Apostila o Menino No Espelho

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APOSTILA N 5

O MENINO NO ESPELHOFERNANDO SABINO

O menino o pai do homem.WILLIAM WORDSMORTH

Terceiro

BiografiaFernando Tavares Sabino nasceu em 1923, em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde fez os estudos primrio e secundrio, marcados pelo convvio amigo de Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hlio Pellegrino. Desde cedo mostrou aptido literria. Aos treze anos, escreveu um conto policial e aos quinze, passou a publicar seus contos e crnicas, regularmente, em revistas literrias. Iniciou o curso de Direito em 1941, ano em que publicou seu primeiro livro de contos Os Grilos No Cantam Mais, que j delineava o escritor que deveria ser. Em 1942, entrou para o funcionalismo pblico, na Secretaria das Finanas. Em 1944, publicou a novela Marca e se mudou para o Rio, onde passou a trabalhar em cartrio. Bacharelou-se em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, em 1946. Viveu dois anos em Nova Iorque, onde trabalhou como auxiliar no Escritrio Comercial do Brasil. Nesse perodo, escreveu crnicas semanais para o Dirio Carioca e o Jornal. De volta ao Rio, em 1948, alm de atuar como escrivo da vara de rfos e Sucesses, escreveu crnicas dirias para o Dirio Carioca. Atividade esta que se estendeu por muitos anos, nos principais jornais e revistas do pas. Fundou com amigos duas editoras: Do Autor, em 1960, e Sabi, em 1967. De 64 a 66, morou em Londres como adido cultural, junto Embaixada Brasileira. Em 1975, fundou Bem-te-vi Filmes, passando a produzir filmes sobre eventos e documentrios. Em 1979, publicou O Grande Mentecapto que ganhou o prmio Jabuti ano seguinte.

Fernando - protagonista. Odete me de Fernando. Alzira empregada. Gerson irmo mais velho de Fernando. Toninho irmo de Fernando. Mariana melhor amiga de Fernando. Pastoff coelho. Hindemburgo cachorro. Birica valento da escola. Cntia prima de Fernando. Dona Risoleta professora. Godofredo papagaio. Fernanda galinha. Major Pape Faria vizinho de Fernando.

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Saio para a sala. Vejo meus pais conversando de mos dadas no sof, como costumavam fazer todas as tardes, antes do jantar. Comovido, dirijo-me a eles: Papai... Mame... Mas eles no me vem. Nem parecem ter-me ouvido, como se eu no existisse. Ganho o corredor, passo pela copa onde o relgio est acabando de bater cinco horas. Atravesso a cozinha, vendo a Alzira a remexer em suas panelas, sem tomar conhecimento da minha existncia. Deso a escada para o quintal e dou com um garotinho agachado junto s poas dgua da chuva que caiu h pouco, entretido com umas formigas. Dirijo-me a ele, e ficamos conversando algum tempo. Depois me despeo e refao todo o caminho de volta at meu quarto. Vou janela, olho para fora. O que vejo agora a paisagem de sempre, o fundo dos edifcios voltados para mim, iluminados pelas luzes do entardecer em Ipanema. Ouo o relgio soando a ltima pancada das cinco horas. Viro-me, e me vejo de novo no meu apartamento. Caminho at a mesa, debruo-me sobre a mquina que abandonei h instantes. Leio as ltimas palavras escritas no papel: ... at desaparecer em direo ao infinito. Sento-me, e escrevo a nica que falta: FIM

PRINCIPAIS OBRAS Romance O Encontro Marcado (1956); O Grande Mentecapto (1979); O Menino no Espelho (1982). Crnicas A Cidade Vazia (1950); Medo em Nova York (1979); A Mulher do Vizinho (1962); A Inglesa Deslumbrada (1967); Gente I e Gente II (1975); Deixa o Alfredo Falar (1976); O Encontro das guas, Crnica Irreverente de uma Cidade Tropical (1977); Gente (1979); A Falta que Ela me Faz (1980); A Vitria da Infncia (1984). A Volta por Cima (1990). Contos Os Grilos no Cantam Mais (1941); O Homem Nu (1960); A Companheira de Viagem (1965).O Gato Sou Eu (1983). Novela A Marca (1944); A Vida Real (1952); A Faca de Dois Gumes (1985); A Nudez da Verdade (1995). Dicionrio Lugares-Comuns (1952). Autobiografia esboo O Tabuleiro de Damas (1988). Biografia Zlia, Uma Paixo (1991). Relato de Viagens De Cabea para Baixo (1989). Infantil Macacos me Mordam (1984); O Pintor que Pintou o Sete (1987).

Personagens22

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IntroduoO Menino no Espelho no necessariamente um livro autobiogrfico pois, como o prprio autor nos diz na orelha do livro, ele recorre s suas fantasias infantis e as concebe como se fossem realidade. O livro dividido em dez captulos, alm do prlogo e do eplogo. Os captulos podem ser lidos de forma independente. Assim vamos ver o menino Fernando em suas brincadeiras no quintal, sua amizade com a galinha Fernanda, suas estripulias com personagens de nossa literatura.

quem era aquele desconhecido que um dia, depois da chuva, foi conversar comigo no fundo do quintal? Na hora pensei que fosse algum amigo da famlia, ou at parente: um velho primo ou tio que eu no conhecesse. Cheguei, mesmo, a achar que ele se parecia um pouquinho com meu pai mas foi s impresso: quando perguntei quem ele era, papai me disse que no tinha a menor idia, pois nem chegou a v-lo. Minha me tambm no soube dizer, muito menos o Gerson ou o Toninho. A Alzira se limitou a dizer que me tinha visto conversando sozinho, como eu fazia sempre. S restava perguntar ao Godofredo, mas o papagaio no queria saber de conversa comigo: seu entusiasmo pela nossa faanha libertando os passarinhos j havia passado. Hindemburgo e Pastoff talvez pudessem esclarecer alguma coisa, pois me haviam visto conversando com ele. Mas no sabiam falar, como o Godofredo, nem mesmo responder com sinais, como a Fernanda, que infelizmente j havia morrido. E que que uma galinha poderia saber a respeito de um homem, de cuja existncia os outros at duvidavam? E no fiquei sabendo, e at hoje me pergunto: quem seria ele? Cansado de tantas recordaes, afasto-me do relgio e caminho at a janela, olho para fora. Assombrado, em vez de ver os costumeiros edifcios, cujos fundos do para o meu apartamento em Ipanema, o que eu vejo uma mangueira a mangueira do quintal de minha casa, em Belo Horizonte. Vejo at uma manga amarelinha de to madura, como aquela que um dia quis dar para a Mariana e por causa dela acabei matando uma rolinha. Daqui da minha janela posso avistar todo o quintal, como antigamente: a caixa de areia que um dia transformei numa piscina, o bambuzal de onde parti para o meu primeiro vo. Volto-me para dentro e descubro que j no estou na sala cheia de estantes com livros do meu apartamento, mas no meu quarto de menino: a minha cama e a do Toninho, o armrio de cujo espelho um dia se destacou um menino igual a mim... 21

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Os dois quase morreram, nem dormiram e, para compensar soltaram os pssaros do Major. Os pssaros agradeceram.

E estvamos ali, banhados pela luz cor-de-rosa do belssimo pr-do-sol de Belo Horizonte, quando uma coisa maravilhosa aconteceu. Como se brotassem do cu, bandos e bandos de passarinhos de vrios tamanhos e mil cores diferentes, vindos de todos os lados, se agrupavam no ar, em alegre revoada, at formar um verdadeiro enxame de asas em formao cerrada. E vieram todos para o nosso lado, voando em crculos cada vez menores e mais baixos, em meio a uma sinfonia de cantos, chilreios e trinados, centralizando-se em cima de nossas cabeas. Rodopiando no ar como uma guirlanda de pequeninos seres alados, girndola vinda do cu para nos abenoar com a sua gratido. Rodaram vrias vezes e depois o crculo se desfez, e seguiram todos em linha reta, afastando-se como uma nuvem multicor at desaparecer em direo ao infinito. O Eplogo, logicamente, fecha o livro e nos deparamos com o escritor. Este final intitulado O Homem e o Menino. Eis o FIM:

No Prlogo, conhecemos o menino Fernando feliz da vida por sua casa ter goteiras e sem entender porque os adultos no gostavam. O mais legal era ir para o quintal e brincar na lama, divertindo-se com as poas e formigas. Diante disso, aparece um homem que conversa com ele. o encontro do adulto e da criana.

PARO de escrever, levanto os olhos do papel para orelgio de parede: cinco horas. As sonoras pancadas comeam a soar uma a uma, como antigamente em nossa casa. um relgio bem antigo. Foi do meu av, depois do meu pai, hoje meu e um dia ser do meu filho. Seu tique-taque imperturbvel me acompanha todas as horas de viglia o dia inteiro e noite adentro, segundo a segundo, do tempo vivido por mim. J contei vrias proezas, aventuras, peripcias, tropelias (e algumas lorotas) do tempo em que eu era menino. Nada se compara ao mistrio que eu trouxe da infncia e que at hoje me intriga: 20

Gostei daquele homem: ele sabia uma poro de coisas que eu tambm sabia. Ficamos conversando um tempo, sentados na beirada da caixa de areia, como dois amigos, embora ele fosse cinqenta anos mais velho do que eu, segundo me disse. No parecia. Eu tambm lhe contei uma poro de coisas. Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei fazendo, e de como aprendi a voar como os pssaros, e a minha aventura de escoteiro perdido na selva, as espionagens e investigaes da sociedade secreta Olho de Gato, o ssia que retirei do espelho, o Birica, valento da minha escola, o dia em que me sagrei campeo de futebol, o meu primeiro amor, o capito Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que minha amiga no estivesse por ali, para que ele a conhecesse. Levei-o a ver o Godofredo em seu poleiro: Fernando! berrou o papagaio, imitando mame: Vem pra dentro, menino! Olha o sereno! No Captulo I, intitulado Galinha ao molho pardo nos narrada a histria de uma galinha que a me comprara para um almoo em homenagem ao Dr. Junqueira. O menino, penalizado, esconde a galinha, chamando-a de Fernanda. O almoo vira uma macarronada, e o Dr. Junqueira confessa seu medo da comida ser galinha ao molho pardo, que ele detestava.

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De manhzinha, antes que a Maria lavadeira chegasse, fui at l, levantei a bacia e peguei a Fernanda, procurei mame com ela debaixo do brao: Olha s quem est aqui. Mame se espantou: Uai, ela no tinha sumido? Onde que voc encontrou essa galinha, Fernando? De repente seus olhos se apertaram num jeito muito dela, quando entendia as coisas: havia entendido tudo. Antes que me passasse um pito, eu avisei: Se tiverem de matar a minha amiga, me matem primeiro. Mame achou graa quando soube que ela se chamava Fernanda e resolveu no se importar com o que eu tinha feito, pelo contrrio: deixou que a galinha passasse a ser um de meus brinquedos. S proibiu que eu a levasse para dentro de casa. Fernanda me seguia os passos por toda parte, como um cachorrinho. E ela continuou minha amiga, at morrer de velha, no sei quanto tempo mais tarde. S sei que alguns dias depois do almoo do Dr. Junqueira, mame comprou um frango. Esse vai se chamar Alberto eu disse logo. Pois sim disse minha me, e mandou que a Alzira tomasse conta do frango. No dia seguinte mesmo, no almoo, comemos o Alberto. Ao molho pardo. O Captulo II tem como tema O canivetinho vermelho. Fernando sempre ganhava dinheiro da me para ir ao cinema. Sempre de bandidos e heris, porm ele fora assistir um filme e esse era diferente, sem p nem cabea. O inusitado do filme deixou o rapaz boquiaberto. O filme era de um homem 6

Era apenas um pedao do bilhete, que eu havia cortado em dois ao abrir o envelope. Juntei os pedaos e pude enfim ler o bilhete completo:

Fernando Eu te amolei ontem, no foi? Me perdoa te chamar de moleque. CntiaNAQUELA mesma tarde a Mariana, que andava sumida, deu o ar de sua presena: Ento, sua amiguinha j foi embora? perguntou com voz irnica. Respirei fundo, espantando de mim o resto da minha mgoa: Minha amiguinha voc, Mariana. O Captulo X, A Libertao dos Passarinhos, narra as estripulias vividas por Fernando e Mariana. Tudo comeou com Fernando querendo oferecer amiga uma manga no p, pois a mesma adorava a fruta. Ele usaria seu estilingue para isso, pois como bom escoteiro ele no usaria para prender pssaros. O pai tambm ensinava que as aves no deveriam ficar no cativeiro. O vizinho, Major Pape Faria, tinha um viveiro cheio, e o pai de Fernando criticava-o por isso. Enquanto a manga no vinha, Fernando e Mariana brincavam de jogar gua nos outros, principalmente no Major. Isso deflagrou uma guerra: Major molhado, Fernando ganhando cascudos, etc. O nosso rapaz um dia, junto a Mariana, resolve derrubar a manga (que madurara) mas o que caiu foi uma rolinha morta. 19

Eu te amo Me perdoaSa do quarto precipitadamente, mas no encontrei a Cntia na sala, nem em seu quarto, nem em lugar nenhum. Dei com meu pai na copa tomando o seu caf: Cntia foi embora? perguntei, aflito. Ela saiu ele informou tranqilamente, e acrescentou logo, rindo: Mas no com o Peixoto. Saiu com sua me, foram fazer compras na cidade. Cntia estava de partida na manh seguinte. No tive, desde ento, oportunidade de estar com ela a ss um momento sequer, para de alguma maneira responder ao seu bilhete. Quando fui para a escola, ela ainda no tinha chegado, e ao voltar, ela estava em companhia de algumas amigas que havia feito em Belo Horizonte, e que ficaram para jantar. S na manh seguinte pude lhe dirigir uma palavra furtiva, j na hora de sua partida: Eu tambm, Cntia disse-lhe baixinho. Voc tambm o qu? e ela se curvou para me abraar, se despedindo. Deu-me um beijo em cada face, e eu me aproveitei para sussurrar ao seu ouvido: Eu tambm te amo. Ela ficou parada um segundo, surpreendida, e depois se abriu num sorriso que eu guardo at hoje entre as lembranas mais lindas da minha vida. Depois que ela se foi, tranquei-me no quarto e busquei seu bilhete para rel-lo ainda uma vez, por entre as lgrimas que me escorriam dos olhos. Ao enfiar os dedos no envelope, puxei com o bilhete um outro pedao de papel, onde, surpreso, dei com as seguintes palavras:

que fazia milagres e ele se descobriu, tambm, fazendo milagres. O homem do filme fazia milagres bobos, tais como: bengala virar rvore, mandava um guarda (que iria prend-lo) ir para o inferno, depois com pena o mandou para a Califrnia, etc. Depois de mil peripcias, resolveu que deveria haver paz no mundo, porm, ao reunir os lderes mundiais, a confuso foi tanta que ele pediu para tudo voltar a ser como era antes do primeiro milagre. Fernando, impressionado, pensou que com ele seria diferente, s iria pedir milagres legais. Tais como: (e ele narra todos) - apagar e acender a luz sem sair da cama. - ter milhes de galinhas como a Fernanda. - uma piscina com tnel secreto que daria para um esconderijo e l houvesse suas colees, brincadeiras e comidas prediletas. - ficar invisvel. - visitar os super-heris (do mandrake ganhou um canivetinho vermelho). - visitar o Stio do Pica pau Amarelo. Deste ltimo milagre, ele volta ao normal e viu que tudo no passou de um sonho, mas ao pr a mo no bolso, achou um canivetinho vermelho.

lei ontem, no foi? te chamar de moleque. Cntia18

UM DOS sonhos da minha vida era ter em casa uma piscina. Tinha aprendido a nadar, j havia disputado mesmo uma competio na piscina do Minas Tnis Clube, categoria de petiz, pretendia me tornar campeo, nadando no mnimo to bem como o Tarz. Gostava tambm de mergulhar, embora achasse que o flego mal dava para a gente se distrair debaixo dgua, no mais que um minuto e pouco. Agora, poderia fazer o milagre de ficar sem respirar o tempo que quisesse. E mais: sempre imaginei uma piscina que tivesse numa de suas paredes um tnel para, atravs dele, chegar a um esconderijo 7

que fosse s meu, um lugar que s eu soubesse existir. Uma espcie de salo subterrneo sem outra entrada que no fosse pelo tnel debaixo dgua. L dentro eu teria todas as coisas de que mais gostava: meus brinquedos, meus livros, meu futebol de boto, minhas bolas de gude, minha coleo de selos, de figurinhas, de marcas de cigarro. Tudo ali era automtico: bastava apertar um boto e se abria uma janelinha na parede, aparecia um cachorro quente; vrias torneirinhas comandadas por boto deixavam escorrer groselha, soda-limonada, guaran, laranjada, e tudo quanto espcie de refrescos. Haveria a qualidade e a quantidade que eu quisesse de sorvete, doce, bala, bombom. Puxando uma alavanca, eu fazia o teto se abrir numa espcie de clarabia, por onde podia ver o cu e at empinar um papagaio. Teria um telescpio tambm, dos mais possantes do mundo, para ver a lua e as estrelas. E tudo que eu quisesse. Era o que eu imaginava na cama, antes de dormir, sem acreditar que um dia tudo viesse a ser realidade. Ali estava a oportunidade, e no perdi tempo: mandei que a caixa de areia virasse uma piscina, com tudo que eu tinha imaginado. O susto que a Fernanda levou quase me mata de rir: a coitada mal teve tempo de saltar para a terra, quando viu a areia em que pisava se converter na gua azul de uma bela piscina. Tirei a roupa e pulei de cabea. Logo encontrei o tnel, que era curto como eu tinha previsto, uns trs metros de comprimento. Foi fcil atravess-lo debaixo dgua. Um curva para cima como eu tinha imaginado, levou-me sada, que era uma espcie de poo no cho, com uma escadinha de metal, dessas que toda piscina tem. Encontrei toalhas para me enxugar e um roupo para vestir. Eu ria de felicidade: tudo que eu queria estava ali. Aquele era o meu mundo, o meu domnio, a que s eu tinha acesso. Eu me sentia um verdadeiro rei. Tinha de tomar cuidado para que no descobrissem o meu segredo. Ningum acredita em milagres. E eu no sabia como usar o meu poder para no deixar que ficassem sabendo. Ao voltar para o quintal atravs da piscina, vi no alto da escada da cozinha, a 8

presente para Negro, que, sem perda de tempo, acionou Bezerra. Quando eu, estrategicamente colocado no setor direito do gramado, como me competia, j pensava que no daria tempo sequer de intervir numa s jogada, eis que Bezerra faz com que a bola venha rolando at mim. Depois de domin-la numa manobra que arrancou aplausos da torcida, e tendo Jacy na cobertura, driblei Nariz, deixando-o estatelado de surpresa, e tabelei com meu companheiro. Este passou ao Joriv, enquanto eu me deslocava para receb-la de volta. Ento disparei num pique, sob o delrio da assistncia, e l fui eu com minhas perninhas curtas no meio daqueles cavales, driblei um, outro, deixei para trs a defesa adversria. E me vi frente a frente com o goleiro. Kafunga abria os braos gigantescos, achei que queria me pegar e no bola. Fiz que chutava, como se fosse encobri-lo, ele pulou. Ento passei com bola e tudo por entre as pernas dele e marquei o gol da vitria. Foi aquela ovao, a torcida delirava. Logo em seguida soou o apito final e meus companheiros de equipe correram para me abraar e carregar em triunfo. O que para eles era fcil, dado o meu tamanho. E assim demos a volta olmpica, sagrados campees. O menino cresce e com isso seu interesse volta-se para o mundo das meninas e ele pede Mariana em namoro. O Captulo IX chama-se Nas Garras do Primeiro Amor. Mariana disse que ele era criana e que ela j tinha namorado, na verdade a foto de um artista de cinema. Fernando se apaixonou, ento, pela prima Cntia e morre de cime do namorado dela, Peixoto.

NA MANH seguinte encontrei debaixo de minha porta um envelope fechado. Abri-o ansiosamente com o meu canivetinho, j adivinhando de quem seria. Retirei um pequeno bilhete:

Fernando17

E assim foi, durante algum tempo. Nunca me diverti tanto. S que eu tinha que tomar muito cuidado para no trair o meu segredo. s vezes me distraa e minha me surgia no alto da escada da cozinha: Uai, Fernando, como que voc j est a embaixo no quintal, se ainda agora te vi l no seu quarto? Por onde voc desceu? Em Minha Glria de Campeo, no Captulo VIII, Fernando nos conta que nasceu no dia 12 de outubro, no dia do aniversrio de Gerson, seu irmo.

NASCI no dia 12 de outubro, aniversrio do Gerson,que estava fazendo oito anos. Meu irmo tinha pedido de presente uma surpresa, e surpresa ele teve: nasci em casa, como acontecia naquela poca, e minha me mandou botar o beb na cama do Gerson, como presente de aniversrio. Quando ele acordou e deu comigo a seu lado, ficou na maior alegria. Foi um custo para se convencer de que eu no era um brinquedo dele, que pudesse ficar carregando pela casa de c para l o tempo todo. Da o carinho com que ele me tratou a vida toda. Esse irmo sempre foi timo no futebol, ao contrrio do Fernando, que nunca era escalado, devido a sua distrao. Certa vez, porm, faltando 5 minutos para acabar o jogo, Fernando entrou e fez o gol da vitria.

Alzira estatelada de espanto. Ao dar por mim, ela entrou correndo pela casa adentro: Socorro, dona Odete! Deus nos acuda! Vem ver uma coisa! Mame veio com ela e, como da outra vez, no viu nada: eu j havia mandado que a piscina voltasse a ser uma simples caixa cheia de areia. Essa mulher no est boa da bola mame comentou, resignada: Onde que voc viu piscina? A Alzira agitava os braos para o cu aparvalhada: Sou capaz de jurar! Sou capaz de jurar! Passei o dia inteiro experimentando com cautela o meu poder. Ordenei que o dia se convertesse em feriado, para no precisar de ir escola. Em pouco era o Toninho que regressava do colgio todo satisfeito: Suspenderam as aulas. Hoje feriado. Feriado como? estranhou minha me. O Captulo III, Como deixei de voar, traz o garoto Fernando s voltas com avies e um desejo intenso de voar. Ele admirava os teco-tecos no ar, as estripulias dos pilotos que faziam malabarismos, acrobacias no cu. Claro que o mesmo tentou fazer seu avio: pegou seu carrinho de corrida, arrumou algumas engenhocas e bum! Bateu no muro sem voar. Depois, entre outras tentativas, utilizou um bambu para alar vo. Veja:

Ao contrrio do que fazia nas peladas de meninos, eu procurava acompanhar, lance por lance, o desenrolar da disputa, em seus instantes finais. Chafir fez a cobrana da lateral, dando de 16

EVIDENTEMENTE no contei a ningum a minha inteno. A princpio tudo deu certo: a subida foi sensacional. Quando a meninada largou o bambu, esperei que ele se empinasse, e larguei tambm. Fui projetado para cima como uma bala de canho. Subi, subi, subi, vendo l embaixo no quintal diminurem 9

cada vez mais as figurinhas dos outros meninos, agitando os braos para mim, cheios de espanto e admirao. Em pouco tempo eu podia avistar do alto no somente o telhado da minha casa entre as rvores como a cidade inteira com as suas ruas e praas, nibus, bondes e automveis deslizando como baratinhas. Mas tudo comeou a rodar diante de meus olhos quando meu corpo perdendo o impulso que lhe havia dado o bambu, passou a virar cambalhotas no ar como as piruetas de um avio. Senti que era tempo de comear a voar por mim mesmo, antes que despencasse l de cima como uma pedra. Abri os braos, procurei uma posio de equilbrio, como se fosse um pssaro, e movimentei as mos como tinha ensaiado. Um bando de andorinhas passou por mim em revoada, sem tomar conhecimento de minha presena. O silncio ali em cima era impressionante. Vi pouco acima de mim e meio de lado um urubu planando calmamente ao sabor do vento e a me olhar, desconfiado. Aquele bicho era capaz de me trazer azar. O mistrio da casa abandonada o ttulo do Captulo IV, onde o nosso menino vira um agente secreto.

E alm do mais aquilo era coisa toa, vivamos dando sardinha, tosto, cacholeta e coque uns nos outros. Para quem no sabe: sardinha uma chicotada de raspo, com o dedo indicador, em quem quer que ouse arrebitar o traseiro. Costuma doer de verdade, quando pega de jeito. Tosto uma joelhada de lado na coxa da vtima, tambm di muito. Cacholeta uma pancada na cabea de um infeliz, com as mos presas uma na outra, depois de soprar entre elas como a ench-las de vento. Costuma at tontear. O coque, ou cascudo, a mesma coisa, s que com uma s mo. O Menino no Espelho o ttulo do Captulo VII cuja histria a seguinte: o irmo de Fernando, Gerson, bateu uma foto sua superposta na qual ele parecia estar conversando com ele mesmo, desde ento ele ficou obcecado procura de um ssia. Seu deslumbramento se deu com a descoberta de um outro eu no espelho. Odnanref. Seu outro eu iria aula por ele etc, porm tudo acaba quando Toninho v os dois juntos.

MAS consegui coisa mais importante: me tornei agentesecreto. O Departamento Especial de Investigaes e Espionagem Olho de Gato achava-se instalado nos altos do prdio situado na Praa da Liberdade, nmero 1458, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, Amrica do Sul, Hemisfrio Ocidental, Terra, Universo Ou seja: no forro da minha casa. Era uma sociedade secreta, constituda de quatro agentes: Odnanref, Anairam, Hindemburgo e Pastoff. Um casal de brasileiros, um alemo e um russo. Odnanref era meu nome de 10

Em compensao, ele me revelou uma surpresa a mais, como se fosse pouco o milagre de sermos dois: sempre que eu quisesse, poderia ver, ouvir, pensar e sentir tudo o que ele via, ouvia, pensava e sentia. Se ele comesse um doce, por exemplo, eu podia sentir o gosto; se achasse graa em alguma coisa, eu podia rir, mesmo que estivesse a quilmetros de distncia. O importante que s se dava quando eu quisesse: das coisas ruins ou simplesmente sem graa eu me dispensaria de tomar conhecimento. O que significava que ele poderia tomar remdio em meu lugar. E assistir s aulas mais cacetes (para mim eram quase todas), sem que eu deixasse de aprender o que nelas se ensinasse. Poderia at mesmo fazer provas para mim, enquanto eu ia empinar papagaio, pegar passarinho, jogar pio ou bola de gude. 15

A partir de ento cada um trazia uma barata para soltar na sala. At perereca colocaram na bolsa da pobre mulher. Dona Risoleta, cansada, demitiu-se. Os garotos fugiam da aula de msica e colocavam rabo de papel nas professoras. Fernando andava com Tininho e Dico e um dia Jacar que andava com o super temido Birica chamou Tininho de fresco. Fernando no gostava de briga mas viu a covardia e se meteu. Birica gritou com Fernando chamando-o de covarde. E o que se passou foi que nosso guri desferiu um soco no valento da escola e ficou esperando a morte chegar. Qual no a surpresa de todos quando o valento gaguejando pediu desculpas!

guerra, e eu o chefe da organizao. Anairam era Mariana, filha da dona Cacilda, a nossa vizinha da casa ao lado. Hindemburgo, como j disse, era o cachorro policial. Ele no parecia gostar muito que a sociedade se chamasse Olho de Gato, mas gato que enxerga no escuro, no podamos dar a ela o nome de Olho de Cachorro, como o referido agente certamente pretendia. E Pastoff era o coelho cinzento que meu pai tinha me dado para substituir a galinha Fernanda, que havia morrido de velha. Quem o batizou assim foi o Gerson, meu irmo mais velho, afirmando que Pastoff queria dizer coelho em russo afirmao que desconfio no ser verdadeira. Eles conversavam na lngua do P, ou cifrando as mensagens com as vogais sendo trocadas por outras letras. A casa abandonada foi o maior caso, nela habitava um ladro. A polcia o prendeu porque os dois deixaram uma vela cair e principiou um incndio, com isso os vizinhos chamaram os bombeiros. A sociedade secreta acabou quando caram do forro da casa, correndo de um gamb.

DEPOIS disso tive de enfrentar outra espcie de perigo:o de levar uma surra do valento da minha escola. O nome dele eu no me lembro, mas todo mundo na classe o chamava de Birica. Era pelo menos uns dois anos mais velho que o resto da turma. Vai um dia o Birica resolve implicar comigo. Ele e outro menino, conhecido como Jacar. No que o Jacar fosse forte feito o Birica: era mais ou menos do meu tamanho. Tinha o queixo para a frente, de aparar goteira, e quando abria a boca parecia um jacar da o apelido. Deste eu me lembro o nome: Sinfrnio. Por isso mesmo ele preferia ser chamado de Jacar. Pois o Jacar, de quem ningum gostava (tinha fama de ladro, furtava tudo que a gente esquecesse na carteira), andava sempre adulando o Birica, e acabou querendo bancar tambm o valento. Do Jacar ningum tinha medo, mas o Birica havia passado a proteg-lo, e ai de quem se metesse com ele! Um dia Tininho, s porque deu uma sardinha no Jacar, levou um tosto do Birica que deu com ele na enfermaria, ficou sem poder andar direito uma semana. Mas no contou para a diretora quem o tinha machucado. Era essa a lei entre ns: ningum entregava ningum. 14

o gamb! Apavorados, nos precipitamos todos para a sada no alapo: era o gamb que havamos surpreendido chupando ovos no galinheiro da casa de nossa companheira. Foi abrir a portinhola e saltamos um atrs do outro para a mesa l embaixo. Foi ento que se deu o desastre. Distrados com a animada reunio, no tnhamos percebido que o tempo havia passado, estava na hora do almoo. E a famlia inteira almoava naquele instante, reunida em torna mesa. Pastoff caiu direto dentro da sopeira, saiu aos pulos borrifando sopa em cima de todo mundo. Hindemburgo, grandalho, em dois saltos ganhou o cho, no sem antes pisar nos pratos do papai e da mame, espalhando comida para todo lado. Eu ca com as pernas enganchadas no pescoo do Gerson e Anairam se estatelou de quatro no meio da mesa, uma das mos na travessa de arroz, a 11

outra na de batatinhas fritas e os joelhos num pastelo de carne. S o gamb no pulou atrs de ns: se limitou a meter o focinho pelo alapo, para dali acompanhar os acontecimentos. Mas deu para sentir o fedor de sua presena. Foi um susto tremendo, verdadeiro pandemnio. Devem ter achado que a casa vinha abaixo. Nunca conseguiram saber direito o que havia acontecido e muito menos o que estvamos fazendo no forro da casa. No havia como entender as nossas confusas explicaes. E foi assim que entrou em recesso a sociedade secreta: os quatro agentes, Odnanref, Anairam, Pastoff e Hindemburgo se recolheram cada um ao seu canto, e o Departamento Especial de Investigaes e Espionagem Olho de Gato suspendeu temporariamente as suas atividades. Passada a onda de voar, Fernando volta a se empolgar pelas aventuras de Tarz e desventuras de Robinson Cruso em Uma Aventura na Selva, ttulo do Captulo V. Comeou fazendo uma cabana no quintal e passava o dia todo nela, at que um dia pensou em dormir no tal abrigo. Escondido foi, noite, para seu refgio e para seu azar choveu a noite toda. Ficou de castigo uma semana, mas o pai foi conferir sua construo, dando alguns palpites e constatou que para Fernando seria bom o Escotismo, s que ele s tinha idade para lobinho. Seu irmo Toninho j era escoteiro e o levou para alistar. Rapidamente ele aprendeu tudo podendo, assim, ir para o to sonhado acampamento. Embrenhando na mata, perdeu-se do grupo, ficando desaparecido dois dias. Nesse nterim, matou cobra, ferveu gua de rio, fugiu de ona, comeu ovinhos de codorna, mandou sinais de socorro com a fumaa etc. Ao ser encontrado, no foi castigado como pensava e sim tratado como heri. Ele afirma que tudo foi verdade, s no contou que sentiu medo da ona. 12

Uma noite, enfim, resolvi dormir ali. Pedir que meus pais permitissem, nem pensar: mame vivia dizendo, assim que anoitecia: Vem pra dentro, menino, olha o sereno! E papai no se metia; quem mandava nessas coisas era ela. Para facilitar, pensei em confiar meu plano ao Toninho, mas achei que ele podia querer tambm dormir na cabana, e ali dentro mal cabia um, quanto mais dois. Ento esperei que todos na casa adormecessem, e sa sorrateiro do quarto em direo ao quintal, levando o travesseiro e o cobertor. No tive sorte: naquela noite caiu um temporal, com raios e trovoadas. A gua da chuva inundou a cabana, a ventania arrancou pedaos do telhado. Encolhido num canto, molhado at os ossos, tive de esperar o dia clarear, debaixo daquele aguaceiro todo. Acabei pegando uma gripe, por pouco no vira pneumonia. E recebi um castigo bem merecido: fiquei sem sobremesa uma semana. Meu pai, curioso, no dia seguinte foi ao quintal apreciar a cabana. Elogiou o meu trabalho, mas fez vrios reparos: isso aqui voc no pregou direito; lgico que tinha que chover dentro, o telhado no tem inclinao; devia ter cavado um rego ao redor, para a gua no entrar por baixo da parede. Voc tem jeito. Mas precisa de aprender umas coisas. E disse para minha me, na hora do almoo: Acho que o escotismo que vai ser bom para esse menino. A prxima aventura foi a de talvez levar uma surra do Valento da Escola, fato narrado no Captulo VI. Fernando conta como ele e seus amigos brincavam na escola. D. Risoleta dava aulas de Religio e morria de medo de baratas, por isso fez um escndalo quando viu uma. Como fora Fernando que matou o inseto, ganhou um beijo da professora e virou heri. 13