazidos de Tróia

para Roma por Enéias, portando a inscrição Magnis dis (cf. Spalding, 1993, p. 113). 33

Calisto, filha de Licáon, rei da Arcádia, foi seduzida por Júpiter, que havia tomado a forma de Diana, no

monte árcade, Parrásio. Ficou grávida, foi expulsa do grupo de Diana e metamorfoseada em ursa por Juno,

inflamada de ciúme. Depois de algum tempo, seu filho Árcade saiu para caçar nas matas de Erimanto, monte

da Arcádia, e deparou-se com a ursa, sua mãe, que tentou matar. Júpiter, para protegê-la, transformou-a na

constelação da Ursa Maior e Árcade, na constelação de Arcturo ou Bootes (cf. Ov. Met. II, 401-530 - sobre a

constelação de Arcturo ver I, 4, 1-2 e nota). 34

Vasta região situada ao norte das terras conhecidas dos antigos, abrangendo parte da Europa e da Ásia. 35

Era proverbial o sentimento de lealdade, de amizade (fides) que unia Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, a

Pirítoo, seu companheiro em todas as aventuras. Teseu resolveu ir com Pirítoo aos Infernos para raptar

Perséfone, esposa de Hades, porque havia sido ajudado por este no rapto de Helena. Ambos acabaram se

tornando prisioneiros, mas Teseu conseguiu ser resgatado por Héracles; Pirítoo, por sua vez, ficou preso lá,

para todo o sempre (cf. Grimal, 1997, pp. 376b-377a - ver I, 5, 18-19).

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Sem demora, deixo para trás as palavras inacabadas,

Abraçando aqueles que estão mais próximos de mim. 70

Enquanto falo e choramos, Lúcifer,36

a funesta estrela para mim,

Nascia, a mais resplandecente no alto céu.

Não estou de modo diverso dividido do que se deixasse para trás meus membros,

E uma parte pareceu ser cortada bruscamente do corpo.

Assim Meto37

padeceu, quando teve os cavalos vingadores de sua traição 75

Voltados em direção oposta.

É então que se erguem os gritos e os gemidos dos meus,

E as mão aflitas ferem o peito nu.

É então que a esposa agarrando os ombros daquele que parte

Juntou estas tristes palavras às minhas lágrimas 80

“Não podes ser separado violentamente de mim, juntos iremos daqui”, disse,

“Seguir-te-ei e serei a esposa exilada do exilado.

O caminho também é feito para mim e a terra mais remota me acolhe:

Juntar-me-ei como pequena bagagem ao navio prófugo.

A ira de César ordena que tu deixes a pátria, 85

A mim o zelo familiar ordena: este zelo38

será meu César.”

Ela tentou tais coisas como tentara anteriormente,

E a custo deixou-se vencer para ser útil a mim.

Parto, ou melhor, isto era ser levado à cova sem estar morto,

Esquálido, os cabelos desalinhados sobre a face, a barba malfeita. 90

Contam que perdeu os sentidos por causa da dor,

Tombando semimorta no meio da casa,

E que quando se reanimou, levantou-se do chão gelado,

Tendo os cabelos sujos pela poeira imunda,

Ora lamentando a si própria, ora os Penates abandonados. 95

E, freqüentemente, chamou pelo nome do marido arrebatado,

Nem se lamentou menos do que se tivesse visto

Que as piras erigidas continham o corpo da filha e do marido.

E desejou morrer, morrendo deixar de sofrer,

Mas que, em atenção a mim, não pereceu. 100

Viva e, estando eu ausente, já que assim os destinos estabeleceram,

Viva e socorra-me sempre com seu auxílio!

36

Lúcifer é a designação latina para Fósforo (também conhecido como Heósforo), a estrela da manhã.

Aparece com freqüência na poesia como a personificação do astro que anuncia a Aurora e traz o dia (cf.

Grimal, 1997, p. 178b). 37

Meto Sufécio foi amarrado pelas pernas e braços a quatro cavalos que correram em direção oposta,

esquartejando-o. Essa punição foi infligida pelo rei Tulo Hostílio porque ele tinha sido um aliado desleal dos

romanos na guerra contra Veios (cf. Lechi, 1993, p. 91 e Virg. En. VIII, 642-645). 38

A expressão “zelo familiar” traduz aqui o termo latino pietas, que significa, de acordo com Lewis & Short

(1945), “dutiful conduct towards the gods, one’s parents, relatives, benefactors, country, etc; sense of duty”.

Essa palavra aparece mais quatro vezes ao longo do livro I e em três delas foi traduzida por “piedade” (5, 14 e

38; 9, 35). Todavia, essa “piedade” não deve ser compreendida do ponto de vista cristão, como compaixão, dó

ou pena, mas sim no sentido romano de cumprimento do dever (qualquer que seja), virtude, justiça, fidelidade

e lealdade (Saraiva, 1993). Na elegia 7 (v.11), traduziu-se pietas por “fidelidade”.

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4

Banha-se no oceano o guardião da ursa de Erimanto

E as águas do mar turba com seu astro; 39

Eu, todavia, o mar Jônio sulco, não pela minha

Vontade, mas, audaz, obrigo-me a ser pelo medo.

Oh, como sou infeliz! Com que impetuosos ventos se encapelam os mares, 5

E a areia dos profundos vaus arrancada ferve!

Não menor do que a montanha, à proa e à popa recurva,

Lança-se a onda e açoita os deuses pintados.40

Os pinhos entretecidos rangem; os calabres se agitam com um ruído estridente,

E geme por meus males a própria nau. 10

O piloto, confessando um gélido temor com a palidez,

Já segue vencido, não mais comanda com arte a nau.

E como um pouco valoroso cavaleiro que as inúteis

Rédeas afrouxa do cavalo de pescoço rijo,

Assim, não para onde quis, mas para onde arrasta o ímpeto da onda, 15

Vejo o piloto as velas largar à nau.

Se não enviar Éolo41

ventos contrários,

A locais, que já não devem ser por mim tocados, serei levado;

Pois, ao longe, deixada do lado esquerdo a Ilíria,42

A interdita Itália é por mim avistada. 20

Que desista de me arremessar, rogo, a lugares proibidos

E que, comigo, o vento seja submisso ao magno deus!43

Enquanto falo, temo e igualmente desejo ser desviado,

Fez estrondar com imensa força a onda ao flanco!

Poupai-me, vós, poupai-me, ó numes do cerúleo mar, 25

E que me baste ser Júpiter hostil!

Vós, meu espírito fatigado privai de uma morte atroz,

Se, todavia, quem já morreu, não ter morrido pode!44

*Tradução Patricia Prata

39

O guardião da Ursa Maior é a constelação vizinha de Arcturo ou Bootes (ver nota a I, 3, 48). Nessa

constelação há uma estrela mais brilhante cujo aparecimento e ocaso, acreditava-se, anunciavam terríveis

tempestades (cf. Velloso, 1945, p. 40). 40

Era costume pintar, na popa, a imagem da divindade que era protetora da nau (ver I, 10, 2 e nota). 41

É o rei dos Ventos que habitava na ilha Eólia. 42

A Ilíria, separada da Itália pelo mar Adriático (considerado, como comenta G. Ferrara (1944, p. 33) uma

continuação do Jônio), estendia-se até os limites da Grécia. A nau do poeta, que se encontrava no mar Jônio,

por causa da borrasca, estava sendo lançada de volta para o mar Adriático e, conseqüentemente, para as costas

da Itália. 43

Ovídio novamente equipara César a um deus (ver, I, 2, 12) e, aqui, a um “magno” deus. Mais abaixo, no

verso 26, Nasão estabelece uma nítida comparação entre César e Júpiter. 44

Ovídio novamente faz referência ao exílio, através da metáfora da morte. Além disso, mantém o paradoxo

já configurado na elegia 2, ao sugerir que, mesmo estando morto, encontra-se vivo (ver, I, 2, 72).