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POLTICAS E ORGANIZAO DA EDUCAO BSICA NO BRASIL

Textos selecionadosProf. Jos Antnio Bata Zille

Belo Horizonte 2008

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APRESENTAO Em se tratando de Educao Brasileira, muitas so os aspectos que necessitam ser analisados para que se fundamente uma discusso da educao contempornea da populao. Assim, para que alguma discusso seja feita nesse sentido, deve-se partir do princpio de que a realidade atual sofre conseqncias culturais e histricas, permeadas por interferncias polticas, econmicas e sociais. inegvel que, no campo da poltica educacional, as pautas governamentais tm um peso extremamente significativo. Suas propostas e ideologias chegam Instituio Escola com fortes traos de obrigatoriedade de efetivao. Essa relao de transmisso de valores e polticas por parte da Escola se caracteriza pelo fato desta Instituio ser considerada a formadora da populao. Discutir as polticas educacionais e o papel da Escola como seu agente aplicador, sem duvida, compreender a funo da Escola na contemporaneidade. Em educao, como em todas as reas, a reflexo e a ao devem ser inseparveis. Reflexo e ao no so, de forma alguma, dicotmicas. A reflexo desvinculada da prtica conduz a uma teorizao vazia. Por sua vez, a ao que no guiada pela reflexo leva a uma rotina desgastante e rgida. Sob essa perspectiva, procurou-se aqui gerar subsdios no sentido de se indagar a funo da Escola e levantar o questionamento quanto o papel do Estado na formulao de polticas educacionais. Alm disso, investir na anlise da educao no Brasil seja como um ato poltico social ou como um ato eminentemente poltico econmico. No deixando de lado a inteno de se estabelecer um dilogo com o aluno e futuro docente e incentivlo inquietao necessria para a prtica docente no contexto atual.

Os tpicos a serem includos so amplos e variados. Com essa coletnea no se pretende esgotar o assunto. Ela apenas visa introduzir o aluno no vasto campo das Polticas Educacionais Brasileiras, oferecendo-lhe um referencial para o questionamento da prtica docente e aprofundamentos futuros.

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Sumrio

Plano de curso..............................................................................................................

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Cronograma do curso..................................................................................................

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Texto 01: Cultura e humanizao..................................................................................

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Texto 02: As relaes de trabalho..................................................................................

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Texto 03: As relaes de poder.....................................................................................

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Texto 04: As relaes culturais......................................................................................

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Texto 05: Conceito de educao....................................................................................

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Texto 06: Pressupostos polticos da educao.............................................................. Parte I: Tendncia liberal....................... Parte II: Tendncia socialista................. Texto 07: Poltica educacional: uma retrospectiva histrica..........................................

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Texto 08: Diretrizes para uma pedagogia da qualidade ................................................

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Texto 09: Fundamentos estticos, polticos e ticos do novo ensino brasileiro.............

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Texto 10: Comentrios sobre o parecer diretrizes nacionais para a organizao curricular do ensino mdio, de Guiomar Namo de Mello..............................

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Texto 11: PCN nas escolas: e agora?............................................................................

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4 PLANO DE CURSO

CURSO: Licenciatura em Msica DISCIPLINA: Poltica Educacional e Organizao da Educao Bsica no Brasil DEPARTAMENTO: Comunicao e Expresso Artstica CARGA HORRIA: 36 h/a SEMESTRE: 1 PERODO: I ANO: 2008 PROFESSOR(A): Jos Antnio Bata ZilleEMENTA: Anlise e interpretao da legislao bsica do atual sistema educacional brasileiro e sua aplicao no ensino fundamental e mdio. PR-REQUISITO: Nenhum. OBJETIVOS: Geral: - Propiciar condies para a compreenso e anlise crtica dos parmetros bsicos sobre os quais se estruturam o modelo educacional brasileiro. Especfico: - Estudo dos conceitos de cultura, educao e poltica e anlise da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional e dos Parmetros Curriculares Nacionais para o ensino das artes. DIDTICA: Metodologia: - Transmisso de conhecimento - Desenvolvimento de habilidades Tcnicas/recursos: - Aula dialgica - Discusso/debate - Estudo dirigido - Estudo e texto - Produo de texto (verbal e no verbal) CONTEDO PROGRAMTICO: Unidade I Cultura - Cultura e sociedade: . Relaes de trabalho . Relaes de poder . Relaes culturais - Cultura e educao Unidade II Introduo ao conceito de poltica da educao - Conceito de poltica - Poltica e ideologia - Educao e poltica - Pressupostos polticos da educao: . Tendncia liberal . Tendncia socialista Unidade III Legislao educacional brasileira - Histrico - Estudo da LDB 9394/96 fundamentos: . A esttica da sensibilidade . A poltica da igualdade . A tica da identidade - Estudo dos Parmetros Curriculares Nacionais para o ensino da arte

5 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Filosofia da educao. So Paulo: Moderna, 1989 BRASIL. Secretaria de Educao Fundamental. Parmetros Curriculares Nacionais: Art. Disponvel em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pcn_l.php?t=001. Acesso em: 12/02/2005. BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educao nacional. Lei 9.394 de 20/12/1996. Disponvel em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf. Acesso em: 12/02/2005. BRASIL. Conselho Nacional de Educao Cmara de educao bsica. Parecer no. CEB 0/98. 29/01/98. Disponvel em: http://www.mec.gov.br/cne/pdf/PCB04_1998.pdf. Acesso em: 12/02/2005. BRASIL. Conselho Nacional de Educao Cmara de educao bsica. Parecer no. CEB 15/98. 01/06/98. Disponvel em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PCB1598.pdf. Acesso em: 12/02/2005. BRANDO, Carlos Rodrigues. O que Educao. SP:Brasiliense, 2004. (Coleo primeiros passos 20). Cadernos CEDES n 55. Polticas pblicas e educao. Campinas: UNICAMP, CENTRO DE ESTUDOS EDUCAO E SOCIEDADE, 2001. CAVALCANTE, Francisco L. dos Santos. Proposies liberais e no liberais e as reformas Educacionais no Brasil (Perodo de 1889 a 1989). Disponvel em: http://www.conteudoescola.com.br/site/content/view/118/42/. Acesso em 10/08/2004. CURY, Carlos Roberto Jamil. Legislao educacional brasileira. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. DEMO, Pedro. A nova LDB: ranos e avanos. Campinas: Papirus, 1997. MARTINS, Cllia. O que poltica educacional. SP:Brasiliense, 2004. (Coleo primeiros passos 282) RIBEIRO, Joo Ubaldo. Poltica. 3.ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. SAVIANI, Dermeval. Da nova LDB ao novo plano nacional de educao: por uma outra poltica educacional. Campinas: Autores Associados, 1999. SANTOS, Jos Luiz dos. O que cultura. SP:Brasiliense, 1994. (Coleo primeiros passos 110). SOUZA, Paulo N. P. ; SILVA, Eurdes B. Como entender e aplicar a nova LDB. SP: Pioneira, 1997. AVALIAO: A metodologia de avaliao privilegiar a observao contnua do aluno, que consiste em: a) Atividades em sala [em grupo ou individuais]: Testes, produo de texto (verbal e no verbal), relatrios, apresentaes orais, envolvimento e participao. b) Atividades extra-classe [em grupo ou individuais]: produo de texto (verbal e no verbal) e relatrios c) Auto-avaliao Todas as atividades ao longo do semestre tero o mesmo valor de cem pontos. Destes, 10% correspondero a atitudes positivas, 20% correspondero a competncias alcanadas e 70% correspondero a conhecimentos adquiridos. A nota final do semestre ser dada pela mdia aritmtica dos valores obtidos em cada uma das atividades. O aluno obter aprovao se alcanar o mnimo de 60 pontos e freqncia de 75% no semestre. Alguns Sites interessantes: Mec - http://portal.mec.gov.br/ LDB - http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf Parecer 04/98 - http://www.mec.gov.br/cne/pdf/PCB04_1998.pdf Parecer 15/98 - http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PCB1598.pdf PCNs - http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pcn_l.php?t=001 PCN Artes - http://www.mec.gov.br/sef/estrut2/pcn/pdf/livro06.pdf Legislao Educacional http://portal.mec.gov.br/index.php?option=content&task=view&id=78&Itemid=221 Acrobat Reader - http://www.adobe.com/products/acrobat/readstep2.html [esse site permite fazer o download gratuito do programa que permite abrir arquivos com extenso pdf]

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CRONOGRAMA DO CURSO DE Polticas EducacionaisTurma 1 Perodo Licenciatura Msica Noite Prof. Jos Antnio Bata Zille Contedo Aula Dia Ms 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 14 21 28 06 13 27 03 10 17 24 08 15 29 05 12 19 02 02 02 03 03 03 04 04 04 04 05 05 05 06 06 06 Conceito de educao Pressupostos polticos da educao: - Tendncia liberal - Tendncia socialista A educao no Brasil Estudo da LDB 9394/96 diretrizes para uma pedagogia de qualidade: - Currculo por competncias - Interdisciplinariedade - Contextualizao Estudo da LDB 9394/96 fundamentos: - A esttica da sensibilidade - A poltica da igualdade - A tica da identidade PCN para o ensino da arte: - Objetivos - Conhecimento artstico Das artes: artes visuais, msica, dana, teatro Apresentao/Introduo do cursoo

Procedimento Interao Professor Aluno Anlise do Programa Introduo cultura - Debate Estudo do texto: Cultura e humanizao Estudo dos textos: Relaes de trabalho Relaes de poder Relaes culturais Debate a respeito do texto: Conceito de educao

Avaliao Sondagem dos espaos recprocos Observar reaes dos alunos quanto ao apresentado Atividades com produo de textos

Cultura, sociedade e educao As trs esferas da cultura: Relaes de trabalho Relaes de poder Relaes culturais

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Pressupostos polticos da educao Jure simulado Estudo do texto 07

Apresentao do filme LDB e Texto 08

Parecer 15/98 Fundamentos do ensino brasileiro Textos 09 - 10 Exposio oral dos objetivos do ensino fundamental, dos saberes, e do conhecimento artstico Estudo PCN - ARTE

17 26 06 18 Obs.: Como todo planejamento parte integrante de um processo, dotado do mesmo carter dinmico de todo o processo assim, est sujeito a adequaes e atualizaes constantes.

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TEXTO 01 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Filosofia da Educao. SP: Moderna, 1997. Cultura e humanizaoH muitos anos, nos Estados Unidos, Virgnia e Maryland assinaram um tratado de paz com os ndios das Seis Naes. Ora, como as promessas e os smbolos da educao sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram cartas aos ndios para que enviassem alguns de seus jovens s escolas dos brancos. Os chefes responderam, agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamim Franklin adotou o costume de divulg-la aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa: (...) Ns estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para ns e agradecemos de todo o corao. Mas aqueles que so sbios reconhecem que diferentes naes tm concepes diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores no ficaro ofendidos ao saber que a vossa idia de educao no a mesma que a nossa. (...) Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa cincia. Mas, quando eles voltavam para ns, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. No sabiam como caar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa lngua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inteis. No serviam como guerreiros, como caadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora no possamos aceit-la, para mostrar a nossa gratido oferecemos aos nobres senhores de Virgnia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens. (Apud Carlos Rodrigues Brando)

1. Noo de culturaNa linguagem comum, o homem culto seria aquele que tem instruo, teve acesso produo intelectual da civilizao a que pertence (cincia, filosofia, literatura, artes em geral). Muitas vezes, s porque algum conhece algumas lnguas estrangeiras, imediatamente considerado culto, da mesma forma que, se no freqentou os bancos escolares, classificado como inculto. Ora, esse modo de pensar resulta da sociedade hierarquizada, que separa o trabalho humano em atividades intelectuais e manuais, valorizando as primeiras em detrimento das ltimas. E isso justamente o que est em questo na epgrafe do captulo: os homens da civilizao americana consideram um bem universal o que oferecem em suas escolas e, como tal, desejam estend-lo aos indgenas, sem perceber que nas tribos no existe ainda a separao entre o pensar e o agir. Trata-se de uma outra cultura. Agora, portanto, passamos a usar a palavra cultura como o resultado de tudo o que o homem produz para construir sua existncia. No sentido amplo, antropolgico, cultura tudo o que o homem faz, seja material ou espiritual, seja pensamento ou ao. A cultura exprime as variadas formas pelas quais os homens estabelecem relaes entre si e com a natureza: como constroem abrigos para se proteger das intempries, como organizam suas leis, costumes e punies, como se alimentam, casam e tm filhos, como concebem o sagrado e como se comportam diante da morte. O contato do homem com a natureza, com outros homens e consigo mesmo intermediado pelos smbolos, isto , signos arbitrrios e convencionais , por meio dos quais o homem representa o mundo. Portanto, ao criar um sistema de representaes aceitas por todo o grupo social (ou seja, a linguagem simblica), os homens se comunicam de forma cada vez mais elaborada.

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Nesse sentido pode-se dizer que a cultura o conjunto de smbolos elaborados por um povo em determinado tempo e lugar. Dada a infinita possibilidade de simbolizar, as culturas so mltiplas e variadas.

2. O animal e a naturezaO animal vive em harmonia com a natureza. Isso significa que sua atividade determinada por condies biolgicas que lhe permitem adaptar-se ao meio em que vive, no sendo livre para agir em discrepncia com a sua prpria natureza, razo pela qual o comportamento de cada espcie animal sempre idntico. Os insetos, por exemplo, que se situam nos nveis mais baixos de desenvolvimento dentro da escala zoolgica, agem por reflexos e instintos e, por isso, sua atividade a mais rgida possvel. Essa rigidez d a iluso de perfeio quando observamos o animal executando determinados atos com extrema habilidade. No h quem no veja com ateno e pasmo o trabalho paciente da aranha tecendo a teia, ou no tenha admirado a colmia, produto da abelha operaria. Sendo a ao instintiva regida por leis biolgicas, permanece idntica na espcie e invarivel de indivduo para indivduo. Por isso os atos dos animais no tm histria, so os mesmos em todos os tempos, no se renovam, salvo as modificaes resultantes da evoluo das espcies e as decorrentes das modificaes genticas. Quando ocorrem tais mudanas, elas valem para todos os indivduos da espcie, so transmitidas hereditariamente e no permitem inovaes individuais. Mesmo as modificaes que resultam de formas de adaptao ao ambiente so restritas, no podendo ser comparadas com as alteraes de que o homem capaz. medida que, na escala zoolgica, subimos at os mamferos, percebemos, porm, que as aes animais deixam de ser resultado exclusivo de reflexos e instintos e apresentam uma flexibilidade maior, tpica dos atos inteligentes. Ao contrrio da rigidez dos instintos, a resposta inteligente a um problema criativa, improvisada e pessoal. Todo mundo que tem cachorro em casa gosta de contar inmeras histrias: como compreende ordens, como consegue pegar um osso colocado fora de seu alcance ou, quando caador, que artimanhas usa para se apoderar de uma presa. Podemos observar tambm que alguns ces aprendem mais rapidamente do que outros. Mesmo os que no so submetidos ao adestramento humano agem habilidosamente para conseguir adaptar-se ao ambiente e sobreviver, usando recursos inventivos que no se acham fixados pelo instinto. Por mais flexvel que seja o comportamento desses animais, trata-se, no entanto, de uma inteligncia concreta, e, nesse sentido, se distingue da inteligncia humana, que abstrata. Sendo concreta, a inteligncia animal imediata e prtica, isto , depende do momento vivido aqui e agora e tem em vista a resoluo imediata de uma situao problemtica. Por exemplo, quando est com fome, um macaco busca o alimento por instinto. No entanto, se o cacho de bananas no se acha acessvel, ter que resolver o problema de forma satisfatria: se estiver muito alto, poder alcan-lo com uma vara ou subir em um caixote. A diferena do homem, o animal no domina o tempo, porque seu ato se esgota no momento em que o executa. Mesmo quando repete com maior rapidez comportamentos aprendidos anteriormente, o uso do instrumento no remete para o passado nem para o futuro. No exemplo dado, a vara usada pelo macaco sempre volta a ser vara, o que significa que o animal no inventa o instrumento, no o aperfeioa nem o conserva para uso posterior. O gesto til no tem seqncia no tempo e, portanto, no adquire o significado de uma experincia propriamente dita.

3. A experincia humanaTotalmente diversa a ao do homem sobre a natureza e sobre si mesmo. Ao reproduzir tcnicas usadas por outros homens e inventar outras, novas, a ao humana se toma fonte de idias e por isso uma experincia propriamente dita. A noo de experincia no se separa do carter abstrato da inteligncia humana, pelo qual pode ser superada a vivncia do aqui e agora, passando a existir no tempo. O homem torna-se capaz de lembrar a ao feita no passado e projetar a ao futura, o que possvel pelo fato de representar o mundo por meio do pensamento, expressando-o pela linguagem simblica.

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A linguagem humana substitui as coisas por smbolos, tais como as palavras e os gestos. Por meio de representaes mentais e de expresses da linguagem, o homem torna presente, para si e para os outros, os acontecimentos passados, bem como antecipa pelo pensamento o que ainda no ocorreu. Em uma situao de fome o procedimento humano distingue-se do animal porque faz uso do recurso da linguagem abstrata: a vara para alcanar a fruta no precisa estar presente, mas representada, isto , torna-se presente pela palavra. Mais ainda: se o desafio da situao nova ultrapassa os recursos deixados pela tradio, o homem capaz de, pelo pensamento, antecipar a ao futura, ou seja, inventar um instrumento. A partir da conclumos que as diferenas entre o homem e o animal no so apenas de grau, j que, enquanto o animal permanece inserido na natureza, o homem capaz de transform-la, tornando assim possvel a cultura. A transformao que o homem faz na natureza chama-se trabalho. O trabalho a ao transformadora dirigida por finalidades conscientes. Nesse sentido, o castor, quando constri um dique, ou o joo-de-barro, sua casinha, no esto de fato trabalhando, pois esses atos no so deliberados, intencionais, nem movidos por finalidades conscientes, mas sim determinados pelo instinto e idnticos na espcie. Para o homem, ao contrario, o contato com a natureza s possvel quando mediado pelo trabalho. A cultura , portanto, o que resulta do trabalho humano: a transformao realizada pelos instrumentos, as idias que tornam possvel essa transformao e os produtos dela resultantes. Ainda mais: a ao humana transformadora no solitria, mas social, j que os homens, ao se relacionarem para produzir sua prpria existncia, desenvolvem condutas sociais, a fim de atender s necessidades do grupo.

4. Cultura e socializaoO processo de socializao se inicia por meio da ao exercida pela comunidade sobre os homens. conhecida a histria das meninas-lobo encontradas na ndia, em 1920, vivendo numa matilha. Seu comportamento em tudo se assemelhava ao dos lobos: andavam de quatro, comiam carne crua ou podre, uivavam noite, no sabiam rir nem chorar. S iniciaram o processo de humanizao ao conviver com outras pessoas. O mundo cultural , dessa forma, um sistema de significados j estabelecidos por outros, de modo que, ao nascer, a criana encontra um mundo de valores dados, onde ela se situa. A lngua que aprende, a maneira de se alimentar, o jeito de sentar, andar, correr, brincar, o tom de voz nas conversas, as relaes sociais, tudo, enfim, se acha estabelecido em convenes. At a emoo, que uma manifestao espontnea, sujeita-se a regras que dirigem de certa forma a sua expresso. Basta observar como a nossa sociedade, ainda preocupada com uma viso estereotipada da masculinidade, v com complacncia o choro feminino e recrimina a mesma manifestao no homem. possvel dizer ento que a condio humana no resulta da realizao hipottica de instintos, mas da assimilao de modelos sociais: o ser do homem se faz mediado pela cultura. Nem o ermito consegue anular a presena do mundo cultural. A escolha de se afastar faz permanecer o tempo todo, em cada ato seu, a negao e, portanto, a conscincia e a lembrana da sociedade rejeitada. Seus valores, mesmo colocados contra os da sociedade, situam-se tambm a partir dela. A recusa de se comunicar ainda um modo de comunicao. Por isso, a condio humana no apresenta caractersticas universais e eternas, pois variam as maneiras pelas quais os homens respondem socialmente aos desafios, a fim de realizar sua existncia, sempre historicamente situada. Uma tendncia conservadora, no entanto, leva muitos a definirem sua prpria cultura como a correta, estranhando os comportamentos de outros povos ou mesmo de segmentos diferentes em sua prpria sociedade. Chegam a achar naturais certos atos e valores que se opem a outros, considerados exticos. O filsofo Montaigne, no sculo XVI, ao analisar a perplexidade dos europeus em relao aos costumes dos povos indgenas das terras recm-descobertas, j percebia o teor tendencioso das avaliaes: No vejo nada de brbaro ou selvagem no que dizem aqueles povos; e, na verdade, cada qual considera brbaro o que no se pratica em sua terra. Mais adiante questiona o horror de muitos diante do relato de canibalismo dos selvagens, quando no causava igual espanto o costume dos

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religiosos de seu tempo de esquartejar um homem entre suplcios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entreg-lo a ces e porcos, a pretexto de devoo e f. Aceitar as diferenas entre as culturas importante para evitar o etnocentrisrno, isto , o julgamento de outros padres (morais, estticos, polticos, religiosos etc.) a partir de valores do seu prprio grupo. Esse comportamento geralmente leva xenofobia (horror ao estrangeiro), que uma forma de preconceito e caminho certo para o exerccio da violncia, pois a partir dela surgem determinados critrios de superioridade e inferioridade que justificam indevidamente a dominao de um grupo sobre outro. A transformao produzida pelo homem pode ser caracterizada como um ato de liberdade, entendendo-se liberdade no como alguma coisa que dada ao homem, mas como o resultado da sua capacidade de compreender o mundo, projetar mudanas e realizar projetos. Pelo trabalho o homem aprende a conhecer as prprias foras e limitaes, desenvolve a inteligncia, as habilidades, impe-se uma disciplina, relaciona-se com os companheiros e vive os afetos de toda relao. Nesse sentido, dizemos que o homem se autoproduz, pois ele se modifica e se constri a partir de sua ao. E nesse movimento tece sua liberdade. O que foi dito um pouco antes a respeito da ao multiforme dos modelos sociais no contraria a relao estabelecida entre trabalho e liberdade. Isso se explica pelo fato de que, se, por um lado, h sempre a necessidade de um ponto de partida para que cada um possa se compreender e esse solo a herana social , por outro, o ser do homem exige a superao daquilo que ele herda, numa constante recriao da cultura.

5. Sociedade e indivduoA natureza modificada pelo trabalho humano no apenas a do mundo exterior, mas tambm a da individualidade humana, pois nesse processo o homem se autoproduz, isto , faz a si mesmo homem. O autoproduzir-se humano se completa em dois movimentos contraditrios e inseparveis: por um lado, a sociedade exerce sobre o indivduo um efeito plasmador, a partir do qual construda uma determinada viso de mundo; por outro, cada um elabora e interpreta a herana recebida na sua perspectiva pessoal. bem verdade que o teor dessas mudanas varia conforme o tipo de sociedade: no mundo contemporneo de intensa urbanizao, as alteraes so muito mais velozes do que nas tribos indgenas ou nas comunidades tradicionais. Mesmo assim, no h sociedade esttica: em maior ou menor grau, todas mudam, estabelecendo uma dinmica que resulta do embate entre tradio e ruptura, herana e renovao.

6. As trs esferas da culturaAs relaes que os homens estabelecem entre si para produzir a cultura se do em diversos nveis que no se excluem, mas se complementam e se interpenetram. Apenas por questes didticas costumamos separar e distinguir essas relaes em: relaes de trabalho, que so materiais, produtivas e caracterizadas pelo desenvolvimento das tcnicas e atividades econmicas; relaes polticas, ou seja, as relaes de poder, que possibilitam a organizao social e a criao das instituies sociais; relaes culturais ou comunicativas, que resultam da produo e difuso do saber e deveriam pertencer ao mbito das relaes intencionais, reduto da subjetividade. Nos captulos que se seguem abordaremos no s as relaes entre essas trs esferas, como tambm as formas pelas quais uma pode predominar sobre as outras, produzindo muitas vezes efeitos perversos. Por exemplo, nas sociedades fortemente hierarquizadas e elitizadas, a produo e a difuso da cultura tornam-se restritas, constituindo privilgio de alguns. O mundo do trabalho, por sua vez, tambm pode extrapolar seus limites, levando seus prprios valores para outros campos estritamente pessoais e afetivos e passando a coloniz-los indevidamente: quantos no vem no casamento uma maneira rendosa de aumentar seu patrimnio?

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7. Cultura e educaoVimos, at aqui, que a cultura uma criao humana: ao tentar resolver seus problemas, o homem produz os meios para a satisfao de suas necessidades e, com isso, transforma o mundo natural e a si mesmo. Por meio do trabalho instaura relaes sociais, cria modelos de comportamento, instituies e saberes. O aperfeioamento dessas atividades, no entanto, s possvel pela transmisso dos conhecimentos adquiridos de uma gerao para outra, permitindo a assimilao dos modelos de comportamento valorizados. E a educao que mantm viva a memria de um povo e d condies para a sua sobrevivncia material e espiritual. A educao , portanto, fundamental para a socializao do homem e sua humanizao. Trata-se de um processo que dura a vida toda e no se restringe mera continuidade da tradio, pois supe a possibilidade de rupturas, pelas quais a cultura se renova e o homem faz a histria.

Dropes1 Se o homem no tem oportunidade de desenvolver e enriquecer a linguagem, torna-se incapaz no s de compreender o mundo que o cerca, mas tambm de agir sobre ele. Na literatura, belo (e triste) o exemplo que Graciliano Ramos nos d com Fabiano, personagem principal de Vidas secas. A pobreza de vocabulrio prejudica a tomada de conscincia da explorao a que submetido, e a intuio de sua situao no suficiente para ajud-lo a reagir. Outro exemplo apresentado pelo escritor ingls George Orwell no seu livro 1984, em que, num mundo do futuro dominado pelo poder totalitrio, uma das tentativas de esmagamento da oposio crtica consiste na simplificao do vocabulrio levada a efeito pela Novilngua. Nesse processo, toda a gama de sinnimos reduzida cada vez mais: pobreza no falar, pobreza no pensar, impotncia no agir. Se a palavra, que distingue o homem dos outros seres vivos, se encontra enfraquecida na sua possibilidade de expresso, o prprio homem que se desumaniza.

2 Voc sabe o que contracultura? a expresso que designa os diversos movimentos que eclodiram na dcada de 60, inicialmente nos EUA, espalhando-se em seguida para o resto do mundo. Esses movimentos reuniram pessoas das mais diversas ideologias, voltadas para a contestao dos valores da sociedade industrial, centrada na tecnocracia e no consumo. A contracultura tem como exemplos o movimento hippie e as revolues estudantis mundiais, cuja expresso mxima foi o Maio de 68 na Frana. 3 A transformao das pessoas em animais como castigo um tema constante dos contos infantis de todas as naes. Estar encantado no corpo de um animal equivale a uma condenao. Para as crianas e os diferentes povos, a idia de semelhantes metamorfoses imediatamente compreensvel e familiar. Tambm a crena na transmigrao das almas, nas mais antigas culturas, considera a figura animal como um castigo e um tormento. A muda ferocidade no olhar do tigre d testemunho do mesmo horror que as pessoas receavam nessa transformao. Todo animal recorda uma desgraa infinita ocorrida em tempos primitivos. O conto infantil exprime o pressentimento das pessoas. (Adorno e Horkheimer)

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Atividades

Questes 1. Explique em que sentido os conceitos de cultura, trabalho e educao so inseparveis, isto , um no pode ser compreendido sem o outro. 2. Faa um comentrio crtico da epigrafe do captulo, aplicando os conceitos levantados no texto. 3. Caracterize e distinga esses dois tipos de atos: uma aranha tecendo a teia e um chimpanz subindo em um caixote para alcanar uma banana. 4. Comente: Uma aranha executa operaes que se assemelham s manipulaes do tecelo, e a construo das colmias pelas abelhas poderia envergonhar, por sua perfeio, mais de um mestrede-obras. Mas h algo em que o pior mestre-de-obras superior melhor abelha, e o fato de que, antes de executar a construo, ele a projeta em seu crebro (Karl Marx). 5. Explique por que o etnocentrismo leva ao preconceito e este, violncia. 6. Indivduo e sociedade: em que medida so plos inseparveis, mas ao mesmo tempo distintos?

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TEXTO 02 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Filosofia da Educao. SP: Moderna, 1997. As relaes de trabalhoComo um professor que mal prepara as aulas, que no l um livro por ano, que vive insatisfeito com seu trabalho e seu salrio pode fazer desabrochar na criana o amor pela leitura, a paixo do saber, a tica do trabalho e o interesse pela poltica? (Barbara Freitag)

1. O trabalho como prxisPara designar a atividade prpria do homem distinta da ao animal, costuma-se usar a palavra prxis, conceito que no se identifica com a noo de prtica propriamente dita, mas significa unio dialtica da teoria e da prtica. Chamamos de dialtica a relao entre teoria e prtica porque no existe anterioridade nem superioridade entre uma e outra, mas sim reciprocidade. Ou seja, uma no pode ser compreendida sem a outra, pois ambas se encontram numa constante relao de troca mtua. Como prxis, qualquer ao humana sempre carregada de teoria (explicaes, justificativas, intenes, previses etc.). Tambm toda teoria, como expresso intelectual de aes humanas j realizadas ou por realizar, resulta da prtica. Convm ainda entender a prxis dentro de um contexto social, pois as aes se realizam entre homens. Ora, talvez voc esteja se perguntando se assim mesmo que funciona o trabalho na sociedade civil que vivemos, pois percebe, ao contrrio, que algumas profisses so predominantemente tericas, enquanto outras se reduzem a formas rudimentares de trabalho manual. Mais ainda, lembrando o captulo anterior, no qual foi destacada a importncia do trabalho como marca distintiva entre o homem e o animal, entre cultura e natureza, talvez cause estranheza a relao estabelecida entre trabalho e liberdade, uma vez que, com certeza, no essa a realidade encontrada na histria da humanidade nem no dia-a-dia de cada um. Alis, a concepo de trabalho sempre esteve ligada a uma viso negativa, que implica obrigao e constrangimento. Na Bblia, Ado e Eva vivem felizes at que so expulsos do Paraso e Ado condenado ao trabalho com o suor do seu rosto, cabendo a Eva tambm o trabalho do parto. A palavra trabalho vem do vocbulo latino tripaliare, do substantivo tripaliam, aparelho de tortura formado por trs paus ao qual eram atados os condenados e que tambm servia para manter presos os animais difceis de ferrar. Assim, vemos na prpria etimologia da palavra a associao do trabalho com tortura, sofrimento, pena, labuta. apenas aparente, no entanto, a contradio entre o que foi dito anteriormente e a realidade dos fatos. O trabalho condio de liberdade desde que o trabalhador no esteja submetido a constrangimentos externos, tais como a explorao, situao em que deixa de buscar a satisfao das suas necessidades para realizar aquelas que lhe foram impostas por outros. Quando isso ocorre, o trabalho torna-se inadequado humanizao: trata-se do trabalho alienado.

2. Trabalho e alienaoE o que alienao? O verbo alienar vem do latim alienare. afastar, distanciar, separar. Alienus significa que pertence a outro, alheio, estranho. Alienar, portanto, tornar alheio, transferir para outrem o que seu.

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Quando em uma sociedade aparecem segmentos dominantes que exploram o trabalho humano como nos regimes de escravido, de servido ou ainda quando, para sobreviver, o indivduo precisa vender sua fora de trabalho em troca de um salrio, estamos diante de situaes em que o homem perde a posse daquilo que ele produz. O produto do trabalho separado, alienado de quem o produziu. Com a perda da posse do produto, o prprio homem no mais se pertence: no escolhe o horrio, o ritmo de trabalho, nem decide sobre o salrio; no projeta o que vai ser feito, sendo comandado de fora, por foras estranhas a ele. Com a alienao do produto, o prprio homem tambm se torna alienado, deixando de ser o centro ou a referncia de si mesmo. Veremos, a seguir, como a alienao se manifesta na sociedade industrializada e, mais recentemente, na chamada sociedade pos-moderna, e tambm como tudo isso repercute no projeto de uma educao que esteja preocupada com a formao do homem para o trabalho e para a cidadania.

3. A sociedade industrialAo analisar a prxis humana, constatamos que ela supe um trabalho material, cujo resultado a produo dos bens materiais. Para tanto, o homem antecipa a ao por meio do pensamento, criando idias, teorias, que seriam na verdade o resultado de um trabalho no-material, ou seja, o trabalho intelectual. Desde o inicio da civilizao, no entanto, sempre que na sociedade so criadas relaes hierrquicas, d-se a separao entre trabalho intelectual e trabalho manual. Com isso, aqueles que se ocupam com o trabalho intelectual tendem a desprezar as atividades manuais, enquanto os trabalhadores braais, ao assumir essa inferioridade imposta, deixam de ter clareza terica suficiente a respeito de sua prtica, mantendo-se presos a uma atividade to intensa e to dividida que a reflexo se torna quase impossvel. Como o trabalhador no realiza ele mesmo a reflexo sobre o seu fazer, acolhe sem crticas as formas de pensar vigentes na sociedade, elaboradas por sua vez pelos grupos que detm o controle das instituies e cujas atividades so predominantemente diretivas. Essas idias dizem respeito aos conhecimentos, valores, normas de ao, e so disseminadas pelos meios mais diversos inclusive a escola e aceitas pela maioria (ver prximo captulo). A situao torna-se mais crtica com o desenvolvimento do sistema capitalista, a partir do nascimento das fbricas, nos sculos XVII e XVIII. Os trabalhadores sofrem uma mudana radical em relao aos hbitos adquiridos nas manufaturas, nas quais a atividade era at ento predominantemente domstica. Com o surgimento das fbricas em que os trabalhadores se agrupam em grandes galpes e se submetem a um ritmo de trabalho cada vez mais intenso acentua-se a dicotomia concepo X execuo do trabalho, ou seja, o processo de separao entre aqueles que concebem, criam, inventam o que vai ser produzido e aqueles que so obrigados simples execuo do trabalho. Taylorismo: racionalizao do trabalho? Com o desenvolvimento do sistema fabril, d-se a agravante introduo do sistema parcelado de produo, tornando a execuo do trabalho mais mecnica e mais fragmentada. Essa diviso intensificada no incio do sculo XX, quando Henry Ford introduziu o sistema de linha de montagem na indstria automobilstica. Essas inovaes geralmente so vistas como sinais do progresso do homem e das exigncias incontornveis da tecnologia. No entanto, preciso considerar o carter desumano do processo. na medida em que, ao manipular a maneira de trabalhar, atinge o homem como ser capaz de liberdade. A expresso terica do processo de trabalho parcelado levada a efeito por Frederick Taylor (18561915) que estabelece os parmetros do mtodo cientfico de racionalizao da produo, conhecido, da em diante como taylorismo. Esse sistema, que visa aumentar a produtividade e economizar tempo, suprimindo gestos desnecessrios e comportamentos suprfluos no interior do processo produtivo, foi implantado com sucesso e logo extrapolou os domnios da fbrica, atingindo outros tipos de empresa, os esportes, a medicina, a escola e at a atividade da dona-de-casa.

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Nesta foto de 1926, as operrias de uma indstria de biscoitos so submetidas ao sistema taylorista de trabalho parcelado, que tinha por objetivo economizar tempo e aumentar a produtividade.

O taylorismo pretende ser uma forma de racionalizao do trabalho porque permite melhor previso e controle de todas as fases de produo. Para tanto, o setor de planejamento se desenvolve, tendo em vista a necessidade de se estabelecer os diversos passos da execuo do trabalho. A necessidade de planejamento faz surgir uma intensa burocratizao. Os burocratas so especialistas na administrao de coisas e de homens, atividade que parece ser exercida com objetividade e racionalidade. No entanto, essa imagem de neutralidade e eficcia da organizao, como se ela tivesse por base um saber desinteressado e simplesmente competente, ilusria. Na verdade, a burocracia resulta numa tcnica social de dominao. Vejamos por qu. No fcil submeter o operrio a um trabalho rotineiro, irreflexivo, repetitivo, reduzido a gestos estereotipados. de se esperar que, se o sentido de uma ao no compreendido e se o produto de um trabalho no reverte para quem o executou, seja bem difcil conseguir o empenho de urna pessoa em qualquer tarefa. Para contornar a dificuldade, o taylorismo substituiu a coao visvel, tpica da violncia direta do antigo feitor de escravos, por exemplo, por formas mais sutis de dominao, que tornam o operrio dcil e submisso: as ordens de servio vindas do setor de planejamento so impessoalizadas, no aparecendo mais com a face de um chefe que oprime, pois se acham diludas na organizao burocrtica. Com isso, a relao entre dirigentes e dirigidos no direta, sendo intermediada por ordens internas vindas de diversos setores. A eficincia torna-se um dos principais critrios dos negcios, fazendo com que a competio por nveis cada vez maiores de produo seja estimulada por intermdio de distribuio de prmios, gratificaes e promoes. Isso gera a caa aos postos mais elevados, o que, por um lado, dificulta a solidariedade entre os empregados e, por outro, identifica-os com os interesses da empresa. A ordem burocrtica limita a espontaneidade, a iniciativa e, portanto, a liberdade dos indivduos, submetendo-os a uma homogeneizao em nome do controle e da eficincia. E como se as pessoas fossem destitudas de individualidade, imaginao, desejos e sentimentos. Como agravante, na sociedade totalmente administrada os critrios de produtividade e desempenho tornam-se predominantes e invadem territrios, tais como a vida familiar e afetiva, que passam a ser impregnados pelos valores antes restritos ao mundo do trabalho. Essas reflexes nos colocam diante dos efeitos perversos da tcnica, que, apresentada de incio como libertadora, tem gerado uma ordem tecnocrtica opressiva, na qual o homem no um fim, mas sempre um meio para se atingir qualquer outra coisa que se ache fora dele. Vale lembrar tambm que o taylorismo serviu de orientao para a tendncia tecnicista que na dcada de 60, sobretudo no perodo da ditadura, foi predominante na educao brasileira.

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4. A sociedade ps-moderna: a revoluo da informticaCom o advento da ciberntica, ou seja, a partir da revoluo da informtica e da generalizao do uso de computadores, a sociedade contempornea sofreu uma mudana que alterou significativamente as relaes de trabalho. Passou a haver a predominncia do setor de servios (tercirio), envolvendo atividades tanto das reas de comunicao e informao como de comrcio, finanas, sade, educao, lazer etc. O cotidiano do homem se transforma, passando a ser marcado pela automao em todas as esferas, de tal modo que, na era da reproduo tcnica, a mquina constitui o intermedirio constante entre o homem e o mundo. No campo das comunicaes, a realidade se transformou em simulacro, ou seja, cada vez mais os meios tecnolgicos de comunicao simulam a realidade. O mundo tornado espetculo se manifesta na reconstituio de um rosto segundo as informaes obtidas a partir de um crnio, na construo antecipada de um novo modelo de carro ou ainda na onipresena da TV nos lares, permitindo assistir Guerra do Golfo sem sair da poltrona. O simulacro intensifica e embeleza o real, que se torna hiper-real e, portanto, mais atraente. Basta ver como nas propagandas a cerveja ou o hambrguer parecem mais saborosos ainda. Ou como os scuds norte-americanos caindo em Bagd mais parecem inofensivos clares iluminando a noite... As conseqncias dessa superexposio de imagens que tudo se transforma em show, em entretenimento, na sua apresentao sedutora. O resultado, porm, muitas vezes a iluso de conhecimento, a ateno flutuante, o conhecer por fragmentos, sem que haja um momento para a integrao das partes e a reflexo sobre as informaes recebidas. Trata-se, enfim, de um desafio para o professor, cujo trabalho terico contraria o fluxo frentico e feito em partculas do vdeo-clip... No mundo do trabalho, com a ampliao do setor de servios, desfocada a tradicional oposio entre o proprietrio da fbrica e o proletrio, segundo a clssica representao marxista. Cada vez mais as empresas so controladas por administradores, os tecnoburocratas. Tudo isso pode dar a iluso de que a mquina livra o homem do duro conflito patro-empregado, libera o seu tempo para outras atividades, mais prazerosas, criando ainda a expectativa da possibilidade de melhor distribuio das riquezas. O que ocorre, no entanto, o aparecimento de mecanismos de explorao menos evidentes, j que a autonomia dos executivos tem como pano de fundo controlador o grande capital das multinacionais, concentrando renda e impedindo que a distribuio da riqueza seja feita de forma homognea. A esse mundo da opulncia, da tecnologia avanada, contrape-se grande parte do globo, relegada misria e fome. Mesmo nas camadas que conquistam privilgios a nova organizao acentua as caractersticas de individualismo, que levam atomizao e disperso das pessoas, desenvolvendo uma cultura hedonista (de busca do prazer imediato) e narcsica (egocntrica, com perda do sentido coletivo da ao humana). Ao mesmo tempo (e contraditoriamente), o processo de massificao pelos meios de comunicao impede que seja feita uma abordagem menos superficial das questes humanas mais vitais, justamente aquelas que permitiriam a discusso das formas de alienao. Como se v, o avano da tecnologia no exclui a possibilidade de modos de vida alienados. O que nos interessa, no entanto, menos incutir uma viso pessimista da realidade do que reforar o papel denunciador de toda educao, como primeiro momento para a mudana.

5. Professores como mo-de-obra alienada?Os riscos de alienao que ameaam os profissionais em geral no mundo contemporneo atingem tambm os professores, profissionais que desenvolvem um tipo de trabalho intelectual ou trabalho no-material, muito peculiar. Enquanto, por exemplo, para os intelectuais que produzem obras de arte e livros, a obra de pensamento se encontra separada de quem a produziu, no caso do professor no existe essa separao, j que seu trabalho se desenvolve durante o ato mesmo de se produzir. A esse respeito, diz o professor Saviani: A aula alguma coisa que supe, ao mesmo tempo, a presena do professor e a presena do aluno. Ou seja, o ato de dar aula inseparvel da produo desse ato e de seu consumo. A aula , pois, produzida e consumida ao mesmo tempo.

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Justamente nesse contato com o aluno que poderia ser inculcada a ideologia e a alienao, o que foi amplamente enfatizado por muitos autores que estudaram a escola como reprodutora do sistema vigente (ver Captulo 20). Nesse sentido, mesmo quando imbudos de boas intenes, os professores estariam repassando a seus alunos valores que precisariam na verdade ser revistos e criticados. Assim, embora saibamos que a ao do professor pode gerar um espao de renovao e crtica, preciso reconhecer que esses tericos alertaram para riscos com os quais devemos nos preocupar. Sem estender o assunto que ser retomado no Captulo 15 , bom lembrar que esses riscos persistem, sobretudo, na atuao desligada do contexto em que se vive, quando predominam prticas despoliltizadas e esvaziadas de contedo tico. Tambm favorece a alienao a rotinizao do trabalho, quando se mergulha na repetio enfadonha de frmulas e se permite o prevalecimento de registros e controles burocrticos, esquecendo-se das situaes emergenciais do contexto social e cultural em que se atua. Alm disso, h o risco de se sucumbir racionalidade tecnocrtica tpica do taylorismo , em que diminuda a autonomia do professor: a legislao aprovada sem a participao efetiva do profissional da educao e muitas vezes o planejamento dos cursos feito externamente, com pacotes de materiais curriculares que transformam o professor em simples executor de um projeto.

6. Trabalho e escolaDentre os inmeros desafios da escola diante da problemtica do trabalho, vamos destacar apenas alguns. A escola ela mesma um local de trabalho e, como tal, oferece servios profissionais coletividade; nesse sentido, pertence ao setor tercirio e sofre as influncias da sociedade em que est inserida. Por exemplo, a escola transmite as idias e valores que justificam as prticas sociais vigentes e, na medida em que no consegue, assimilar extensos segmentos de possveis estudantes, acaba excluindo-os da apropriao da herana cultural. Apesar de pertencer ao mundo do trabalho, a escola deve dar condies para que se discuta criticamente a realidade em que se acha mergulhada. Ou seja, para exercer sua funo com dignidade, precisa manter a dialtica herana-ruptura: ao transmitir o saber acumulado, deve ser capaz de romper com as formas alienantes, que no esto a favor do homem, mas contra ele. Para tanto, cabe ao profissional do ensino denunciar a alienao e a ideologia, a invaso dos parmetros do trabalho no mundo afetivo, identificar o que est a servio da democracia ou em oposio a ela. Em suma, importante a ao do educador na recuperao do universo de valores em um mundo marcado pela racionalidade tcnica, pelo mito do progresso e pelo superdimensionamento do especialista. Por outro lado, dentre as diversas tarefas que lhe so atribudas, a escola deve formar o jovem para o trabalho. Como faz-lo em uma sociedade marcada ainda pela diviso? Nossa escola no unitria. Ao contrrio, dualista, j que para a elite oferecida uma escola de boa qualidade intelectual, enquanto para a classe trabalhadora resta a educao elementar, geralmente de m qualidade, com rudimentos de alguma tcnica profissionalizante, sem a necessria teorizao. Se consideramos que o trabalho uma prxis, no sentido de no separar a teoria da prtica, p-los indissolveis, perversa a continuidade desse tipo de dicotomia. O desafio est em criar uma escola em que o trabalho ocupe um lugar de importncia: que no esteja ausente nos cursos de formao nem se reduza ao adestramento profissional nos chamados profissionalizantes. Naqueles falta a prtica, nestes, a teoria. preciso que todos os alunos, sem distino, sejam iniciados na compreenso dos fundamentos cientficos das diferentes tcnicas que caracterizam o processo de trabalho produtivo contemporneo e que saibam avaliar criticamente os fins a que se destina o trabalho, bem como as conseqncias dele decorrentes. Uma das solues possveis para se oferecer uma escola de boa qualidade estaria na exigncia da aplicao adequada dos recursos do governo, e, alm disso, no esforo conjunto de educadores e do prprio povo. Ou seja, cabe tambm sociedade civil buscar meios e inventar caminhos para conseguir uma escolarizao em que o contedo dos estudos seja, acima de tudo, a prtica social vigente. S assim as pessoas teriam uma compreenso terica cada vez mais ampla dessa prtica, o

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que as ajudaria a explic-la melhor, a justific-la ou no e a orientar suas aes no sentido de modific-la segundo suas necessidades. Nessa direo tm importante papel os intelectuais a servio da melhor organizao do povo.

Dropes1 O Centro para um Futuro para Todos, uma Organizao No-Governamental sua, calcula que o mundo conta hoje com 157 biliardrios, cerca de 2 milhes de milionrios e 1,1 bilho de habitantes cuja renda inferior a US$ 1 por dia. (Folha de S. Paulo, 5 fev. 1995, p.1-8)

AtividadesQuestes 1. 2. 3. 4. Em que sentido dizemos que o trabalho uma prxis? Sob que aspectos a concepo taylorista do trabalho se choca com a noo de prxis? Analise uma caracterstica marcante da sociedade ps-moderna. Qual a importncia da educao no mundo da realidade como simulacro?

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TEXTO 03 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Filosofia da Educao. SP: Moderna, 1997. As relaes de poderA gente fica pensando: o que que a escola ensina, meu Deus? Sabe? Tem vez que eu penso que pros pobres a escola ensina o mundo como ele no . (Fala do lavrador mineiro Cico, segundo Carlos Rodrigues Brando)

1. A polticaQuando falamos em poltica, comum as pessoas imaginarem um espao externo sua vida cotidiana e que diz respeito ao Estado e aos polticos profissionais que estariam encarregados das decises relativas administrao da cidade. Essa imagem da poltica , no entanto, tpica das sociedades autoritrias, em que as pessoas esto acostumadas a ser tuteladas e a no interferir de maneira eficaz nos rumos da coletividade. Tanto isso verdade que muitos consideram que apenas certas pessoas esto investidas de poder (tm capacidade de agir, de produzir efeitos) e, por isso, decidem, mandam, restando maioria apenas a obedincia. Ora, o poder no uma coisa que se tem, mas uma relao ou um conjunto de relaes por meio das quais indivduos ou grupos interferem na atividade de outros indivduos ou grupos. E uma relao porque ningum tem poder, mas e dele investido por outro: trata-se de uma ao bilateral. Nesse sentido, todos nos, como cidados, ou seja, pertencentes cidade, deveramos ter o direito (e o dever!) de participar do jogo poltico, tomando conhecimento dele (no permanecendo alienados), vigiando para no haver abuso do poder e buscando formas de interferir nas decises. Em outras palavras, os cidados tambm tm poder e devem aprender a exerc-lo. A verdadeira democracia de fato uma policracia (de poly, muito, e cracia, poder). porque nela o poder no est centrado em um indivduo nem em uma classe dirigente, mas distribudo em inmeros focos de poder. S assim possvel gerar uma sociedade pluralista e transparente, aberta s discusses, ao conflito de opinies, e em que se aceitam pensamentos divergentes. Talvez voc acredite que isso pode gerar uma confuso total, em que ningum se entenderia. Ao contrrio, preciso partir da idia de que a educao para a cidadania d destaque ao interesse pblico e convivncia em grupo. Assim, o principal instrumento de disputa do cidado passa a ser no mais a violncia, mas as palavras, o discurso fundado nas artes da persuaso, buscando o consenso. Evidentemente, chegar a esse estgio no fcil: a democracia exige longo aprendizado e se sujeita a percalos de toda espcie. Veja-se, por exemplo, o caminho percorrido pelos brasileiros na dcada de 90. Malrefeitos de um longo perodo de ditadura, caracterizado pela censura e pela perseguio aos dissidentes (com prises, tortura e morte), enfrentamos os escndalos do governo Collor sem passividade. Ao contrrio, a imprensa, os rgos de defesa da cidadania, a Igreja, toda a sociedade civil se uniu na mesma indignao e acompanhou (e exigiu) que fosse feita justia. O impeachment do presidente foi um ato decidido pelos polticos do Congresso, legtimos representantes dos cidados, escolhidos por votao, mas sem dvida a atuao popular influenciou a deciso final. Depois disso, em inmeras situaes, igualmente se fez sentir a participao da sociedade civil: nos escndalos da comisso do oramento, na exigncia de lisura e transparncia quanto origem das verbas de campanha eleitoral, na necessidade de controle da destinao do dinheiro pblico, e assim por diante. O saldo poltico dessas interferncias tem sido sem dvida positivo, apesar das idas e vindas do processo. Embora nem sempre se tenha conseguido atingir os objetivos buscados, importante saber que os cidados no assistem passivamente corrupo e dilapidao do patrimnio pblico, e um nmero cada vez maior de pessoas comea a exigir tica na poltica.

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2. Diversos sentidos de ideologiaO que percebemos com tudo isso que a poltica, embora no se confunda com as atividades do homem comum (na vida familiar, no trabalho, no lazer etc.), na verdade permeia todas as atividades humanas o tempo todo. E, se no estivermos atentos e acreditarmos que podemos permanecer apolticos, isto , margem das decises, certamente nos tornaremos vtimas passivas da ao dos maus polticos. A pretensa neutralidade justifica a poltica vigente. O homem despolitizado compreende mal o mundo em que vive e manipulado por aqueles que esto no poder. Pois, se ocupam o poder revelia dos interesses da maioria e podem nele se manter pela fora, outras vezes o recurso usado mais sutil e a submisso conseguida pelo consentimento. Nas sociedades divididas, os grupos privilegiados predominam sobre os demais e geralmente se mantm pelo prestgio, isto , seus valores so aceitos, dando a aparncia de que se vive em uma sociedade una e harmnica, movida por interesses comuns e no-divergentes. No entanto, h uma diferena entre o consenso obtido aps discusso e exposio das divergncias, tpico da democracia, e o consentimento que resulta da ignorncia dessas diferenas. Neste ltimo caso, estamos nos referindo a uma das formas perversas de exerccio do poder, que a ideologia. H vrios significados para a palavra ideologia. Em sentido amplo, o conjunto de idias, concepes ou opinies sobre algum ponto sujeito a discusso. E uma teoria, uma organizao sistemtica dos conhecimentos destinados a orientar a prtica, a ao efetiva. Nesse sentido, cada um tem uma ideologia que o ajuda a decidir, por exemplo, onde estudar, que profisso escolher e a respeito do que certo ou errado. Sob esse mesmo aspecto, ao analisar a ideologia a respeito das concepes polticas, as pessoas podem ser classificadas conforme suas adeses a um ou outro partido. A ideologia uma espcie de cimento que une as pessoas de determinado grupo, fazendo-as defender interesses comuns e elaborar projetos de ao. E, se toda sociedade plural, seria saudvel que fosse permeada por concepes de mundo diferentes. Esse pluralismo to enriquecedor no deveria ser cerceado em nome dos interesses de grupos divergentes. bom lembrar o que foi dito no incio do captulo: a essncia da democracia est na tolerncia, que permite a coexistncia de ideologias diferentes. Quando no se aceitam os conflitos de idias, est-se a um passo da violncia. Foi assim no perodo da ditadura, quando rgos como o DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social) exigiam atestados ideolgicos, a fim de verificar se no se estava diante de adeptos da ideologia marxista, considerada na poca perigosa segurana nacional. Conforme o resultado, as pessoas eram consideradas subversivas H ainda um outro sentido para ideologia, no qual se enfatiza o aspecto pejorativo, isto , a ideologia como conjunto de idias e concepes sem fundamento, mera anlise ou discusso oca de idias abstratas que no correspondem a tatos reais.

3. Um conceito restrito de ideologiaO conceito de ideologia, utilizado neste captulo foi inicialmente elaborado pelo filsofo e cientista social Karl Marx, que viveu no sculo XIX. Atualmente este conceito est incorporado ao pensamento poltico e econmico, sendo utilizado at por tericos no-marxistas, tal a sua fecundidade na compreenso das relaes de poder. Para Marx, as idias e normas de ao que permeiam a sociedade so decorrentes da economia, isto , resultam da maneira pela qual os homens se relacionam para produzir sua existncia. Com isso, ele contraria a concepo vigente de que as idias movem o mundo e que os grandes homens fazem a histria. Para Marx, o movimento da histria se faz a partir das contradies existentes no seio da sociedade. Invertendo o processo, Marx considera que as idias derivam das condies histricas reais vividas pelos homens ao estabelecerem as relaes de produo, isto , ao se organizarem por meio da diviso social do trabalho. Segundo ele, toda atividade intelectual (mito, religio, moral, filosofia, literatura, cincia etc.) e todas as normas (morais, jurdicas etc.) passam a ser compreendidas como derivadas das condies materiais de produo da existncia.

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Para exemplificar: a moral e o direito feudais podem ser compreendidos a partir do modo de produo feudal; por sua vez, ao instaurar o capitalismo, a burguesia passar a defender valores morais e normas jurdicas diferentes daqueles da nobreza feudal, buscando novos modelos tericos que justifiquem sua ao. Ora, a aceitao da transformao social seria relativamente fcil caso as novas idias, decorrentes das mudanas econmicas, fossem lentamente assimiladas. Mas isso significa superar os antigos valores, o que acarretaria a perda dos privilgios da classe que se encontra no poder. Por isso ela luta ainda durante muito tempo para manter seus valores, como se eles fossem eternos e imutveis. No perodo de reao ao novo, o segmento que deseja manter o status quo assume atitudes conservadoras ou reacionrias, em oposio ao grupo progressista. Assim, durante sculos, a burguesia lutou contra o feudalismo at conseguir super-lo, utilizandose, no final do processo, do recurso da revoluo (por exemplo a Revoluo Gloriosa, na Inglaterra, e a Revoluo Francesa). A partir de ento, consolidada sua hegemonia, a prpria burguesia universaliza seus valores, considerando as idias defendidas por sua classe vlidas para todos os segmentos sociais. Os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade da Revoluo Francesa, no entanto, no foram estendidos aos trabalhadores, que enfrentavam situaes cada vez mais difceis de sobrevivncia. No sculo XIX, a jornada de trabalho era de 14 a 16 horas, em locais muitas vezes insalubres. Atualmente, embora tenham ocorrido melhoras como resultado das conquistas sindicais, persiste o fenmeno da alienao (ao qual j nos referimos no Texto 2), agravado por problemas tais como o parcelamento do trabalho e a excluso do acesso aos bens produzidos. No mundo do capital, o produto sempre mais importante do que o homem, sendo ele desumanizado, tornado coisa, coisificado.

4. Funo da ideologiaNo entanto, nem sempre o trabalhador tem clareza da situao na qual se encontra, pois a ideologia faz com que no perceba a explorao de que vtima. A ideologia o conjunto de representaes e idias, bem como de normas de conduta, por meio das quais o homem levado a pensar, sentir e agir de uma determinada maneira, considerada por ele correta e natural. Assim, no percebe que essas representaes e normas convm classe que detm o poder na sociedade. Essa percepo da realidade ilusria, na medida em que camufla a diviso existente dentro da sociedade, apresentando-a una e harmnica, como se todos partilhassem dos mesmos objetivos e ideais. A funo da ideologia , pois, ocultar as diferenas de classe, facilitando a continuidade da dominao de uma classe sobre outra. A ideologia assegura a coeso entre os homens e a aceitaco sem crticas das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da vontade de Deus, do dever moral ou simplesmente como decorrentes da ordem natural das coisas.

interessante observar que no se trata de uma mentira inventada pelos indivduos da classe dominante para subjugar a outra classe. Tambm eles sofrem a influncia da ideologia, o que lhes permite exercer como natural sua dominao e considerar universais os valores pertencentes sua classe. Os missionrios que acompanhavam os colonizadores s terras conquistadas, por exemplo,

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certamente no percebiam o carter ideolgico de sua ao ao implantar uma religio e uma moral estranhas s do povo dominado. Ao contrario, estavam convencidos do valor dessa tarefa.

5. Caractersticas da ideologiaOuvimos com freqncia a frase O trabalho dignifica o homem. E bom lembrar que a afirmao no falsa, pois, como vimos nos captulos anteriores, o trabalho de fato o que faz o homem se tornar homem e o distingue do animal, mas soa ideolgica quando considerada fora do contexto histrico concreto em que os homens trabalham, mascarando situaes de explorao. O trabalho alienado no dignifica, mas degrada o homem, porque, alm de retirar dele o fruto de sua produo, reduz suas possibilidades de crescimento. Quando a caracterstica pervertida do trabalho no reconhecida, esse ocultamento beneficia no o trabalhador, j prejudicado, mas aqueles que se ocupam com as atividades menos penosas. Portanto, a frase acima, a princpio verdadeira, pode se tornar ideolgica quando ocultar a situao concreta de explorao e descrever uma realidade abstrata, universal, lacunar e invertida. Explicando melhor, a ideologia tem por caractersticas: a abstrao: na medida em que no se refere ao concreto, mas ao aparecer social. Um exemplo: a idia de trabalho aparece desvirtuada da anlise histrica concreta das condies nas quais certos tipos de trabalho brutalizam o homem, em vez de enobrec-lo (como o operrio na linha de montagem); a universalizao: pela qual as idias e valores do grupo dominante so estendidos a todos; por exemplo, mesmo tendo interesses divergentes, o empregado adota os valores do patro como sendo tambm os seus; a lacuna: h vazios, partes silenciadas que no podem ser ditas, sob pena de desmascarar a ideologia; por exemplo, quando dizemos que o salrio paga o trabalho, permanece oculto o fato de que o valor produzido pela fora de trabalho maior do que o recebido, sendo a diferena apropriada pelo capitalista ( o que Marx denominava mais-valia); a inverso: ao explicar a realidade, o que apresentado como causa na verdade conseqncia; por exemplo, se o filho de um operrio no consegue melhorar seu padro de vida, o insucesso considerado resultante de sua incompetncia, quando na verdade esta efeito de outras causas, tais como as condies precrias (de sade, educao etc.) a que se acha submetido: ele joga um jogo de cartas marcadas, e as possibilidades de melhora no dependem dele. Dessa forma, a ideologia naturaliza a realidade, escondendo o fato de que a existncia humana s produzida pelo prprio homem e s pode ser alterada por ele: no natural que haja ricos e pobres, nem que exista a separao entre trabalho intelectual e braal, nem que alguns estejam destinados ao mando e outros, obedincia. A diviso e a hierarquia instauradas na sociedade justificam a priorizao das idias sobre a prtica (ao contrrio da concepo de prxis, que estabelece uma relao dialtica entre elas). Da decorre a aceitao de que a classe que sabe pensar controla as decises e manda, enquanto a outra no sabe pensar e, portanto, executa e obedece.

6. Ideologia e educao muito comum se pensar que a educao apoltica, a escola um espao neutro, uma ilha isolada das divergncias da sociedade e um canal objetivo de transmisso da cultura universal. Sem dvida uma imagem ilusria. A escola poltica e, como tal, reflete inevitavelmente os confrontos de fora existentes na sociedade. Se esta se caracteriza por classes antagnicas, a escola certamente refletir os interesses do grupo dominante. Basta rever a histria da educao para perceber como a escola sempre serviu ao poder, no oferecendo oportunidades iguais de estudo a todos, indistintamente.

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Alm disso, a escola transmite padres de comportamento, bem como idias e valores. Ora, esses modelos, divulgados como universais e abstratos, geralmente no so to universais assim, pertencendo a um determinado segmento social. Na dcada de 70, muitos intelectuais desenvolveram as teorias crtico-reprodutivistas, que denunciam a escola por disseminar a ideologia e reproduzir o status quo. Mesmo no concordando com a radicalidade dessas posies, preciso reconhecer muitos acertos nas suas anlises. Num rpido esboo do papel ideolgico da educao, vamos abordar o problema sob trs aspectos: quanto s teorias pedaggicas, quanto ao plano legal e quanto prtica educativa. Carter ideolgico das teorias pedaggicas Se levarmos em conta o conceito de prxis, toda teoria se acha indissoluvelmente ligada prtica. Portanto, qualquer teoria da educao deveria partir do exame rigoroso e sistemtico dos problemas existentes na realidade, a fim de definir os objetivos e meios que orientaro a atividade comum intencional. Quando uma teoria pedaggica desenvolve-se margem dos acontecimentos econmicos, polticos e sociais do seu tempo, corre o risco de tornar-se ideolgica. Utilizando conceitos abstratos, eternos e imutveis, deslocadas da situao histrica em que se inserem, repete artifcios pelos quais os valores dominantes so impostos. O homem um ser em processo cujo pensar e agir esto condicionados pela maneira segundo a qual ele produz sua existncia, de modo que nenhuma teoria pedaggica pode partir de conceitos dados a priori, ou seja, antes de serem examinadas as condies de sua existncia concreta. Dessa forma, no possvel trabalhar com categorias atemporais, como natureza humana, infncia em si ou famlia em si. Segundo as teorias que partem dessas noes, a educao seria um processo de atualizao daquilo que o homem possui em potencial (o que pode ser, mas ainda no ), donde se conclui que haveria uma essncia humana vlida em todos os tempos e lugares, cabendo educao tomar presente, trazer tona o que existe em germe em cada um. Tal procedimento torna-se ideolgico ao desprezar o fato de que a educao um fenmeno social, no sendo possvel separar teoria da educao e realidade social. A sociedade no um aglomerado de indivduos, cada um deles desabrochando, trazendo tona o que era em potncia. A educao promove a construo da personalidade social e, por isso, no se desvincula da situao concreta em que se insere. No convm, por exemplo, analisar a crise da adolescncia como natural, resultante do eterno conflito entre geraes, pois h sociedades nas quais nem sequer existe o fenmeno da adolescncia, e outras em que os conflitos so de teor muito diferente: basta comparar o adolescente do campo e o da cidade; o burgus e o proletrio; ou ainda o jovem da dcada de 40 e o dos explosivos anos mutantes de 60!

Legislao e ideologia impossvel criar uma legislao eficaz para a educao sem ter como suporte uma teoria pedaggica cujo rigor possa superar a compreenso emprica do fenmeno. Apoiando-se nessa teoria, a soluo para os problemas surge de forma intencional, coerente e no-fragmentada, ultrapassando o nvel prtico-utilitrio do senso comum. O professor e educador paulista Dermeval Saviani analisa, em importante trabalho, o carter precrio da Lei de Diretrizes e Bases (LDB/61), decorrente da no utilizao de uma teoria que possibilitasse a construo de um verdadeiro sistema educacional brasileiro.1 Para Saviani, no podemos falar em sistema educacional brasileiro, e sim em estrutura. A estrutura caracterizada por ausncia de planos, assistematicidade da ao, inexistncia de projetos claramente expostos, ou seja, algo que a est, que o homem deixou de fazer ou fez sem o saber. Se no existe uma teoria explcita subjacente, a ao perde a intencionalidade, a unidade e a coerncia, mas no deixa de ser orientada pelos valores vigentes, expressos pelos interesses dos grupos1

Educao brasileira; estrutura e sistema.

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dominantes. E eis a de novo a ao silenciosa da ideologia. Pois o Direito, como toda elaborao da conscincia humana, reflete as condies estruturais da sociedade em um determinado movimento histrico, e as leis, sendo feitas pela elite, vm em defesa dos seus valores. Por isso, ao examinar o texto de uma lei, preciso ler nas entrelinhas, analisar o contexto em que se insere, a fim de descobrir as relaes de interesse que se acham por trs, no processo da sua gestao. Voltemos ao exemplo da Lei de Diretrizes e Bases. A partir do primeiro projeto de lei, datado de 1948, esta lei seguiu um longo caminho. Embora fosse inicialmente um texto progressista, foi sancionado apenas em 1961, tornando-se ultrapassado para a poca em que entrou em vigor, j que era outra a sociedade brasileira de ento. Alm disso, a lei refletiu os conflitos entre tendncias opostas, sobretudo entre liberais defensores da escola pblica e a ala conservadora dos catlicos, que reivindicava a subveno do Estado para a rede particular do ensino. Este mesmo conflito reaparece na discusso da Constituio de 1988, que manteve a destinao dos recursos a certos tipos de instituio. Se preciso examinar os interesses subjacentes elaborao e aprovao de uma lei, tambm importante avaliar sua eficcia, pois vrios fatores interferem na sua aplicao. Ao ampliam a obrigatoriedade do ensino primrio de quatro para oito anos, a LDB no considerou as condies de intra-estrutura existentes, o que no permitiu que este dispositivo da lei sasse do papel. Prtica educativa e ideologia Dentre os recursos utilizados na prtica educativa, vamos destacar o livro didtico, que, assim como os outros recursos, no pode ser considerado um veculo neutro, objetivo, mero transmissor de informaes. Estudos realizados sobre os livros didticos de 1 o grau1 constatam muitas vezes sua utilizao ideolgica, sobretudo quando mostram criana uma realidade estereotipada, idealizada e deformadora. Os textos ideolgicos transmitem uma viso de trabalho que iguala todos os tipos de profisso, ocultando o fato de que muitas pessoas so submetidas a atividades rduas, alienantes. Mostram uma sociedade una e harmnica, na qual cada um cumpre o seu papel como um destino a que no se pode fugir e ao qual se deve conformar. A impresso que se tem de que a riqueza e a pobreza fazem parte da natureza das coisas, no sendo resultado da ao dos homens. Resta aos pobres a pacincia e, aos ricos, a generosidade. A famlia, apresentada sem conflitos, aparece com papis bem definidos: o pai tem a funo de provedor; a me a rainha do lar; se a criana no for atenciosa e obediente, isso mostrado como um desvio que precisa ser corrigido; a empregada, geralmente preta, feliz por ser quase algum da famlia. Mundo sem preconceito, em que as raas se irmanam... Alm disso, as situaes vividas, bem como o ambiente em que se desenrolam, refletem invariavelmente a realidade de um segmento mais prspero da sociedade, muito diferente do modo de viver da maioria da populao escolar, pertencente s classes desfavorecidas. A ptria merece pginas de ingnua exaltao, sendo retratada como um pas ilusrio, grande e rico, ou pelo menos o pas do futuro. Fica por conta do leitor investigar o que dito, nos livros didticos, sobre a escola, sobre o trabalho no campo, sobre o ndio, sobre a moral etc. Tambm a abordagem das disciplinas do currculo adquire, muitas vezes, um carter ideolgico. O ensino de histria, por exemplo, torna-se ideolgico quando se restringe seqncia cronolgica dos fatos, sem a anlise da ao das foras contraditrias que agem na sociedade. A aparente neutralidade e a ausncia de interpretao ocultam e impedem a expresso do discurso dos vencidos ou dos dominados. Alm disso, tpico desse processo apresentar a histria como resultado da ao dos grandes homens. Dessa forma, abolio da escravatura vista sob a tica dos brancos e os bandeirantes so heris que expandem as fronteiras brasileiras custa das populaes indgenas (alis, no faroeste americano o mocinho no vence sempre os ferozes ndios?). A nfase dada geografia fsica, em detrimento da geografia humana, reflete a preocupao positivista, que despreza o fato de ser o homem o construtor do seu habitat. Com isso se oculta que a ao exercida sobre a natureza significa tambm uma ao sobre os homens, o que recoloca a questo do poder e do controle poltico do espao geogrfico.1

Ver Bibliografia final: U. Eco. M. Lourdes D. Nosella. A.L.Faria.

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Tomamos apenas os exemplos da histria e da geografia, mas uma anlise deste tipo pode ser feita com relao a qualquer disciplina do currculo. Embora no tenham necessariamente objetivo didtico, os livros de literatura infantil, so utilizados com freqncia em sala de aula, como auxiliares no processo de aprendizagem. muito comum encontrarmos vis ideolgico nessa produo, preocupada com o enquadramento da criana nos padres convencionais de comportamento, do que decorre o carter moralizante do seu contedo. Alm disso, existe o reforo dos preconceitos com relao ao negro, ao ndio, mulher e criana, mostrados como seres passivos e necessitados de orientao e controle externos. A organizao escolar pode exercer um papel ideolgico na medida em que a rgida hierarquia exige o exerccio do autoritarismo e da disciplina estril, que educam para a passividade e a obedincia. A excessiva burocratizao desenvolve o ritual de domesticao, que vai desde o controle da presena em sala de aula, s provas, at a obteno do diploma. Se lembrarmos o que foi dito no item anterior sobre estrutura e sistema, fcil compreender que qualquer organizao s tem sentido enquanto mantiver viva a reflexo sobre os objetivos que orientam sua ao. Caso contrrio, degenera em exigncia puramente formal. E o formalismo da prtica gera a burocracia estril e autoritria.

7. A contra-ideologiaSe considerssemos apenas o que foi dito at agora, restaria uma viso pessimista da educao e uma ntida sensao de impotncia diante dessa situao. preciso superar essa posio imobilista. Para isso, vamos explicitar o que seria um discurso no-ideolgico. Retomemos os conceitos analisados no incio do captulo: o discurso ideolgico abstrato e lacunar, faz uma anlise invertida da realidade e separa o pensar e o agir, a fim de manter privilgios e a dominao de uma classe sobre outra. O discurso no-ideolgico deve contrapor, ento, uma crtica que revele, denuncie a contradio interna, que se acha oculta. esse o papel da teoria, que no se confunde com a ideologia, pois est encarregada de desvendar os processos reais e histricos que do origem dominao, enquanto a ideologia visa justamente ocult-la. A teoria estabelece uma relao dialtica com a prtica, uma relao de reciprocidade e simultaneidade, no uma relao hierrquica, como no discurso ideolgico, que considera a teoria superior e anterior prtica. Aplicando o conceito de dialtica educao, podemos ver que uma teoria educacional no determina autoritariamente e a priori o que deve ser feito, mas parte da anlise dos fatos e deve para eles retornar, a fim de agir sobre eles, mantendo viva a relao entre o pensar e o agir. Por isso, toda teoria educacional autntica vem sempre acompanhada de forma reflexiva e crtica pela filosofia, cuja funo explicitar os seus fundamentos, esclarecer a funo e a contribuio das diversas disciplinas pedaggicas e avaliar o significado das solues escolhidas2. O papel da filosofia como crtica da ideologia importante, pois rompe as estruturas petrificadas que justificam as formas de dominao. Nessa perspectiva, a escola no compreendida como isolada da realidade nem como pura reproduo da realidade social. E, se a escola no a alavanca transformadora da realidade, como pensavam os escolanovistas, tampouco totalmente manipulada pelo poder, como pensavam os crtico-reprodutivistas. preciso descobrir, a partir de suas limitaes, as reais possibilidades de transformao qualitativa da escola, a fim de que ela possa desenvolver um discurso contra-ideolgico.

8. Educar para a cidadaniaComo proceder a essa mudana, tendo em vista inmeras dificuldades e entraves? A tarefa rdua, mas no impossvel. Sem dvida exige tempo, pacincia e um esforo contnuo levado a efeito em inmeros setores diferentes: que se abram goras de discusso, espaos de expresso que funcionem como microrrevolues. A salutar exigncia de tica na poltica deve, por coerncia, se estender s relaes de trabalho, vida familiar e ao lazer, no apenas enquanto discusso, mas tambm na busca de formas de atuao.2

Dermeval Saviani, Educao: do senso comum conscincia filosfica, p. 30.

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Afinal, dissemos que democracia policracia: pois que aumentem os focos nos quais possamos exercer nossa cidadania. Sem dvida, precisamos exigir do Estado o cumprimento de suas obrigaes, bem como vigiar sua execuo. Mas isso no suficiente. E revelador de uma tendncia paternalista permanecer na dependncia exclusiva da boa vontade e da ao dos governos. At porque a alternncia freqente daqueles que so eleitos para ocupar os cargos pblicos gera constantes mudanas de orientao ideolgica, tornando catica a administrao pblica. As organizaes de pais, de mestres, de alunos, os sindicatos, ou seja, os agrupamentos progressistas sados da sociedade civil que podero exercer uma vigilncia e fazer presso para que a escola se transforme em um espao de mudana. Mesmo que nessa situao existam contradies, pois na sociedade civil tambm se organizam grupos retrgrados e conservadores, que tentam manter a ordem vigente e, portanto, a ideologia , estimulante o exerccio do poder disseminado entre os cidados. Nessa linha de atuao tm se destacado no mundo inteiro as chamadas organizaes nogovernamentais (ONGs), responsveis por significativas mudanas em diversos setores, tais como o recuo na construo de usinas atmicas, a reviso do processo de construo de grandes usinas hidreltricas, que provocam graves prejuzos ecolgicos, bem como na luta pelos direitos humanos, contra o arbtrio do poder, e assim por diante. No Brasil, surgiram durante o movimento contra a ditadura militar e tm provocado a conscientizao e a mobilizao dos cidados. Na educao h muito que fazer. Temos de lutar por xitos parciais que, no conjunto, se tornem significativos: adequada aplicao das verbas pblicas, melhor formao de professores competentes e politizados, remunerao condigna do corpo docente, escolas bem equipadas, classes pouco numerosas, desmistificao na abordagem das disciplinas, leitura crtica dos textos e do prprio mundo.

Dropes1 Ao fazer do texto um objeto de investigao intelectual, tal anlise coloca o leitor no como um consumidor passivo, mas como um produtor ativo de significados. Em vista disto, o texto no mais investido de uma essncia de autoridade, esperando para ser traduzido ou descoberto. Ao contrrio, sua essncia no est mais provida de um status sacerdotal, como uma sabedoria doada. Ao invs disso, o texto torna-se um conjunto de discursos, constitudo por um jogo de significados contraditrios (Henry Giroux) 2 Texto quer dizer tecido; mas, enquanto at aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um vu acabado, por detrs do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), ns acentuamos agora, no tecido, a idia generativa de que o texto se faz, se trabalha atravs de um entrelaamento perptuo. (Roland Barthes)

Atividades Questes1. Explique por que o poder no algo que se tem, mas uma relao. 2. O que ideologia e qual a sua funo? 3. Em que sentido a teoria se distingue da ideologia? Como cada uma delas se relaciona com a prtica? 4. O que necessrio para que uma teoria pedaggica no seja ideolgica?

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5. Explique por que o contedo das frases a seguir ideolgico. Faa referncia a caractersticas da ideologia, a fim de fundamentar sua resposta. A educao um direito de todos. Isto legal, portanto justo e legtimo. 6. Como possvel superar o destino da escola de ser simples reprodutora do sistema?

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TEXTO 04 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Filosofia da Educao. SP: Moderna, 1997. As relaes culturaisNenhuma arte casual ou rudimentar: expresso plena de um desejo de beleza. (Antonio Candido) A cultura operria carece da escola no para se renegar, mas para se realizar. (Georges Snyders)1

1. Os bens culturaisNo Texto 1 aprendemos que cultura, no sentido amplo e antropolgico, tudo que o homem faz, seja uma produo material ou espiritual, seja pensamento ou ao. A cultura resulta do esforo humano para construir sua existncia, e isso que caracteriza os diversos agrupamentos humanos, permitindo distinguir por exemplo a cultura nhambiquara da cultura grega. Podemos tambm considerar o conceito de cultura, em um sentido estrito, como a produo intelectual de um povo, expressa nas produes filosficas, cientficas, artsticas, literrias, religiosas, em resumo, nas suas manifestaes espirituais. Nesse sentido, pessoas ou grupos se ocupam com diferentes formas de expresso cultural (o artista, o escritor, o filsofo, o cientista, e assim por diante). No sentido estrito, destaca-se a nfase dada representao simblica que o homem faz da realidade, construda por meio do conhecimento e da valorao. justamente pela educao que os bens simblicos podem ser transmitidos, avaliados e transformados. justo pensar que esses bens deveriam estar disponveis para todos, tanto na fase de reproduo e inovao quanto na de consumo e fruio. No entanto, tal no acontece nas sociedades divididas em classes, em que ntida a separao entre trabalhadores intelectuais e manuais. Esses ltimos geralmente so excludos do acesso aos bens culturais e, quando deles se apropriam, prevalece o consumo da cultura dominante. J vimos que da deriva a classificao que separa os cultos dos incultos. Geralmente considerado inculto aquele que no participa do saber da elite. Porm, se o homem se define na medida em que capaz de produzir cultura, no existe homem inculto. Acontece que, nas sociedades em que predominam relaes de dominao, as pessoas do povo so impedidas de elaborar criticamente a sua prpria produo cultural. Essas distores levam a uma outra, tambm muito comum: a idia de que se tem cultura, ou seja, o conhecimento um benefcio que pode ser dado, e o homem culto seria aquele que tem posse de conhecimentos, no se levando em conta o dinamismo da cultura e a sua dupla dimenso de construo e ruptura. Na verdade, a cultura tem duas perspectivas, a do ter e a do ser. Segundo Lus Milanesi, h um processo contnuo na esfera cultural, tornando o ter e o ser uma unidade com duas faces: a segunda a que leva inveno do discurso e a ser sujeito da prpria vida, e a primeira permite a alimentao contnua desse processo atravs da posse possvel de todos os registros do discurso dos homens de todos os tempos2.

2. Os diversos tipos de culturaA classificao dos tipos de cultura difcil de ser estabelecida e com freqncia leva a distores e mal-entendidos. Como no vivemos em uma sociedade homognea, qualquer produo cultural est sujeita a avaliaes que dependem da posio social do grupo no qual ela surge.1 2

O contexto de onde foi retirada a citao se encontra no Captulo 23, Teorias progressistas. pp. 214-215. Lus Milanesi, A casa da inveno. p. 139.

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Por isso, quando contrapormos, por exemplo, cultura de elite e cultura popular, j estamos emitindo juzos de valor: a cultura de elite seria superior porque refinada, elaborada, ao passo que a cultura popular seria inferior por se tratar de expresso ingnua e no-intelectualizada. Outra confuso est em se identificar cultura de elite (que na verdade a cultura erudita) com produo da classe dominante. De maneira geral, isso se deve ao pressuposto de que a verdadeira cultura a produzida pela elite. Quando se fala de conhecimento, despreza-se o saber popular para se valorizar apenas a cincia: ao se tratar da tcnica, exalta-se a mais refinada tecnologia; ao se referir arte contempornea, pensa-se nas pinturas de Picasso; e, quando se volta a ateno para a arte popular, para consider-la de forma depreciativa, como arte menor ou produo extica e objeto de curiosidade. Apesar das dificuldades. propormos didaticamente a seguinte diviso: cultura erudita, cultura popular, cultura de massa e cultura popular individualizada. A cultura erudita A cultura erudita a produo elaborada, acadmica, centrada no sistema educacional, sobretudo na universidade, tambm conhecida como cultura de elite, por ser produzida por uma minoria de intelectuais das mais diversas especialidades (escritores, artistas em geral, cientistas, tecnlogos). Com a cultura erudita, so produzidas as obras-primas que revolucionam os diversos campos do saber e da ao, como as descobertas cientficas, os novos modos de pensar, as tcnicas revolucionrias, as grandes obras literrias ou artsticas em geral, enfim, produtos humanos que provocam cortes na maneira de pensar e agir e que, por isso, se tornam clssicos. Esse tipo de produo cultural erudito por exigir maior rigor na sua elaborao, sendo, por isso mesmo, uma produo elitizada, acessvel a um pblico restrito (tanto na sua produo como na fruio). Afinal, supe-se que a maioria no est interessada em fsica quntica, alta filosofia ou msica clssica nem se encontra apta a compreender essa produo sem longo preparo para tal. O que se pode criticar um tipo de excluso externa, que seleciona de antemo os privilegiados que tero acesso a essa produo cultural, quando na verdade a possibilidade de escolha deveria estar garantida a qualquer um, independentemente de suas posses. A cultura popular O conceito de cultura popular complexo, devido s razes j expostas. De maneira geral, consiste na cultura annima produzida pelo homem do campo, das cidades do interior ou pela populao suburbana das grandes cidades. No sentido mais comum, a cultura popular identificada ao folclore, que constitui o conjunto de lendas, contos, provrbios, prticas e concepes transmitidos oralmente pela tradio. O risco desse enfoque est em tomar o folclore como realidade pronta e acabada, quando na verdade toda cultura dinmica, estando em constante transformao. Alis, a vitalidade da cultura popular permite absorver e reelaborar as inmeras influncias de outros costumes, como, por exemplo, as que resultam do contato do mundo rural com o urbano, ou do impacto da tecnologia e da cultura de massa. Esse modo esttico de ver o folclore tambm perigoso por gerar comportamentos inadequados apreciao dessa cultura. Alguns a ignoram ou desprezam como vulgar, no-original, montona, repetitiva inferior, em relao cultura de elite , e outros podem apreci-la como manifestao do pitoresco e do extico, o que resulta na sua apropriao para o espetculo: veja-se o folclore para turismo, em que as prticas so adaptadas, maquiadas, estandardizadas e, assim, tornadas adequadas para consumo. A tentativa de preservar e estimular a produo da cultura popular no tarefa fcil. At os bemintencionados, que reconhecem os riscos da manipulao cultural em uma sociedade dividida e sujeita ideologia, podem resvalar em um autoritarismo inconsciente. Recaem no populismo ao tentar tutelar a produo dita popular, desenvolvendo uma postura assistencialista e protetora, tpica do intelectual iluminado que sabe o que melhor para a populao, o que de certa forma infantiliza o povo, ao qual ele atribui imaturidade e passividade, como se precisasse ser dirigido. Por isso foi controvertida a ao de alguns grupos, sobretudo na dcada de 60 (ver dropes 2 e 3), que visavam a conscientizao dos segmentos desfavorecidos da populao.

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O filsofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937) tambm reconhecia que a classe trabalhadora, da maneira como obrigada a viver, no tem condies de elaborar sua prpria viso de mundo, contraposta a ideologia dominante. Isso no significa que o homem comum no tenha um sistema de opinies, mas, ao contrrio, as pessoas ocupadas com as atividades do cotidiano possuem formas de pensar e agir que se manifestam de maneira fragmentada, confusa e, s vezes, at contraditria. A esse estgio do saber chamamos senso comum. Cabe ao intelectual organizar esse saber, conferindo-lhe rigor lgico. A originalidade do pensamento de Gramsci est em reconhecer a necessidade que tem o povo de formar seus prprios intelectuais, a fim de elaborar a conscincia de classe. Para o filsofo italiano, a classe trabalhadora necessita de intelectuais orgnicos, ou seja, aqueles que, oriundos do prprio povo, sejam capazes de elaborar de forma erudita o saber difuso do homem comum. A cultura de massa A cultura de massa resulta dos meios de comunicao de massa, ou mass media3. So considerados meios de comunicao de massa o cinema, o rdio, a televiso, o vdeo, a imprensa, as revistas de grande circulao, que atingem rapidamente um nmero enorme de pessoas pertencentes a todas as classes sociais e de diferente formao cultural. Essa cultura, distinta da erudita e da popular, comea a surgir aps a Revoluo Industrial, quando a ascenso da burguesia torna mais complexa a vida urbana. Aparece, ento, uma produo cultural que no propriamente folclrica, mas produzida por grupos profissionais (como empresrios de circo e de teatro popular; editores de publicaes peridicas etc.). A partir do sculo XIX o processo intensificado com o aparecimento do jornal, no qual o romance-folhetim, precursor das atuais telenovelas, publicado em episdios fragmentados. No sculo XX, com o desenvolvimento dos meios eletrnicos de comunicao, acentua-se o ritmo das mudanas. A grande alterao est no produtor cultural que no individual nem annimo , mas verdadeiras equipes formadas por inmeros especialist