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', ;: :- . : Ad olphe App ia A onnA DE A TI T O] VI VA l"

description

Obra esgotada e interessante da teoria mundial do teatro.

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Ad olphe App ia

A onnA DE ATI TO] VI VA

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'~ A Obra d e Art e vi v a " de Adolphe Appi a , compendiando a cons­

• trução estética do autor, é um dos liv ros bas ilares da ensa1stica tea­

• . tral de ste século. Com efeito, o papel d~ Appi a na ren ov aç ão ! ou '

•l'l reelaboração dos conc eitos te6ricos que o teatro sofreu nas últimas

décadas, é verdadei ra m e nt e esse nc ía l podendo di zer-se que,junta-

• mente' com On the Art 0"[ Theatre, de Edward Gordon Graig,.esta obra

•' consti~i o verdadeiro ãlice:ce de toda :a construção posterior,. no

campo da estética teatral. Partindo da negação de que a arte dra­

. ' m ática seja -a s~ntese ha rrnoniosa vde todas as ar tes, dominante até à

•' primeira década do nosso século, Appía ab re caminhos perfeitamente

novo s) construindo um concei to autõ nojno de Teatro como Arte, e

• sobrepondo esse conceito ; e portanto essa Arte aos valores ou ele­

mentos parciais que com ela co loboram,

• Quarenta anos volvidos sobre a sua primeira edição, A Obra de

• Arte Viva continua a ser um indispensável elemento de compreensão

da realidade estética que é o Teatro. Mas a necessidade duma ex-

• tensa anotação'; que tivesse em conta todo o caminho depois perc:or-

• rido , era manífestaj o trabalho de Redondo Júnior, qu~ dessa anota-ção se encarregou, faz da presente edição um precioso instrumento

• de leitura e meditação para todas as pessoas interessadas no Teatro. 'e nos seus problemas, e valoriza-a Como volume inédito, ' em re la­

. ' ção at6 COm as inúmeras edições estrangeiras desta obra fundamen-

tal.

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Vi v a

Tradução e notas de ensaio de

REDu,mo JLJNIOR

\

. O r AEditora ARCALisboa

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Tllulo originai

L'CEUVRE D'ART VIVANT

Sobrecapa t arranjo gráfl~ de

SEBASTIÃO RODRIGUEs

IComposto e impresso na

GRÁFICA MONTIJENSB

MONTIJO

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A

EMILE JACQUES DALCROSE

Q amigo [iel a quem devo

ter uma pá tr-i a es tét ica

ADOLPHE APPIA

\

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· . , e a ti

WALT WHITNIAN

que me compreenderás pois tu és VI VO - sempre!

- A m ig o , isto não é um livro:

o que o tocar, toca num homem.

W. Whitman

'~

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índice

1. Os elementos 17

2. A duração viva 61

3. O espaço vivo 79

'4. A cor yiva..,.,-

5. A fusão

97

123

6. A colaboração 165

7, O grande desconhecido e a experiência da beleza 181

8. Os portadores da chama 199

~\ 9. Desenhos 207

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.........

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As notas de ensaio de Redondo Júnior

foram inseridas no texto de Adolphe

Appia, acompanhando os capítulos a

que se referem , mas em páginas sepa­

radas. Para melhor compreensão, essas

notas de ensaio acham-se compostas

em itálico

"', ....

". '8..

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prefácio

Este estudo tinha, primitivamente, duas vezes a ex­tensão deste volume. O autor julgava tornar mais claroo seu pensamento, documentando-o a cada passo e de­senvolvendo-o sob todos os aspectos. Julgava poder es­premer, assim, o sumo de um fruto que se mostrou, du­rante o seu trabalho, inespremível- desta maneira,pelo menos. Por outro .lado, convenceu-se de que não searrasta um .hóspede amável e indulgente por um cami­nho q~e lhe é desconhecnio e para fins que deve ig~orar

à partida se, por um ape~ contínuo à estrada habituale aos seus aspectos familihres, desvia Os seus olharese, provàvelmente, os seus p~\sos da direcção nova e im-prevista. \, I

Em todos os domínios, a dc.:e.umentação é um estudoque se faz estacionando. JiJ uma 'Preparação para o actovoluntário da partida. As pernas c'o «Caminhante», deRodin, «documentar am-se» - e eis {3orque se decidema partir! Um turista ' detem-se para D\'.usultar o mapa,depois dobra-o e avança pelo caminho qua, julga ter com-preendido. .

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Durante longos anos, o autor consultou Os outros einterrogou-se a si próprio. Irresistivelmente atraído porum desconhecido que adivinhava maravilhoso, desejava,no entanto, munir-se de todas as garantias possíveisantes de se comprometer nele. Compreendia que essecompromisso deveria ser definitivo; sentia-o, a princí­pio, obscuramente, mas a apreensão que o envolvia,pouco a pouco, depressa não deixou lugar a dúvidas:não havia regresso possível e, portanto, era preciso.partir .

E partir, então. Atrás' de si, despedaçavam-se os la­ços tão caros que o ligavam a um passado que julgavadever e, sobretudo, poder abandonar.

a objectivo desta obra é oferecer ao leitor uma espé­cie de preparação para a viagem e de fazê-lo, assim,participar na documentação de que o autor se muniu,sem Ihe comunicar, porém, as hesitações ou as angús­tias. - Mudar de .direcção e abandonar o conhecido, quese ama, por um desconhecido I que não se pode amarainda, é cumprir um acto de fi:. Em não importa que do­mínio da nossa vida, uma f/Inversão - quer dizer, jus­tamente e falando .pràprifÍ.iente, uma mudança de di­recção -:- é um acontecirz' énto grave e sempre trágico,uma vez que comporta .iumerosos abandonos, um des­pojamento progressrvr I que coisa alguma parece devernem substituir nem. 'eompensar. Ji1-o tanto mais que nãose consentiria em; .ada abandonar nem a despojar-se decoisa alguma, ar .es de ter verificado a insuficiência oua .indignidadr, ~.q seu vestuário e da atmosfera que serespirou até aqui, vestido ao acaso.

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ADOLPHE APPIA.

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" ~II ~,

Chexbres, Maio de 1919 . '.'.l

Para voltar ao que chamamos a nossa documenta­ção, é bem certo que um guia bastante conhecido nãovos facilitará uma viagem descrevendo-vos o país queides percorrer, mas dando-vos, antes, noções exactas,noções técnicas. A v6s compete, depois, saber se valeuou não a pena viajar.

Aqui, o autor é, ao mesmo tempo, guia e viajante eeste estudo tem este duplo carácter, que implica umaresponsabilidade e uma confidência, um conjunto téc­nico e um roteiro. Mas, como se trata mais particular­mente de uma questão de estética, o carácter técnicoimpõe-se sempre. ]i} esse o seu ef'atum», pois a arte nãose descreve - e eis porque este estudo é trágico.

O leitor perdoará antecipadamente ao autor, não es­quecendo que a maior e mais profunda .alegria que aarte possa conceder-nos é de essência trágica; porque,se a arte tem o .poder de nos fazer «viver» a nossa vida,sem nos impor simuljânearnente os sofrimentos, elapede-nos, em contraparijda - .para a sentir com alegria

'1,- que soframos antes.

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A linguagem dá-nos, muitas vezes, a explicação dosnossos pr6prios sentimentos e a chave de certos proble­mas. Servimo-nos dela com inconsciência; sem dúvida, e,se mesmo assim ela nos comanda, é imperfeitamente e onosso pensamento escapa de uma maneira lamentável fisua benéfica autoridade. Eis um exemplo que interessao objecto deste estudo.

Sob o vocábulo Art~, agrupamos diversas manifesta­ções da nossa vida; e, ~,\\ra evitar o trabalho de as situar

~ \

com precisão, a Iínguage] vem em nosso auxílio. Temos,assim, as belas-artes: pilo ra, escultura, arquitectura.E não dizemos: a arte da\\.~ intura, a arte da esculturaou da arquitectura, senão ~\c aso de uma análise todafeita de reflexão. Na linguag~.\1- usual, basta o simplesnome dessas artes: Dizemos, tàt:~rm, a poesia e não acolocamos, no entanto, entre as ~ elas-artes, o que éjusto, porque a beleza das palavras' ( da sua ordem sóage indirectamente sobre os nossos \~ntidos. Dizemostambém a arte poética, que implica m~~ ~ especialmentea técnica do verbo, sem se pretender colocar nem esta

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técnica nem o seu resultado estético na noção de belas­-artes. São nítidas estas distinções; só temos que torná--las conscientes cada vez que nos servimos delas.

Existe, porém, uma forma de arte que não encontrao seu lugar nem entre as belas-artes, nem na poesia (ouna literatura) e que não constitui menos uma arte emtoda a força do termo. Pretendo referir-me à arte dra­mática. Uma vez mais, a linguagem procura orientar­-nos. A palavra dramaturgia, que empregamos raramen­te e com um tanto de repugnância, está .para a arte dra­mática o que, inversamente, a arte poética está para apoesia, diz respeito exclusivamente à técnica do drama­turgo e, até, apenas a uma parte dessa técnica.

'E is, pois, uma forma importante.da arte que não po­demos denominar sem fazê-la preceder da palavra arte.-Porquê? e'

I

Em primeiro lugar, a extreJ/'a complexidade dessaforma, resultante de grande r/lJ.mero de meios de quedeve dispor para manifest~r-'.:3 numa expressão homo­génia. A arte dramática cc', J.~orta, antes de tudo, umtexto (com ou sem música', ,I é a sua parte de literatura(e de música). Esse text/1é confiado a seres vivos queo recitam ou o cantam, : 'epresentando a vida em cena; éa sua parte de pintur-i e de escultura, se exceptuarrnos

I

a pintura dos cenf./íos, de que nos ocuparemos maisadiante. Enfim~aLrqUitecturapode ser também mais oumenos evocada' in torno do actor, tanto como em tornodo espectador, orque a sala faz parte da arte dramá­tica, pelas suas exigências ópticas e acústicas. No en-

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tanto, aí, a arquitectura é absolutamente subordinadaa fins precisos, que só lhe dizem respeito indirectamente.'A arte dramática parece, pois, ir buscar às outras 'artesalguns elementos. Poderá ela assimilá-loa ?

Devido a esta complexidade, a imagem que a artedramática sugere em nós é sempre um pouco confusa.Detemo-nos, de repente, na composição de um texto emque as paixões humanas sejam expressas de maneira quepossamos partilhá-las. Depois de nos demorarmos ummomento neste ponto - sem dúvida essencial- senti­mos, com certo embaraço, que P?Ia além ?O texto, qual­quer que ele possa ser, se encontra ainda qualquer coisaque faz parte integrante da arte dramática; qualquercoisa de que não temos ainda a noção exacta e à qualestamos inclinados a não ligar 'muita impor-tância, pro­vàvelmente, porque não fazemos dela uma ideia clara.Chamamos, sumàriarrente, a essa qualquer coisa a ence­nação e fechamos deI\essa o parêntesis que mal tínha­mos aberto para lá col\çar dentro esta noção delicada ,8

embaraçosa. Tal como f(.~emos com certas tarefas f'asti­diosas, abandonamos a el~~nação aos especialistas, paranos voltarmos, com uma n\-\~~atr'anquilidde, para o textoda arte dramática, como sene ,ele ao menos, repousantee oferecendo-se, nessa qualr \ ade, generosamente, aonosso sentido critico. Procede?\:~o desta ~aneira, nãoconservamos nós, apesar de tudo, .\~ sentimento de mal­-estar? Será assim que encaramos ~. frenté a noção dearte a que chamamos arte dramática'~~, sE( temos essacoragem - tal como o sr. Emile Fagu'b~ no, seu belo li..vro «o drama antigo, o drama moderno; - não teremos

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nós consciência do momento exacto em que vai faltar­-nos o fôlego e, tais srs. Faguet, não abandonaremos,desde que isso nos pareça decentemente possível, umaparte da nossa bagagem, para só consagrarmos a nossaanálise aos volumes fàcilmente portáteis?

O objectivo desta obra é, precisamente, a análise da­queles factores da arte dramática sobre os quaisdeslizamos demasiado prudentemente; e isso com o fimde obter noções claras e próprias para se tornaremobjecto de reflexão e de especulação estética convenien..tes ao progresso e à evolução da arte.

Um afo~ismo dos mais perigosos induziu-nos e conti ..nua a induzir-nos em erro. Homens dignos de fé afir ..maram-nos que a arte dramática era a reunião harmo..niosa de t01as as artes; e que, se ainda não foi possívelconseguir-se, deveria tender para a criação, no futuro,da obra de arte integral. Chat_·.~aln, até, provisória..mente a esta arte: .a obra de art ~ do futuro.

-f;'Isto é sedutor, sedutor pel~ijimplificaçãorepousante

que s~ nos oferece, assim, e a}0essamo-nos a aceitar estedisparate. Coisa alguma na~Íj~sa vida artística modernao justifica. Os nossos co#ertos, as nossas exposições,a nossa arquitectura, a r!.Jssa literatura, os nossos pró ..prios t~atros o de~:menY~~. Sentimo-lo, quase o sabemos,e persistimos' em rep ç;:Jsar comodamente o nosso sentidocrítico nessa almoy,<-êia de preguiça, com risco de nadacompreender de r/io importa que manifestações artísti ..cas; porque é ej/fdente que, falseando a este ponto umadefinição, colocando nela objectos que não têm nada lá

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que fazer, falseamos, ao mesmo tempo, o nosso julga­menta sobre esses objectos considerados isoladamente.- Se a arte dramática deve\ser a reunião harmoniosa,a síntese,suprema de todas as artes, já não compreende­mos nada, então, de cada uma dessas artes e, muito me­nos ainda, da arte dramática: o caos é completo.

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Pela primeira vez) na história do Teatro) o problemada arte dramática é posto. nestes termos revolucionários.15 com a anuiaciosa negação de que a arte dramática é asíntese harmoniosa de todas as artes) que nasce) verda­deiramente) o Teatro Moderno (teõricaanente e no sen­tido de uma estética de cena) tendo ainda em considera­ção certos conceitos diametralmente opostos) como ve­remos adiante) de Gordon Oraig)d

Evuieniernenie, o problema j i de tal ' maneira com ­plexo) que não é fácil ab'ibuirt) este ou àquele uma in­fluência mais decisiva para ::brientação da traject6ri:aevolutiva do Teatro Mod8'NJ1! Sequer é esta o ocasiãode analisá-lo profundame1lj. .e, para justificar a nossapr6pria opinião. .rI

Pelo conjumio de pri'Mípios a que recorreu e pelas, I

experiências em. que f '/ apoiou) Jacques Oopecu, C01n afundação do Vieux ',.Jolombier, em 1913) deve conside­rar-se o marco ozrJartir do qual uma longa teoria deconcepções estétj Jas) provenientes das mais diversas ori­gens) converge/h) pela primeira vez) para estruturar alinha de força do Teatro Moderno.

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E possível) sem. dÚ'l>ida) recuar ainda até o final doséculo passado e determo-nos) por exemplo) sobre a obrade Antoine. Podemos) até) colocar esse marco. na' datamemorável de 22 de Junho. de 1897) quando OonsiomimStanislavski e N emirovitch Dantchenkà se reuniram norestaurante moscovita «o Bazar Eslaroo», das duas datarde até a manhã do dia seguinte) para assentarem asbases da fundação do Teatro de Arte -de Iâoscooo. «Umaconjerência internacional não discute graves·problemasde Estado com mais precisão que' nós discutimos as ba­ses do Teatro futuro) as questões de arte pura) os nos­sos princípios) a estética teatral, a -i écnica, a organiza­ção) o repertório». Na verdade) como salienta SylvainDhom/me (La Mise en Scêne Contemporaine) definiram)por mil pormenores práticos) um' espírito". «N emur ovi t ch.Dantchenko e. Gonstantin Stanislavski parecem possuí­dos de um amor qu.as~\reZigiosopela sua arte. um fervorprofundo e metódico. t:,~omo religiosos e como', uesos, de­sejando criar um Teatr\\' fundem uma ordem e esiobete-

,\

cem regras de um. convelrtto. Para eles) as palavras Arte)Criação, Público) têm um\.~!JaZor absoluto e sagrado. Ntiosabem ainda como. será o &~tl(, Teatro) como será gerado.Mas estabelecem os planos Ó-~um edifício espirüual: nocentro) a obra (dotada de unii..~missão e de uma mensa­qem.), ao serviço da obra) o act<..{,:', Porque é encarreçaâode transmitir a obra) porque é ~~jnstrume1J-to de con­tacio entre o homem e o. Teatro) o àé~c:r será ',a estruturoda construção. Porque os f1.tndadores '"if. Teatro de Artetêm urna alta concepção da dignidade lÁ'1< Teatro) quere­rão tamb ém a dignidade daqueles que ° ser~em. O seu

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primeiro cuidado será) portanto) defínir um estado deespírito antes de urna estética) instituir regras morais :No domínio da ética- geral, consideramos acima de tudoque, para exigir dos actores o respeito das leis e dasconveniências obrigatórias às pessoas cultas, é preciso,em primeiro lugar, oferecer-lhes condições humanas ,. .Tivemos isso em conta na nossa memorável entrevista eresolvemos, que o primeiro dinheiro reunido para o ape­trechamento da nossa futura casa serviria, antes de tudo,para assegurar aos actores uma vida material (enten­diam por isso não só o salário dos comediantes) mas tam­bém o conforto nos bastidores 6 nos camarins) conformeas exigências da profissão, da arte, da cultura e da cria­ção.

A revolução saída da fundação do Teatro de Arte deMoscavo revestiu-se, fundamentalmente) de caracterís­ticas éticas, Em resumo) do quta urna profissão, Sta­nislavski quis fazer um upost ,-ado. Simplesmente) obinómio Stanislavski-Dantch&n ,:' não ivnha uma teori-

./1

zação, própria ou alheia) em -ue baseasse a revoluçãoestética que só Viria a opeg/,.-se) alguns anos depois)com os estudos 'dos CM ' y~ teóricos do Teatro) espe ..ciatmente Adolphe Appia 'Gordoti Graig.

, "". termos em que Arr põe o problema da arte âra­truitioá - e verem~) <;trnte} corno) apesar de uma opo­sição irredutível em I/Jlação aos conceitos de Orau}, am­bos tendem para oj!t.esmo objectivo bem definido - sãocompletamente c;;htrários a tudo quanto se pensava epraticava até o {fomento em que os divU;lgou (em artigose opúsculos, antes da publioação de «A Obra de Arte Vi.

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»a «), Ê Copeau quem está atento à espantosa teorização- à decisiva teorização - que se prooessa. «No domíniodo futuro oénwo do Teatro) oomo salienta Maurioe Eurtz(Jacques Copeau-Biographie d'un Théatre) dos seusprinoípios e das suas teoriae, dos seus artífices e dosseus mestres) dois grandes nomes dominavam todos 08

outros: Gordon Craig e Adolphe Appia».Foi Jacques Dalcroze, que tr07.J.,Xe a «Rítmica» ao

Teatro) quem apresentou Oopea üa Appia, o «hom em eloscubos», corno dizia o fundador do Vieux Colombier e cu­jas ideuis o influenciaram profundamente - e foi Appiaquem ensinou a Oopeaú que avançava e-m terreno virgem.E) 'assim foi que Oopeau «deixou a Suíça com as esperam­ças de um pioneiro».

N a verdade) o caos completo deixava) ainda) a 00­peau o terreno virgem em que começou a construir o ex­traordinário edifício dof(eatro Moderno) sobre os funda­mentos da teorização d6~t1ppW e Oraig.

(Uma advertência e iY;m esclarecimento significativoa fechar este primeiro corr2r:.ntário,' a teorização ~ Aâol­phe Appia nunca chegou a l~t:rtugal e já foi ultrapassadaem todo o Mundo) como se p\r~á deduzir das notas se-guintes). ~~\.

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Que é, então, que diferencia, tão totalmente, cadauma das nossas artes, mesmo a literatura) dos factoresque compõem, na sua subordinação recíproca, a arte dra­mática? Examinaremos, deste ponto de vista) essas ar­tes.

Em circunstâncias favoráveis de plástica, de luz, decores) a vista da cena podo sugerir-nos um trecho de pin­tura) um grupo escultural. E~C'rcunstânCiassemelhan­tes, no que respeita à declama /.o (ou ao canto e à or­questra) aproximamo-nos, por ~ instante-um instanteapenas-i-do prazer puramen literário (ou puramentemusical). Sentados confo ~velmente e num estado depassividade completa, ne ~equer notamos a arquitectu­ra da sala ou, pelo meno escapa aos nossos olhos; e asficções fugitivas dos ce .ários só indirectamente evocama arte do volume e da )ravidad€. Confusamente, devemosreparar na presenr / ,Ide um elemento desconhecido queescapa à nossa re .l€xão. impondo-se ao nosso sentimento--dominando o .(osso sentido receptivo de espectadores.Entendemos, i:hamos, ouvimos e contemplamos, reme­tendo para mais tarde o exame do mistério. Ora, mais

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A OBRA DE ARTE VIVA

tarde, a reconstituição integral da representação fatiga­-nos; renunciamos a procurar, nas nossas recordaçõesdemasiado exclusivamente votadas ao conteúdo inteligí­vel da peça, o que, durante a sessão, nos perturbou, esca­pando-nos sempre. E, uma nova experiência nos reencon­tra semelhantemente distraídos, até termos renunciadoao inquérito, em definitivo.

Entretanto, estão abertos museus e exposições; a ar­quitectura, a literatura, a música são fàcilmente acessí­veis; adejamos de uma para a outra, julgando queser­vemos tesouros e, no entanto, sem serenidade é, digamo­-lo francamente, sem real felicidade.

A arte dramática dirige-se, corno.as artes representa­tivas, aos nossos olhos, aos nossos ouvidos, ao nosso en­tendimento - em suma, à nossa presença integral. Por­que reduzir a nadai - e~antecipadamente - qualquer es ..forço de síntese? Sabei~~o os nossos artistas informar--nos? '.\

O poeta, de caneta na ~l?io, fixa o seu sonho no papel,Fixa o ritmo, a sonoridade\!\ as dimensões. Dá a ler, adeclamar, o que escreveu; e,~~e novo, fixa-se no aspectodo leitor, na boca do deG1am~or. - O pintor, com ospincéis na mão, fixa a sua visãb tal como a quer inter­pretar; e a tela ou a parede detet minam as dimensões;as cores imobilizam as linhas, as ' v i12~a:ções , as luzes ·e assombras. - O escultor pára, na sua vvisão interior, asformas e os seus movimentos, no mort~nto exacto emque o deseja; depois, imobiliza-as no badt'J, na: pedra ouno bronze. - O arquitecto fixa) minuciosamente, pelos

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ADOLPHE APPIA

seus desenhos, as dimensões, a ordem e as formas múl­tiplas da sua construção; depois, realiza-as no materialconveniente. - O músico fixa nas páginas da partituraos sons eo seu ritmo; possui mesmo, em grau matemá­tico, o poder de determinar a intensidade e, sobretudo,a duraçãd; enquanto o poeta não poderia fazê-lo senãoaproximadamente, pois o leitor pode ler, à -sua vontade,depressa ou devagar.

Eis, pois, os artistas cuja actividade reunida deveriaconstituir-' o apogeu da arte dramática: um texto poé­tico definitivamente fixado; uma pintura, uma escul­tura, uma' arquitectura, uma música definitivamente fi­xadas. Coloquemos em cena tudo isto: teremos a poesiae a música que se desenvolverão no tempo; a pintura, aescultura e a arquitectura que se imobilizam no espaço,e não se vê de que maneira conciliar a vida pr6pria decada urna. delas numa harm~Ojsa unidade!

Ou haverá um meio de o f i er? O tempo e o espaçopossuirão um elemento concili .' t 6r io - um elemento quelhes seja comum? A forma n espaço pode tomar a suaparte das durações sucesso íLs do tempo? E essas dura­ções teriam ocasião de s ropagar no espaço? Ora é aisto mesmo que o proble a se reduz, se queremos reuniras artes do tempo e as rtes do espaço num objecto.

No espaço; a d 'ração exprimir-se-á por uma sucessãode formas, porta o, pelo movimento. No tempo, o es­paço exprimir- -á por uma sucessão de palavras e desons, isto é, p~r durações diversas que ditam a extensão

.do movimento.

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A OBRA DE ARTE VIVA

o movimento, a mobilidade, eis o princípio director econciliatório que regulará a união das nossas diversasformas de arte, para fazê-las convergir, simultânea­mente, sobre um ponto dado, sobre a arte dramática: e,como é único e indispensável, ordenará hieràrquica­mente essas formas de arte, subordinando-as umas àsoutras, tendendo para uma harmonia que, isoladamente,teriam procurado em vão.

Eis-nos no fulcro da questão, a saber: como aplicaro movimento àquilo a que chamamos belas-artes, quesão, pela sua própria natureza, imóveis? Como aplicá-loà palavra e à música, sobretudo, cuja existência se de­senvolve exclusivamente no tempo e que .são, portanto,igualmente imóveis em relação ao espaço? Cada umadessas artes deve a, sua perfei.ção, o seu acabamento, àsua própria imobilidade; não perderão elas a sua razãode ser se as privamo{~.dela? Ou, pelo menos, não será oseu valor reduzido a p)uca coisa?

1-.

E uma segunda quesião se impõe, agora, cuja soluçãodeterminará as nossaaín-iestigações e dirigirá a nossademonstração. O movirnen.ji não é, em si, um elemento;o movimento, a mobilidade, ~~ um estado, uma maneirade ser. Trata-se, pois, de eXl:.{llinar que elementos dasnossas artes seriam capazes de abandonar a imobilidadeque lhes é própria, que está no se '1- carácter.

),

Ganharemos, talvez, noções úteis a este respeito, dei­xando, por instantes, a forma de ca~ uma das nossasartes - das artes que, unidas, como séí.afirrna, criam aobra de arte suprema - e consideremos essa reunião

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ADOLPHE APPIA

como já realizada em cena. Admitamos o caso. Isso obri­ga-nos a definir, antes de tudo, o que é uma cena.

A cera é um espaço vazio, mais ou menos iluminadoe de dimensões arbitrárias. Uma das paredes que limi..tarn esse espaço é parcialmente aberta sobre a sala des­tinada aos espectadores e forma, assim, um quadro rí­gido, para além do qual a ordenação dos lugares é rigi­damente fixada. S6 o espaço da cena espera sempre umanova ordenação e, por consequência, deve ser apetre­chado para mudanças contínuas. :m mais ou menos ilu­minado; os objectos que lá se colocam esperam uma luzque os torne visíveis. Esse espaço não está, portanto, dequalquer maneira, senão em potência (latente) tantopara o espaço como para a luz. - Eis dois elementosessenciais da nossa síntese, o espaço e a luz, que a cenaconrem em potência e por definição.

Examinemos, agora, o mov:ti'mto sobre a cena. Estáno texto e na música - as "s do tempo - exacta­mente do mesmo ponto de vist aos objectos im6veis noespaço: é o elemento de Iigaçâ O, o único possível. :m neleque se opera a síntese anun ..da. Resta saber como.

O corpo, vivo e móvel, : actor é o representante domovimento no espaço. O eu papel é, portanto, capital.Sem texto (com ou sem úsica) a arte dramática deixade existir; o actor é o portador do texto; sem movi­mento, as outras ary{ não podem tomar parte na acção.Numa das mãos, o actor apodera-se do texto; na outra,detém, como ntyh feixe, as artes do espaço; depois,reúne irresistlvélmente as duas mãos e cria, pelo movi­mento, a obra de arte integral. O corpo vivo é, assim,

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o criador dessa arte e detém ° segredo das relações hie­rárquicas que unem os diversos factores, pois é ele queestá à cabeça. ]j'] do corpo, plástico e vivo, que devemospartir para voltar a cada uma das nossas artes e deter­minar ° seu lugar na arte dramática.

O corpo não é apenas móvel: é plástico também. Essaplasticidade coloca-o em relação directa com a arquitec­tura e aproxima-o da forma escultural, sem poder, noentanto, identificar-se com ela, porq:ue é móvel. Por ou­tro lado, o modo de existência da pintura não pode con­vir-lhe. A um objecto plástico devem corresponder som­bras e luzes positivas, efectivas. Diante de 'um ..raio deluz, de uma sombra, pintados, o corpo plástico conserva­-se na sua própria atmosfera, nas suas próprias luz esombra. :m o .mesmo que se passa com as formas indica­das pela pintura; essas formas não são 'Plásticas, não.possuern três dlmensõew; o corpo tem três; a sua aproxi­mação não é possível. ~~s formas e a luz pintadas nãotêm, pois, lugar na cena1 t o corpo humano recusa-Mo

Que restará então, da pintura, uma vez que, apesarde tudo, parece que ela p.tRtende a sua parte na arteintegral? A cor, provàvelmer'te. Mas a cor não é apaná­gio exclusivo da pintura; poderia mesmo afirmar-se que,na pintura, a .própria .cor é fictícia, na .medid'a em quelhe compete imobilizar um instante de luz, sjem poderseguir o seu raio nem a sua sombra no seu curso. Aicor, de resto, está tão intimamente ligada à luz, queé difícil separá-las; e,. como a luz é móvel no mais altograu, a cor tem de o ser igualmente. Eis-nos: longe dapintura! Porque se a cor é nela uma ficção, também

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a luz o será; e tudo quanto a pintura pode pedir à verda­deira luz é torná-la visível- o que não tem nada quever com a vida luminosa. Um quadro bem iluminado éum conjunto fictício de formas, de cores, de claridadese de sombras, apresentado sobre uma superfície plana,que se colocou o mais favoràvelmente possível em evi­dência e não na obscuridade. E é tudo.

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Copeoni ohamou a Appia o homem dos cubos. N {ia é,evidentemente, por mero acaso, que a sua doutrina­ção estética da arte viva covncuie com o advcnio docubismo} cujos artistas mais representativos punhamtromsceruientes problemas de forma-espaço e de forma­-iem/po, perante as limitações impostas pelo espaço aãuoe dimensões e pela fixação no tempo de que falaAp-pia, E o cubismo ar~oobriu, segundo Albert Gleizes,uma organização rítmi'ia da superfície. «Antes) escreveGleizes, a su/periíoie nd:.~. passava duma zona de projec­ção sem valor vntrineeco, na qual se descrevia uma rel:a­ção de coisas fixas, deitando mão do artifício da ilusãoperspectioa; era urn. fragmento do espaço perceptivo( ...) A pintura é a arte de dar vida a urna superfícieplana. A superfície plana é um mundo bidimensionaZ.Através destas duas dimensões} ela é verdadeira. Enri­quecê-la com. uma terceira sígnifica querer mudá-la nasua verdadeira essência: o resultado será apenas a imi­tação da nossa realidade material tridimensional} pormeio de artifícios da perspeotiva e da ilu,minação ( ...)Aspirando ao eterno, o Cubismo despe as [ermas da sua

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realidade fugidia) do pitoresco) e insere-as na sua p1J.,­reza geométrica ( ...) Dos pontos de partida iniciais) fi­cou apenas a intenção de descobrir a afinidade das jor­mas entre si. A penetração das superfícies e dos planosocupava ó espírito dos pintores. O estudo das dimensõesaiormenioroa-os. Sentiam instintivamente que era aí queresidia todo o segredo) mas mostraram não o compreen­

der) ao falarem d8 uma quarta dimensão (o tempo) enessa imcompreeneão se iniciou a segunda fase doÔub'iSmo ( ...) Os elementos dos" 'objectoo, que "estavamreduzidos ao denominador comum das proporções) e as

cores) cujas proprias diferenças não eram mais do quea produção da luz) transformaram-se num, ritmo cir­cular contínuo para uns olhos aos .quai« a sua naturezamóvel era devolvida. Delaunay anunciava) em 1913) umnovo objectivo. - O descritivo da aMlise formal (cubis­mo analítico) desapareceu nele iuma nova forma come­

çou a girar como que impercf~ivrçlmerl,te)uma formaque airuia nos era desconlieoidà. O que era im6oo1 tinha~

-se animado. -'Por detrás do seu motivo de monótonoscirculos coloridos) para além de todo o modernismo ecci­bicionisia, adivinhava-se a proximidade do céu) o. ele­mento temporal da criação) acabado) definido) em rota­ção) astronômico, Delaumaq brincava com luas ·e sóis-como uma criança maravilhada».

Quer dizer: a pintura tem oonsciêncúz das suas li­mitações) como arte do espaço ·que 'não pode libertar-sedas duas dimensões nem explorar esse espaço no sentidodo movimento. E) quando parece ter conseguido con-

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qu.istar as duas dimensôes de q'11'e 'oareoe, é apenas perailusão - é ainda e sempre ficç.ão no plano.

Kand'insky 'buscava} ainda) uma nova ficção: o som:«Oaâa forma tem um conteúdo (som interior). Não há[orma alguma) como de resto nada existe no Mundo)que nada nos diga. Tudo o que é «morto» vibra) não só.as poéticas estrelas) a lua) as [lorestoe, 'as [lores, mastambém um botão de ouecas branco que surçe nuo»charco no meio da rua.: Tudo. tem uma alma oculta). - . . .que é mais vezes muda do que Ioquae... mesmo; qualquerponto parOflo ou em -movimenio (linlui) ( ...) ,As cores). . . .antes de mais, têr(l, um efeito puramente fi$ic.o) isto é) osolhos são enfeitiç~08 pela:' sUa beleza e por ouiro« ca­racteristicas que elas possuem, - Á beleza dq,; :cor e da[orma (a despeito âo que afirmam os esieiae puros etambém os naturalistas) que aspiram principq,lmente àbeleza) não é o fim úl:Jf,mo da arte. 'Provocard) sem dú­vida} uana 'vibração do~;\.nervos) · que todavia a eles ficaeseencuümenie límitada.:·!-lJlas a impressão 8ttperficialda cor pode evoluir para u1!1' estado emotivo. - Do efeitoelementar nasce um outro mais profundo e este dá ori­gem a uan. abalo emocional. - E) numa espécie de eco)outros campos espirituais soam também ( ...) A cor é u?nmeio de influir directamente na alma. A coré a tecla.Os olhos são 08 modelos. A, alma é um piano com muitascordas. O artista é a mão que põe a alma em.vibração)por meio desta ou daquela tecla. Da mesma nwneira) aforma, quando é também inteiramente abstraoia e se. .assemelha a uma forma geométrica) tem o seu som in-ierior»,

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Foi no desenvolvimento deste conjunto de ídeias queos pintores foram chamados ao Teatro para s1ibstitui­rem o artesanato rotineiro que dominava a cenografia.Lruqné-Poe 'chumcns, ao teatro de l)Oeuvre) Vuillard) Bon­narã, Mautice Denis) 'I'oulouee-Lauirec. Pouco tempodepois) Jaoques Rouché socorria-se da colaboração deMaxime Dethomas, Drésa, Dunoyer de Seqoneao. E nãotarda que se vejam os nomes de Broque, Picasso, Ma­tisse, Deraim, Dufy) Marie Laurencun, Rouault, Uirilloe Ohirioo, entre outros) a assinar algumas das maiscélebres realizações cenográficas dos palcos parisien­ses. A verdade) porém) é que era o nome e o estilo in­confundível de cada qual que se impunham no espectâ­culo, muitas vezes mais do que a própria peça) do que aprópria representação. E) em vez de procurarem o eu ..volvimento que a doutrinação estética dos mestres teo­rizant:s exigia ~ artes 8Ub~diár~ para o Teatro)através da conquista das. duas /limensoes ausentes (pro­fundidade e tempo) os pintores coloconn-nos «00 pre­sença de uma. pcleta voluntàriamente restrita que fazjogar as' suas harmonias segundo uma gama limitada:(Raumonâ Oogniat). Oompunham o.conjunto precisa­mente 'como um quadro em que desenvolviam o tema deuma cor dominante. Procediam como se criassem numatela ampliada às proporções da cena. E a pintura criouabismos ainda mais proiunâos entre a cenografia desuperfícies planos ( em que o intérprete representadiante de em vez de dentro de) e a plástica viva doactor.

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Mas as belas-artes) a duas ou a três dimeneões, have­riam de evoluir para uma integração na arte viva. RoberiEdmond Jones, que foi um dos mais notáveis artistasplásticos do Teatro americano) escrevia (The DramaticImagination) : «Todas as artes conãueem para esta novasíntese de actualuiade e sonho. As nossas formas pre­sentes de drama e Teatro não são adequadas para expri­mir a mais recente e dilatada oonsciência da vida. Masuma nova dimensão ser-lhe-á acrescentada e o eternoobjectivo do drama - o conflito entre o homem e o seu,destino - adquirirá um novo significado».

Esta nova dimensão encontrá-la-ia Robert EdmondJones na talking picture (pintura que iau»), 'aliás pro­fundamente influenciado por Oraig (na concepção âa«formas e das perspectivas), como pode concluir-se peloestudo das maraoilhosae reproduções dos seus modelosem «'I'he Theatre of Roberi Edmond Jones», obra enri­quecida com uma cronoloqui de Ralph Peruileton e esiu- -:dos de John Mason Broum, Mary Hall Furber, Eenmeth. ..tâaoüoioon, Jo Mielziner) DCYtW-ld Oenslaqer, Lee Simon­son e Stark Young.

Jo Mielziner) na obra citada) descreve Bobb1j Jonescomo «um sonhador) mas também um realizador». Eprojeta, ainda. O idealista que ele era muito se aproxi­mava dó visionário. Por isso deixou uma obra sobre aqual não podemos deixar de nos debruçarmos atenta­mente) na medida em que devemos considerá-lo um, con­tinuador (prático) de Appia.

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A ausência de plástica priva a pintura de um dos ele­mentos mais poderosos, mais maravilhosamente expres­sivos da nossa vida sensorial: a luz. E pretendiamos unirorgânicamente a pintura ao corpo vivo! Procuramosconferir-lhe um lugar na hierarquia cénica! 'Como se aqualidade de bela-arte nos obrigasse a acolhê-la necessà­riatnente na composição da arte integral; sempre enga­nados, como estamos, pela idéia r que essa arte repre­senta a síntese harmoniosa de t9Õas as artes.

:m evidente, porém, a falsidade grosseira deste afo­rismo. - Ou a pintura renuncia à sua existência fictíciaa favor do corpo vivo, o queequivale a suprimir-se a siprópria: ou o corpo tem de renunciar à sua vida plás­tica e móvel, dando à pintura uma posição superior àsua, o que é a negação da arte dramática 1,

Mas será verdadeiramente necessário renunciar com­pletamente às sugestões que a pintura nos dá ? Lembre­mo-nos de que as suas restrições são .para ela uma ga-

1 A encenação corrente optou pela pintura: será. inútil dizê­-lo? (N. do A.)

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rantia de perfeição e essa perfeição imobilizada permi­te-nos contemplar, com vagar, um estado da natureza,da vida exterior, muitas vezes fugitivo} e observar asrelações múltiplas e as graduações. Além' disso, esse ins­tante foi escolhido cuidadosamente entre todos os ou­tros: é um espécime de escolha) o que implica da partedo pintor um género de interpretação ao qual a plasti­cidade m6vel do corpo vivo nunca 'poderá pretender. Va­mos mesmo mais longe. A pintura não imobiliza apenasum estado fugitivo do mundo exterior; procura expri­mir, por meios subtis que lhe são profundos, o estadoprecedente e o que se lhe segue, ÓU que poderia verosi­milmente seguir-se-lhe. A pintura contém, portanto, omovimento em potência; não expr~sso no espaço ou notempo, mas pela forma e pelas cores. E é por isto queestas devem ser ficticias . Começamos a duvidar do pa­pel que a pintura desempenha na arte dramática. Essepapel é indirecto; mas nem por ser indirecto é.destituídode certa importância. A obra do pintor determina M res­trições que a mobilidade nos impõe) e torna-as sensí­veis. Vemo-nos forçados a renunciar à perfeição, ao aca­bamento, que s6 a imobilida.de confere; e se; para nosiludirmos sobre esse ponto, imobilizamos, por um ins­tante, a representação dos actores, sacrificamos o mo­vimento sem, com esse sacrifício, obtermos a menorcompensação. Eis porque um «quadro vivo~> repugnasempre ao artista, porque dá a imagem congelada domovimento, mas sem .o seu contexto.

E a escultura? Tem de comum com a pintura o factode imobilizar um instante escolhido do movimento e

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possui, talvez, num grau superior, o poder de exprimir o'contexto desse movimento. Tal qual como a pintura, re­presenta um espécime"de escoiha e tem as qualidades daperfeição, do acabamento. Mas a diversidade infinita daluz, das sombras e das cores fiotíoias é-lhe recusada. Em

.compensação, tem"a plasticidade que chama a luz efec­tíva. Eis, não há dúvida, uma larga compensação! Doponto de vista em que nos colocámos, a escultura é' detodas as artes a que mais interessa, pois o seu objectoé o corpo humano 1 . A única coisa que lhe falta é a vida,portanto, o movimento, que sacrifica à sua perfeição.Mas esse é o seu único sacrificio. Por outro lado, umaestátua pintada, como eram as dos gregos, não tem nadaque ver com a pintura; é apenas colorida e não pintada.'A escultura não tem contacto com a pintura. - A arqui­tectura é plástica; tanto como a escultura, chama a luzefectiva e pode ser colorida. É, portanto, nesse sentido,da mesma' ordem da escultura. O fresco, expressão su­prema da pintura', eprovàvelmente a única que deveria"permitir-se, não saberia iludir-nos; oferecendo à pinturasuperfícies planas, nem por isso o arquitecto entra emcontacto 'humano com ela; as linhas, os relevos de umaconstrução enquadram as ficções pintadas e não as fa­rão valer senão ' com a condição de se diferenciaremabsolutamente. Sabemos que os «trompe-l'oeíl» onde a

1 Qualquer outro objecto da escultura ressalta da arquítec­tura, de que é um dos ornamentos. O anímallsta é apenas um de­

, rívado do escultor, sem rivalidade possível, ainda que a sua arteseja notável. (N. do A.)

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pintura se esforça por continuar, por ampliar as linhase a perspectiva arquitecturais são de um gosto deplo­rável; tal como uma música executada diante de umquadro para nele se identificar ou qualquer outra jus­taposição ingénua de elementos de arte estranhos unsaos outros. A arquitectura é a arte de agrupar as mas­sas no sentido da sua gravidade; a gravidade é o seuprincípio estético; exprimir a gravidade numa ordemharmoniosa, medida à escala do corpo humano vivo edestinada à mobilidade desse corpo, tal é o objectivo su­premo da arquitectura. - A arquitectura gótica expri­me bem a gravidade da pedra, mas pela sua negação;entra nisso um esforço moral, de que n0l' apercebemosem tudo em que essa negação não tem nada de moral aexprimir e Se torna supérflua. Que diríamos nós de umasala de baile ou de uma sala de conferências em estilogótico? Além disso, um edifício gótico que fosse cons­truído em cartão ou em madeira seria uma monstruosi­dade, pois a vitória sobre a gravidade - única justifi­cação de um estilo depois de tudo desviado - não seriamais expresso pela matéria da construção. Nem é bompensar nisso 1, Esta arte da arquitectura, em contactoestreitamente orgânico com o corpo humano, não exis­tindo, até, senão ·para ele, desenvolve-se no espaço; sema presença do corpo, 'permanece muda. A arte do espaçopor excelência, é concebida pela mobilidade do ser vivo.

1 As construções em ferro s6 lndlrectamente estão sob a leida gravidade e não ressaltam, portanto, senão indfrectamente, .da,estética especial da arquítectura. (N. do A.)

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Ora nós vimos que o movimento é o principio conciliató­rio capaz de unir formalmente o espaço e o tempo. Aarquitectura é, portanto, uma arte que contém, em po­tência, o tempo e o espaço.

Notárnos o carácter de ficção, de acabamento defini­tivo, de cada uma das nossas artes; depois, classiflcámo­-las em artes do tempo e artes do espaço. Encontrou-seo movimento como o único elemento conciliatório entreas duas categorias, uma vez que ele une o espaço e o tem­po na mesma expressão. O corpo humano, vivo e m6vel,representa, portanto, em cena, ° elemento conciliatórioe deve, nessa qualidade, obter ° primeiro lugar. A suaplasticidade aproxima-o da escultura e da arquítectura,mas afasta-o definitivamente da pintura. Além disso,vimos que a. plasticidade chama a própria vida da luz,enquanto ~ pintura é apenas a sua representação fictí­cia. Posto isto, resumamos ainda os dados precedentes,mais especialmente relativos ao que chamamos belas­-artes, artes do espaço. Todas três - pintura, escultura,arquitectura -'são imóveis, escapam. ao tempo. A pin­tura, não sendo plástica, escapa, além disso, ao espaço 8,

através dele, à luz efectiva. Os seus grandes sacrificiossão compostos pelo poder de evocar o espaço numa f'ic­ção de escolha; e a sua técnica autoriza-a a um númeroquase ilimitado de objectos que ela tem meio de fixarsugerindo o contexto do instante escolhido. A sua parti~·

cipação na ideia de duração é, de qualquer maneira, sim­bólica. - A escultura é plástica, vive no espaço e parti­cipa, assim, da luz viva. Como a pintur-a, pode evocar o

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contexto dos movimentos da sua escolha, que ela imo­biliza; e, não apenas num símbolo fictício, mas numarealidade material. A arquitectura é a arte de 'criar' es­paços determinados e circunscritos, destinados à pre­sença e às evoluções do corpo vivo. Exprime este factotanto em altura como em [)rofundidade e, por uma so­breposição de elementos s6lidos cujo peso assegura asolidez. É uma arte realista; o em'prego da ficção é umluxo. A arquitectura ·contém o espaço por definição e otempo na sua aplicação. ]J, portanto, a mais favorecidadas belas-artes.

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A partir do momento em que Appia pretende que oTeatro não é uma síntese de artes mas u/ma síntese har­moniosa de elementos artísticos) todos os seus conceitosse encamin.ham para conferir ao Teatro o seu valor ar­tístiQ.o próprio) isto é) agindo como arte adulta) que podebastar-se a si própria. Artauâ, embora apoiado noutrosargumentos) também pretendia que o Teatro deve ser li­gado às possibilidades de expressão pelas formas e portudo o que são gestos) ruídos) cores) manifestações plás­ticas) portanto) restitui-lo ao seu destino primitivo) reco­locá-lo no seu aspecto. metafísico) reconciliá-lo com o uní­verso .. Como se »erâ mais adiante) Appia, como que divi­nizando, o corpo liumano em movimento) também pro­cura essa reconciliação com o umvoerso. «O Teatro~dizia Artaud - é'o duplo não da realidade) mas de umaoutra expressão) inumana) a das forças ocultas que con­duzem o Mundo». O Teatro é) pois) contrário a (juaZfluerideia de imobilidade. Toda a evolução do Teatro 'mo­derno) que vem do princípio deste século até os n08s08

.dias) se apoui nesta incompatibilidade) para encontra-r

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os meios de. expressão que sirvam o movimento e a dura­ção.

Mas não será) porém) o Teatro) com o seu valor ariis­tico próprio) uma ficção num espaço a três dimensões}apoiado numa quarta dimensão) também [icticia, que éo seu tempo próprio, apesar do corpo vivo? E a tenta­tativa mais próxima - com Bertoti Breclit em evidên­cia - é preoisamenie não destruir essa jicção mas} pelocontrário) torná-la saliente aos olhos do espectador,criando-se) embora através de todos os elementos artís­ticos ao alcance da técnica de cena) um espaço móvel)vivo, rítmico) constituindo um envolvimento perfeitopara o corpo vivo) em movimento. E através da ficçãoevidenciada (sem se ocultarem) sequer) da vista do es­pectador} os instrumentos que a servem) que Brectit,por exemplo) estrutura a sua inte-nção âuiléotica, Assim)Brecht cria uma nova arte para um público novo. «Oartista só será verdadeiramente objectivo se conseguirpintar diaZêcticamente uma realidade duiléctioa» . NoMundo, tudo está em perpétuo movimento. Portanto, aarte mais fiel é a que traduz o futuro eterno. As suaspersonagens} através do Efeito-V) que domina os seusprocessos de representação) assumindo uma atitude dia­léciica em que o espectador tem de participar) são envol­vidas por um espaço dialéotico em movimento, qualquerque seja a maneira por que se exprima) ainda que limi­tado por superfícies planas pintadas) mas em perma­nente movimento rítmico imprimido pelo ritmo e pelamobilidade da luz (quando não o próprio movimento doplano pintado) que pode ser uma cortina que uma leve

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aragem 'agita). «Sinais exteriores) omoestralmenie esco­lhidos) para cada subiileza da emoção) constituem umvocabulário perfeitamente claro para o espectador». Só)pois) esses sinais exteriores) com a maior economia demeios de expressão plástica) interessam.

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Acabamos de analisar os três elementos -reunidosnuma das mãos do actor: as três artes imóveis, as artesdo espaço. Procuremos esclarecer-nos da mesma ma­neira acerca das artes do tempo - o texto e a música ­que o actor segura na outra mão· e quer; irresistivel­mente, associar.

É preciso lembrar que, examinando o texto e a mú­sica do ponto de vista da encenação, não abordamos, pelomenos por agora, as questões de composição dramática,literária ou musical em si.

Abandonando o espaço, com ou sem duração latente,eis-nos propriamente no tempo. O carácter ideal e arbi­trário da noção de tempo é demasiado sabido Ipara queseja necessário insistir. Notemos, apenas, que essa idea­lidade do tempo -se afirma muito particularmente naarte. Da mesma maneira que um longo sonho pode de­correr em cinco minutos e, portanto, conter uma dura­ção desproporcionada- à do tempo normal, também asartes do tempo não utilizam o tempo normal senãocomo um continente, para nele colocar a SUa duração

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especial. Durante o sonho, acreditámos na sua duração;durante o texto ou a música de um drama, cremos nasua duração especial e nem nos passa pela cabeça con­sultar o relógio; sentimos que ele mentiria! As artes dotempo dispõem livremente do tempo e dominam-no. Nãoé assim ~om o .espaço, para as outras artes; é o nossocorpo, pelas suas dimensões e possibilidades, são os nos­sos olhos; de faculdades limitadas, que o determinam.Não se imagina uma pintura que nos obrigasse a tomaro comboio para ver toda a sucessão do espaço. A escul­tura, por ;mais gigantesca que seja, conserva, apesar detudo, as possas proporções relativas e os nossos olhostranspõem-nas automàticamente. No entanto, estas di­mensões são igualmente dependentes das nossas facul­dades visuais 1, A arquitectura que ultrapassa, em di­mensões, 'a escala aplicável à nossa presença, afasta-sesempre, mais ou menos, da sua função artística, atéabandoná-la completamente, Infelizmente, tais exem­plos abundam e seria conveniente que tivéssemos ver­dadeira consciência disso. Em arquitectura, as civiliza­ções que admitiram o colossal não são as dos povos ver­dadeiramente artistas, povos cuja arte é viva.

Porque não tem, então, o tempo uma norma que sejacom~m à d.a no~sa vida e à das nossas artes na duração '?:BJ, precisamente, por causa da sua idealidade. O temposomos nós. As artes que se dirigem aos nossos olhos são

1 Em escultura, o termo maior do que o natural não diz res­peito à qualidade artística da obra. (N. do A.)

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igualmente nós, neste sentido, mas não o são no espaço;

o espaço não tem idealidade; a nossa vida é demasiadolimitada para isso, Ora, se é evidente que o nosso ouvidotambém tem os seus limites para a duração de urna obrade arte meâuio; pelo tempo normal, é, no entanto, suS­ceptível de adaptar, ocasionalmente, um tempo fictício,desproporcionado, mais ou menos, a esse tempo normal.O nosso sentido auditivo, quando é atingido pelas ondassonoras, transmite-as directamente, sem nenhuma ope­ração intermediária. Onde as outras artes significam,

isto é, usam sinais visuais para atingir a nossa sensibi­lidade, a música é; os sinais de .que se serve identificam­-se com a sua acção directa. Ela é a própria voz da nossaalma; a sua idealidade no tempo é perfeitamente funda­mentada e legítima. - Quais poderão ser as suas rela­ções com o espaço, pois é disso que se trata, em encena­ção? A mobilidade exprime o espaço numa sucessão,portanto em duração, como vimos. As artes do tempo en­contram, assim, na mobilidade, o intermediário indispen­sável à sua presença invisível em cena. E, uma vez quehá reciprocidade, as artes do espaço, da mesma maneira,graças às artes do tempo, manifestam-se numa duraçãoque lhes seria estranha sem elas. Participarão, assim,implicitamente, na idealidade do tempo!

Antes de examinar como pode a mobilidade tomar oseu lugar numa obra de arte - e a questão é de primeiraimportância --:- resta-nos ainda considerar, segundo aarte dos sons e do ritmo, a arte da palavra, do texto re·

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citado 1. O timbre da palavra, sem música, pode sugerir,em certos casos, qualquer analogia com o som musical,roas, na arte, não tem nada de comum com ele e, acimade tudo, diferencia-se definitivamente pelo facto de nãoser senão um intermediário entre a significação das pa­lavras e a sua inteligência no nosso entendimento; en­quanto os sons tocam âcrectamenie a nossa própria sen­sibilidade e a operação do nosso raciocínio, tanto quantose tórne necessário, só se efectua em segundo lugar. Pa­lavras de que ignoramos o sentido são ruídos mais oumenos agradáveis e não sons. Logo que começamos acompreender uma língua estrangeira, esses ruídos ad­quirem uma significação: a sua vibração age progres­sivamente no nosso entendimento até chegarmos a per­ceber tudo diferentemente. São os portadores indsreciosdo pensamento; e os portadores direcios dos nossos sen­timentos. Por meio da palavra, a idealidade do tempo s6se exprime de uma maneira rudimentar, muito limitadae completamente dependente das nossas faculdades ce­rebrais de assimilação. Uma frase pronunciada ràpida­mente demais não é aceite pelo nosso entendimento; damesma maneira que, se durar demasiado tempo, o seupapel de intermediária encontra-se comprometido. A di­ferença estética entre a palavra e o som musical seriatotal se e,stes dois factores não tivessem o tempo em co-

1 Recitado e não lido . Toda a leitura ressalta da literaturacama tal. Um actor que lê ou canta lendo o seu papel em cenanito é senão um leitor ou um cantor que se desloca sem rnotívo.(1:Y. do A.)

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mum. E, mesmo no que diz respeito ao tempo, como po­deríarnos medir com precisão e' segurança as diversasdurações da palavra? Possuímos n6s para isso Um sinalgráfico transponível no tempo da recitação? O autor po­deria marcar à margem as suas intenções a este respeito- intenções que, pelos sinais escritos, já não se dirigemsenão ao nosso entendimento - mas bastarão eles paraassegurar a precisão indispensável à obra-de-arte ?Nunca. E é por isso que qualquer' vestígio de idealidadena duração da palavra nos parece ilus6rio. .

Concluamos afirmando que a palavra se escoa bemno tempo, mas é incapaz de criar no tempo ,normal umtempo novo que lhe é próprio. S6 na aparência tem quever com a arte pela duração; na. realidade, .s6 tem quever pela significação das palavras e pela ordenação ne­cessária à sua justa compreensão, abstraindo, evidente­mente, da beleza que disso possa resultar. É pela ordena­ção inteligível da palavra que o texto se torna obra-de­-arte; o seu papel junto da mobilidade do corpo não temautoridade de lei; é indirecto; transmitido à sensibili­dade do actor pelas palavras, o texto deixa ao actor ocuidado de decidir, em última análise, o que convém fa­zer .para o exteriorizar no espaço.

Estas noções, que podem parecer obscuras ou para­doxais , são de uma importância capital para: a aprecia­ção de valores em matéria de encenação. E devo recor­dar ainda uma vez que é apenas neste ponto de vista quese coloca esta demonstração. .

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André 'Gide falava de «uma duração para animar»referindo-se ao texto dramático, que é uma obra emtrês tempos: o. tempo da representação) o tempo da in~

triga e o tempo da aoção. ° tempo da representação émedido pelo relógio do espectador e também pelo relógiodo comediamte, nada tendo que ver) portanto) com o re­lógio da personagem. Este último relógio (o da perso­nagem) mede tanto o tempo da intriga como o da acção,Há o tempo mensuriioel da intriga e o tempo signifioa~

tivo da acção. E á,iz~se signifioativo) porque) por exem..plo, umbamqueie que) na realidade) duraria dUM horas)oonswmirâ no palco dez minutos de representação. Otempo da ' intriga é) ainda) o dos relógios e dos otüenâá­rios) mas.em que se mede a vida das personagens e nãoa dos oomeâiamtes e dos espectadores.

<:0 tempo .da acção, OO1no esclarece Henri Go~d1/Í,eT

(L'Oeuvre Théatrale) é um tempo aotuante. O tempoda intriga 'é o meio vazio e homogéneo de que fala Berq­son, em que a nossa inteligência projeota a sucessiio deaconieoimenios e pensa-a como uma s-imultaneidade ver­ticat. O tempo da acçiio é interior aos uconiecimentos

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e relativamente independente da medida que a nossa in­teligência lê sobre a linha marcante dos séculos e dosanos com o seu número de ordem) os meses e os dias como seu nome, as horas e os nwnutos com o seu número.Poder-se-á dizer histórico) mas tomá-lo como subsiam­tivo é ainda sugerir a imagem de um conteúdo cuja his~

torui seria o continente: é preferível escrever que a his~

teria é temporal) precisando que a temporcluiaâe parti~

cipa da actwuiade do S8'1' que vive a história: eis porquese fala do tempo na acção»,

O Teatro é) pela essência) convenção ou) melhor, fic­ção no espaço e no tempo.

Appia) ao considerar aquilo a que ele, chama as artesdo tempo (texto dramático ou partitura musical) nuncase refere a uma arte do tempo que tem) no Teatro, umsignificado muito importante: o mimo. O Teatro) comoarte em si próprio) pode conter) sem recurso ao autordramático e ao músico) as artes do espaço e do tempo.E) no entanto) a consciência de uma nova mímica estáimplícita em todos os conceitos de Appia, na medida emque considera o corpo vivo o elemento fundamental doTeatro - da Arte viva - como portador do movimento.

«Foi pelo estudo do corpo que cheguei a abordar aarte do comediante» - confessa Barrault, que viria aexplorá-lo até às coneequéncuis mais sub tis) baseado)primeiro) nas uieias e nas experiéncuis de Etienne De­crouoi, e na exaustiva teorização de Antonin Artcuâ, de~

pois. «O mimo é a própria arte do silêncio. E um dospontos extremos do Teatro puro/ o outro extremo) qu"ese lhe opõe) é o da dicção pura. Deve praticar-se nu e)

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ADOLPHE APPIA

-le pre[erência, com uma máscara impessoaZ. Não deveser acompanhado de qualquer som) de qualquer ruído)porque o seu elemento é o Silêncio) sendo a sua musica­lidade essencialmente visual. Qualquer intervenção mu­sical no mimo é) portanto) um sacrilégio». Todo o mimose desenvolve sob o signo do movimento) do gesto e doritmo) no espaço e no tempo) comandado por uma teo­ria de imagens de acção. Aqui) o ritmo interior (sensi·vel) prooesstuio por essa teoria de imagens) é rigorosa­mente coincidente com o ritmo exterior (visível).

B arrauli teoriza:

O olhar orienta-se pelo espaço. Só o busto é a fontede expressão. Um mimo tem duas espécies de olhares:os olhos e a ponta dos seios. Existe todo um jogo deacordo e de contradições entre esses dois olhares. Todosos gestos partem da coluna vertebral. O primeiro deverdo mimo é) portanto) tomar consciência da sua colunauertebrtil, vértebra por vértebra. Os membros) braços epernas) tomam a origem do seu movimento na ligaçãodessas oértebras, 11 esse recurso à ool1/./I1.(1, vertebral quedá ao gesto a Sua dimensão) o seu estilo,

Todos os gestos do homem. podem resuanir-se emdois movimentos essenciais: puxar e empurrar. O pontode mira é o centro do ventre) o umbigo. A vida consisteem puxar para si ou empurrar para fora de si. Absirnin­do dos braços e das pernas). o bu-sto nada perde da suaexpressão.

Os membros são os indicativos da acção. Eu: o su­jeito, é essa bandeira constituída pela coluna vertebrale pela 'caixa respiratória. E o busto. E a atitude.

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o verbo é o ser em movimento. ~ a própria acçãodesse busto.

O complemento é indicado por u/m. 'membro (braço02' perna.). ~ a indicação.

Assim) o corpo descreve no espcço (e no tempo,acrescentamos nós) u/ma frase de Silêncio: sujeito ou

atitude)' verbo ou movimento prOpriamente di.to)· com­plemento ou indicação.

E tudo o q'LW possa acrescentar-se a, esta expressãocorporai não fará mais do que furtar a pureza a esta arteessencialmente poética e válida em si. '

Treino permanente do mimo: . .1. - Exeroício de âesccmiraoçõo total.2. - Tomada de consciência dos músculos isolados.

Aprender) nomeadamente) a contactor determinado mús­culo, deixando os outros em desooniracção.

, ::3. - Tomada de consciência de certos músculos agru­pados.

-9- . - Aqu,isição do tonus muecular: nem contracçiione-m moleza.

5. - Desenvolvimento dos músculos abdominais.6. - Escalas em torno da coluna vertebral.7. - Simultaneidade na sensação.~. - Desenvolvimento da concentração. Oonoeniração

analítica) concentração respiratória.Finalmente) há que distinguir d'LW8 espécie.s de mimo:Mimo objectivo. Na arte do mimo) os o~jec.tos são

. imaginários. A existência imaginada de um objecto seráreal quanâo for convenientemente dada pelo corpo domimo a perturbação muscular que esse objecio impõe.

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Mimo subjectivo. Ou estudo dos estaâos de cama, tra­duzido por urna eorpressão corporal. Atitude metaiisncado homem no espaço.

Ver-se-á adiante que} sem nunoa falar do mímo} Ap­pia foi} com Arionui, um dos mC!'is decisivos inspiradoresde todos os grandes ortistae que se dedicaram à expres­são cor-poral do silêncio que deve ínspirar a arte de re­presentar.

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Voltemos à música. Os sons não têm uma significa­ção que possa ordená-los; o seu agrupamento é uma ope­ração espontânea da própria sensibilidade do músico. Asua notação abstracta sobre as folhas ela partitura nãonos transmite a significação dos sons, mas simplesmentea sua ordenação, maternàticamente fixada na sua du­ração e n asua intensidade; e essa duração depende dasensibilidade afectiva do músico-compositor, sem passarprimeiro pelo seu entendimento. Ê, portanto, a sensibi­lid ade do músico, o grau de afectividade dos seus senti­mentos próprios, que cria a duração musical. Os nossossentimentos, como sabemos, são independentes do temponormal: assim, o músico cria um tempo fictício, contido)sem dúvida, no tempo normal, mas esteticamente inde­pendente dele; e tem o poder quase miraculoeo de fixardefinitivamente essa criação, esse tempo fictício. De ma­neira que, durante a duração da sua música, o músicoobriga-nos a medir e a sentir o tempo segundo a duraçãodos seus próprios sentimentos: coloca-nos num tempoverdadeiro, porque é duração, e no entanto fictício. 11:.realidade estética da música é, por isso, superior à de to-

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das as artes; ela só é uma criação imediata da nossaalma.

Objectar-rne-ão que a sua execução constitui Um ele­mento intermediário entre ela e n6s. - Não. A execuçãocorrecta de uma partitura é para a música o que é paraum fresco, por exemplo, o lugar e a iluminação apropria­dos. A música representa o te-mpo sem outro interme­diário que não seja ela própria; é isso a sua existênciaformal, em especial para a arte dramática. A música éa expressão imediata dos nossos sentimentos; é isso asua vida oculta.

o aforismo perigoso da arte dramática resultante dareunião de todas as artes obrigou-nos a analisar a natu­reza particular de cada uma delas, deste ponto de vista,e s6 deste ponto de vista. Podemos entrever, agora, otrabalho que nos resta fazer. - Para se unirem e, porconsequência, para se subordinarem umas às outras, quesacrifícios devem essas artes consentir e que compensa­ções oferecerão nesse novo modo de existência?

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2 J A duração viva

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«Quando a música atinge o seu mais nobre poder,torna-se forma no espaço».

Mais de um século passou depois de Schiller ter lan­gado ao Mundo este grito profético e apetece perguntarqual dos seus contemporâneos o teria sabido compreen­der. Ele próprio terá apreendido bem o alcance da suaafirmação e não terá sido mais um relâmpago de intui­ção do que a decisão de um espírito reflectido? :@ prová­vel que tenha sido o estudo da arte antiga que o atiroupara esse extremo de visionário. Talvez tenha começadopor ver uma rapsódia no fogo largo ou rápido da impro­visação mimada; ou ter-se-lhe-á representado vivamentealgum acto religioso ou dramático da antiga Grécia?Como terá ele encontrado semelhante consequência navida mesquinha e convencional do seu tempo e do seupais de então?

Schiller diz bem - e somente - «forma no espaço».EJe não .precisa; a sua visão reveste o carácter incom­pleto e enigmático de qualquer profecia. Quem sabe?Talvez a contemplação de uma gravura do Parthenon otenha inspirado; o seu olhar ia de coluna em coluna, com

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uma sucessão de acordes mudos; o friso, o frontão tes­temunharam aos seus olhos uma ordem definitiva, umaharmonia de futuro fixada. Descendo ao solo, teria sen­tido o peso da construção repousar, directamente, semrodapés intermediários, sobre as lajes do templo, pelasbases frustes e sinceras das colunas .. . Uma voz ter­lhe-ia murmurado: «Este templo é vida» ?

Mas eis uma teoria de oficiantes que sobe os degrausda Acrópole; aproxima-se das colunas ... e do poeta ; ospés nus apoderam-se dos degraus; os corpos, adivinha­dos nas pregas das túnicas, medem-se no contacto daspregas caneladas das colunas!... Schiller teria com­preendido? - Ele caminhou, sem dúvida, sobre as ban­cadas do Teatro; terá procurado representar as evolu~

luções do coro. Ali, é o espaço livre e nu em torno da ara.Mais colunas propícias; mais ornatos reveladores .. , ­Como saber então? Como medir e provar as proporçõesmutáveis e que parecem escapar-nos, mal as entrevemos?Fora do templo, estaremos entregues ao arbitrário, semcontrole possível ?

Tenho a convicção de que foi o desejo ardente deapreender a inapreensível relação dos sons e das formas,a divina e fugitiva faísca acendida pelo seu contacto, ainimaginável voluptuosidade que procura a SUa identi­dade constatada que levou o grande visionário a essaafirmação, que coisa alguma em sua volta justificava.Ele legou-nos o seu desejo e o seu apelo: nós teremosa felicidade infinita de poder agora responder-lhe.

Não, não são as proporções e as linhas do templo queordenam o desenvolvimento das teorias solenes ou ale-

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gres; os degraus da Acr6pole não ditam aos pés nus asua marcha; no Teatro, no espaço livre em torno da -ara,o coro não evolui segundo um ritmo arbitrário. Encon­tra-se um princípio de ordem e de medida, bem presente.sempre presente e todo poderoso; o pr6prio espaço lhedeve submissão. Foi ele que edificou o templo, mediuas colunas e os degraus. Invisível, fala ao espaço -visível;anima as formas, sublinha o traço. O seu intérprete é ocorpo humano, o corpo vivo. móvel: desse corpo, arran­cou a vida, Esse princípio é vivo)' é através ~fL vida queordena; a sua linguagem é compreendida pelo .corpo, quea transmite, em seguida, vibrante, a tudo o que a rodeia,

«Quando a música atinge o seu mais nobre poder,torna-se forma no espaço»,

A matéria inanimada, o solo, as pedras, não ouvemos sons, mas o corpo ouve-os!

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Parece-nos ter chegado o momento) quando o corpohumano começa a atingir a sua estatura essencial naobra de arte viva, de trazer Gordon Oraig à presença deAppia. As suas teorias coincidem no tempo e no objec­tivo. Só se aiasicm. nos meios. Sylvain Dhomme, reumin­do-os na mesma designação de poetas do Teatro, afir M

mando que «a encenação) no fim do século passado e nocomeço do aotual, foi marcada pelo aparecimento de umanova personagem ao mesmo tempo perigosa e magnífica)o teórico» esqu éce-se de salientar que foram) afinal, osteóricos - e especialmente estes dois - a origem e asubstância de toda a evolução do Teatro moderno.

Em que 'ponto) porém) diferem as teorias de Appia ede Crau], para) no fim de contas, checarem a um resul­tado comum? Enquanto para Appia a encenação serveo acior, isto é i

1. - A pintura deve ser subordinada à ilumtnação,a iluminação à plantação e a plantação ao aotor;

2. - O drama exclusivamente falado deve ser elimi­nado, para Gordon Oraig é o acior que serve a ence­nação.

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Oraig escrevia (Da ArÚ~ do Teatro).' «o corpo hu­nwn6 é} pela. sua própria natureza} impr6prio para ser­vir de instrumento de uma' arte. Tenho muita pena deferir grande número de peesoas. Aliás} sei muitissi7nobem que as minhas uieias não obrigarão o acior ti saí rde todos os teatros do Mundo. Gomo já escrevi algures}o Teatro continuará como até aqui com os seus come­diantes) ainda dncromte um certo número de anos) a pre­judicarem o seu desenvolvimento. Mas) não me pareceeZifícil uma solução .a partir da qual eles poderão liber­tar-se da escravidão 'aotual: wma maneira nova de repre­sentar} consistindo) em grande parte) nos gestos simb6­licos». Aq'u.i) Oraig prevê já} com cxtraorâiauiría 0Iar1tii­âência, a técnica de representar que viria 'a afirmrj, r -s 6 )

numa linha de admirável evolução est ética, de JI euer­holâ e Btomisloroski a Berioli Breclii (da Biomecânicaao Efeito-V). «Nos nossos dias) o actor dedica-se apersonificar um carácter e a interpretá-lo (que melhorexemplo do que o Teatro português dos nossos dias nasua desactualização estética?); àmanhã} tentará repre­sentar um caráoter e interpretá-lo; no futuro} criará elepróprio». (Primeira aproximação com Appia). «Hoje) oacior, personificando um oarâcter, tem o ar de quemadverte o público: «Olhai-me! Vou ser tal, farei isto !»Depois} presta-se a imitar} tão fielmente quanto possí­vel) aquilo que começou por indicar. (E aqui chamamosa atenção do leitor para o significativo exemplo do Tea­tro português actual: o que os nossos actores ainda fa­zem no ,palco está pata a arte de representar como umaoleografia barata para um quadro de Vau Gogh). ~.E eis

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ADOLPHE APPIA

o que se tem chamado obra de Arte) o que se diz ser umamaneira inteligente de sugerir uma ideia ( ...) O actorreçisia a vida à maneira de uma máquina fotográfica.Esforça-se) unicamente) em reproduzir a natureza eraras vezes se preocupo. com inventar seja o que for àmargem dela. Nunca p81Wa em criar ( ... ) Tudo quantoé acidental é contrário à arte. O trabalho do actor nãoconstitui uma arte e s6 com dificuldade se lhe pode dar .o nome de artista. A Arte é a antítese do caos) que nãoé) senão) uma avalanche de acidentes. Para criar U7JW

obra de arte) não podemos servirmos senão de materiaisque possam ser utilizados com a certeza de permanência,de eternidade». Oraig afasta-se) então) irredutivelmente)de APPia) negando o elemento fundamental da arte viva:o C01'PO vivo. «O acior desaparecerá e) em seu lugar) ve­remos uma personagem inanimada - que terá) se assimquiserdes) o nome de «surmarioneite» , até que se con­siga urn. nome mais çlorioso»,

Appia e Oraiç, quase ao mesmo tempo e) parece, semsequer se cO'}!hecerem) tendem) apesar de tudo) com assuas teorias revolucionárias) para a criação de uma artedramática independente e ambos anunciam o apareci­meuio de um novo homem. de Teatro: o artista de Teatroque será ainda mais do que o autor e ainda mais do queo enceruuior, o Dramaturgo (evidentemente com umasigni/-icação muito diferente da que na nossa língua lheatrib'ltímos) como lhe chama Appia e cuja múltipla per-osanalidade artística fez o génio incomparável de Brechi,

Nem Appu» nem Oraig) como salienta Dhomme, foramtentados pelo regresso a fontes arbitrárias. PrOC1.J.,ram

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,.,- .i

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uma nova arte dramática. Buscam uma poética cênicacapaz de criar atmosferas) provoca'!' emoções) gerar orenascimento de uma nova forma de drtuma.

Iâas, para Appia) ao contrário de Graig) a «ilusão cé­nica é a presença do aoior», :e a partir desta presençada personagem que constrói o seu sistema de encenação.«I'oa:« que os movimentos poeeam desenvolver-se melhor,quer que o solo não seja mais 'do que uma superfícieplana. Anima-a com escadas ou cubos praiiocoeia. (Nas­ce para a cenografia moderna a idade dos, planos e dasestruturas). Inventa 'os jogos complexos dos planos in­clinados que modijicarn. o volume da cena e permitemuma grande flexibilidade de evoluções. Joga com as for­mas) as luzes e as sombras) exaoiamente como GrairJ(basta comparar os seus modelos cenográficos). E ) paraque a cena deixe de ser) definitivamente) o quadro ani..mado que se dependura na parede) procura uma arqui­tectura teatral em que, suqn-iminâo a ribalta) o especia­dor se sente incluído no especiáculo, dominado pelo sor­tilégio da-s sonoridades) dos movimentos) das luees»,

Foi a ideia de que toda a estética do Teatro deveservir o corpo vivo do acior que prevaleceu até os nos­dias. Gomo dizia Robert Edmond Jones, uma cor, uma:luz, uma curva - e a presença do actor. Na ausênciado acior nada existe e é sobre a sua presença) feita mo­vimento e ritmo) que nasce o envolvimento dentro doqual a aoção se desenvolve.

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Quanto melhor se sabe obedecer, melhor se sabecomandar. A subordinação recíproca será a única garan­tia séria de uma colaboração. Subordinar-se implica umtrabalho de análise: que tenho eu a receber e que tenhopara dar em troca? Todos OS erros sociais e estéticos re­sultam de se ter negligenciado, mais ou menos volun­tàriamente, esse trabalho preliminar. O devotamentodeslocado não consente em receber. O egoísta quer con­servar para si a. sua riqueza; o seu móbíl é, por vezes,nobre: é para, mais tarde, oferecer vantagens, queacumula o seu tesouro. No entanto, a direcçâo do seugesto contínua a .mesma e a sua oferenda à cooperaçãonunca sé realiza. .:..- Se a música pretende ordenar a mo­bilidade do corpo, deve informar-se, pr-imeiro, do que ocorpo espera dela. Em seguida, interrogar..se-á sobreesse ponto e procurará desenvolver em si própria afaculdade que se lhe pede e que dependerá. estricta­mente, do que se lhe oferecer em troca. A m úsica nadapode oferecer ao corpo se não receber antecipadamente avida. Isto é evidente. O corpo abandona, pois, à música,

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a sua vida própria, para a receber de novo da sua mão,mas ordenada e transfigurada.

A duração dos sons musicais exteriorlza-se, no es"paço, em proporções visuais. Se a música não tem maisdo que um som e uma duração para esse som, ficaráprisioneira do tempo. São os agrupamentos de sons quetendem a aproximá-la do espaço. As durações variáveisdesses agrupamentos combinam-se entre si até o infi­nito e produzem, assim, o fen6meno do ritmo, o qual nãosó diz respeito ao espaço, mas também pode unir-se in­dissoluvelmente a ele pelo movimento. E o corpo é oportador do movimento.

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Antonin Artaud fala de forças suprasensíveis, pre­sentes na acção dramática e) entre elas) a música. Deseja)corno recorda Paul Arnold (O Universo Teatral de An­tonin Artaud) , uma música interior) subtil) que nos;1,ipnotize da mesma maneira que a flauta enfeitiça aserpente:

«Se a música age sobre as serpentes, não é por meiode noções espirituais) mas porque as serpentes são Zon­gas) enrolem-se longamente na terra) o seu corpo toca aterra na sua quase totalidade>, e as vibrações musicaisque se comunicam à terra atingem-na como uma mas­sagem muito st(,btil e muito longa. Pois bem) proponhoque se aja sobre os espectadores como com as serpentes)que se encantem e que alcancem) pelo organismo) as no­ções mais subtis . Entre esta função encamiatôrui, vibra­tória da palavra) e a musicalidade de todos os outroselementos do espectáculo, não deve existir nenhuma ci­sura:

No espectâculo, a sonorização é constante)' os 8011.8)

o." r''UJidos devem ser procurados pela sua qualidade m­bratória) em primeiro lncqtir, e} depois} por aquilo que

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representam. Porque a vibração age em nós màgica­mente.

A luz intervém, por sua vez) nestes meios que se sub­tilizam».

Assim) o que para Artauâ é vibração) é para Appiaritmo. Para o ensaista suíço) é a músioa que oomandao ritmo do espectâculo - logo o seu movimento. A do­minante ritmica da música comamâerui, assim) omovi­mento interior da personagem (ritmo sensivet), que étransmitido pela plástioa da expressão) do gesto e domovimento [isico do actor (representando por símbolosa vida interior); e o movimento exterior (ritmo. visível)evidenoiado pela plástica ~ movimento da p'álavra. Fi­nalmente a músioa dominaria o ritmo do envolvimentodas personaçene (cenoqrtiju») através do movimentooromátioo. '

Também neste ponto Appia e Oraig são coinouieniesna sua busca de «uma poética 'oénioa crupa« de cria?'atmosferas) de provocar emoções) de dar oriàem. a 'umanova forma de drama». .

A pura imitação da natureza, por mais exacta queseja, não dá a ninguém o direito ·ao título sagrado deartista - escreveu Edgar Poe. E Baudelai're: Ji), aomesmo tempo, por e através da poesia, por e 'através damúsica, que a alma entrevê os esplendores situados paraalém do túmulo. E é apoiado nestas duas citações queS. Dhomme conclui: «a este espírito não pode oonvir se­não um Teatro em que d cenoqrajia e a ilumninação setornem elementos de uma linguagem) em que a palavraseja uan. encantamento para prooooar as emoções sensi-

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ADOLPHEJ APPIA

veis que se atribuem à mús.ica. Veremos) de resto) quantoa mÚ8iOa) assim compreendida) influenciou AdolpheAppia e; sobretudo) Gordon Oraig».

Este sobretudo de S. Dhomme está a mais ou) melhor)fioaria bem colocado se se referisse a Appia. Ê que) naverdade) onde a música) em Appia) é a força swprasen­sível geradora' do movimento (e do riirno), para Orou],a decoração e a luz tornam-se elementos de uma lingua­gem - linguagem que comanda o movimento e o ritmo.

Um sentido de ritmo mueicol eniormanâo a plásticaverbal pode ainda manifestar-se tal como pretendia Dul­lin (Souvenirs et notes de travail d'un acteur) : o quedistinguia U'nU(, a.ctriz como Sarah-Bernhardt é quealiava ao seu temperamento dramático um dom musicaldo verbo. Com. ela) as palpitações do drama tinham res­sonâncias musicais. Os grandes »oos (de expressão ver­bal) de que ela tinha o segredo revelavam mais a natu­reza diVina da música do que a verdade dos caracteresJ

da lógica e do estudo psicológico ( .. ) A musicalidade eo ritmo) numa tragédia) têm mais importância do que apr(Jpria composição das personagens» (evidentementeque se trata" de :tragédia cuissica) .

.Apesar das dúvidas postas por Dhomme acerca da in­fluência das doutrinas de Appia no Teatro do nossotempo) a verdade é que) no que diz respeito à música (eestamos .a Ver que não é só na música) o comentáriomusical como batuta rítmica do andamento dramático éum dos elementos [umdaaneniass do Teatro moderno) apartir de Pisoator e 'culminando em Brecht.

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Sob o império das necessidades materiais, o corpoage. Mas as emoções da alma repercutem-se igualmenteno espaço, pelo gesto. No entanto, os gestos não expri­mem directamente a vida da nossa alma. A sua intenslda­de variável e a sua duração só estão em relação muito in­directa com as flutuações dessa vida interior e oculta.Podemos sofrer durante horas e não ter indicado, pelogesto, senão um segundo. O gesto, na nossa vida quoti­diana, é um sinal, um índice; nada mais. Os actores sa­bem-no e regulam a representação pela contradição des­SM durações: a da vida da nossa alma e aquela, que édiferente, das revelações que o nosso corpo faz. Por con.seqüência, vivemos diferentemente no tempo e no es­paço; e essa oposição invalida, forçosamente, .todas asmanifestações da nossa existência integralj e ficaria..mos talvez, a este respeito, enigmas vivos, se não pos­suíssemos a música, o soberano correctivo e ordenador,descendente directo da nossa vida afectíva, exprimindo­-se sem outro controle que o dos sentimentos.

A música corresponde às durações da nossa vida in..terior; partilha, ,portanto, com ela, a incompatibilidade

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ADOLPHE APPIA

-corn a duração dos nossos gestos quotidianos; e, se lhechamo correctivo e ordenador, é por antecipação, porque.s6 assim chegaremos ao problema da duração viva.

Declaremos, em seguida, que .sob pena de se renegar.a si própria, a música deve conservar as proporções notempo, que são a forma característica da sua existência.Nisto, o verismo na arte dramática, como na pantomima,é a negação grosseira da vida musical. - O corpo, semodificasse as proporções e a duração dos seus gestos,"Suprimiria a sua existência? Evidentemente, não. Por·exemplo, a ginástica, no seu objectivo de fortificar onosso organismo, impõe-lhe gestos cuja duração não se'encont r a na nossa vida quotidiana e natural; e nem por·isso a vida do nosso corpo é ·suprimida. Neste simplesexercício técnico exprimimo-nos de maneira particular ;eis tudo. Pelo contrário, o exercício técnico, em música,já não pertence à música e estas proporções não nosdizem respeito. A diferença pode parecer subtil, masnão deixa de ser evidente, pois é de vida que estamos atratar. - O nosso corpo transporta o movimento em po­tência - não importa que movimento; e o movimento éo signo da vida. Pelo contrário, a música encerra a dura­~ão em potência, importando, todavia, a natureza dessaduração. Ela é a expressão da nossa alma. Não há para­lelismo entre a .acção normal do corpo e a existênciaefectiva da música. Se houvesse, o problema estaria an­tecipadamente resolvido; a reunião da música operar­-se-ia automàticamente. Mas não é o caso e a soluçãoestá ainda por encontrar.

Segundo o que ficou dito, são as manifestações do

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corpo que possuem maior independência; serão portanto­elas que terão de oferecer-se, com subtileza e docilidade,às .proporções rnais dependentes da música. E pode con­cluir-se - coisa estranha! - que o nosso '·corpo, paracolocar-se ao serviço da expressão da nossa vida inte­rior, 'para exprimir em vez de dar apenas os índices, temobrigação de modificar muito sensivelmente a sua vida;normal. Ora, submetendo-se à sorte, não perderá eletodo o valor dessa vida - da sua vida normal? Será de-osejável uma modificação tão profunda e o resultado seráproporcional à grandeza do sacrifício ? ' .

A resposta a estas perguntas encontra-se no pró­prio princípio da arte. Taine considera-a magistralmentee, sem dúvida, definitivamente, nestes termos: IA obrade arte tem por objectivo manifestar qualquer caráoteressencial e saliente) portanto qualquer ideia importanter

mais claramente e mais completamente do que o fazemos objecios reais. Oonseçue-o empregando um conjuntode partes ligadas cujas relações ela modifica eistemàii­camente. A própria arte é, pois, uma modificação dosvalores naturais. Um .pintor que copia a natureza, limi­ta-se a transpô-la, pelo processo das cores, para uma·superfície plana. O escultor, se copia o seu modelo, li­mita-se, como o pintor, a imobilizar, sem razão válida;transporta, conl ele, e empobrece, assim, a natureza..O arquitecto parece em melhores condições; nada temque copiar; a sua obra é já em si 'Própria uma modifica-oção das formas naturais; mas, se perde de vista as pro­porções do corpo humano e os diferentes movimentos da.vida, são arbitrárias e sem objectivo as suas modifica-

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-ções, As artes do tempo partilham a sorte da arquitec­tura; são elas, até, que mais se aproximam, pelo seu.par ente:sco comum, do ser vivo. Poder-se-ia quase no­mear dum só fôlego, a poesia, a música e a arquitectura.O poeta modifica a forma e as durações do nosso pen­.sarnento quotidiano; e a música, corno vimos, modificaas durações da nossa vida normal. A música seria, nesse.sentido, um cúmulo de arbitrário, se a nossa vida afec­t íva não a guiasse, justificando-a constantemente.

O corpo humano, se aceita voluntàriamente as modi­ficações que a música lhe impõe, toma, na arte, o planode um meio de expressão; abandona a sua vida acidentale facultativa, para exprimir, sob as ordens da música,algum carácter essencial, qualquer ídeia importante,mais claramente e mais completamente do que o fariana vida normal.

Schopenhauer, o filósofo-artista, garante-nos que amúsica nunca exprime o [enômeno, mas apenas a essên­cia íntima do [enômeno. A sua convicção, na sua formacondensada, é idêntica à de Taine; porque é bem evi­·dente que a essência do fen6meno reveste uma forma di­ferente do próprio fenômeno.

A duração viva será, portanto, a arte de exprimir,.sirnultâneamente, no espaço e no tempo, uma idéia essen­cial. Consegue-o através da sucessão das formas vivasdo corpo humano e a sucessão das durações musicais,soUdárias umas das outras.

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3 I O espaço vivo

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Até aqui, dedicámo-nos particularmente à música eao corpo vivo. A ideia de espaço s6 nos foi dada pelosmovimentos do corpo, proporcionais às. durações musi­cais. Esses movimentos vão desenvolver-se, agora, noespaço que os rodeia na atmosfera que os envolve e pro­curar neles aliados.

Foi Meyerhold quem mais se aproximou, na práticada cena) da: doutrinação de. Appia, com a chamada Bio­mecânica. Já nas suas encenações de 1908) em Minsk) ogrande encenador russo manifestara a iendênoia parareduzir o 'acior à condição de «marionette», manifes­tando) nessa altura) mais afinidades estéticas com Gor»

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don Oraig do que com Appia. Oomeça, então) o caminhoque o oonduziu à Biomeoânioa. Meyerhold transformavaos próprios textos) na fase mais evoZuída da Biomecâ­nioa) em que os aciores se exprimiam mais pelo gesto)pela atitude e pelo movimento) [ezendo deles estátuasanimadas) do qUf:! pela pcuaora, em simples elibretos,como base de 'criação plâetica. De Picasso do .Teatro,

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como lhe I ohaano ú Louis Loeounck, Meuerholâ viria aser «um "criador de formas e um poeta da cena, queescrevia, oom gestos) 001n ritmos, com toda uma lin ..quaqem. teatral que inventou para as necessidades dasua causa e que fala tanto aos olhos como o texto se

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dirige ao~ ouvidos» (Oluirles DuZlin).M euerliolâ, como Artaud e) mais recentemente, oomo

Breolii, cproximaoa-se, assim) das formas do Teatrooriental. Toda a sua evolução) como explica ainda Dul..lin, partia das fontes do Teatro antigo) inseparável deurna místioa religiosa) e encontrou. a sua expressão mo­derna numa mística social».

Antonin Ariaud, na trajeciorui que conâue a Breclvi,pretendia) sem dúvida) uma rein!yenção do aotor que lhepermitisse a reinvenção do Teatro. Como refere AndréEramok havia) antes de tudo) o que Artaud ohamava olaboratório mágico da respiração, em que Jean-LouisBarrault viria a basear-se para os conceitos que desen­volveu nas «Icej lexôes sobre o Teatro» e nas «Novas Re-

. flexões sobre o Teatro». 'Toda. a moderna doutrinaçãoestética barraultina se apoia em Ariauâ, que é parentemuito próximó dé Appia. Na verdade) Artouâ pretendiaser necessário encontrar a ciênoia da respiração) nãodessa respiração que pertence simplesmente à mecâmicada vida - 'respiração segunda - mas a essa outra, maisprofunda) que dá forças a todo o ser. A esse soltejo res­piratório corno 'oase ãa plústica do acior, ligava Artaudumsolfejo 'corporal. Tratava-se de 'esi abelecer as re­gras de uma pontoowma não -preoertuia. Que se enten­dia por essa não preoerstio do mimo'? Uma técnica pela

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qual e para a qual o gesto deixaria de representar pala­vras) fragmentos de frases) para tornar-se ele mesmouma linguagem de sentimentos e de ideias. Tal comoAppia.

«Sobre as intenções e os fins profundos de uma to!renooação - escreve André Frcmok. - os manifestos deArtaud são de uma luminosidade fulgurante. Artaudpretendia ter encontrado na tradição mileruiria do 'I'ea­tro balinês) intacto) o segredo dos gestos) das vntona­ções, ãas harmonias».

Três nomes estão indissoluvelmente ligados a essaideia do mimo não prevertuio: Ariauâ, Etienne DecrO'UXe Jeom-Louss Barraniit; Também Oopeaú se dera contada importância do acior, ser físico, e foi a seu conselhoque Decrouoi se dedicou mais intensamente ao estudodo mimo, fundando uma oiência n(1)a. O 'corpo não sebasta; precisa de uma moral. Decrouso liga a sua renova­ção a uma conoepão geral da vida) a um treino de todosos dias) a uma concepção de alirnentação que reclama}por exemplo) um oeqeiarumismo integral. Assim nas'óeua técnica moderna da eorpressão corporal.

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o corpo é o intérprete da música junto das formasinanimadas e surdas. Podemos, pois, abandonar momen­tâneamente a música; o corpo absorveu-a e saberáguiar-nos e representá-la no espaço.

O corpo deitado, sentado ou de pé num ponto do soloexprime-se, no espaço que ele ocupa e que ele mede, pe­los movimentos dos braços, combinados àqueles, maislimitados, do torso e da cabeça. As pernas conservam,sem mudar o lugar onde o corpo repousa, uma aparênciade mobilidade; a sua actividade normal é, no entanto,-percorrer o espaço. Podemos, pois, desde já, distinguirduas ordens de planos: os planos destinados à marcha,mais ou menos interrompida, e os planos consagrados àvalorização do corpo no seu conjunto, excluindo a mar­cha. Estas duas ordens, porém, penetram-se; são osmovimentos do corpo que lhes conferem este ou aqueledestino. No solo, os planos inclinados e, sobretudo, asescadas, podem ser consideradas como participando nasduas ordens de planos. O obstáculo que fazem à livremarcha e a expressão que suscitam no organismo deri­vam da vertical.

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Temos, portanto, que contar com duas linhas prin­cipais: a horizontal, ~m primeiro lugar, porque o corporepousa, antes de tudo, num plano, para exprimir a suagravidade; depois, a vertical, que corresponde ao «es­tar» do corpo e o acompanha. A estrutura do solo, deri­vada da horizontal, nunca perderá de vista a gravidade,e procurará exprimi-Ia o mais simples e claramente pos­sível. Elu explioo-me:

Os diferentes móveis que fabricamos para o confortoda nossa vida quotidiana e o repouso do noss~ corpo sãocombinados para atenuar o contacto que temos .com amatéria. Temos molas, almofadas, linhas curvas que seadaptam às nossas formas; arredondamos os ângulos,amolecemos as superfícies rfgidas. com estofos .que aba­fam os ruídos e amortecem os contactos. Levamos tãolonge esta atenuação do plano simples, que a expressãodos nossos movimentos é, em si própria, profundamentediminuída. Para nos convencermos, basta despirmo-noscompletamente num quarto bem mobilado: o nosso corposem véu, sem o elemento intermédio' do vestuário,torna-se subitamente estranho ao que o rodeia; torna-seindecente, no sentido etimológico da palavra, isto é, des­locado, e a; sua expressão contacta de muito perto aobscenidade. - Mas, dir-se-á, uma mulher, com as van­tagens do seu sexo e instalada com elegância num sofá,tem uma expressão deliciosa. Sem dúvida: mas se sedespir e se sentar numa cadeira... ? - Uma sala de ba­nho onde se encontram cosméticos, divãs, almofadas,evoca ideias contrárias à verdadeira expressão do corpo;enquanto que, se a mesma sala s6 oferecer superfícies

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planas e rígidas, o corpo nu parece, antecipada e impli­citamente, presente e posto em valor estético. Pés nussubindo uma escada de tapetes serão pés descalços e pro­curar-se-á a razão. Sobre uma escada sem tapetes, serão,simplesmente, pés nus e cheios de expressão. Ê evidenteque os pés dos muçulmanos sobre os tapetes das suasmesquitas são pés descalços e não nus; exprimem umaintenção religiosa e não estética. Saí da mesquita e olhaios pés nus da mulher que desce 0S degraus de uma fonte:os seus pés serão maravilhosamente nus.i.

Qualquer alteração da gravidade, qualquer objectivoque siga, anulará a expressão corporal, O primeiro 'prin­cípio, talvez mesmo o único de que todos os outros de­rivam em seguida, automàticamente, será, então, paraa arte viva, que as formas que não são as do corpo pro­curam pôr-se em oposição com estas últimas, nunca seharmonizando com elas. Se se apresentam, porém, casosem que a leveza de uma linha seja desejável para ate­nuar mornentâneamente a expressão de um movimentoou de uma atitude, o simples facto desta afirmação ex­cepcional será, em si mesmo, um objecto de expressão.Mas, se isto se. prolonga, a presença efectiva do corposerá cada' vez mais aniquilada até a sua completa su­pressão: o corpo será presente mas sem efeito corporal :os seus movimentos tornar-se-ão supérfluos e, portanto,ridículos, ou reduzir-se-ão a índices ; recairemos, então,na vida quotidiana e no Teatro de costumes. Da mesmamaneira, em arquitectura, já vemos que a gravidade é acondição evne qua non da expressão corporal, A gravida­de e não o peso! A gravidade é um princípio; é por ela

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que a matéria se afirma; e as mil gradações desta afir­mação constituem a sua expressão. O volume, só por si,pode escapar-se no ar como um balão; a sua consistênciaé ilusória; é uma porção de espaço momentâneamenteenformada, nada mais. ÉJ a boneca de tripa e, nisto, abailarina à italiana parece um balão cativo, que se soltae se prende à vontade. Para receber do corpo vivo a suaparte da vida, o espaço deve opor-se a esse cor.po; adqui­rindo as nossas formas, aumenta ainda a sua própriainércia: Por outro lado, é a oposição do corpo que animaas formas do espaço. O espaço vivo é a vitória das for­mas corporais sobre as formas inanimadas. A recipro­cidade é perfeita.

Este esforço torna-se-nos sensível de duas. maneiras:quer pela oposição das linhas quando olhamos um corpoem contacto com as formas rígidas do espaço; quer quan­do o nosso próprio corpo experimenta a resistência queessas formas lhe opõem. A primeira é apenas um resul­tado; .a outra, uma experiência pessoal e, por isso, deci­siva. - Tomemos um exemplo e suponhamos um pilarvertical, quadrado, de ângulos rectos inteiramente defi­nidos. Este pilar repousa, sem base, sobre lajes horizon­tais. Dá impressão de estabilidade e resistência. Aproxi­me-se um corpo. Do contraste entre o seu movimento e aimobilidade tranquila do ,pilar nasce já uma sensação devida expressiva, que o corpo sem pilar e o pilar sem cor­po que avança não teriam atingido. Além disso, as linhassinuosas e arredondadas do corpo diferem essencialmen­te das superfícies p~anas e dos ângulos do pilar e essecontraste é, por si só, expressivo. Mas o corpo toca no

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pilar; a oposiçao acentua-se ainda mais. Finalmente, ocorpo apoia-se no pilar, cuja imobilidade lhe oferece umponto de apoio sólido: o pilar resiste, age! A oposiçãocriou a vida da forma inanimada: o espaço tornou-sevivo! - Suponhamos, agora, que' o pilar não é rígido se­não na aparência e que a sua matéria, ao mínimo con­tacto estranho, pode adquirir a forma do corpo que atoca. O corpo vivo incrusta-se, portanto, na matéria moledo pilar e sepulta a sua vida; e, no mesmo instante, ma­tará o pilar (Divãs profundas corno túmulos. Baude­laire). Isto é demasiado evidente para exigir qualquerdemonstração. A mesma experiência poderia ser feitacom o solo; por exemplo, um chão elástico, em que ospés se afundassem a cada passo, mas que retomaria, emseguida, a SUa superfície uniforme; esse chão mover-se­-ia; a sua mobilidade seria viva? Olhemos a superfícier'estabelecida atrás de cada passo do corpo vivo; esperapara ceder uma vez mais; nada opondo, está morta; nãohá mesmo nada mais morto. E os pés que a calcam, nãoencontrando.resistência, ficam com os músculos amorte­ciclos, no sentido exacto do termo. Poder-se-ia mesmochegar a não sentir a marcha voluntária do corpo, mas acrer-se no jogo de um mecanismo que faz elevar alter­nadamente um e outro pé, forçando-os a avançar. O soloe o corpo tornam-se, assim, mecânicos, o que é a nega­ção suprema da vida e o começo do ridículo (ver Ber­gson) . :..- E, agora, se esse chão negativo, que cede ouespera ceder, se transforma em lajes rígidas que espe­:ram, pelo contrário, os pés para lhes resistir, para ostornar a lançar a cada novo passo e prepará-los para

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uma nova resistência; este solo arrasta, pela sua rigidez,todo o organismo na sua vontade de marcha. :m opondo­-se à Vida que o solo pode 'recebê-la do corpo, tal como opilar.

a principio da gravidade e o da rigidez são, pois, ascondições fundamentais para a existência de um espaçovivo. Delas parece resultar ainda uma escolha de Iinhas.a corpo possui uma estrutura definitiva e não podemosidentificá-lo no espaço senão por meio do movimento: osmovimentos são a interpretação do corpo na' duração.Sempre em oposição com o corpo; a escolha 'das linhasdo espaço está ao nosso alcance; é' a compensação à suaimobilidade, tal como a vimos nas belas-artes. Parecer­-nos-á, então, que tendo em conta as expressões do pesoe da rigidez, teremos o campo livre e poderemos, comoos outros artistas, escolher e levar bastante longe a sub­tileza das nossas intenções e das nossas invenções. E es­quecemos que não estamos s6s diante de um bloco de ar­gila ou de um pano de muralha a decorar, tal como o pin­tor ou o escultor: estamos com um corpo vivo; é s6 comele que no espaço temos que ver; s6 a ele damos ordens;é s6 por ele e s6 através dele que podemos dirigir-nos àsformas inanimadas. Sem o consentimento do corpo, to­das as nossas buscas seriam vãs e nadas-mortas. Naheirarquia da arte viva, o lugar da nOSSa imaginaçãocriadora está entre o tempo e o corpo vivo e móvel; querdizer, entre a música que nós compomos e o corpo quedeve ser penetrado por ela e incarná-la. Estamos, por­tanto, nesse sentido, antes do corpo; para além; é ele quetem a palavra; tornamo-nos apenas o seu intérprete e

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nada podemos criar da nossa própria cabeça. A nossasubmissão confiante e consciente à música - expressãoda nossa vida interior - conferiu-nos o poder de domi­nar imperiosamente o corpo vivo. Por seu turno, o corpo,pela sua completa submissão ao nosso apelo, conquista odireito de ordenar o espaço que .0 rodeia e o toca : dírec­temente, somos incapazes.

Este fenómeno hierárquico é dos mais interessantes ;e é por não o ter verificado e não ter obedecido às suasleis que a nossa arte cénica e dramática se descaminhoutão completamente.

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Appia estabelece) assim) os fundamentos da criaçãodo espaço dramático - daquilo a que já chamámos, nou­tra obra, umi envolvimento. Pela primeira vez se põe oproblema do espaço vivo, para conter o movimento e oritmo do corpo vivo. Evidentemente) a vida -c,do espaçoresulta da vida do corpo e) corno pretende Appui, por'oposição ao movimento) por um fenómeno de resistênciaactiva (exemplo do pilar). Logo) a vida do espaço derivana razão directa do movimento) em todas as suas [or­mas (vnoluindo o da própria palavra) do corpo humano.

Toda a estética corporal do aoior tem) pois) que ba­sear-se nestes dois princípios fundamentais:

1. - O corpo humano torna, na arte) o plano de ummeio de expressão)' abandona a sua vida acidental e fa­cultativa para exprimir um caracter essencial) uma iâeiaimportante) mais clartimenie e mais convpletamente doque o faria na vida normal.

2. - O gesto deixará de representar palavras ou frag~

rnentos de frases) para tornar-se) em si mesmo) uma lin­guagem de sentimentos e de uleias.

Foram estes dois princípios) extraídos tanto dos cctn-

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ceitos de Appia como dos de Artauâ, que deram origema toda a estética moderna de representar) tendendo paraa idealidade exposta por Barrauli de que o gesto e o mo­vimento) quando puderem ating~r a S'Ua forma subli­mada) serão suficientes para preencher todo o espaçovazio do lugar dramático.

Assim foi que, para transmitir uma Zing'u.agem desentimentos e de uleuis, através da sua plástica 'corpo­ral) renunciando ao gesto pleonástico (aquele) precisa­mente) em que representava - e acompanhava) repe-

_tindo - palavras ou fragmentos de frases) o actor teve)nos últimos cinquenta anos) de rever) profundamente) osseus processos de exteriorização} numa linha que vemde Stanislavski e Meyerhold a BertoZt Breclii,

Toda a noção de gesto tem de tender) pois) para um:asimbologia de ritmo e de forma que não tem nada quever com. a plástica descritiva) acompcmhamdo as ima­gens sugeridas petas palavras do texto. E) ao mesmotempo) representati"Jo (de sentimentos e de uieuis) ecritico (desses sentimentos e dessas uieiae). O actortem de apresentar-se em cena em estado de disponibili­dade emocional, sem perder} no entanto) a consciênciada sua situação de actor que tem de transmitir não sóo texto) mas também o subtexto, isto é) aquilo que existeoculto na personaqem., para além das palavras) e corres­ponde à sua vida interior.

Mas) mesmo quando as imagens que o gesto pretendesugerir corresponâem. às que a expressão verbtü insinua)o gesto não deverá ter carâoier pleonástico. André Vil-

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lier (La Psycologie du Comédien e L'art du Comé­dien) explica:

«Enuncia-se frequentemente esta regra - uma dasraras que se ensina: o gesto precede a palavra, Pode to­mar-se como exemplo de um processo empírico) afir­mado) não raro) sem justificação. Deve explicar-se) noentanto) pela necessidade de eviin» pleonasm,os. A, pa­lavra tem uma precisão de que o gesto carece)' este) se­guindo-se àquela) não acrescenta coisa alguma)' a repe­tição é) pois) inútil e retarda) enfraquece) a expressãoglobal. Pelo contrário) há um crescendo) preoisiio ou re­forço da uieia e da acção, se a pcüaora vem depois. Sehá simultaneidade do gesto e da palavra) o acompomtui­mente não tem interesse) é u-rn:a sobrecorqa desprezível)pesada) insignificante ou chocante) segundo os 'casos..V ê-se, porém) imediatamente) que esta regra diz res­peito a uma certa categoria de gestos) a descrição ouexplicação pelo gesto) e considera-se tanto um discursogestual como outro qualquer. São possíveis muitas fi-oquras de retórica; o comediante 'usa escalas e coniras­tes (. ..) Não raro o gesto) vindo depois da palavra) por'intenção deliberada do intérprete) objectioa, de repente).brutalmente) com o intervalo preciso) o que ficaria con-­fuso) abstracto ou sem vigor no enunciado verba? Tolmarecomendava o gesto antes da palavra) nas situações emque a emoção resultante do verbo : implicava 1/J.r(t jogo'mudo) uma Unguage'rn retardada. Inversamente, 'e pelasmesmas razões) o gesto pode intervir) eioqueniemenie;depois) como para marcar uma espécie de import~noia da-palavra». .

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Há) portanto) no caso de ser neoessério reuicionar ogesto com. a palavra (numa coincidência de ritmos sen­sível e visível) três maneiras de gesticular: o gesto pre­

'cede a palavra e corresporuie a uma dúvida)' o gesto'acom panh·fJ., pleonàsticamente a pa1o"wa e é puro ele­mento plástico descritivo; o gesto vem depois da palavrae retorça-ti, marcando uma afirr;w,ção indiscutível. Ogesto) porém, ao fim e ao cabo) terá de ter sempre aexpressão 'de uma teoria de símbolos.

Da noção de espaço vivo, criado como envolvimentodo corpo vivo) haveria de nascer) evidentemente) todauma nova estética de cena.

Num artigo pubUcado em 1901; em «La Revue» e in­'t itulado «Corno reformar a nossa encenação», já Adol­phe Appia escrevia:

«Oheçamos agora ao ponto crucial: é necessária aI

p7:asticidade da cenografia para a harmonia das atitudese dos movimentos do actor, As imagens .pint adas nadatêm. que ver com a' Vida) mas são apenas uma espécie delinguagem hieroglífioa. O seu significado abrange ape­nas as coisas que toca de perto - e nada; têm que vercom o ')'f!al) não' têm o mínimo coniacio orgânico com oactor.

A pla.s'tioidade requerida pela expressão do aciordeve. ter um efeito completamente diferente: o corpohumano não 'pretende produzir u/ma ilusão da realidade J '

é ele próprio realidade. Portanto) tudo quanto se exigeda cenografia é 'uma simplicidade que ponha em relevaessa realuiade.»

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Os resultados destes conceitos [uauiaanentau: para acriação do envolvimento cénico do actor estão bem pa­tentes nas mais conseguidas realizações cenoçráíscas doTeatro do nosso tempo.

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o leitor benevolente que me seguiu até aqui reparouque, a pouco e pouco, deixo a música tomar o passo aotexto falado e talvez se admire ou, até, se formalize.Para a clareza da exposição, devo prosseguir, ainda, estaviolência aparente e reservar-me para, bem depressa, ex~

plicar os motivos. Não consideremos, pois, de momento,senão a música e estabeleçamos, uma vez mais, a se­guinte hierarquia: a música impõe aos movimentos docorpo as suas durações sucessivas; esse corpo transmi­te-as, então, às proporções do espaço; e as formas ina­nimadas, opondo ao corpo a sua rigidez, afirmam a suaexistência pessoal - que, sem esta resistência não po­deriam manifestar tão claramente - e fecham, assim, ociclo; porque não há mais nada além disso. Nesta hierar­quia, 136 possuímos o texto musical, para além do qualtodo o resto segue automàticamente por meio do corpovivo .

O espaço vivo será, portanto, aos nossos olhos, egraças à intervenção intermediária do corpo, a placa deressonância da música. Poder-se-á mesmo avançar o pa­radoxo de que as formas inanimadas do espaço, para setornarem vivas, têm de obedecer às leis de uma acús­tica visual.

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4 I A cor viva

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Este capítulo devia íntitular-se: a luz viva; mas ha­veria tautologia. A luz é, no espaço, o que os sons são notempo: a expressão perfeita da vida. Também não fa­lámos de música viva, mas apenas de uma duração mu­sical que contém o espaço. A cor, pelo contrário, é umderivado da luz; é dependente dela e, sob o ponto devista cénico, depende de duas maneiras distintas: ou aluz se apodera dela para a restituir, mais ou menos mó­vel no espaço e, neste caso, a cor participa do modo deexistência da luz; ou a luz se limita a iluminar uma su­perfície colorida, a cor continua ligada ao objecto e nãorecebe vida senão desse objecto e por variações da luzque o torna visível. Uma é ambiente, penetra a atmos­fera e, como a luz, toma a sua parte no movimento; está,portanto, em relações intimas e directas com o corpo. Aoutra só pode agir por oposição e reflexos; e, se semove, não é ela que se move mas o objecto a que per­tence; a sua vida não é, porém, fictícia como em pintura,mas é, na realidade, dependente. Uma tapeçaria verme­lha, bruscamente afastada, é arrastada no movimentodo gesto; mas não é a cor vermelha que participa no mo-

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vímento, é a tapeçaria, que a cor não pode abandonar; ea mesma quantidade da mesma cor espalhada sobreo painel de uma porta, seguiria o movimento passivo emaciço da porta. O efeito, bastante considerável, da ta­peçaria que se afasta, resulta da leveza do tecido colo­rido e não essencialmente da cor sobre o tecido. Estasdistinções são necessárias para o justo manejamento dacor no espaço vivo e provam a diferença que existe entrea cor em pintura - ficção sobre a superfície plana - ea cor em acção, distribuida efectivamente no espaço.

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.~d.:!

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Na verdade) como Appia salienta) logo: ?to 'começodeste capítulo) é sempre da luz viva' que se trata - daluz em movimento. A partir deste momento). a pinturaperspectiuaâa no espaço a duas dimeneôe« está irreme­duuoelmente perdida para o Teatro . O que se pretendeagora é que a luz transmita vida - e) portanto) movi~

menta - à cor) sendo a inversa também verdadeira.Todo o universo do lugar dramático se transfigura

a partir das concepções de Appia) aliás)-também nesteponto) em. perfe'ita ooncorââncui com a,s de Oraig.

O autor não chegou a encontrar-se com os fantásti~

cos recursos da técnica moderna de iluminação. Mas pre­viu-os) ieorizamdo uma estética nova) que haveria deimpor-se irresistivelmente. De tal maneira) que a lueviria a desempenhar) em cena) o papel que Appia reser­vara para a música.

N o final do século passado) com as primeiras tenta­tivas de iluminação elécirica, a luz era apenas um meiotécnico de reproduzir fielmente o lugar dramático. Nãodesempenhava) como salienta Denis Bablei, qualquer

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papel aotivo na valorização do drama) não intervinha naacção. A luz era um elemento passivo.

Em 1876 produz-se) porém) um facto capital: durantea representação das suas óperas) eni Beireuie, RichardWagner mergulha a sala no escuro. Esta reforma) queesperaria iquatro séculos (fora preconizada) em 1598)pelo itaZwno Ingegneri) foi) a P<?UC0 e pouco, tuioptadaem toda d Europa. «Na origem - explica Bablei - estareforma corresponâe a uma necessidade de ilusão: omundo fiCtício da cena s6 pode perecer real na medidaem que o espectador, à falta de pontos'de referência) nãopoderá comporá-lo' com a realidade. A obscuridade da­sala e a luminosidade do 'palco orientam"a sua atençãopara 'a cena) O'njo quadro limita a superfície luminosa».

Mas era) ainda) de 'tfma ' superfície luminosa que seiratava)em que a luz S6' fixava no espaço a duas dumen-sões perspectioado pelo pintor. .

Foi em ,1895 que AdolpheAppia escreveu «A Encena­ção do Dramu: .Wagneriano») verdadeiro tratado das téc~

niccs de i.luminação cénica moderna. Na verdade) é aíquecomeça a. descobrir a.s autênticas fontes que a elec­iriouiade oferece 'ao Teatro. E) desde então) a iraâiçiiodos efeitos luminosos proseequirâ até os nossos dias.Appia pretendia: Actor, espaço, . luz, pintura: todas astentativas modernas de reforma cénica tendem para esteponto essencial, isto é, conferir à luz todo o seu poder e,através dela, ao actor e ao espaço cênico o seu valorplástico integral.

A luz .passou) portamio, a desempenhar um papelactivo na valorização do drama) a intervir na própria

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A OBRA Dm,~~m. VIVA

aoção.. A}U$ passa ç cpli1JUl-r acena momento a momento,a revelar a·presença das energias elementares, A verãa­deira luz de cena tem de ser urna radiaçãO) um nimbo) umelixir subtil.... Um texto, como esoreveú Robert Eàrnondc!ones, nõo é uma m4ci~Ú~"a correr a toda' aoeloouiade

.. I , : . • ~ I' .1 t') , ) '-.1,. . \ . ,o)

'para a. ~ltima âescuia do .pq,no) mas um qrg'anismo .·vivo.E a'íuz faZ parte ~ssd ..~. - é uma iui viva ( ... ) IZu-

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mina.r urna C,6JJa coneiete nõo s6 em projectar luz sobre, .. ' ,) , .. , . .

o objecto, mas, ,sçbretud?? ~p'bre o suojecto Os objectosque se ilumi~m t~m. litl:?tP1! uoluanes, contornos e) por­tanto) corresponâeta .~ !PJ.1flff [isica do drama - os aoio­res, os cenários, os aoessários, Mas o subjecto (ou sub-

. . . . .; ~: \ ; . \ .. . .. . .. .texto, se nos socorrermos, de Stanislavski) que se iZtrmina. é a prôpria ess~, o" espiriio .do ·drama. Ilumi­nem-se 08 aotores e á ·.q~na, é verdade, mas é precisoiluminar também o prÓprio texto. Revela-se o texto.Usa-se a luz como se usam as palavras (e, portanto,adquire, como arte de duração, o relevo rítmico da mú­sica) para elucidar uieuis i/emoções. A luz torna-se umelemento de expressão;'A luz tem de ser Iúcída».

11, PC>W, em v~z 'da m~a,' como Appia Pretendia­'aituza q'l«3 ela mantenha la função que lhe atribUiu) por

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exemplo, no teatro épico breolituino - a l~ que ...corres-ponde àS durações 'da' 'nossa Vida, interior, partilhondocom ela a incompatibilidcuie com a duração dos nossosgestos quotidianos». Com efeito) toâos os 'conceitos ex­postos por Appu» em relação à música poderão apUoar­-se) com. toda a propriedade, à luz e à cor vivas) em mo­vimento.

11 'curioso notar como o próprio Ovnema viria. a apo-

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'AIYO:t'PRE APPIA

derar-se 'da8'ideias de Appia. 'Bela -Bolazs, discort1mdoaCerca do (moVimento das cdres»; em: Estética do' Filme;eecreõei;':~'" .,' \ . 00 ',\ !o,t~ ~ ') i O

, \ '01.:., ,o,~.,.o ;"

'l' ' «A pe-rjcitd tomada de' cores, ';;U; fÚme) o criaráü~noVit' época dã' 'arte) uma novei \'e~f8fd' d~ eX1úiridnêidsJgrande e miúrampwsCt) que p;e.n)itra~;§\ R:'nos8d' 11;ensi'biU-

\ : '. ". o".· \ o" \ •. r'''1 "",'" \\ \, I "~ (I . ,,~ \ ,I • I ':

âaâe como nenhuma Outra a'rle' o '.o'onseguiu' até hoje. E).'. .. -\ .........., . o,.: -', ',r. ... , r t " 0'0 .' \ # ... ~ ,. • . c' 'I •menos do que' quaiquer outra; d '}pitt'tui'a:~ Produiir-seo~á Ó

m6V1mentoO dâs °cores' (o subUnhddo>,d (nc;'ssoJ .(àciescen-". ., , .... '.' • ~. '. ... . ." "i ':- ,-, . \ r·f· ,. ~ .., "Ó; '0 \ {f I .. ' ." , "; •

tendo-se que\Balazs se esqueceu'de 'acrescentar que aoTeatro se deveJ antes' de' em quàlqu&l'outra arte) o°mo­vimento cromâtioo), 'Porque rciz'â'c{'o pôr do sol) quandopiniaâo, causa tão míiero 'ef8-jtó?PorCi.1!é uma vez pin­tado torna-se qualÇruer coisa; fi63à '1íô ternpb; qUandO nareulidade rw.turâr'eStá. em'Omqvtrrlento'>.o' pôr do soln/tó')é um''lq?i:adr'/); é '1homme:nto"~(~s~ s1Jie~$ivas ~Udàn­

çd8' (ie cam~nte~' ~01istitué~t~~2l'b~íaaa) ~ma o sinfemia;rOrtíática' qJe sóo'ó')i'lme d"dor~g,iJ8a;;h>re;rOdu~ir.··, •• .... , 0'1. ::"\., . o. " ,~ .'iJ.\'S.J,).t- ·ti":I).l(~.\;,';.': ' .. , ,o "

«Nenh:tt~r'.pi~~pr poderá. ~~,~~r;sBo~~~bescer ode umacrumça -. Um pintor poderá pi~tar a,.p,a,lidez de um rosto}

• '. • f ~ ~: • , • • . \ .\ I"" ,',' I .r .não o gradUal. empalidecer de.um,rostà.Nem o,jogo dascores sobre 'as onâas, 'nem o ~e'jÚ~~o I d~. um raio de' sol

\,' : ", • . ,. 1,·,1\., J •

sobre rostos bronzeados. Mas o.tilm'e a cores poderá) nospri~ros p'üfMS; ~eproduzii::~) :Im~ .ÚVÇ3s mudanç~)descobrir um mundo .novo ,do qual,hpj~/r~~·,sabemo8J

ain4a que, na realidade) o veja,mqs, todos os. duu:»,Ora tudo isto já o Teatro-coneequiu. realizar pela

aplicação do binómio luz-cor. Quando Balazs acrescentaque <a afinidade e 'contraste de.ooresoriariicçenire as.

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A OBRA DE ARTE VIVA

imaçens, relações ainda mais profundas do que as rela- . .ÇÕ<3S formais», nada mais faz ao que apoiar-se nas .con ­cepções da arte viv~ de Appia) mesmo ainda quandotuiüz que «as cores têm uma grande [orça simbólica e.determinam sugestões emotivas».

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Isto conduz-nos aos princípios, inevitáveis, dos sacri­fícios e das compensações. Conhecemos já as vantagensconsideráveis que o pintor encontra na imobilidade dasua obra;. mas, não observámos ainda de que naturezaserão os sacrifícios impostos à arte cênica (e dramática)pela .imobilidade e quais poderão ser as compensações.Comecemos pelos sacrifícios. Em !primeiro lugar, nãose trata d~ escolher um instante especial - um instantede selecção - c0Il?-0 fazem o pintor e o escultor; o mo­vimento ~ uma sucessão; podemos escolher a sucessãomas não detê-Ia num minuto preciso. (Ver pág. 34 a res­peito "do quadro vivo). Num instante preciso, ·a pintura.encerra'o contexto do gesto que escolheu; pelo contrário,se se interrompe a sucessão do movimento, a atitude quefica imobilizada é bem o resultado do movimento prece­dente e a preparação do que se lhe vai seguir, mas nãoos contém senão em potência; ela não os exprime efec­tivamente como a pintura o pode fazer. Esta interrupçãoé arbitrária; o seu carácter é fortuito; por ela, o rnovi­mento sai 1J1ll instante do domínio da arte . Ora é, noentanto, o princípio da imobilidade .que dá à pintura o

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A OBRA DE ARTE VIVA

seu carácter acabado, a sua perfeição; a arte viva deve,pois, renunciar a esta perfeição e, para a cor, o sacri­fício é muito sensível. Se o movimento se torna mecâ­nico, poder-se-á, em rigor, imaginar uma fixação bas­tante minuciosa dos elementos de expressão para queela possa pretender a uma semelhança de perfeição. Osacrifício seria, então, renunciar à arte, sem qualquercompensação. E, no entanto, há grandes artistas que,pelo mesmo caminho que acabamos de percorrer, che­garam às ernarionettess artículadas e adoptaram-nas.O seu desejo de se encontrarem 868 perante a cena, pomoo pintor no seu «atelier», .prevaleceu! :m 't alvez desculpá-

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vel. No entanto, c.omo imaginar-se uma .huni anl dade cor-poral viva quepossa, à lá lonçue, contentar-se com umaarte dramática automatízada.? Não seria impor-nos aobrigação de ser ainda mais passivos do que já somos,no Teatro? Ou, então, esses artistas querem, por esse·meio, pedir-nos, a nós, espectadores, uma contínua ani­mação das personagens, actividade que não teria, porém,nada de comum com aquela que qualquer obra de arte re­quer de nós, uma vez que. a arte dramática é, antes detudo, uma arte da vida e .que é, justamente, sobre a re­presentação dessa vida, dada como ponto de partida, que­nós devemos operar uma síntese.

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Como o leitor já se 'aperoebeu, pelas notas anteriores}Appia refere-se} especialmente) a Gordon. Craig} que põecomo princípio fundamental 'da existência da obra dearte o s~ caracter de permamêncui, de eternidade. Can-

o suieramdo aCidental o trobalho do ' actor - a interven­ção .do 'oOfpo"vivo - Craid it5J/âd~ite a pos6-1biLidade

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de o integrar na obra de arte 'teatral e} daí) a sua con-cepção da csurmarionetiee, 'I:'~ " , .

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A..inda que de uma :i'!!l'P?71d,ncja.,transcendente} é ape-nas o neste ponto que Appia, e :Or:aig se afastam irrecon­ciliàvelmente. Poâeremos.mo eniomio, 'afirmar que Appianega o princípio da perrnan~ncia) . ·da eternidade) comocarácter essencial da obra de,arte viva? Parece-nos quenão. A idealidade dos conceitos de Appia tenderia paratrcnejormar a pr6pria vida numa obra de arte) integran­do-a no universo) como pretende Artaud. Ora a vida tem)em si) esse caráoter de permanência) de eternidade) nasua constante renovação. O maior interesse da obrade arte viva - logo) do Teatro - é a possibilidade Macompanhar essa permanente renovação) ainda quando

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A OBRA DE ARTE VTVA

Se trate do mesmo texto dramático. E esse poder de re­novação da arte do Teatro em si própria que confere aactualuiade - e) portanto) a eternidade - ao, poeta dra­mático. (Que são). afinal) as sucessivas encenações deShokespeare ou de Moliere?).

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:m necessário chegar a este extremo de uma lógicaenganadora e respirar-Ihe os rniasmas destrutivos, parase aspirar, em seguida, mais amplamente, a atmosferatónica da arte e, no seu cume, de futuro, a sua disciplina.austera. Em arte, a lógica é a vida (e não o inverso).Podemos pressentír a vida suficientemente para a evo­car. Nunca 'poderemos compreendê-la. E, se o artistade génío se encontra perante a sua obra acabada como·diant e de um mistério - um mistério para o artistacriador - é porque nos deu, sem saber, a explicação davida num símbolo i e ele sente i e chega a sabê-lo ; - enós também! - Uma arte' mecanizada seria semelhanteao automóvel que ,PÕB à nossa disposição o espaço e otempo sem nos dar a expressão. O artista, oferecen­do-nos apenas um. símbolo, persuade-nos, ao mesmotempo, da nossa potência misteriosa e das nossas limí ..tações: ele modifica o nosso desejo apaixonado de co­'nhecer e cria, assim, a obra de arte cuja existência vemtransfigurar; as muralhas que nos encerram. Ele nãonega a presença dessas mulheres, mas torna-as diáfanas:-com ele, tocamos o obstáculo, mas não o penetramos.

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ADOLPHID APPIA

Dír-se-á: tudo, isto a propósito da. cor? Sim; o sacri ..fíoio, quase completo, que, a arte cénica deve' fazer' dapintura é um dos mais sensiveis.c-. e, para alguns, dosmais duros - que-exigirá ã-: nossa economia. Pede-nosuma profunda transposição das nossas noções habituaise dos nossos desejos; e ·os argumentos mais sérios sãobastante fortes para nos convencerem.

Analisando o caracter próprio da pintura, vimos quenão tem nada de' comum com oespaço e aduração vivos.Convém, portanto, dLstiniUiT'!inteiramente a ídeía da

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pintura - agrupamentos ficticlos de cores~ e a idéiada cor em si própria. A' modificação de Taíne encontraaqui a SUa aplicação ~ai.S radical: porque não é só aoencanto da pintura que é:preciso renunciar, mas e so­bretudo a um número incalculável de objectos que sóela pode apresentar-nos. O empobrecimento é, assim,extraordinário' e' supõe Urna compensação proporcionalao nosso sacrifício. A menor concessão do artista cria­dor recusar-nos-ia a vida da ' arte; a sua revelação seriailusória : Ilmitar-se-ia a cobrir de ouropéis as nossas mu­ralhas, em vez'de penetrá-las de luz .

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Pela prirneira vez e ~ propósito de pintura, tocamosna própria. fonte da arte dramática. Até agora, os prin­cfpios elementares que expusemos e defendemos podiamaplicar-se à nossa arte dramática da mesma maneira queo contraponto rigoros·.i:·encontra o seu escoamento e asua libertação na comsosição musical livre; e teríamos'podido infringi-los à n6ssa vontade, como um pintor mo-

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ADOLPHE APPIA

difica as ' proporções' dó corpo .parai aumentar; ocasío­nalrnente, a sua 'expressão, mas .Isso; sempre, com a. con­dição de conhecer perfeitamente ' essas proporções.: Coma pintura, não há possibilidade i dê' escolha; é o, próprioprincipio da pintura que se opõe ao seu emprego na cena.A arte dramática não é uma, arte na força literal dotermo, senão quando renuncia à pintura. ,]i} para ela umaquestão de vida ou de morte, 'até naeua própr.ia concep­ção. Tem a obr-igação absoluta de ,substituir, de uma

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maneira ou de outra, o que entendemos por, cenário pin-tado. A reforma atinge, portanto; o'p~óprió ' drama. Mas,antes de abordá-la do ponto de vistageral que atlngimospelas nossas investigações, alguns .exetoplos e conside­rações de pormenor torná-la-ão ,~ai~, ~,e~si:eL

Queremos representar, em cena, uma paisagem compersonagens ? Se sim, teremos, uma 'paLsagem, talvez,mas' sem relação possível com, as personagens; teremosuma paisagem, por um lado, "~: personagens, por outro.Queremos ·parsonagens em umapaisagem pr ecisa ? Novo.impossibilidade: elas estarão diante da pintura, mas nãopoderão estar dentro! Ou, então, tratar-se-á de um e.~­

tilo particular de construções, uma rua 'h is tàrl cam enteprecisa? Essa rua será, necessàrlamente, em grandeparte, pintada em telões verticais e o actor passearádiante dessa pintura e não na rua. Se, no entanto, a ruafosse construída e inteiramente cconcebida em três di­rnensões (o que seria, em todos~s casos possíveis, umluxo despropositado ao fim erm.vista) a arquitecturaprecisa mas Bem consistência e sem peso seria posta 'em

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A OBRA DE ARTE VNA

contacto com um corpo vivo que possui uma e outro 1.

Será a mesma coisa para todos os lugares que o au­tor escolha, se não partir exclusivamente do .corpo plás..tico e vivo do actor. JiJ desse corpo que o cenário devenascer e elevar..se e não da imaginação isolada do dra­maturgo; e sabemos agora que 136 ele tem a palavra emrelação ao espaço.

Uma acção dramática contém, todavia, quase sempre, .noções que o texto não basta para nos dar. Será 'neces ..Bário recorrer às indicações da cena shakespeareana ?'Apesar de tudo, elas não são de todo más, Mas .há, evi­dentemente, outro meio, mais' discreto e mais acertado;porque a coisa escrita e lida pelo espectador durante adeclamação dos actores sugere uma analogia inc6modae as palavras escritas estão bem distantes do coJ:1po emacção. Essas noções a que recorremos para a pintura docenário não têm que exprimir qualquer coisa, mas ape..nas significá-las, porque um letreiro bastava paraorien..tar o espectador. Não haveria, diremos nós, na economiacênica um elemento de indicação, ·de orientação, inde ..pendente da hierarquia da arte viva, um elemento que seaproximasse das indicações do texto que seria, até,como que saído desse texto para, directamente e porseu turno, criar o espaço sem passar necessàríamentepelo actor? Esse elemento seria, por consequência, dis­tinto dos elementos expressivos, dependendo só do .actor,

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1 Recordamos o éfeit~~) penível que produzem as construçõesmentirosas e efêmeras dae~lgrandes exposições e como falseiam 8.8

sensações e o gosto. (N. coA.)

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ADOLPHE APPIA

e poder-se-ia chamar indicação) por oposição à expres..são) cuja ordem é estritamente hierárquica. A indicação(ou sinal) representaria, na cena, a porção de texto quenão diz respeito ao actor e seria, para os olhos, o mesmoque uma descrição oral do lugar da acção e isso na me­dida exacta em que os elementos de expressão - mú­sica, corpo, espaço, luz e cor - não -poder iam dá-la nemtolerá-la; pertenceria ao texto, o qual significa e nãoexprime; mas dirigir-se-ia aos olhos. Por exemplo e poranalogia, a expressão musical, quando não é fecundadapelo poeta, fica nas generalidades; a arte dramática, queprecisa, seria prejudicada. Ao texto falado, em simesmo, falta a expressão directa que a música lhe con..fere. Teríamos, por um lado, a expressão sem a indi­cação; por outro, a indicação sem a expressão. Ora, parao espaço, as coisas passam-se da mesma maneira; a ex­pressão soberana que a música do corpo lhe confere deveser fecundada, na arte dramática, por uma significação,qualquer que seja; os nossos olhos como os nossos ouvi­dos têm necessidade de ser orientados. Se, portanto, oselementos de expressão não contêm implicitamente essaindicação -inteligível e se o texto não a contém suficien­temente, é no espaço que devemos encontrá-la.

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Appia, ao .aludir aos sinais ou indicações quer refe­rir-se a tudo quanto no texto constitui elementos expli­cativos) escritos pelo autor) que orientem o enoenadorna, criação do lugar dramático ou orientem o espectadorpara a inteligência, do texto, '

Toda a fulminante evolução âa estéiioa de cena quese operou a partir da primeira década deste século sedeve) fundamentalmente) aos conceitos de Appw. Naverdade) assistiu-se à morte irremediável do papel pin­tado/ da perspectiva no plano) do «trompe-l/oeil», E) s6 aparrtír ae Appia - como também de Oraig - é que sechegou à oonotusão, como salienta Raymond Oogníat(Les Decorateurs de Théâtre) de que o «facto da c6'naser wm espaço a três dimensões exige que o artista en-oonire o meio de dar a cada parte desse espaço a sua­vnvportânoia em relação ao conjumto». Ultrapassou-se)portanto) e deixou-se para trás, a perder de vista) o es­tilo dos pintoreS-ilUS1~!adores das escolas francesa e ita­liana, (mas prinoipaZ~.:·ente da primeira) para se consi-derar que não s6 o e~' aço oénioo é um espaço a três di­mensões) mas mais,' ~ odos os elementos que detvnem. o

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ADOLPH.ID APPIA

lugar dramático e criam o enoolvimenio são elementosplásticos a três dimenSões - em movimento cromáticopor recepção e âevoluçõo de luz em movimento.

Recorde-se) porém - como salientemos anteriormen­te - que o acior, segundo Barrouit, pode) pelo gesto epelo m(1)imento - pela ô1W expressão plástica dinéZmicaa quatro dimensões - preencher todos os espaços va..zios da cena. E) então) a tendência mais evoluída será.para o máximo de economia de elementos cénicos) numabusca da maior sobriedade e simplicidade. E) a mais detrês dezenas de anos de distâmoui de «A. Obra de ArteViva)'») Brecht recorre ao sinal, à indicação e até à expli­cação escrita (quando não oral, como nos seus pró2ogoscorais). Nalgumas das euas mais· célebres encenações(especialmente das peças didácticas) o autor de «O 01,1'­culo de Q1z Otiucasiomo» reduz toda a estética de cena asinais) indicações e explioações) quer através de »otu­1'n88) quer de cortinas) quer de simples letreiros) quer daluz) quer do gesto e do movimento) quer da própria pala­vra. E a sua forma tiuiléctica de transmitir um Teatrodialéoiico.

Brecht é) eouieniemenie, um caso ímpar no Teatrodeste século, reunindo) como até hoje' ninguém o conse­git'iu) todas as qualidades do Dramaturgo, com o signi­ficado e a latitude que Appia lhe atribui.

«A. vida de cena) como nos descreve Oonstantin Fe ..dine (Un Eternel Chercheur) foi (,<;,pldnoton que aZimen..toii Breclii nas suas infatigáVeis 'ki~vestigações de esOt'i..toro O seu gabinete de dramaturg~tera o começo e a con­tinuação da.. cena». O elemento a11 cooperação dominou

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A OBRA DE ARTE VTVA

toda a obra de Breclii, 'sem desprezar a cooperação do .pr6prio público. «O, trabalho de dramaturgo era paraele um trabalho de enceruuior: o futuro espectáoulo es­-iaoa já contido no. drama e s6 o .ootectioa podia ver an­tecipadamente o especiâculo no manuscrito. Eis porqueo gabinete do dramaturgo se tornou) para Breohb, umlaborat6rio. com numerosos cssieienies. ( ...) O palco toranou-se, para ele) a arena da' 'cooperação com o especta­dor. .ántes mesmoiia primeira representação) a convpa­nh.ia era já submetida à crítica' do espectador.. A ponteentre o palco e a sala existia) portomio, mesmo omiee dapZateia se encher pela ~meira vez partio. estréia»,

O espectador começava) pois) antes, a Msumir umaatitudr3 activa perante o âriuma. Mas) para isso)~ Brecliientendia que deviam ser-lhe fornecidos todos os elemen­tos) todos os sinais) todas as indicações) todas eis expli­cações) para que a actividade inteZig8'nte do público seexercesse nas condições mais favoráveis.

E) a partir disto) podemos uma vez mais saZi&'ntar aoonjusão que domina a estética de cena usada em. Por­tugal (no exemplo que vamos citar estabelecida por umenceruuior espanhol). Em' «A VisÚà da VeZha Senhora»,tomou-se e tratou-se como coro da tragédia o conjuntodas quatro personaçene que abrem o. eepeciáoulo senta­cl:as no banco da gare da estação de caminho de ferro e a

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que o autor chama) . , 2.°, 3.° e 4.° homens (Quando setrata de tragédia 00 ,/ oisa que o valha) certos encenado-

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res menos eeotareouic e certos pseuilo-homens-deLteatromenos eooluidos en. enluum-se desesperadamente em.

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ADOLPHE APPIA

desàobrir um coro que a maior parte das vezes nãoexiste). Ora;« verdade é que as referidas quatro perso­nagens de Diirrenmati não têm nada que ver com umcoro. O dramaturgo 'USou um proceoso breclitumo de nar­ração dramática. Elas desempenham o .papel oral e mí..mico de sinal, indicação e explicação. Daí terem elas) ~

como souentámoe noutro lugar) a função M oruuioras deritmos (visív.eis). E) a estranha oonjusão do enoenaâordeste espeotâculo - como às vezes se acerta por meroacaso! - é que) tendo-as considerado como coro, as fez'agir) precisamente) como einat, 'como indicação e comoexplíoação.-·oomo elementos potenouiis da acção (àsvezes transjormadoe em letreiros vivos) que) em deter­minados momentos) se integram completamente nela. (Ocoro) repare-se) nunca se integra na acção), E) a linhabrechiianade estilo cénioo consumou-se, uma vez mais)pela força do acaso) quando -se verificou não ser possívelobter o material eléotrioo de projeoçiio de diapositivosque dariamrp em estilo lanterna; máçica, os.~ ·C:iiferentes lo-­cais em qu~ a acçiio se situa. Daí 'resultaram (como seum anjo .b'qm velasse pela pureza do espeoi áculo no es­tilo que rhdl convinha) os leitores breoliiumos.

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A pintura significa as formas, a luz, as cores, etc"numa ficção' parente da',' do texto poético sem música;ela é, portanto, qualífícada 'par a assumir o papel de SI­nal visível, na orientação, quando indispensável. O seuipapel será dependente de toda a hierarquia cênica, àqual, no entanto, não pertencerá. Os elem-entos de ex­pressão só recorrerão a 'ela em caso de urgência; e, damesma maneira que as rubricas shakespereanas nãomencionam os pormenores de uma 'paisagem ou de umaarquitectura também a indicação píctural apenas daráum índice sucinto, sem uma linha mais do que as neces­sárias para ~ nossa breve' e pronta orientação: substi­tuirá com vantagem as rubricas escritas - eis tudo. Emmuitos casos, a luz e a cor vivas poderão aproximar-seda indicação, precisando a sua expressão pela forma, omovimento de uma sombra, a cor ou a orientação deuma claridade 1.

1 Uma latada pOde~d!Car-Se simplesmente pelo recorte dassombras que a luz do .:Jto lança no solo e nas paredes, em queparticipam o corpo viV'~~ e as formas inanimadas, Esse recorte,feito de obstruções ínv ~íveis, pode tomar parte no movimento,tornando as sombras m.'~ei8 à vontade. (N. ao A.)

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ADOLPHE APPIA

AJ3 divisões sistemáticas atenuam-se, assim, natural­mente, no exercício prático do dramaturgo - encenador- mas são, no entanto, indispensáveis ao justo marie­jamento dos factores da representação. E, ainda, umaordem de sinais, sem emanar precisamente do texto,nem servir de orientação necessária, como as indicaçõesde uma partitura para justa interpretação da música:precisam a expressão sem explicá-la: confirmam a ic3 ea­lidade do lugar num símbolo visível e arrastam o corpovivo nesse símbolc. Certos pormenores do espaço, dacor fixada, juntos às flutuações de luz, de cor ambiente,de obstruções parciais projectando sombras mais oumenos móveis e que nada significam de preciso, mascontribuem para a vida do movimento, são dessa ordem.Sempre com a condição do corpo as agregar como fa­zendo parte da sua criação no espaço. O dramaturgo­-encen ador 6 um pintor que dispõe de uma paleta vivci)'o actor guia a SUa mão na escolha das cores vivas, nasua mistura, na sua disposição; depois, penetra ele pró­prionessa luz e realiza, em duração, o que o pintorsó teria podido conceber no espaço.

Renunciando ao seu papel fictício na pintura, a corobtém vida no espaço i mas torna-se, então, dependenteda luz e das formas plásticas que determinam a impor­tância variável. A sua realidade vl<>ya priva..a dos objec­tos que representaria' ficticiament~numatela; não seráa ela que deverá recorrer-se paraJ.~a representação dosobjectos em cena. (Excepção feita~i como vimos, aos in ..

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A OBRA DE ARTE VIVA

dices, aos sinais, indispensáveis à .or ient ação do espec­tador) .

A cor viva é a negação do cenário piritado. -Quaisserão) para a arte dramática) as consequências de talrenúncia?

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II

ti·i

5 I A fusão

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Quando um pintor procura o seu modelo, conserva,em imaginação) as fontes que lhe oferece o processo dearte que emprega e as restrições, os' sacrifícios que lheimpõe. As possibilidades e impossibilidades da pinturaestão sempre presentes diante dele ; e habitua-se tãobem, que a sua vida de pintor e a consciência que temdas condições da sua profissão se identificam: para elenuma afirmação: é pintor, portanto goza de tais vanta­gens e deve consentir em tais sacrificios. Isso é paraele indiscutível e é apenas no interior desse quadro quetenta as suas pesquisas. Desse ponto de vista) que sepassa com o dramaturgo? ~e é um verdadeiro drama­turgo) toda a sua actividade tende para a representaçãoda sua obra escrita: .quer dirigir-se não só aos leitores,mas também aos espectadores. Como a representação sefaz no teatro e não é ai que se elabora um manuscrito,o dramaturgo vê-se obrigado a distribuir a sua atenção

kentre um trabalho dW\ que é senhor - o manuscrito dasua peça - e um P~({1.~sso que escapa ~ sua concentra..cão cerebral- a en(;f'tnaQão dessa mesma peça. Oscilaentre as duas situaçé~s como faria um pintor se a sua

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ADOLPHID APPIA

tela estivesse já dependurada, ainda vazia, na exposição,enquanto a sua paleta tivesse ficado cheia de cores fres­cas no seu estúdio; na exposição, procuraria evocar a-ordenação das cores; no estúdio, desenharia ardente­mente a superfície libertadora da sua tela. Simples­mente, para o dramaturgo, o desejo de uma cena é me­nos preciso do que para o pintor o da tela; a paleta dra­mática transborda de situações e pode, em rigor, bastar....lhe; entrega..se, portanto, em solidão, a esse jogo, umjogo.perigoso que s6 abrange metade da sua obra. Vem,então, o momento da explosão, isto é, de representação!O autor levai ao Teatro a notação de um trabalho concen­trado e recolhido. A sua tela, a cena, tem as qualidades·e as dimensões sonhadas no silêncio de um gabinete detrabalho? Que importa! A cena é acena e é pegar oulargar. A peça é que tem de acomodar-se; a cena nãose presta a .concessões: nem sequer foi feita para isso.E parece evidente que é a coisa escrita no papel quedeve possuir. a elasticidade suficiente para se adaptar adimensões que se apresentam corno imutáveis.

Como o pintor é feliz! Pode levar a SUa tela para oestúdio e uni-la à sua paleta i ele preside a essas bodas,na intimidade. O autor dramático, pelo contrário, leva oseu manuscrito ao Teatro e não é, precisamentevno mis­tério e no recolhimento, nem, sobretudo, 110 silêncio quea união se consuma! As duas pa~tes conhecem-se, porassim dizer, e fazem reciprocan};yute .descobertas bemaíngulares. Garante-se que deve s~. : aSSIm, que será sem­pre assim. A noiva - a cena - 'a~ii.Yia-s~ sem se preocu­par com o gosto do .pret endenter '- o drama - o qual,

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A OBRA DE ARTE vrvA

maltratado. mutilado mesmo, acaba por semidesapare­cer na etoílettes gritante da esposa. Entram, então, osconvidados e a festa atinge o auge perante o autor detanto mal, que esquece a sua vergonha nos aplausos e notumulto. Quando esse infeliz volta ao seu gabinete detrabalho, ainda agora tão frequentado ... apenas podecontemplar papel manchado. Se se volta para a cena,apenas respira a poeira envenenada dos telões mais su­jos ainda. E, se se detém entre os dois lugares, sente asua obra escapar-lhe para sempre e perder-se na valeta.'I'al é a obra do autor dramático. Mas voltemos aos ,art:Ls­tas, os quais, assim como o pintor, identificam a suaexistência com as exigêncías favoráveis ou restritívas dasua eprofissão»: nunca terá a idéia de separar as suasaspirações artísticas mais altas dos meios de execuçãocaracterísticos da sua arte. Para um pintor, o pincel, ascores e a superfície plana que o esperam são, de qual­quer modo, a sua maneira de pensar, de imaginar a suaobra; conhece-os e não procura outros. Assim é tambémpara os outros artistas. Há um, todavia, que é uma ex­cepção: o artista que não tem 'nome, para uma arte quetambém o não tem... - O autor dramático nunca consi­dera a cena, tal como lha oferecemos, com um materialtécnico definitivo; consente em acomodar-se; vai até oponto de moldar o seu pensamento de artista sobre essetriste modelo e não sofre demasiado porque s6 assimconsegue obter um r'~.uco de harmonia. A sua situaçãoé, portanto, a de um~· ntor que só dispusesse de um nú-mero insuficiente de?" ores e uma tela de dimensões ri­dículas e sempre as esmas, Essa situação é bem pior

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ainda, porque um pintor de génio encontrará sempre omeio de se exprimir, conquanto o principio essencial dasua técnica não seja falseado, isto é, conquanto se tratesempre de pincéis, de cores e de superfície plana. Mas acena moderna oferece ao dramaturgo um contra-sensotécnico; ela não é um meio que possa ser consagrado auma obra dramática; é por unta violência ' inconcebívelque somos obrigados a aceitá-la ve 'até ·a considerá-lacomo tal. Infelizmente, o hábito impôs-se; é com essematerial que o dramaturgo a concebe, sob pena de nãofazer «teatro». O termo está consagrado: não é a cenaque se acusará de não ser «teatro», mas sempre e s6o dramaturgo; eis porque efe é um artista sem nome:não domina uma técnica; é a técnica da cena que o do­mina. O artista tem de ser livre; o dramaturgo é escravo.Actualmente não é nem pode ser um artista.

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se -

Appia, com vista a uma eetética teatral reinveniaâa,começa a encarar o problema das relações entre o textoe o Teatro como arte em si próprio) isto .~) entre o autordramático e o enoeruuior, Neste sentido) às opiniões MAppia) que se desenvolvem neste oapítulo e no seguinte)há que reunir as de Gorâon Craig .8' de Ariauâ, 'comoainda, as de 'Ltm Meyerhold) de um Tasro», de um Jessnerou de um Ealser, opondo-se àquelas dos que defendem orespeito integraZ do texto) OO1n Jccques Oopeoni comochefe de fila (s6 o texto conta; render ao poeta um cultoabsoluto). Assim se definem os dois grupos que AndréVeinstein (La Mise en Scêne Theatrale) tão inteUgenteM

mente anaueo: I

Mas haverá) na verdade) uma opoeição irredutíveZentre os dois grupos? Quer-nos porecer que não. O se..gundo e o terceiro princípios de Copeau estabelecem aponte que leva à conoiiuição dos dois grupos .. I levar oPoeta a escrever para acena)' e dotar a obra literáriade um estilo de arquJc~ctura teatral. Ora) Appia)'quandopretendia que o Draà bturgo tem de reunir em si mesmoas qualidades de ttt)} encenaâor, dizia exacioanente a

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mesma coisa. «Criar õoelo verbo uma obra dramátioa .-

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ADOLPHEJ APPIA

dizia Oopeau - e pô-la maieruümenie em cena não sãomais do que dois tempos de uma só e mesma operaçãode espírito» .. Logo) Copetni pretendia também que o au­tor dramático e o enceruuior S8 reunissem na mesmapessoa) tal como Appia e Craig. Os pilares (la ponte queconcilia os dois grupos estão) portanto) lançados e con­solidam-se quando unâni?nemente se admite que não éo Teatro) oomo arte adulta e independente) 'qu e serve otexto dramático) mas este que' serve aquele.

Ora) a verdade é que) na maioria dominante dos oa­sos, o autor dramátioo não tem em conta as realidadesmateriais da. cena (não escreve para a cena nem se preo­cupa com dotar a obra literária de um estilo de arquiiec­tura teatral). Imagina) quase senvpre, determinadas pos­Sibilidades' que não' correeporuiem. aos recursos nem aosobjeciioos da 061ià. Por isso) Craig preoonizava a exclu­são pura e simples do ouior ou admitia-o apenas, provi­sõriamente, tendo em conta '«as oondiçõe« aotuais doTeatro: «fala - corno esclarece Veinstein - da terrívelnecessidade que 0?nstit~d para o aotor a obediência nãosomente à . letra, às palavras, ,m as . também ao espírito,às intenções, continuando ele próprio/da necessuuuiepara o enceruuior de levar' ,os aotores a trabalhar emharmonia 'U/M com os outros, em harmonia oom o cená­rio, em harmonia, sobretudo) corri as uieias do cniior; damesma necessidade de criar uma o'~mografia que se luir­mônize com o pensamento do po . ~ e) para escolher asooresçnão oOnsultar a naiureza, .;';.s o texto; enfim) denão perder de vista o tema princi "iJ da peça, quando setrata de encontrar as variações moqrâfioas»,

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A OBRA DE ARTE VIVA

o que S6 passa, afiWJl- 6 a maioria dos doutri?W­

dores está M acordo neste ponto - é que ° enceruulortem de procurar) no texto) as possibilidades de tra?1-S w

posição para a cena) usaauio de toda a liberdade M inter"pretação formal âeeâe que não treMa, o espírito do autor.Dessa interpretação) materializada num conjunto de ele"mentes de tromeposição do texto para o palco) resultamde/armações inevitáveis. ,«EJ nesse sentido - 'acrescenio.Veinstein - e na perspectiva das reflexões de um Jou­vei ou de um Pitoej] e) sobretudo) de um Appia) de wn»Gordon Oraig 6 de um Artauâ, que Henri Goubier oonsi­dera ser o enceruulor .~; personificação viva das resistên­cias reais que o dramaturgo deve vencer. Essus resistên w

cias são constituídas pelos elementos que couvpôeni alinguagem cénica) com as quais «se trtmsiorma umapsiooZogia, num comportamento» (Kazan) consuiercsvio­-se o seu emprego do ponto de vista ao mesmo tempotécnico e ortistico, as qualidades artísticas partimüaresdo prático: o que Oopecni 'e Villiers chamam) sequmdoAppia, os princípios da economia dramática. Afirmadopor Oopeau, Jouvet e Piioej], proclomaâo por Appia,Gr'aig ~ Artaud, admite-se o valor prõpruimente artís­tico da interpretação) com um tüccmce mais ou menos.dilatado». Gouhier considera que o papel do enoenaâor

coneiste em recriar ~Obra e nota que recriar não podeser senão uma espéc~'J de criação inspirada pelo drama)de tal maneira queL~; encenaãor a/parece como o poetada representação, iOrr a criação implica liberdade - eessa liberdade tem dtf, usar-se em relação ao autor.

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Um dos objectivos desta obra é secundar o autordramático nos seus esforços para conquistar o plano,tão ambicionado e que poderia merecer, de artista. Paraisso, dar-lhe um material técnico que lhe pertença e co­locá-lo, assim, à medida de realizar obra de artista.

A escravidão, como todos os hábitos, pode tornar-seuma segunda natureza; e foi isso que aconteceu ao autordramático e ao seu público. Trata-se, portanto, de umaconversão, no próprio sentido ~a palavra. A função criao órgão. Que em psicologia ou em zoologia esta afirma­ção s6 seja aproximativa, pouco importa neste caso, por­que é evidente que, em arte, é solenemente exacta, umavez que, nos nossos dias, a função do dramaturgo ainda.não criou o seu órgão-quer dizer, não é orgânic'amente

que a obra de arte dramática. se apresenta. aos nossosolhos, mas por um automatismo-çartificial, exterior, eque não pertence ao seu organis t'JSerá, provàve1mente,na própria função que devemos .:(,ocurar e encontrar oponto fraco que colocou o drama irgo na dependência e

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que contribui para mantê-la.

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A OBRA DE ARTE VNA

A análise que fizemos das diferentes artes, no únicoponto de vista da arte dramática e independentementedos nossos processos de encenação actuais; .ajudar-nos-ápossivelmente a descobrir esse ponto. O princípio da de­coração não teria sido sugerido, primitivamente, pelopróprio dramaturgo? E não seria prolongado, actual­mente, esse impulso inicial por efeito de inércia e fora depropósito? O emprego desordenado da pintura dos cená­rios é tão característico de toda a nossa encenação, quetelões pintados e encenação são quase.sinônimos. Ora, to­dos os artistas sabem que o objectivo' desses telões não éapresentar-nos uma combinação expressiva de cores e deformas, mas indicar (como vimos at~ás) um,a .multidâode pormenores e objectos. :bJ, pois, dê presumir que tenhasido a necessidade de mostrar esses objectos que influiuno dramaturgo no sentido de se dirigir, ao acaso, ao pin­tor. E o pintor apressou-se a responder-lhe. Se se colocano lugar do autor quando este procura o seu tema e ten­ta fixá-lo, é evidente que esse é o minuto precioso quedecide da sua liberdade técnica ou da sua dependência.Suponhamos que ele julga poder libertar-se dos meiosimpostos, chocará logo em seguida com a concepção, nãopropriamente de um tema, mas com a pr6pria:ideia doque é um terna destinado a ser representado. Para ele éa exposição de caraCiS em conflito uns com os outros;desse conflito, result" circunstâncias particulares queobrigam as personagó s a reagir; e é da sua maneira dereagir que nasce o int? esse dramático. Tudo se faz paraisso; nunca pensou rnutra coisa; a seus olhos, a arte

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ADüL;E'HE APPIA

dramática consiste, inteiramente, na maneira de reagir,que lhe parece .susceptivel de variar indefinidamente. Noentanto, apercebe-se de que não é o caso; de que asreacções não variam até o infinito mas, pelo contrário,se repetem constantemente: de que neste sentido a natu­reza humana é limitada e de que as nossas paixões têmcada qual o. seu nome. O dramaturgo procura, então, asdificuldades - dificuldades de dimensões..Para apre­sentar um caracter é preciso tempo em cena e espaço nopapel. A escolha é, portanto, limitada. O romance ou oestudo psicológico dispõem, no papel, de um espaço .infi­nito; a peça só possui três ou quatro horas (1). É neces­sário procurar noutro lado e é, então, que entra em jogoa influência do meio. O meio e sempre histórico e geo­gráfico, dependendo de um ambiente e de uma culturaque se indicam aos olhos por um conjunto de objectosdefinidos. Sem a vista desses objectos, o texto da peçateria de conter uma quantidade de noções que paraliza­ria completamente a acção. Portanto, é forçosa a inter­venção do cenário.

O cenár.io, sabemo-lo agora, não é apenas uma ques­tão de oportunidade, como '8e pretendia fazer-nos acre­ditar; no teatro, não estamos no cinernatógrafo ; as leisque regem a cena são, acima de tudo, de ordem técnica.Querer mais ou menos representar tudo e invocar, paraisso, a liberdade do artista é levar .~~, arte dramática além

I, {

1 Pôr em cena um carácter pela d voríção e para o desenvol-vimento do qual foi preciso um vol 1'de trezentas páginas éuma das monstruosidades banais do no ;so ,Teatro. (N . do A.)

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dos S~1.fS Iimites ~, P9.J~t~~o, 40 domínio da. arte. mnqu8rU~to o autor ,perrqan~ce, perante os caracteres que. criou eas suas reacções, encontra-se relativamente s6 em rela­ção à sua obra, 1;la~1 desde o momento em que se serveda influência do meio para variar os seus motivos, en­contra a encenação .Ef tem de contar com ela. Actualmen­te, não se preocupa senão com as possibilidades de repre­sentação cénica das coisas; rejeitará determinado pro­jecto como demasiado difícil e, em geral, restringirá g.

sua escolha aos Iugares que sabe fáceis de realizar e P9­derão cOlli?ervar ;Ç. )l~ãC? que deseja. Como a avestruz,quer ignorar O perigccCorno não aperceber-se, todavia,de que a técnica decoratívaé regidá por outras leis quenão as das poasibilídades ? Atirando dinheiro pelas jane­las, o autor tudo pode obter em cena. Os romanos faziampassar uma ribeira na arena, no meio de uma vegetaçãodensa com uma floresta virgem. O duque de Meiningencomprava museus, apartamentos, palácios para realizarduas ou três cenas eo resultado era lamentável.-Não; acenografia é regulada pela presença do corpo vivo; éesse corpo que se pronuncia sobre as possibilidades derealização; tudo p que se opõe à sua presença justa é«imposs ível» e suprime a peça.

Na escolha do seu modelo, o autor não tem que inter­rogar o encenador, mas o actor ; porquê não admitir quese peça conselho 1 ste ou àquele actor ? ]J a Ideia doactor vivo, plástíc. móvel, que deve ser o seu guia.Deve perguntar-se,R r exemplo, se a necessidade de in­dicar com ínsístên] a tal meio convém à presença doactor e não s,e essi. indicação é apenas «possível». Do

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ADOLPHID APPIA

ponto de vista técnico, '.& sua escolha só diz respeito aoactor ; do ponto de vista dramático, diz respeito mais oumenos à importância que quer ou deve dar li. influênciado meio. Entre os dois pontos de vista, deve escolher emconsciência de causa e, portanto, conhecer perfeitamentea hierarquia cênica normal e os seus resultados. A suatécnica de artista determina a sua escolha. O pintor nãose preocupa com o facto do relevo plástico lhe ser recu­sado. A sua técnica não é uma questão de possibilidadesdesta ordem. Assim deve ser para o autor dramático.Não deve entristecer pelo facto de não poder colocar aSUa personagem numa catedral, mas pelo contrário, evi­tar as contingências que possam prejudicar a sua puraaparição. O romancista, o poeta épico, podem evocar osseus heróis pela revelação do seu meio; a Sua obra éuma descrição e a acção coloca-se na descrição, uma vezque não é 1)Íva. O autor dramático não conta coisa al­guma; é livre, nua a sua acção; todas as contingênciastendem a aproximá-lo da descrição - romance ou poemaépico - e a afastá-lo da arte dramática. Quanto maisindicações do meio ·for em necessárias à acção - isto é,tornar plausíveis os caracteres, as circunstâncias e asreacções - tanto mais se afastará da Arte viva. A razãoé pura e einvpleemente técnica e mnguém pode alterá-la.

Quanto mais o pintor se aproximar da escultura, me­nos será pintor; qunto mais o esculf~r procurar ambien-

\te , menos escultor será i etc . - Q luto menos o autordramático tornar as suas persona ' ns dependentes domeio , mais será dramaturgo; porq II quem diz drama­turgo diz também encenador; é sacr légio especializar as

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duas funções . Temos, portanto, de estabelecer que se oautor não as acumula em si próprio, não será capaz nemde uma nem de outra, pois é da sua penetração recíprocaque deve nascer a arte viva. Com muito raras excepções,ainda não temos essa arte, como não temos esse artista.Deslocando o centro de gravidade, temo-lo como que di­vidido; a nOSSa arte dramática repousa, por Um.lado,sobre o autor e, por outro, sobre o encenador, apoiando­-se ora num ora noutro. Deveria repousar, clara e sim­plesmente, sobre uma e a mesma pessoa.

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Appia 1Íunoa põe em cauea o fenômeno aoior como[actor de deoadênoui do Teatro. Responsabiliza) acimade tudo) o. autor dramático) por um lado) e o encenaãor,pelos vnsiruanentos e meios plástioos que utiliza) poroutro. Quanto ao actor, pretende colocá-lo acima, do pró­prio autor e do próprio encenador - apresenta-o cornoinstrumento fundamental da arte viva, sem. nunoa sedeter a anaZisar o seu valor intrínseoo. Isto é: todo oespectáculo vivo tem de subordinar-se ao acior vivo.Para o autor - logo) também para o enoenaãor - é «aideia do aotor vivo) plástico e m,óveZ) que deve ser oseu guia».

Não há dúvida de que) modemamente, aZguns dos en­cenadores mais eminentes partem do 'actor para a eme­nação. Mas) é neoessário acrescentar, do aoior no estadode personagem viva, Não é) pois) o actor que está em.causa pera se, criar a estrutura d~~:,~uma encenação que osiroa, mas a personagem. «Pre \çzmos - dizia RoberiEdanond Jones - de uma cenoçr ';a copaz de evitar quese diluam os movimentos plástio 'f) que são o principalmeio de expressão do acior, uma ·enografia que coriõen-

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ire toda a atenção do espectador sobre o mp1)imwrrto». EJ'acresoentaca que o oenário depende openas dos recursos

pl4sticQs do acior - portanto) da personaçem viva.

Gorâon Oraig) 'oomo já salientámos tmteriormente,rejeitava o actor, ligando-o ao autor para os responsa­bilizar) a ambos) totalmente, pela âecadêncui do Teatro.E os seus conceitos coincidem) a este respeito) com osde Artaud. Este consuiera que foi) particularmente} ãe­pois da Renascença queo Teatro, pela proenwnõncus oon­cedida às palavras, se tornoú um ramo acessório da lite­ratura. Para Oraig e 4ti~ud) corno Veinstein põe em re­leoo, o Teatro só enéontrará a sua autonomia artística

I : · I' ••

quando se limitar aoe ~ios próprios da cona e 0030 em-prego harmonioso constitui o espectticulo, «o Teatrorenascerá do espectâoulo tornado int egral».

Oraig ohega a admitir a necessulade de exclusão de­finitiva do escritor e do acior, «Mas - escreve Veins·tein - a exposição da teoria de Craig seria incompletaSe nos limitássemos às reflexões contuias na edição in­glesa da sua «Da Arte do Teatro» (1904); os artigospublicados 00 revista «TM Mask», fundada por ele em,

Florença em 1908) assim oomo a sua obra «Tlie 'I'heaireAdvanoing» (1920) e) sobretudo} o prefácio à edição de1942 de «Da Arte do 'I'eairo», permitem encarar um

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terceiro momento 6"?ff:'que Craig pretende resolver 'as in..coerênoias ou as coR adições que apareoerarn anterior..mente». De facto) n últi'TiWt edição da sua obra funda ..mental) Oraig afirrn~ nunca ter querido tirar ao Teatroo que quer que seja) "saZoo o não-dramático. E mais esta

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declaração seneaoioruü., <a surmarionette é o comeâumiecom. fogo a mais (3 egoismo a menos».

Qu:anto a Artauâ, entendia que devia pôr-se fim ·àditadura do escritor, dando-se às; palavras nem maisnem menos lugar do que aquele; que"~~m nos sonhos) masutilizando o valor de enca~ta'rl:ett.~o de:..que, .. por vezes)são 'capazes) para responder rlgo:rCf!C1:/~.t81.~exigbtoiasfísicas da cena. ·... ·,'r,!.; r( \", ~ " ' . \ x' ,; .; ,' .

Para ambos) o verdadeiro àrj;1,s,t'<i' de Teatr,o é o..ence-ruuior, o qual) pelo conheoimenio 'deis: reouâaâes e daitleis da cena) pelo equiZibrio (3 'pe~a : harmonia <J.U8 deveimprimir ao especiticulo, se torna, necessàriamente) oúnico senhor do Teatro. Appia) afirmando que o drama­turgo e o encenaâor devem existir na mesma individ·tUt­Zidade artistica) aproxima-se de. " Or~ig e Ariauâ, OCYm

vista ao especiáculo integral.

Voltemos a Veinstein: " .«Uma vez admitida a representação da peça) a em­

cenação, o enoenaâor especial~ta/'a .independênoia dasua função (meioe, técnica) e a 81J.,(J, natureza artística(pelas qualidades de invenção e a S1,Ut participação nuan.prooeseue artístico)) a ignordnoia ou a indiferença dosautores no que diz respeito às exigências e aos recursosdo Teatro) a analogia com a convpoeiçtio escrita) primeiroestado da criação drtimáiica, desse -segundo estado q-ueconstitui Ck elaboração da represe ", ão, os caracteresinevitáveis e necessários da def \lação q1U3 qualquerinterpretação implica (ooefioient essoai, coeitoienieoperacionai) - provnuio do envpr o de certos meiose de determinada técnica - ooefici te conetituuio pela

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variação do gosto e âae disposições do público e) emdefinitivo) a neceesárui liberdade do enceruulor, entõo,pode parecer legitimo julgar que) sem hipocrisia) o en..cenaâor deve libertar-se de todas as servidões literárias­e tomar-se um verdadeiro artista) livre, universal, semcompromissos, um criador) e deixar de ser um interme..diário) um artífice adaptador eternamente votado a fa ..zer passar uma obra de uma linguagem para outra» (Ar­ionui),

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A fusão técnica dos elementos representativos tem a-sua origem na ideia inicial da arte dramática. Dependede uma atitude do autor, Esta atitude liberta-o: foradela, não é um artista,

Neste momento, o leitor pergunta, sem dúvida, qualé, afinal, essa atitude, essa ideia inicial. Talvez tenha aintuição dela e queira precisá-Ia.

Em arte, uma questão precipita-se sempre sobre otapete provocante das discussões que não conduzem acoisa alguma, uma vez que permanecemos no mesmosítio, tanto depois como antes, Pretendo falar no temade uma obra de arte-e até que ponto uma obra de artecomporta um tema - um tema que se chama título? ­Actualmente, tudo se intitula : de um fresco majestosoe perfeitamente explícito, até à ma is fútil improvisaçãopianística. Isto leva-nos a crer que os artistas duvidamlamentàvelmente do alcance das S!\S obras e do seu in-

\'teresse, Se é, evidente que pobres , ~~retensiosos acordestêm necessidade de ser colocados ''J.n qualquer lugar defesta ou paisagem sugestiva, par iterem um simulacrode direito à vida, muitas obras ricas e viris rebaixam-se

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"ao nível de meras ilustrações com titulas supérfluos. Emmúsica, por exemplo, a indicação da. tonalidade ou donúmero de ordem dá sempre 'uma impressão de nobrezaque nenhum titulo conseguiria alcançar. A Sinfonia He­r6ica não ganha nada em ser intitulada; e revoltar-nos­-íamca se chamássemos a Nona de maneira diferente."

No entanto - e este «no entanto» é sempre ternpes­tuoso nas discussões -uma vez que são os artistasquem intrtula as suas obras, terão eles, prov àvelments,além das dúvidas que possam .conceber sobre a perspicá­cia do público, outros motivos? Terão necessidade "de umestimulante preciso .paracrian.certas obras? Há pensa..dores profundos que 'só conseguem.pensar com a·pena namão. Um título terá o lugar da pena na -mão dos ar-tístas ? .' . I ' .' " :

A questão:poderá pôr-se.iportanto, sob dois aspectosdiferentes: a preocupação do público e a necessidade deestimulante. Sabe~se com que cuidado e com que ardoros artistas expõem as suas 'obras; qual a importância queatribuem, apesar de. tudo; à critica e a satísfação .Iegítí­ma que encontram na-notoríedade.e--No entanto, eles nãodesprezam todo o público, sabem bem que abismo os se ...para - pelo' I menos nos nossos dias; e, então, lncontes­tàvelmente, os seus ~turos são um traço de união, .r es ­pendem à eterna que(fão; «Que é que isto representa 7»- Esta pergunta é ~( rimeira que os olhos do visitanteexprimem, fixaDdo-s\~ unia obra de arte; 'em"seguida ­e .é ainda uma excel\ 0- O ,"olhar torna-se, a pouco epouco, . contemplativd . Quando o visitante sabe o que

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isso deve representar, acrescenta, por deferência, o Dome

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do artista, pois sente-se-calmo: e "satisfeito e põ~se ajulgar, pelos seus olhos, .até .que ponto a obra corres...ponde ao respectivo titulo. Ninguém compraria um ca­tálogo sem títulos. Um concerto ~m programa precipi­taria o auditor na maior' das confusões. Porquê? Podesêriamente supor-se que, se I se trata de uma Sinfonia,ele se prepara para essa -sinfonia,« etc; .. ? Oh! Não.Pouco lhe importa, na verdade; mas "tem de saber o queé; i8S0 ilude a sua inércia; e so; por felicidade, o tituloé sugestivo, entrega-se a um autêntico bem-estar. Quemnão viu o olhar de curiosidade e de prazer com que per­corre o programa e o olhar, vago e desinteressado queeleva, em seguida? Qundo se aborrece, demasiado, du­rante a execução de um trecho; recorre de novo ao pro­grama para reconfortar-se; parece dizer: «Não há. ape­nas os Bons; há. tambêm -o.fítulos. E, durante um rni­Duto, escuta.de .novo..com.menosInércia. .Pode afirmar­-se que, sem a Idéia de se deslocar. e .chegur, de entrar ede despir-se um pouco, de olhar-se ~mutu~ente,. de .as ..pirar o' ar peculiar de uma sala-chel á, de ·considerar 08

executantes no intervalo, 'de comprar o programa e .decompenetrar-se, etc., o público de música a bem poucacoisa se reduziria. Que diferença entre .a expressão exal­tada e, às vezes, radiante do públjco que chega e se ins­tala e a que ele toma, mal a mÚdica começa! J1J que amúsica pede-lhe qualquer coisa tüe. esquece-o sempre,até o último momento, quando j rã demasiado tarde . ..

eo'm o programa; poderá jul . .r. Ora, nada no seuser está preparado para reagir ft,rtemente, para parti­cipar com alegria e coragem .na criação do artista. m

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preciso orientá-lo antecipadamente, para que possa rà­pidamente .pr ocur ar nas suas recordações qualquer coisa 'análoga ao titulo. Se não encontra coisa algum-a, o títuloainda o perturba mais e a ,obr a é duplamente enigmáticapara ele. Por exemplo: «Olhar no infinito». Ainda queos visitantes, na maioria, tenham constantemente noslábios as palavras eterno e infinito, nunca pensaram ne­las. O título que se pensa dar como a essência humanafica letra morta para eles. Bem podem aasumir um arentendido, franzir as sobrancelhas, que esta comédianão os aproxima de uma obra cujo próprio títt'J.lo lhesescapa. De resto, esse título resulta ou de um 'er r o dejuízo ou de um-a necessidade de ~stimulante para o ar-tista - talvez até as duas coisas. ~ '

J!J preciso não confundir o título e o tema. Por exem­plo, sabemos, pela história, que a vida dos poderososdeste mundo era o assunto imposto aos artífices-esculto­res e .pintores egipcioa ; ou, ainda, que os temas I religio­sos foram durante muito tempo , a justificação .p úbllcadas obras de arte, Isso prolongou-se, até, como um tique.Claude Lorrain dá títulos bíblicos às suas paisagens! Aítitulo e tema confundem-se para exprimir, a cultura, adisposição particular .fie uma. época; o título não servede orientação problemática. Uma 'bela mulher com umacriança nua sobre os l~' oelhos ~ão' pode ser senão a Ma­dona; e se Rafael lhe ,P. esse chamado «Camponesa de laCampanie», haveria (~ ândalo. , ' ,' ,

A cultura modernP9abriu-nos todos os campos; a di­ficuldade da escolha ~ lnto como .a liberdade do artistatocam a anarquia. A arte já não tem público; o público

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não tem arte; a arte não quer saber de nós. Forçoso é,

então, explicar uma produção que nos é tão estranhacomo um objecto exótico cuja forma nada nos diz sobreo seu uso. Por seu turno, o artista, não encontrando emn6s a sua obra - em nós, que deveríamos ser o seu temae o seu título - procura-a noutro lado. Ora, noutro lado,o tema e o titulo já não se confundem e a sua Iiber­dade anárquica empurra o artista, naturalmente, a lirni­tal'. prudentemente e desde a origem a sua concepção; de­termina-a' por um título e agarra-se a esse ponto fixoe inteligível no mar angustioso das possibilidades. O pú­blico tomá a coisa como boa, sem suspeitar de que, quasesempre, o· título é apenas o que a pena é para o pensa­dor; ele permitiu a obra; 'eis tudo; o seu valor não é in­teligível, rnas antes moral; o artista precisava dele e,acabada a sua obra, conserva-o abusivamente como umaconstrução que, terminada, conservasse ainda os andai­mes.

Pretender representar um tema é afastarmo-nossempre da obra de arte que é, na sua essência, uma ex­pressão 'pur a e simples, sem tema dado. Intitular umaobra é dar-lhe a qualidade de ilustração. Tomar um temasem o intitular, ' mesmo na sua!~intimidade pensada, étender para a obra de arte. Real~olzar uma expressão queresulta de um desejo irreSiStive~II:\sernobjectivo preciso,é fazer obra de arte. Se aconte )1' que possa dar-se aessa obra de arte tal o~; 'taí d ' !m in aç~o aproximada,isso nada tem de comum' com a .lustr ação; é, pelo con­trário, a prova. da realidade do ~áe~ejo, e da sua miste­riosa e profunda humanidade. Se a nossa arte tivesse um

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público, muitas obras seriam objecto da nossa veneraçãoe provocar-nos-iam uma emoção fecunda, introduzindo­-nos no santuário mais secreto do artista, por vezes atéo mais ignorado dele próprio.

Isto conduz-nos às noções de Indicação e de Elxpres­são, da escolha que o autor dramático faz c da atituderesultantes dessa escolha. Como os outros artistas, eleencontra-se entre 'o desejo de exprimir qualquer coisa ea necessidade de Expressão; entre o tema a exprimir euma Expressão a representar, Inclinando-se para a indi­cação, acumula noçõeaIntollgíveia cujas consequêncíassão sérias para o encenador - C9JIlO já vimos ~ e enfer...rnam, necessàriamente,' a exp'r~são que .deseja. Incli ..nando-se para a Expressão, pode entregar-se a uma híe ..rarquia normal e orgânica dos elementos da representa­ção e «representar» a sua Expressão, tão puramentecomo deseja. As noções inteligíveis serão, pois - talcomo um título para as obras de arte sem objecto - asimples consagração do seu desejo, mas não o seu pre­texto.

A fusão dos elen;}entos representativos não pode serdeterminada em si ~Lópria, por si própria. Se conhece­mos bem esses elem; 'to s, se sabemos medir o seu poderde expressão e oss. uso limites respectivos e colocá-losem consequêncía, pç.i , uímos os meios cuja realização de­pende, então, e:x:clq ', amente do autor. E eis porque aidéia de tema tomax gora um alcance téonioo; a fusãodos elementos não ~ rá mais, como nos nossos palcos,regulada antecipadamente e imposta ao dramaturgo, mas

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incumbir-lhe-á toda a responsabilidade. Tem, assim, obri-'.gação de ser artista; e, ainda que os elementos que em-

prega estejam, de futuro, à sua disposição, não os tem,no entanto, numa só mão; para realizar o seu sonho deartista, tem necessidade, sem dúvida, de colaboradores.Será. uma nova dependência? Mal .tendo alcançado oplano de artista, na posse pessoal. da sua técnica, vairecair sob tutela e perder o benefício dos seus diversossacrifícios? Qual será o alcance dessa colaboração? Seráum simples ínterauxílio ou penetrará mais profunda­mente e até à escolha do seu tema? Deixemos de parteos serviços materiais (,lClue o electricista, o carpinteiro eoutros artífices estarão;',,~spostos a oferecer-lhe; agempor si hieràrquicamente no 'que respeita o corpo do actor,que os. comanda. Consideremos apenas os elementos si­tuados àquern desse corpo, aqueles que lhe ditam a suavida e o .seu movimento; depois,,'ocupar-nos-emos dessecorpo, intermediário maravilhoso, dominado pelo drama­turgo e dominando, por seu turno, ,o.espaço, confiando--lhe a própria vida. ·

Os nossos hábitos do Teatro tornam muito difíciladmitir a liberdade conquistada peG encenação e o novomanejamento dos elementos da ~~presentação. Vemo­-nos sempre diante desse espaço li~itado por um enqua­dramento e cheio de pinturas noriéeio das quais se mo-vem os actores, separados de n6S~à?r uma linha de de­marcação perfeitamente nítida. A ksença de peças e departituras nas nossas biblioteca .)quer convencer-nossempre da obra dramática fora da epresentação. Lemosa peça ou tocamos ao piano a partitura e estamos con-

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vencidos de que vive assim' e de que' a possuímos. Dondeviria, sem dsso;'o nomede urríRacine ou de um Wagner?Não é evidente: que a sua<obrà está nessas ' folhas depapel ? Que importa, então; ,â" sua -representação; uniavez que o texto, em si, podeficar imortal? Eisa questão!O autor dramático escolheu umâ forma dearto que se di­rige aos nossos olhos e a sua notação no papel basta, noentanto, à sua glória. : "

Que seria de um Rernbrandt se tivéssemos apenas adescr ição dos seus quadros? 'Ás .cores não se 'descrevem.direis? Porque' não, se "adrnitjrnoe que 'as palavras e 'J S

sons descrevem e exprimem á'\~1j.a ar~lPnte no espaço?. " . .~,./." .. .. ;

Se essa vida não é para á obre de 'arte dramática senãoum momento secundário, at'~ 'eslno':dispen~é.vel,porquê,nesse caso, tanto barulho, ' ~ncher a. nossa vida pública eerguer templos , d ispend~. 6sos ? Se é esse o caso, que apeça' seja consideradaéêomo 'um .romance dialogado ouuma sinfonia mais ou menos I cantada e não falemosmais nisso'; e olhemos para a pintura e a escultura'; onosso corpo será sempre bastante vivo para, nos levarao trabalho, aos nodsos prazeres, à nossa alimentação,ao nosso sono; porc?pe ele não pode ser um liVTO nemuma partrtura ; e, dert;resto, não é imortal.

«o teatro do séct'Io XIX», por exemplo; abri o livro;ele analisa a peça ei,1rita, nada mais. Conheci um rapa­zinho que abria, COr1~,m bater de coração, os livros cujotitulo tivesse esta '» avra fatídica: . teatro. Julgava en ..contrar sempre mai[l' alguma coisa do que palavras. N6screscemos; a nós, a palavras bastam-nos. Os noS8OSautores dramáticos são escritores de palvaras Se numa

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peça clássica - isto .é, em que as palavras escritas sãomuito conhecidas e aceites - um actor se deixar ir, noentusiasmo 'da sua representação, eliminando ou acres-

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centando palavras faladas, clama-se que comete um sa..crilégio. Que diria Shakespeare, o homem da Vida? Overdadeiro artista não se agarra obstínadamente à obrade arte. Trak a arte na sua alma, sempre viva. Destruídauma obra, outra a substituirá. Para . ele, a Vida passaantes da sua representação fixada e imóvel, qualquer queela possa ser: e, com mais forte 'razão, antes da pala..vra! Nós estamos tão degradados, que a palavra passaantes da vida e, no caso' particular, antes da própriaobra, pois estamos pr~~ a renunciar fàcilmente à suaexistência integral no espc;'QP' .conquanto a sua presençaabstracta nas estantes das n0~sas bibliotecas seja salva...

guardada. "E ousamos falar d~ 'arte cIr\mática l

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Oonvém) para completo eeclareoimento do leitoracerca do pensamento dos dois maiores teóricos de 'I'ea­tro deste século, saber o que Gordon Oraig dizia a res­peito do autor dramático, No /iÁmeiro di4logo entre oDirecior e o Amador de Te;d~o (Da Arte do Teatro)Oraig distinguia entre poe'rAa dramático e ãrtsma: «Sãoduas ooisas . diferentes, f)f' primeiro é escrito para serlido, o segundo para ser visto representado em cena, Ogesto é neoessário ao drama) inútil ao POf3"l/Ut, O gestoé neoessério ao drama, inútil ao poema, O gesto e apoesu» não têm. ~ que ver em . oonjunto. E) damesma m.a,neira que r{ão deve ooniwnâsr-se o poema dra­mátioo 'com. o dra~ também não se deve cotviuouiir .opoeta dramático com o .4ramaturgo. Um escreve para oleitor - ou o audito - o outro para o públioo de u/m.

teatro~, ~

Oraíg é da opin~~ de que os primeiros dramaturgoseram filhos do Tea(~lenquanto que os contemporâneosnão são, Aqueles s\ . m o que estes ignoram ainda.elõles sabiam que a . ta é) sem risco de oontradição) o .sentido mais ponto e maís agudo do homem. O que

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viam) antes de tudo) ,.diante de si) eram filas de olhoscuriosos e ávidos».

Acrescenta que o público vai ao Teatro para ver enão para oumr. Isto só prCX1Ja que o público de hoje éigual ao de outrora. Mas agora) aepeças já não são umacombinação harmoniosa de gestos) de palavras) de dan­ças e de imagens. «As peças de Shakeepeore, por exem­plo) diferem grandemente dos antigos mistérios, com­postos uni.camente para o Teatro. Hamlet e outras peçasehakespeareamas são para a leitura obras tão vastas etão completas que só podem perder muito quando repre­sentadas em cena. O facto de serem representadas notempo de Shakespear~~ prova». E) ainda: «Quandonada se pode a.crescentar'~uma obra de arte) ela é aca­bada, ooovpleia; Ora o Harelet ficou. acabado logo queSha.kespeare escreveu o úzti~. verso. Q1terer juntar-lheo gesto) o cenário) a indumen~ e a dança é sugerirq1W é vnccmvpleto. e tem neoeeeidaãe de ser aperfeiçoada».

O drama é) portanto) a' obra ''Í\uwdbada) à quo; é ne­cessário aoresoeniar aquilo que c~:1l-Stitúi o espeotáculo.Sendo) C01nO já p1Mse1nOS em et>idêitPia.) o trabalho do en­cena.dor. ~Ção artietica; ela ~rce-se pre~amentepela adiçõo dos elemenios plástícf e que 'convpoem. luur­mõnicamenie o eepectâculo - q existam 011, não in­dicações do autor. André Veinstei refere que Barrauli,preparando a encenação da «Ph », de Racine) verifi-0011, q1U3 se' encontrava diante" d .651;. alexandrinos euma única indicação oénica) a seg' ' ao 157.° verso: «Elaeenia-se-; Ora) como eeclareouia ente escreve AndréViZliers (Psicologia da Arte Dramática) a encenação é

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uma organização 'a várias dimensões» e é preoisaaneniepara essa organização que O' oniior dramático tem deescrever.

A ' obra escrita (para Veinstein) é um composto deelementos estruturais) elementos transcendentes, signi­ficativos) e elementos iransoenâentee, signifioados. Oencenaâor é dotado de uma personalidade convpieoxi, fon­te de exigências que procedem do 'seu temperamento dehomem ou do seu temperamento de artistaj dos meiosque envpreça, do público para o qual trabalha. A inter­pretação ejectuada pelo encenaâoi. MO tem outros facto­ree que não s'ejam os dois grupos 'de' 'exigências: os fac­teres psicol6gie6~ é os jactore; eonioo.-artístioos.

Para. J acques Oopeoni, zj wologicamente) convpor apeça e encená-la conetiiue ( âuae operações análogas)' aúnica diferença é que '1.~ • segue cronoZogicamente a ou­tra e que, sem deixare n de ser análo.gas) essas opera­ções apresentam-se oc o oonvplemeniares. '

A -proposito, Vein' tein esclarece: «Jacques Copeonientende, sem dú' " que essas operações são idênticasconvpominâo, logicartí ente) o seu esquema teôrico respec­tivo, Preferimos di~ análogas quanto mais não sejaparque os materiais: 'empregad os em cada. 'wma delas di­ferem e requerem : éonicas que diferem ~gualmet1,te.

Aliás) não é »erdaâ; que Oopeau também fala de quali­dade, oonsiderando,s'lyvidentemente) essas diferenças?».

Mas) perante a ~lr$uficiênoia de indicações do autorou do poeta dramá1~o (como. o citado caso da Phêdre,como quase todas a~obras ehakespeareamas) ou até porsimples critério ou estilo de interpretação plástica) o 8'n-

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cenaãor tem; de 'USar de uma liberdade legítirna em rela-­ção ao texto. Daí) 00100 oonsidera Henri G01.JJhier (Essên­cia do Teatro) certos efeitos corno os 'cortes, as 'adições}as modiiuxiçôes do texto. Outros ccmsisteni em manifes­tações ooncretas da apresentaçiio cénica: escolha do ele­mento de transposição} importância considerada corno()Xoessiva ou) ao oontrário) insuficiente .para um ele­mento ou caieqoria de elementos oénioos em rctação aoutros. Aqu~ estõo implícitos 08 estilos adopiados parao oonjunto das manifestações oénioas. Appia,) Ariauâ,Oraig e Baty âeiendem a legitimidade da acção do ence­nadar quando cria corno artista} em plena liberdade} das­pre~ndo a importâno~~ribuida às preocupações uu:rá~. ~~

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Robinson Crusoe deve ter procurado palavras na suamemória e tentado comi elas reconstituir .esta ou aquelapeça lida outrora',' Levando-o a sol' ão a esquecer-se de sipróprio, acompanhava, -'a pou e pouco, essas palavrascom um gesto, urna mímic spontânea.: quando a suamemória fraquejava, o ge. ;0 tornava-se mais insistente',para substituir a pala ~ Depressa o prazer da ficçãovivida se apoderava do obre solitário: ele vivia a peça,não a recitava; cada ez mais se afastava das biblio­tecas do continente. PU, no ·dia seguinte, caçando ou tra­balhando, a vista da, .suas mãos, do seu corpo, emocio­nava-o: não contíverf esse corpo a alma de Otelo, porexemplo, e não tinha eito irradiar essa alma no espaço?Não tinham os seus ( [hos visto Desdémona e não tinhamchorado sobre o seu coração inocente? ~ palavra! ~!Ele tê-Ia-á, vai forja palavras para este corpo! E eis opoeta dramático qu vasce em Crusoe para a vida do seupróprio corpo. «Tu ~:~eres palavras», diz-lhe ele, (tê-Ias­-ás e sempre diferem ps se for preciso; serás rico de pa­lavras e lançarás realmente a tua riqueza para o céu;porque haverá sempre palavras para o teu corpo único r

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Elas são a tua moeda a as tuas servidoras; tu dizes-lhes:Venham! e elas vêm; tu apoderas-te delas; elas fogem;~ tu, tu ficas, sempre rico e cumulado de urna vida,que as palavras não conhecem! Tu .és a minha biblioteca,de futuro, a minha sinfonia, o meu poema e o meufresco: eu possuo a arte em ti! Ew sou a Arte».

O Teatro intelectualizou-se; o corpo não é mais doque o portador e representante de um texto literário e(36 nesta qualidade se dirige aos nossos olhos; os seusgestos e as suas evoluções não são ordenados pelo texto,mas.simplesmente inspirados por ele ;.0 actor interpretaa seu agrado o que o autor escreveu, e a grande impor­tância da sua pessoac..~~ena não é técnica, mas devidaapenas à sua interpret~o; ainda que, de ordinário,componha o seu papel, por.~.. lado, .enquantó os cenáriosse pintam, por outro. A sua: r mião é, em seguida, arbi­trária e quase acidental. Hlstep ~cesso repete-se em cadanova peça e o seu princípio' cont'lnua o mesmo, qualquerque seja -ocuidado posto na: ence.~ação;~ ., ·

Ora, coisa -caracteríatica.: tod ! o"esforço sério parareformar o nosso Teatro dirige-se, . nstintivamente, paraa encenação. Para o texto da peça,' s flutuações do gostovêm do classicismo, do romantisf o,' do realismo, etc.,que se invadem umas às outras, c binam-se, aprovam­-se e desaprovam-se e apelam des peradamente para odecorador sem serem ouvidas. E, sar de tantas varie­dades, permanecemos no mesmo . gato As minuciosasindicações cênicas que" o autor ac scenta, por vezes, aotexto da sua peça, fazem sempre um efeito pueril, talcomo a criança que quer entrar, à. viva força, na sua pe-

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quena paisagem de areia e de raminhos; a presença realdo ·actor esmaga a construção artificial; o seu contacto.é, só por si, grotesco, porque sublinha o .esforço impo­tente. Enfrentando corajosa e directamente a encenação.em si, verificamos que, no fim de contas, o que está emcausa é todo o problema dramático, De facto, para quepeças já existentes pretendemos reformar a cena? Qualserá a nossa escala de valores? Pretendíamos encararapenas a cena e esta escapa-se; .só por si, que é ela? Evi­cientemente, nada. É por termos querido fazer qualquercoisa nela mesma que nos afastamos tão definitivamenteda Arte. Seria preciso, desde o c0D?- ,go, fazer tábua rasa;operar na nossa imaginação es r.:L conversão tão difícil,.que consiste em não ver maia, 6s nossos teatros, os nos-osos palcos, as nossas salas,0 espectadores; nem mesmo

.sonhar com isso e Iibert I completamente a ideia dessa.norma de aparência imi zável.

Disse sala de espec . dores ... , eem dúvida, no entanto·a arte dramática não cepresenta pera outros o ser hu­mano, é independent .do espectador flassivo, é viva ou.deve sê-lo e a vida diz espeito àquele que a vive. O nossoprimeiro gesto será .de. nos colocarmos, nós próprios;em imaginação, num espaço ilimitado e sem outra tes­temunha que, justa ente, nós próprios, assim como o­Crusoe de há pouco. 'ara fixar quaisquer proporções aesse espaço, devernos'[çaminhar, depois parar, I depois ca-·rninhar de novo paralrbOS determos. Estas etapas criarão,uma espécie de ritm~'rque se repercutirá em .n ós e des­pertar-nos-á a necessidade de possuir o Espaço. Mas eleé ilimitado; o único ponto de referência somos n6s pTÓ-

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ADOLPHE APPIA

prios. Somos, portanto, o centro, onde quer que nos en­contremos. A medida estará em nós próprios? Seremosnós os criadores do espaço? E para quem ? Estamos sós,Será, portanto, só para nós que criaremos o espaço, istoé, as proporções que o nisso corpo poderá medir no es­paço sem limites que lhe escapam.

Então, o ritmo oculto, de que até aqui estivéramosinconscientes, revela-se. Donde vem? Afirma-se que pro­voca reflexos. Sob que impulso? A nossa vida interiorcresce; impõe-nos um gesto de preferência a outro, um'passo deliberado em vez duma mobilidade incerta ou oinverso. E os nosso~lhos abrem-se, finalmente: vêemo passo, o gesto que n~.apenas sentimos; e olham-nos;a mão avançou até aqu~~ pé passou acolá; são duas'porções de espaço que se ~ram. Fez-se alguma coisa·para as medir? Não. Nesse~o, porquê até ali e nãomais longe 'ou mais peito? Fo~m, portanto, conduzidos.Não é mecânicamente que poss-ümos o Espaço de quesomos o centro: é porque estam\~s 'l)Ívos / o Espaço é anossa vida f a nossa vida cria o \'~spaço; o nosso corpoexpríme-o.. Para 'chegar a esta s~.:rema convicção, tive­mos de caminhar, gesticular, cur rmo-nos e erguermo­-nos, deitarmo-nos e levantarmo- ·~s. Para chegar de umponto a outro fizemos um esforç por menor que fosse,que correspondeu às pulsações do ' osso coração. As pul­ilações do nosso coração medira 'kOS nossos gestos. No'Espaço? Não. No Tempo. Para n .~ir o Espaço, o nossocorpo tem necessidade do Tempo. duração dos nossos

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movimentos mediu-lhe a extensã , A nossa vida cria o·Espaço e o Tempo 'um para o outro. O nosso corpo vivo

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é a Expressão do Espaço durante o Tempo e o Tempo noEspaço. O espaço vazio é ilimitado; onde nós nos colocá­mos, no principio, para começar um diálogo, indispensá­vel, não existe. Só nós existimos.

Em arte dramática, também .só nós existimos. .Nãohá sala nem cena sem nós ou fora de nós. Não há espec­tador nem peça sem nós, unicamente sem nós. Nós so­mos a peça e a cena; nós, o nosso corpo vivo; porque éesse corpo que as cria. E a arte dramática é uma criaçãovoluntária desse corpo. '0 nosso corpo é o autor drarná­tico.

A obra dramática é a única ra de arte que se con­funde com o seu autor. Ela .f;' única cuja existência écerta. sem espectador. O ppj a tem de ser lido; a pin­tura, a escultura, olhadad a arquitectura percorrida; amúsica ouvida; a obra$e arte dramática é vivida; é oautor dramático que~ vive. 'O espectador vem conven­cerwse; nisso consiste} seu papel.

A obra vive em Fi própria e sem o espectador. O au­tor expr-ime-a, POSSV wa e contempla-a ao mesmo tempo.Os nossos olhos,' os/. ossos ouvidos só aprenderão o ecoe o reflexo. O qu~~ o da cena não é mais do que umburaco de fechadun/; através do qual surpreendemos ma­nifestações de vida ue não nos são destinadas;

Fizemos, pois, t! uarasa e, para o nosso rnovímen to,conquistámos vírtu/ '\mente o Tempo com o Espaço. Nãonos são impostos nem pela duração de um texto nem poruma cena preparadrj: estão nas nossas mãos e esperamas nossas ordens. 'Por' eles, tornamo-nos conscientes donosso poder e exercemo-lo para criar livremente a obra

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viva, mas livrementet desta vez! Voltamos às origens;é das origens que vamos partir. Os nossos antecedentesnão serão mais nem a literatura nem M belas artes se­culares. Temos a vida nas suas raízes, donde agora jor­rará uma seiva nova para uma: árvore nova, da qual ne­nhum ramo será arrancado arbitràriamente. E se, comopara as outras obras de arte, a obra dramática é o resul­tado da modificação das relações (ver atrás a citaçãode Taine) o que é incontestável,' resta-nos encontrar emMs proprios o elemento modificador. Em n6s próprios,porque, fora disso, apresentar-se-ia preparado para fins

. estranhos à vid~ do ~.i?~o c~r.po .. Vimos, precisamente,que é a nOSSa VIda afec~:.a, interior, que dá aos nossosmovimentos a sua duraçãto .s o seu carácter ; sabemos,também, que a música exprâne essa vida de uma ma­neira, para nós , indubitável éf;que modifica profunda..mente essas durações e esse carácter. Possutrnos nelaum elemento profundamente emasuido de nós própri,Qs ode que aceitámos já e por def'iniç ~o a disciplina. Será,portanto, da música que nascerá as.obra de arte viva; asua disciplina será, para a nova árrvore, o princípio decultura por excelência que nos grrrants uma flo raçãorica j mas com a condição de a incorsoorar orgânicamentsnas suas raizes e de penetrar-lhe, :P3sim, a seiva. O Sernovo - n6s pr óprios - será colocPdo sob o signo damúsica. Incorporar a arte dos sonsoe do ritmo no nossopróprio organismo é :o primeiro .Jii~so para a obra dearte viva)' e, como todos os estudos elementares, estecomeço toma uma importância decisiva. De uma justaassimilação dependerá todo o desenvolvimento futuro.

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A OBRA DE ARTE VIVA

Nos capitulos precedentes, determinámos o lugar docorpo na arte dramática e procurámos tirar as conse­quências técnicas de uma hierai quia orgânioaments fun­dada. Para. o texto, o ponto de partida, oscllámos, inten­cionalmente, entre as durações da palavra c as da músi­ca. Eis-nos chegados ao ponto em que a hesitação já nãoé possível; fizemos tábua rasa; temos, pois, de 'volt ar aopríncípío, isto é, aos factores de qualquer maneira pri­mordiais : a presença do corpo criando o Espaço e o TelTI­po vivos e a instauração da música nesse corpo para ope­rar a modificação estética que é pr6pria, da obra de arte.

Talvez o leitor pergunte por g~ não se intitula estaobra «A Arte Dramática», mr/./antes «A Arte Viva».Para chegar à noção clara r.1uma .arte viva, ' possível,sem ser necessàrianiente .I{fr.amática (no sentido queatribuímos à palavra) fo..,..;/oso é passar .pelo Teatro, pois86 o temos a ele. O Tear10 não é, no entanto, senão umadas formas de Arte mia, de arte integral; serve-ee docorpo para fins.intelec/ uais (se não fúteis) ; e inclina-sede tal maneira para I : uilo que chamamos o svnal, quetende muitas vezes a'~ onfundir-se com ele; o que é umaviolência feita 'ao 'bor)l o' vivo, que deve ser a Expressâo,e que ele subjuga ao J. aso. Devemos, pois - e isso é evi­dente - submeter a i 6pria Ideia de uma arte dramá­tica a este conceito S(1 queremos marcar-lhe lugar deter­minado na nossa cul ura artística e dar-lhe um nome.Provavelmente que, então, essa arte, até aqui ' bastardae vacilante, encontrará uma justificação. suficiente, umpedestal sólido que aumentará muito o valor ~ o poderpara despojar-se dos vãos ouropéis que ostentava tão

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desastrad ámente. Podemos prever desde já que a artedramática deverá ser considerada como uma aplicaçãoespecial da Arte viva; qualquer coisa como a nossa artedecorativa em relação às artes plásticas e pícturais: e,por ela, convencer-nos-emos, sempre de novo, que não há,em definitivo, senão duas espécies de artes:' as artesimóveis e la arte móvel; as belas artes (incluindo a lite­ratura) e a arte viva. A posição excepcional da músicaresulta de ser colocada no centro, entre aquelas duas es"pécíes de artes. Talvez consigamos sair, agora, da anar­quia. O crítico de arte poderá limitar-se a dizer, diantede um quadro, por ~~mplo, e seguro de ser compreen­dido: «Não se conce~,ue o artista imobilize assim oseu objecto, uma vez qu\p.u.s suas linhas não têm con­texto». Ou, então, à leitur~'~e uma página: «Nest a des-, '

criç ão, nada se pode ver, narnsse pode aprender; as pa-lavras parecem em movímentoci o livro «devient à char­ge». Ou então, a-propósito de q\~lquer manifestação dearte viva: «Aqui, os autores incflnam"se demasiado os­tensivamente para uma aplica4s~o sem motivo». Ou,ainda: «E stas evoluções são pur~i.J~xpreSsão e, todavia,os executantes procuram manterzsefora da Indicação.O inconveniente é ter uma participação de luz demasiadosumár-ia e que faz desejar a palaxp-a»,

A ignorância' da hierarquia qJ~ impõe na arte o em-. prego do corpo vivo arrastou todaa nossa cultura artís­tica para a anarquia e a flutuação. Desejamos semprecada vez mais ardentemente a vida corporal artística; omovimento tornou-se uma necessidade imperiosa; cadauma das nossas formas de arte pretende exprimi-lo por

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qualquer preço (e Deus sabe quantas vezes por quepreço l) , cada qual deseja invadir a outra; e, o maisfrequente, o que se chama complacentemente «as bus­CaB» de um artista, representa, além do mais, os esfor­ços que ele faz para sair da sua arte. A vida do corpo emmovimento, tornado obra de arte sob o comando da mú­sica, pode, por si só, estamos convencidos, repor as coi­sas nos respectivos lugares. O autor desta obra ouviuum dramaturgo de renome gritar diante de um simplesexercício de plástica ritmada executado com perfeitasolenidade: «Mas, então, já não tenho que escrever maispeças I: Depois, terá, sem 'dúvida, continuado a escrever,sabendo .aquilo que só deve fa~:};~ aquilo a que deve re­nunciar. Com certeza que ou/As artistas, diante do mes­mo espectáculo, teriam pr:pierido a mesma exclamação.O escultor, de volta ao flLtU estúdio, terá procurado, cominquietação, aquelas drJ suas obras, dos seus esboços,que nada mais faziavj do que imobilizar o movimentomaravilhoso que acalava de seguir e contemplar e que,por consequência, se jornam penivelmente supérfluos emescul tura. Até o arqllitecto, cujas visões de espaço e pro­porções se terão suiétamente modificado ou precisado,não pode ver apenad( muralhas e pllaree .. . mas há-deimpor-se-lhe o corpc.) vivo e só para ele, para es,se corpoincomparável, trabalhará de futuro.

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No entanto, se a vida do corpo, obra de arte, já pôdeexercer semelhante influência, que será, então, a da ex­periênoia do movimento artístico feito no seu próprioC01--pD! O arquitecto ver-se-á a desejar - desta vez paras i próprio - esta ou aquela ordenação do espaço e a re-

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ousar outra que anteriormente achava bela e legitima. Eo escultor? Encerrar na pedra o movimento que experi­mentou na sua própria carne tornar-se-á uma funçãoterrível, quase dolorosa, de que sentirá profundamente aresponsabilidade; a síntese exigida dele pelo principiode imobilidade será cada vez mais rigorosa; e se o tomaa veleidade de fixar um dos ,segundos da sua felicidadeplástica e viva, isso parecerá uma ironia. do seu passadode inconsciência que afastará com desprezo. Se não ofizer, dará uma prova da sua incapacidade. O grau deinfluência que a Arte viva exercerá sobre o artista seráa pedra de toque da sua qualidade de artista.

Mas há ainda mais~~~sso conduz-nos à Ideia de Co~laboração, inseparável, c~'9 vamos ver, da Arte vivae dos seus meios de reaHzaç\u:

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6 I A colaboracão

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o artista que sentiu em si próprio - no seu própriocorpo - a chama do movimento ~tético, experimentaráo desejo de o prolongar, de o ~/éâbelecer em obras posi­ti vas e não apenas em demoJ~lirrações fragmentárias; e oproblema da escolha por-,~â em toda a sua nudez e todaa sua importância. Sent,fperfeitamente que fracassariaprocurando transpor ~ra a Arte viva os objectos dasartes inanimadas; vriifica, assim, que não está aí afonte de inspiração 4~e deseja. Faz mesmo a experiên­cia concludente cadE)vez que, num período de plastici ­dade viva, móvel, pr,)cura realizar, animar, um tema quepode servir a qualqq~r outra arte. Eis a pedra de toque.O seu objecto é, pitanto, ele próprio; sabia-o; agoraexperimenta-o corpc.ralmente, De que obra é capaz} porsi próprio, sem se socorrer de um modelo literário, plás­tico, escultural ou píctural ?

Para simplificar a nossa demonstração, temos sen1­pre falado do corpo, simplesmente; ísolámo-lo, até, no-espa ço indefinido. :m claro que é a Ideia do corpo vivoque tomamos como elemento essencial; é evidente que,

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abandonando a práti~.a da arte viva, nos encontramos emface dos corpos - incluindo o nosso - e que, se o corpoé o criador dessa arte, o artista que possui a Idéia pos­sui, implicitamente, todos os corpos. Daí resulta que écom a vida que ele cria, que eie representa - com avida de seres vivos cuja colaboração voluntàriamentelhe é indispensável se não quiser fazer «marionettes» ar­ticuladas. A Ideia de Colaboração está implicitamentecontida na de arte viva. A arte viva implica uma cola..boração. A arte viva é social; é, de maneira absoluta, aarte social. Não as belas artes postas ao alcance de to­dos, mas todos eleva~.se até ~. arte. Donde se deduzque a arte 't)i~ua será o ~ulta~o' de uma disciplina­disciplina tornada colecti~.s~ n~o sempre efectiva­mente exercida sobre todos o~.c~rp9s, p€10 menos deter-minante sobre todas as almas, a o despertar do senti-

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menta corporal. E, da. mesma fi )eir~ que só a Ideia docorpo - do corpo ideal, se me é .\,erm,itida a expressão- pôde convencer-nos da sua' re~idade estética possí­vel e desejável, também aldeia' ·dch sentimento corporalestético saberá orientar e guiar aql~les que não tiverama experiência efectiva do n10vimeJto plástico. Para es·tes, o contacto e a influência dos' sefes privilegiados pelavida do corpo serão preciosos. Em, pedagogia, a estritapermuta entre o mestre e o discípulo é a condição deuma disciplina produtiva; que fará um sem o outro? Omesmo acontece com a arte viva: as forças empregadasno estudo corporal penetrarão, automàticamente, no or-

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ganismo reflectido dos outros, para produções e fins queo esforço corporal, s6 por si, tornaria mais difícil. Poresta troca, a energia dispensada de um lado continuará.sempre uma potência viva de nível constante e garantirá,dia ap6s dia, a existência da arte viva.

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B evidente que Appia põe, sob o signo da autoridade,da disciplina e do col~vo - ainda que no próprio con­ceito pcriioular da 8UO,;,~~spe()v.Jação estética - o pro­blema fundamental da en~ção moderna. Não há dú­vida de que a autoridade s~,personifioa no encenaâor(intérprete M lãeia e oriado1~fdo eepeotáoulo); a dis~

ovplvna (artística) na reaUza,gã~(por prooeosos [ormassp'artioulares postos "ao serviço da\,f.deia interpretada péloenoenador) das personaçene; e d~\: ooleoiioo, na 'oriaçõoindividual) com. vista ao objeotivo~l- alcançar.

Todo o trabalho da encenação s~ processa, pois, tendocomo centro de gravidade - tal 001~fo Appia. exige, aliás I

na sua generalização de obra de alte viva, que inclui aarte âramática - o corpo trivo. Isto é: primeiro, o aotor;melhor, o aoior feito personagem. A partir do conjuaitode corpos trivos (tiotores-pereonaqens) ligados por u/ma

disciplina de obediência à I deia posta pelo dramaturgoe interpretada" pelo enoenador, dejime-se o envolvvmentooénioo, que reúne a colaboração das artes plásticas (oomsentido coleoiuco) subordinadasi estas também, à Ideia.

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Suponhamos um poeta~ pelo qual eu entendo umartista que pensa, sente- e vêas~iBas a uma luz parti...cularmente ravorâvelao seu ~vo e que tem o dom deas exprimir de preferência J71a palavra (escrita ou não)--.. e suponhamos esse poe~ possuído pela ideia de cola­borar na arte viva e' mÚna obra representativa -dessaarte. Sente bem que a sJYa escolha não poderá ser arbitrá­ria; de resto, a inicia~{to na vida corporal artística apre..senta-lhe sempre, erJ1 evidência, a sua vida inteira de­poeta de uma maneir:K mais pura e despojada de ligaçõessupérf'luas ; portanto';' mais simples. Os elementos eter­nos da humanidade ~endem a dominar nele, e de muitoalto, as contingências de que se comporia e que a pa­lavra, por si mesma, exprime superiormente. Essa pala ..vra, que era a sua alegria e ° seu orgulho íng énuo, ad­quire um novo poder que não sabe ainda explicar. Con..tinua a dominá-la, sempre: sente, porém, que a dominamelhor do que antes e que sabe dar-lhe novas ressonân­cias - e, no entanto, essas ' ressonâncias escapam..lhe,como num apelo para outras ressonâncias .. . Mais senhor-

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do que nunca da sua-vlda de poeta, da sua riqueza inte­rior, da visão clara dos seus olhos, ouve as palavras fa­larem uma linguagem nova cuja significação se sngran­.dece do valor de cada gesto do se}! pensamento e que lhefaz experimentar uma plenitude maravilhosa. Analistatanto como poeta, volta a esta função, coloca-se perantenovas palavras e interroga-as. Mas as palavras não lherespondem; continuam vibrando uma vida misteriosa,iniciadoras de formas desconhecidas e parecem exigir,com insistência, um novo gesto, um novo significado su­premo do seu grande Desejo. Estende 'as mãos para tudo.at r air a si e as palav~ recusam-se. Que fazer? Lenta­mente, solenemente, es lta, agora, -o seu ' apelo ." Com­preendeu: as suas palavr ' ch amam-no ; as suas mãosjá não devem estender-se ma para agarrar; elas devemoferecer-se, dar-se e, com elas, todo o seu ser, o seu ser,.desta vez,' integral. O diálogo c sumou-se: o colabora­dor nasceu no poeta. A sua esco . a fez-se, ou, antes, já

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não há escolha! Cada uni dós ges s· do seu pensamentopoderá dá-lo,.... se quiser, à arte 'viv , em lugar de encerrá­-lo no símbolo das palavras: .por q . , agora, a expressãoda sua vida será a Vida. E as pal vras, libertadas, res­soarão para celebrar a sua subordínação à arte viva .epedir-lhe que as anime: o poeta deu-as; só dessa artequer recebê-las em troca . Quer dizer que o poeta já. nãodeixar á, portanto, de ser um literato? Não, sem dúvida.Mas como os outros :artistas que se encontram perantea arte viva, fará a experiência 'de uma situação defini­tiva de que, anteriormente, não tinha a menor ideia .Compreenderá quantas noções e sentimentos confiava

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só às palavras, enquanto que elas pertenciam, de direito,à Expressão. integral viva; e, inversamente, a quantos.objectos dignos da sua atenção poética recusava a ex­pressão literária, absorvido, "como· estava, por aquelescujas palavras ainda não tinham esgotado o tema. A13:outras artes sempre o tinham solicitado e o poeta trans..punha-as um pouco na sua e experimentava 1?-ma satis­fação embaraçosa. Agora, .isso já não é possível; onde opintor, o escultor, etc., parecem inclinar-se para forados respectivos quadros, a arte viva erguer-se-á diante'do poeta para .dizer-lhe: «Traz-mas». Em todos os do-omínios da arte, a arte viva servir-lhe-á de regulador, re-­velando os abusos, pa.cifica·nd~rebeliões; porque comela, a anarquia deixa .de serjpossivel. E, nesta acção li ..·

.' / :bertadora, o poeta desempenha um papel preponderante,de concerto com o. músico.

Disse que a música se encontra num lugar excepcio­nal entre as artes i~6~;~is e a arte viva, transpondo em.vida, animada no Terr!po, oquê aquelas só podem ofere­cer no espaço. O pcetá' partilha esse lugar, mas a outro­titulo; o seu papel é menos especialmente técnico. Ins ..,pira a forma, na qual deve' haver a ''inteligência ; é o tí­tulo, o alicerce 'para a construção do edifício vivo. Aca­bada a construção, parece desaparecer; mas foi ele quem.sustentou o peso dos. materiais ..na sua ascensão e quemdeu as proporções; Indicou-as, mesmo; no espaço, antes­da sua existência positiva: sem ele, 'o edifício não existi­ria; conteve-o em potência. Agora, é o edifício que con­tém o poeta, em espírito: na forma da 'obr a de arte 1>Í1)aro poeta realiza a ornnipresença. Nem um som musical,

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'nem um gesto corporal que o não possua. Para esta exis­tência maravilhosa, deve consentir em não ser, em pri­'meiro lugar, senão os alicerces; depois, em dar-se com­pletamente. No entanto, como em qualquer construçãobem ordenada, a estrutura do edifício e a natureza e agravidade dos materiais devem exprimir-se claramente.E aí que o poeta conservará um pouco da sua vida pes~

.soal e esses índices serão as palavras do poema vivo. Omúsico deve ceder a esses índices; foram eles que lheperrnítlr-am-erguer o santuário; são eles ainda que supor­tam e garantem o equilíbrio. Testemunham a ossatura-do organismo no qual~úsica insufla a vida; não são aExpressão; ~ são o sustenêáculo, A colaboração não pode,.ao mesmo tempo, ser mais~streita e marcar maior su­'bordinação recíproca. O arqultecto da obra de arte vivadesdobra-se, assim, em poe~a e em músico, um condicio­nando o outro, mas nunca um s~o outro : o seu. equilí­brio não está na igualdade das \artici'pações;' us suasproporções, pelo contrário, se;ão \ mpre variáveis e ccn­dicionadas pelas 'leis do equilíbrio, isto é, do centro degravidade..~e o músico quer cantar s6, o edifício correrá.algum peri9'0; se O, poeta quer falar s6, arriscamo-nos aficar apena.r com os alice~ces, mais OU lrl:enos decorados ...O poeta é, ~e qualquer maneira, o continente ou as mãosque conduzem, que sustêm; O, músico, o liquido ardenteou os materiais preciosos e trabalhados. A sua união,-oper ada pelo corpo, cria ~. obra de arte viva)' e esta uniãoé tão completa que tanto um como o· outro pode apode..r ar -se dos motivos que as artes imóveis. quereriam em

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vão realizar e libertar assim a sua visão dó que as vio­lentava.

Ora, quando dizemos poeta e músico, não excluímos,evidentemente, os representantes corporais da arte viva!A experiência musical, feita no seu próprio corpo, só apode dispor favoràve1mente quem a tenha sentido e adirija para os motivos que a arte viva sabe e deve expri­mir, afastando-a, ao mesmo tempo e pelo seu sentimentocorporal avivado, dos motivos destinados à imobilizaçãodas outras artes. A arte viva dlrige-se a todo o ser equanto mais os seus 'colabor ador es puderem dar-lhe vida,mais alto poderá colocar-se a'sua missão. A eprofíssão»viva é ao mesmo tempo muítoyrímples e muito complexa.'A teoria é simples, pois pede o dom completo de si pró­pria; mas a aplicação exige' um estudo múltiplo que nãopode ser feito integralmente-por cada qual. E notar-se-áque este princípio nos dá já uma garantia da qualidadepuramente humana di? obra; as contingências especiaisque, como vimos, sãoifdo dcmínio do Sinal (por oposiçãoà Expressão) dizem maia'rcspeito aos indivíduos do que

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à colectívldade.' Se,' por qualquer razão, elas se tornaremmomentâneamente necessártas, a obra viva inclinar-se-ápara uma aplicação dramática que chama um autor maisdo que outro e os 'colabor ador es 'deverão consentir, porexcepção, em não ser rnais do que os executantes fiéisda vontade de um s6 e afastar-se, por um tempo, da Ex­pressão colectiva mais espontânea. A vida da obra mani­festa-se .tamb ém nesta oscilação entre ° Sinal ea E~ ..pressão, que a impede de cristalizar num código estéticoformal. Esta oscilação prende a atenção, estimula a erno-

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ção pelos contrastes' que opõe e permite ao indivíduomanifestar-se mais completamente que nunca pela formaexclusiva.

Por exemplo, numa grande festa nacional e patrióti..ca, os motívs hist6ricos (mais ou menos, também, geo­gráficos e sociais) têm um papel considerável a desem­penhar; serão mais do que o _título: terão de desenvol­ver-se no tempo e para os olhos, Se não os apresentamossenão sob a sua forma inteligivel, isto é, simplesmentedramática, roubamos-lhes o seu valor eterno ou, pelo me­nos, esse valor não será representado, mas ficará fecha­do na acção hist6rica; e, somos n6s, então, quem deverá,silenciosamente, no nosso foro íntimo, deduzi-la do quenos for representado ou do que nós próprios representa­mos, se formos executantes. A Expressão desse valoreterno das contingências acident-ais e históricas não terárevestido uma forma artística; não será revelada comoum bem comum, mas ficará subm~~ida à. maior ou menorsensibilidade e nobreza de cada inWvíduo isoladamente:a essência humana da acção histórica - essência íntimado [enomeno, para falar com Schopenhauer - não terá.sido exprimida nem representada. :m dai que a oscilaçãoadquire o seu alto alcance social. A emoção divina nãodeve ser privilégio de alguns, daqueles que sabem e po­dem desembaraçá-la do seu inv6lucro acidental; deve­mos oferecê-la de uma forma claramente acessível a to­dos. Devemos mostrar aos olhos, fazer escutar aos ouvi..dos o drama eterno escondido sob -os usos, os aconteci..mentes, os vestuários históricos. E só a arte viva) na -sua perfeita pureza, na sua mais elevada Idealização, é

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capaz disso. A festa oscilará, portanto, judiciosamente,entre a Indicação, (o sinal) dramática historicamente .precisa e o seu conteúdo de eterna humanidade; 'fora deuma época determinada da história. Em Genebra, emJulho de 1914, o primeiro .act o da Festa de Junho, gran­do espectáculo patriótico comemorando 'a entrada de Ge­nebra na Confederação Suíça, composto e encenado porJacques Delcroze, deu desse fenómeno estético um exem­plo grandioso e, certamente, sem precedentes, Ele reali­zou a simultaneidade dos dois princípios. o. e·spectadortinha diante dos olhos, ao mesmo tempo, os motivos his­tóricos animados, cuja própria sucessão formava umaacção dramática majestosa, e a sua Expressão pura­mente humana, despojada de qualquer aparelho histó­rico, como um comentário sagrado ,e uma realizaçãotransfigurada dos acontecimentos. Este acto .foi uma re­velação definitiva e, de certo, heróicamente conquistadapelo autor e seus colaboradores!

Mencionámos o facto da obra de arte viva:ser a únicaque existe completamentesem espectadores (ou audito­res); sem público, porque ela o contém já implicita­mente em si; sendo esta ,obra vivida numa duração de­terminada, aqueles ,que a vivem - os executantes e cria­dores da obra - asseguram-lhe, pela sua própria acti­vidade, uma existência integral. Vindo benevolamenteconvencer-nos a contemplá-la, nada acrescentamos e dis­so devemos estar ocnscientes; o contributo específico, aactividade pessoal tão 'cara ao artista e .que ele reclamapor sua. parte diante de qualquer obra de arte, já nãonos é exigido. Mas, por outro lado,' a arte viva também

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não nos autoriza à mortal passividade do público dosnossos teatros. Que devemos nós fazer, então, para par­ticipar na sua vida? Qual será a nossa atitude peranteela? Antes 'de tudo, não nos sentimos percnte ela. .A:.arte viva não se representa. Já o sabemos; resta-nosprová-lo. Corno? Voltando-lhe as costas como inabordá..vel? Mas não podemos; desde o momento em que elaestá, nós estamos com ela, nela. Recusarmo-nos, sedanegarmo-nos a nós próprios, como fazemos já em tantasocasiões da nossa vida social. Não deixemos, ao menos,essa floração miraculosa 'abrir-se apenas sob os nossosolhos! Tentemos a grande experiência e solicitemos doscriadores da obra que nos arrebatem com eles! Procura­rão, então, qualquer traço de união que transporte emnós a chama divina. Por mais pequena que seja a nossaparte de colaboração em a obra, viveremos com ela edescobriremos ,que somos artistas.

É com emoção que o autor escreve estas últimas pa­

lavras. Nelas encerra todo o seu pensamento e resumeas suas mais altas aspirações.

o trabalho é não só a fonte da alegria e, portanto,da felicidade, mas também o único meio de levar a cabonão importa que profundo desejo. Por conseqüência, emtodos os domínios, a téonio« do trabalho é de uma im­portância capital. A obra-prima de um mestre, nas anti­gas confrarias, era, acima de tudo, a prova de domíniotécnico. Esses , antigos artífices sentiam que só assimpodiam chegar à beleza. A busca da beleza ia por si e

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nunca falavam dela. Só o domínio técnico permitia umobjecto de discussão e de esforços.

O autor está convencido de que só a via técnico;pode conduzir-nos à beleza colectiva, cuja obra de arteviva é o modelo. Foi sob o império: quase tirânico destaconvicção que redigiu a sua obra e lhe deu a sua forma .Querer o fim sem atingir os meios seria, talvez, maisüueório e perigoso do que de outra maneira, pois a arteabriga um dernónio que manda fàcilmente, ao nossoapelo inconsiderado, um anjo de luz; um demónio ques6 a escrupulosa rectidão técnica é capaz de manter emservidão. Muitas tentativas. de arte integral e mais oumenos colectíva fracassaram e fracassam ainda devidoa uma técnica incompleta; torna-se por uma obra inteirao que não passa de fragmento; e é a esse fragmento quese aplicam, então, processos forçosamente impotentes.Criámos abusivamente uma espécie de classificação econslderárnoa, ·por exemplo, qualquer preocupação téc­Dica concernente aos .object os como diferente daquelasque dizem respeito aos indivíduos: de tal maneira, queuns chamam..lhe a prática, outros' a teoria, esquecendoque as teorias humanas podem igualmente tornar-se téc­nicas e transformar-se 'em instrumento de trabalho. Emsociologia, psicologia, etc., os esforços modernos têmtodos esta orientação, .e discute-se o valor do instru­mento. IDm arte, a anarquia reina ainda e pretender co"locar o ser humano na hierarquia dos meios a empregar- na colecção dos intrumentos da técnica de uma obra- parece urna utopia e uma infantilidade. O artistaconsidera sempre a humanidade - os seus irmãos-

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como uma massa distinta dele e à qual apresenta a suaobra acabada. A conversão-estética, que consiste, cornovimos, em tornar-se a si próprio como obra e instru­mento, depois em generalizar este sentimento, e a con­vicção que dai resulta, até os seus irmãos, esta conver­são continua ainda ignorada do artista; e os meios inten­cionados imaginam-se fazendo acto de solidariedade so­cial e a testemunhar o. seu desejo de arte colectiva, colo­cando sob o nariz do .pobr e espectador uma obra quenunca lhe foi destinada e que, de resto, ele não podeaprovar assim.

A técnica da arte viva é justamente esse pobre espec­tador que acondiciona; sem ele, não há técnica.

E, se o autor se viu, aqui, obrigado a começar pelofim ,e a analisar os meios, para chegar a descobrir o seuprodutor e construtor inicial, foi porque nós vivemosainda no mal-entendido estético resultante de uma falsahierarquia e por temer ser, talvez, mal compreendidose ousasse apresentar, desde o começo, esse grande Des­conhecido ... , .

Agora, seguros do seu conhecunento, podemos arri..piar caminho para atingir uma visão de conjunto; por­que, agora, parece já não ser"possível um mal-entendido.

Por este rápido golpe de vista retrospectivo, o autorprocurará responder à questão ,que, sem dúvida, o leitorjá pôs há muito tempo: Como fazer? Como pôr em exe­cução? Como chegar ao fa~to e a dominá-lo?

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7 I O gra 11 d e des co111 h ec i doe a experiência da .b el ez a

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Numa época em: que, em todos os domínios' do saber,procuramos conhecer-nos melhor, como não ficar ím ..pressionado com a rgnorância -ern que nos encontramosainda a respeito do nosso corpo, de todo o' nosso erga­nisrno, do ponto de vista estético 7 O desenvolvimentoanagnifico dos desportos, da higiene geral, deu-nos ogosto do movimento, do' ar livre, da luz: com a saúde,a beleza física aumentou e a: força! corporal dá-lhe aresde liberdade que não se podem desconhecer e que tocam,por vezes, uma indiferença um' pouco insolente e' desu-.mana. O corpo recomeça a existir' para os nossos olhos/não' o cobrimos mais por necessidade: e, se muitos pre­'conceit os existem ainda COrri tenacidade e se manifes­tam sempre de maneira desagradável, pondo como sus­peito' o corpo nu, ou então, conservando costumes deindumentária: que cremos impostos pela boa educação,pela situação social, pela vida profissional e' pela vidamundana, etc., não há dúvida: de que um burguês de hácinqüenta anos ficaria muito surpreendido' com a nossapresente desenvoltura a esse respeito. Nós sentimos àcorpo sob O' vestuário; e~' quando nos despimos, sentimos

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ADOLPHE APPIA

a anomalia que existe-em considerar como uma precau­ção de moralidade (neste sentido a nossa moralidade ésempre sexual) o que apenas o clima nos impõe:

De tudo isto) resulta que a beleza do corpo humanotende a reentrar nos nossos costumes. Hipocritamente)relegamo-la para os museus e para os estúdios dos artis­tas) com um suspiro de tolerância e de embaraço) mas,no entanto) tranquilizado ; esses corpos não mexiam nemmexem; a arte imobiliza-os e) pelo menos nesse sentido,conservam completo repouso; a moral e a censura pú­blicas podem vigiá-los. Mas, se mexessem) seriam demármore ou bem desenhados ou pintados? Não! Seriamde magnífica carne viva e é ela) parece) que n6s não que­remos. O mal-estar e a curiosidade que nos inspira ummuseu de cera não resulta de que o corpo é representadoquase até o movimento e até para além dele? E que paratornar esse movimento plausível é preciso imitar essecorpo até o «trompe-I'oells ? Por outro. lado, os acrobataschamados «plásticos» não cobrem os seus corpos de umacor uniforme, .de ordinário branca) para simular a ma­téria inanimada e, por, conseguinte, a torná-los inofen­sivos «moralmente»? E, quando sob o nosso olhar mu­dam as atitudes, para se imobilizarem de novo de ma­neira diferente, o dnstante em que agem - o do seu mo­vimento - não se torna enigmático e perturbante ? Por­quê cobri-los de cor) se se mexem? De .resto) a imobili­dade do corpo vivo é tanto mais um contra-senso estéticoque nenhum verniz pode justificar,' quanto o movimentode um corpo envernizado é uma coisa .repugnante, poisanima uma forma que se pretende apresentar como ína-

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A OBRA DE ARTE VIVA

nimada. Um como o outro são profundamente imorais,porque falseiam o nosso gosto estético, servindo-se para

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isso do que deveria ser o mais sagrado dos objectos.Para a grande maioria, a beleza corporal~ e, por­

tanto, o corpo nu - só é tolerado em arte; pelo que ovemos .inanimado ou transfigurado pela síntese. E, por­que se trata da «moralidade» sexual, toleramos em arteas cenas mais manifestamente lascivas; 'para uns, por­que elas acodem à pobreza da nOSSa vida pública sobreesse ponto, .no entanto, essencial; para outros, para nãoserem acusados de nada perceberem 'de belas-artes.

O nosso pudor resulta do embaraço que experimen­tamos ao mostrar o nosso próprio corpo e d~ que so­fremos o mesmo género de perturbação perante outroscorpos nus, porque sabemos perfeitamente qpe essescorpos são nós próprios. Se conservamos es~e senti­mento de constrangimento - para não dizer outra coisa- devemos renunciar desde sempre à arte viv~, porqueessa arte vive do sentimento da colectividade dos corposvivos e da felicidade que encontramos nessa colectivi­dade. Devemos, em seguida, renunciar .8, qualquer es­pécie de pureza e de ingenuidade no nosso sentimentoartístico em geral, porque a arte, qualquer; e comoquer que seja, é uma expressão de nós próprios. Nãohá. transigência possível e toda a história da: arte' '0

testemunha ' para nossa maior confusão. Ser artista é,em primeiro lugar, não ter vergonha ;do próprio corpo,mas amá-lo em todos os corpos, incluindo o' seu. Se digoque a arte viva nos 'ensinará 'que somos artistas é por­que a arte viva nos inspira o amor e o respeito - não

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ADOLPHID APPIA

amor sem! respeito - pelo nosso próprio corpo e issomesmo com um sentimento colectívo : o artista criadorda arte viva vê em todos os corpos o seu próprio; senteem todos os movimentos dos outros corpos o movi­mento do seu; e vive, assim, corporalmente, na huma­nidade; é a sua expressão; e não mais em símbolos es·.crltos, falados, pintados ou esculpidos, mas no grandesímbolo vivo do corpo vivo, livremente animado.

Depois de uma boa higiene e daquela parte dos des­portos que lhe é compatível, a educação estética do corpo€, corno vimos', o primeiro degrau a subir; o seu dorní ..nio, proporcionado pelos meios mdivíduais, o primeirograu a atingir. De uma justa pedagogia corporal de­pende o futuro da nossa cultura artística e, até, a exis­tência da própria arte viva. A sua importância é incal­culável. I

]J não ~squeçamos, aqui sobretudo, a séria, quase so­lene responsabilidade que incumbe a todos aqueles quepretendemjobter esse grau, porque nunca terão bastantepoder estético conquistado sobre si próprios, para fazera transfusão da porção indispensável naqueles que, deuma maneira ou de outra, são menos privilegiados. Osocialismo estético é ainda desconhecido. Cremos fazeracto de humanidade colocando a obra de ar-te ao alcancede toda a gente (segundo o termo hipocritamente admi­tido). Há mesmo artistas que concebem e executam assuas obras com esse fim e que se saem bem. Um bolonão fica mais ao alcance do pobre se- tiver menos rnan­teiga e menos 'açúcar. A própria ideía de pôr o bolo aoalcance do pobre é desprovida de sentido, Somos nós -

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A OBRA DID ARTID vrvA "

nós próprios - que devemos, não pormo-nos ao seu al­cance, mas darmo-nos í 8, quando digo nós, não quero di­zer, evidentemente, as .nossaa obras, mas a nossa perso­nagem integral, incluindo o corpo; e, quando digo o·corpo, não digo apenas os braços', para partilhar o seutrabalho ou socorrer a sua fraqueza, mas o nosso corpointeiro. Ora, não o podemos fazer sem nos reconhecer­mos no corpo dele; e ele só sentirá o nosso dom se se re-

~ .

conhecer no nosso, Em arte, nada mais temos para dar,Esse gesto é o ponto de' partida. A arte viva depende'desse gesto. Não são.os frutos cheios de uma seiva quenão seja a sua, amadurecidos por um sol que não é oseu sol, que o deserdado poderá jamais ass ímilar. Tam­bérn não temos que .atrai-lo a nós: nem ele que atrair­-nos a si. 'Devemos reconhecer-nos mutuamente. O raiode luz que permitirá esta. penetração divina deve encon­trar uma atmosfera em que 'possa expandir-se uma cla­ridade constante. Do ponto de vista estético, esta atrnos­fera é o nosso corpo colocado. numa posse comum paraum objectivo artístico definido. Os habitantes do Tahitinão conhe ciam a amizade ou o amor senão entre doisseres que tivessem tido medo juntos. A sua viela era tão''calma que uma impressão .muito viva, sentida em 00­

m7JJm era necessária para unir as suas almas. Na nossavida - nivelada e monótona ao ponto de nem os pioressobressaltos bastarem Ipara sacudir o nosso torpor so­cial, para iluminar os nossos egoísmos acumulados, onosso diletantismo bárbaro - a alegria indizível da arte·sentida em oomum. quer consagrar a nossa união frater­nal. Ora, sentir em comum não significa ter o mesmo..

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. · A D O L P H E APPIA.:

·prazer em conjunto, como numa sala de concertos ou deespectácnlos, mas ser animado' no seu ser ·int egral ­tanto no corpo como na alma - pela mesma chama V'iva}

viva e, portanto activa; ter tido: «medo juntos» sob o-estreitarnento poderoso da beleza e ter aceitado, juntos)o impulso criador e as suas responsabilidades.

Robinson, na sua cruel solidão, deveria 'criar em sipróprio seres para se alegrarem '~ . sofrerem com ele) [5e­gundo a expressão de Prometeu.. Era no seu próprio cor­po que devia reconhecê-los; e 'o dom reciproco s6 era POs­-sivel, para ele) numa ficção' dramática, numa aplicaçãoespecial da arte viva}' e) sendo próprio da arte dramáticaexprimir sentimentos que a nossa: vida pessoal não nos.obrigaria. a sentir no mesmo momento) portanto, senti­mentos fictícios, podia bem' «ter.medo» com as persona­gens da sua criação, continuando s6: .o próprio dom que

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fazia de si próprdo continuava. fictido; .ainda que a sua·obra existisse, evidentemente, :~ be~. viva!' Talvez nóstodos sejamos tão solitários..como Roblnson, mas -lou­vado seja Prometeu! - somo-lo, em ' comum! e quandonos reconhecemos no nosso. drmão, é num outro corpo.que não no nosso ; também a ficção dramática não é umacondição indispensável à nossa :união; as modificações-estéticas impostas pela música bastam para estabele-cerA corrente que deve unir as nossas alrnas.. unindo osnossos corpos. O grande Desconhecido) o nosso corpo­o nosso corpo coleotvco - ai está}: adivinhamos a suapresença silenciosa, tal como ·uma ·grande força latenteque espera; por vezes) até) sentimos um pouco a alegria

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A OBRA 'DE ARTE VIVA

que ele contém..': Deixemos transbordar ess~ alegria; a.arte quer dar-no-Ia I

Aprendamos a viver a arte em comm.n; aprendamos­a sustentar em comum as emoções profundas que nos .ligam e nos arrebatam para nos libertar. Sejamos ar-otístas l Podemos ocmséçui-lo,

JiJ dos nossos hábitos considerar a existência de um'artista como mais independente do que a nossa; per­doamos-lhe de boa' vontade e misturamos essa benevo­lência protectora com a inveja e a admiração. A nossaadmiração é inspirada no carácter desinteressado daarte, que nós reportamos, Inconsideradamente, sobre oartista para achar desculpa' para muitas das nossas fra­quezas; e invejamos, então, o ser ao qual concedemos odireito de viver mais ou menos à margem e!numa luz­muito vantajosa. Tudo isso resulta, sabemo-lo' perfeita-­mente, de uma faculdade : que nós não possuímos ecujo exercício exige um crédito invejável. Observemos,no entanto, que todas as actividades de que não podemos 'penetrar o pormenor e de que verificamos somente o re­sultado nos inspiram 'esse' mesmo gênero de admiração 'e de inveja. A pessoa de' tiro grande sábio, astrônomo,químico, etc., está separada da: nossa pelos :mistérios'do seu trabalho. Um trabalho de excepção deve ter, evi­dentemente, uma influência muito particular sobre o ca­rácter ; pelo menos assim julgamos e estamos idispostosa pôr, respeitosamente, todas as originalidades à .contadessa influência. O trabalho desconhecido inspira-nos,assim, admiração, mas 'sepàra-nos do' indivíduo; distin-"

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ADOLPHID APPIA

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.guimo-nos nitidamente tanto do grande sábio corno do

.artista, Socialmente, mantemo-nos como espectadores-em relação a eles. Estendemos, eternamente, a mão parareceber e, ~ não solicitamos dinheiro de um homem denegócios, porque nos sentimos do mesmo lado dele, men­digamos, toda a nossa vida, junto daqueles cuja activi ..dade nos parece bastante desinteressada e distinta danossa para q .permitir.

li} evidente que esperamos sempre qualquer coisa doartista sem : cuidar do que podemos oferecer-lhe em'troca. O intermediário do dinheiro 'deixa-nos devedores-dinheiro e, quando tivermos .pago ao sapateiro, podemosdo artista. Sabemos que um par de sapatos se faz com 'pensar noutra coisa. Quando contemplamos urna obrade arte comprada, sentimos que nada demos em trocaque ;possa ser-lhe comparado e que, no fim de contas,essa obra não nos pertence. «Propriedade do senhor X»·é urna etiqueta mentirosa. Quem adquire um certificado.sabe que não compra a invenção. Nada pode 'ofer ecer -seem troca de-urna grande descoberta; nada, em troca deuma obra de arte; urna e outra ficam para sempre pro­priedade do 'artista e 'do sábio. O papel intermediário dodinheiro acentua, pelo contrário, ainda mais, o do espec­tador incorrigível que nós somos.

Quando compramos um bilhete para concerto, teatroou conferência, essas trdstes relações são manifestas;.f azer «bicha» numa bilheteira é sempre humilhante:também toda a gente caminha sem se aperceber ... E, no.entanto, a nossa vida é uma «bicha» perpétua diante do«gu ichet » d artista, do sábio, do homem de fé. Persis-

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A OBRA DE ARTE VIVA

tímos em acreditar que as coisas se compram e, se abri­mos, para isso, a nossa bolsa, com ou sem dinheiro,s6 fechamos ainda ruam deliberadamente a nossa indi­vidualidade. O único dom que pode sempre bastar àtroca é o dom de nós próprios; sabemo-lo perfeitamentee recusamo-nos a admiti-lo: a vergonha desprezível quenos proíbe de mostrar o nosso corpo retem-nos, também,para descobrir a nossa alma. E queixamo-nos de isola­mento! Aquele que, sem premeditação, e com espíritorecto, se aproximou de certos cristãos sinceramente con­sequentes - que são raros - e os seguiu algum tempo,observando os seus actos, as suas palavras, as suas fi­sionomias e osseus gestos, deve ter gritado quase dolo­rosamente: «São artistas!» De facto, esses seres de ex­cepção cumprem, boro. a hora, o acto essencial, o actoindispensável à existência da arte: o dom de si próprio.E a sua vida será uma obra de arte, se soubermos, sepudermos possuí-la, isto é, dar a nossa em troca. Nestesentido, temos 'muit as obras de arte; não possuímos ne­nhuma.

Oh! Sim! Estamos isolados pelos ferrolhos do nossocárcere: só recebemos a possa ração através de um«guichet» . Como saberemos o que se passa do outrolado desse «guicliet»? Ora é esse mistério que força onosso respeito, a nossa admiração; a liherdade que nosenche de inveja! O arbista ? Mas é ele que vive do outrolado do «guichet» e das suas limitações, das suas de­pendências rníseráveia.

Uma tal situação criou, necessàriarnents, formas dearte anormais, Viver na prisão não é a vida normal. A'

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ADOL'PHE

nossa arte moderna é uma arte destinada a prisioneiros.E o artista não pode dar-se a prisioneiros se estes nãotiverem o poder de se lhe dar; uma porta aferrolhada.ooparaMos. : ', ',~

Nenhuma forma da nossa arte contemporânea. deve,de futuro, servir-nos de norma, nem mesmo de exemplo..Queremos sair do cárcere, respirar o ar puro e respirá­MIo em comum. Qualquer arte Inspirada pelo nosso cati­veiro relegamo-la para trás das costas, abandonando-a.nos tristes corredores ' onde ! veg'etámos. E as nossasmãos, libertas, não S€ estenderão mais para receber maspara dar. Que nos importa que estejam vazias? Outrasmãos virão enchê-las do mesmo calor vivo que as .pene­tra, .para o receber em troca. E o pacto imortal será.concluído. Todos nós queremos viver a arte e não apenasgozá-la. :UM perante outros,' não mais nos oporemos',como nas salas e nas bibliotecas, mas penetrar-nos­-emos: e não serão mais pálidos reflexos exteriores queiluminarão os nosaos olhos ... ;N'ão! Serão os nossos pró­prios olhos que lançarão n ó espaço a sua chama e quecriarão, em liberdade, a luz viva na transfiguração dotempo. E que importa que os nossos ~rimeiros passossejam desajeitados? N6s vivemos ·a arte; ou, melhor:ensinamo-la a ' viver e poderemos sorrir de comiseraçãoà. vista, ao ouvido, das obras cuja perfeição fictícia era ofrcto da nossa escravidão. .

A :\ossa pedra de toque será a nossa experiência dá.beleza, experiência feita em comum. Seremos todos 1'$8­

ponsáveis pelas nossas próprias .obras e não teremosmais de procurar razões de obras ' realizadas sem nos:

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A'. OBRA DID ARTm VIVA

As nossas obras serão o resultado supremo da nossavida integral, exprimida por' um corpo - o nosso­submetido à austera disciplina da beleza, O nosso objec­tivo está nesta própria' actlvidadej tão depressa atin­gido, ultrapassá-la-emas; a vida 'está no .Tempo: tão de­pressa realizado, o passado. desaparece porque o futurooexige e o tempo. não lhe concede o prazer da passivi­dade ... ]i} neste sentido, sobretudo, que a arte deve servivida!

Abandonaremos .Q ', antiquário e o coleccionador àssuas telas poeirentas. .Um livro, uma partitura, 'um qua­dro, uma estátua só terão valor relativo: valor de edu­cação, de informação, de emoção" de recordação, de pro­tecção. Schopenhauer garante-nos ,que todos os.homens,não importa em que domínio da , actividade humana,sempre disseram ou quiseram. dizer. «a mesma .coísa»...Essa «coisa » senti-Ia-emas palpitar em nós, tornar-sesempre mais, instante, inspiradora; e, libertos! das ca­deias da Forma, clamá-la-emos ,- essa ,«coisa» - cadaqual àsua maneira! tão. certos dasua realidade supremacomo o estamos da, conquista do: nosso ser integral.

A Experiência da beleza, dando-nos .a chave da nossapersonalidade, tornar-nos-á, conscientes',das limitaçõesda nossa vida ,.quotidiana e ensinar-nos-á a paciênciae a serenidade. -Porque ela conservará, "nas circunstân­cias ternas ou dolorosas da nossa vida,' um: ardente larde esperança: tal o do artista quando -v ê a 'des t r-uição

de uma bela obra de arte -·talvez mesmo da sua pró­pria obra, como nos mostra Leonardo de ,Vinci'-2.. e senteem si o poder de .cri ar mil outras obras novas . ..:

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ADOLPHE APPIÁ

Mas este novo poder não será apenas uma alegria. Oacréscimo de poder implica o da responsabilidade; e odom de si mesmo não irá sem nos obrigar a fazer es­tranhas verificações. Deveremos convir que dar não étudo e que devemos interrogar-nos acerca do valor, daqualidade daquilo que oferecemos.

Uma vez que a Experiência da. beleza foi o resultadode uma consciência nova que adquirimos com o nossocorpo, na própria noção desse corpo adquire um alcanceque nós não suspeitamos OU que tínhamos esquecido.

Até aqui, o autor, arrastado pelas necessidades téc­nicas do se:u tema, limitou-se a chamar ° nosso corposó pelo seu nome: e', no entanto, talvez mais de um leitorse tenha chocado com essa insistência e tenha ficado pe­nívelmente admirado de que nenhum correctivo viessetemperá-lo. De facto, a nossa moral acostumou-nos anão compreender, sob este vocábulo, s-enão' um erga..nismo sujeito a quedas tão perigosas para o nosso serespiritual, que deve .ser severamente traçada, entre eles,uma linha de demarcação. Inútil lembrar a que grau dehipocrisia e de fealdade esse princípio criminal nos fezdescer. Mas, por outro lado, torna-se indispensável lem­brar aqui que, por «corpo» - o corpo humano, sem maisnada - designamos a única forma visível do nosso serintegral e que, assim, essa .palavr a possui uma das maisaltas dignidades que a nossa vida pode' conferir à lin­guagem. Por .conseguinte, se o autor se serviu dela paradesignar uma simples forma móvel no espaço, nunca:perdeu de vista a sua suprema função.

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A OBRA DE ARTE VIVA

Era chegado o momento de o afirmar, pois chegámosao ponto' do nosso estudo .em. que as responsabilidadesdo nosso ser integral :-:-.cOl;upreendendo o corpo - eu..tram mais especialmente .em linha. de conta.

Enquanto se tratava do tempo e do espaço, a duasou três dimensões, dos movimentos e das durações - adignidade do. termo podia ser subestimada; porque éhem evidente que não teríamos tanto cuidado estéticopor um organismo sem alma, por uma simples máquina!Agora, tem de afastar-se qualquer mal-entendido. Vimosque a dignidade artística constitui um problema técnicoimportante para. o futUro' da nossa cultura. Resta quenos convençamos das obrigações que essa dignidade im­põe ao nosso ser integral na vida pública; e é. aí que devedeter-se o estudo presente. Porque cada qual pode medir,nos limites da. SUa idade e da sua posição social, do seugrau de cultura e das suas faculdades pessoais o lugarque ocupa ou deve ocupar. para ser um artista vivo, umrepresentante da vida na arte.

Essa vida confere aos seus discípulos uma radiaçãoque nenhuma deformação profissional conseguiria inter­ceptar. Ela é, em nós, um fogo definitivamente acendido.Também a presença real, pessoal e integral adquire umvalor novo, pois só ela pode projectar âsreoicmonte esem outro intermediário que ela própria, o raio divino,com ou sem palavras, com. ou sem obra delimitada. Omenor gesto revela..o.·

JiJ, portanto, espalhando-se °mais possível, tomandoparte actíva ou simpática em todas as manifestações danossa vida pública, dando-se sem reserva e sem regresso

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ADOLPHE APPIA

.-..:.. mas também sem qomproni.issos":":"" que prepararemoso 'evento bem-vindo da arte viva.

o autor propõe-se voltar, 'n11.DÍ 'out ro' estudo sobre ainfluência da vida da arte:e de '(I'esenvólver-lhe as conse­quências. Entrevê já notáveiaelntomae precursores. Porexemplo: as nossas salas, quaisquer que elas sejam, ad­quiriram uma elasticidade que não' escapa a ninguém.Reuniões' políticas, religiosas, -{ conferências, concertos,etc., realizam-se frequentemente' num circo, num tea­tro; e, por outro lado, o teatro transporta-se de boa von­tade papa '0 circo. A etiqueta: rig órosamente fixada nasfachadas dos nossos edifícios começa: a voar a todos osventos. A música, a dança, -ent r ar arn na comédia e odrama na ópera. A nossa existência privada e a nosaavida em público já não são estritamente' 'limitadas se­não pelo passado. O lar familiar trasborda para a rua.e "a' vida ao ar livre irrompe , das nossas janelas: o tele­fone torna as nossas conversas' quase públicas e já nãotememos expor os nossos 'corpos: à,' luz "do dia, e, por-tanto, as nos,eas almas. "

Também experimentamos uma necessidade cada vezmais imperiosa de nos reunirmos, seja ao ar livre, sejanuma sala que não foi destinada, ánteclpadamente, a.uma das nossas manlfestaçõestpúblicas. com exclusãodas outras, mas, portanto e pelo contrário, a única razãoserá simplesmente reunirmo-nos, tal como na catedraldo passado", ' .

, A palavra escapou-me! Não', ~' retomarei. Sim": é acatedral do futuro que lhe chamamos com os ' nossosmelhores votos! Recusar-nos-emos sempre a correr de

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'A OBRA D.m ARTE VIVA

um lugar 'Para outro para actividades que têm de olhar­-se de frente e penetrar-se. Queremos um lugar onde anossa comunidade nascente possa afirmar-se nitida­mente no espaço; e um espaço bastante flexível paraoferecer-se à realização de todos os desejos da Vida in­tegral!

Talvez que, então, outras etiquetas voem como fo­lhas mortas: concerto, representação, conferência, expo­sição, desporto, etc., etc., tornar-se-ão denominaçõespara sempre desusadas; a sua penetração recíproca seráum facto consumado. E n6s viveremos a nossa vida emcomum, em lugar de a vermos escoar-se por canais di­versos, entre paredes estanques.

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8 I Os portadores da ch ama

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Parmi la joule sams lumierequi 8U,it le ohemin gris âes [our«,

quelqu'um. surgito souâain, frémissantJ ébloui,heureuoil ... Heureux! ...Bur dJun triomphe intérieu!)il bonâit, brandissant sa joieoomme une torohe!

Sem ivresse palpite et briúe dans ea ma,m'Comme une flamrneque le vent [roisse .ei déroulelEt la Zumiere quJiZ branditéclasre les oisaqes prooheede la [oule...Elle se propage et grandit.Iãi, plus leur ivresse rayonneei gagne) et çrise d'onures coeurs,

plus ces porieurs arâenis dJinvisibles flambeauxoni âes visages sUrs et beonu»que baigne le »eni de leur courselPuisque prodiqner son bonlieur,c'esi Em êire plus riche encor.

JAOQUES OL{ENEV[~RE

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Levando o meu estudo até os últimos limites das.:!UM consequêncías, receio ter ultrapassado os meus di..reitos perante o leitor. E, ' no entanto, isso pareceu..meindispensável; porque para conservar firmemente umobj ecto na mão, é necessário tê..lo excedido. O mesmo sepassa com uma ídeia, - Agora, apoderámo-nos da arteviva, da Idela que representa e das responsabilidadesque nos impõe e devemos procurar o uso prático ine­rente em beneficio da nossa cultura moderna.

Até agora, foi consumindo sacrifícios sobre sacrífí­cios que chegámos à idem pura do que representa o Mo­vimento - isto é, a Vida"- na Arte.

Tivemos de proceder negativamente sobre quase to­dos os pontos para chegarmos, o mais seguramente, omais solidamente 'possível, a essa ídeia ; e eis-nos emface de nós próprios e dos nossos semelhantes, sem ou­tro intermediário que.não .seja o desejo de uma comu­nhão estética. Como iremos. nós exprimir esse desejo emvista de uma realização prática e como fazê-la partilhar'aos outros de uma maneira concreta e convincente que'08 incite a unirem-se a nós para a Grande Obra ?

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então, o impulso? Quem se encontrará, para nossa se- .~:

gura orientação, se aqueles que possuem a chave se en­cerram num cofre selado, sob o pretexto de não a entre­garem a qualquer compromisso?

A arte viva, como vimos, 'pede ao autor dramáticouma aiiiuâe nova; e essa atitude resulta da concentra­ção da sua imaginação sobre o ser vivo sómente, -ex-.cluiudo todas as contingências. Nesse sentido, tornámo­-nos - agora - autores' dramáticos e a nossa atitude.deve responder a esse nome. Ora, um autor dramáticoaceita na sua obra os elementos da humanidade quere­prova; é até desse conflito que a nossa obra .adqulrevida. A nossa obra dramática pessoal é a nossa vida' pú­blica e quotidiana; e, se recusamos os elementos subver­.s ivos, renunciamos, de repente, à nossa obra dramática,à obra de arte viva. A nossa atitude está, por isso, indl..cada: como um dramaturgo - mas .desta vez com: ele­mentos vivos desde a origemc-- devemos dominar-coaconflitos, as reacções, para umfim superior. Definitiva­mente orientados, conduzimos' um archote de ,vida-quedeve iluminar todas as pregas, da nossa vida pública-e,em especial, da nossa vida artística. Não é colocando-o'no nosso santuário privado ediante das imagens amadas136 de nós que poderá guiar o-nosso semelhanten Dissequo todo o cristão sinceramente -consequente é .um iarr

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A OBRA DE AHTE VIVA

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tista; é-o porque se dá e não se recusa ao contacto da­queles que quer conhecer e talvez socorrer.

Sejamos sinceramente consequentes como ele. Comoele, conservemos ciosamente a fonte que alimenta anossa chama com o braço bem erguido, como um grande'testemunho; e, onde quer que nos encontremos, onde'quer que desejemos encontrar-nos, iluminemos o espaço.com aqueles que lá se encontrem; ela despertará clarões.desconhecidos, projectar á sombras reveladoras ... e pre­paremos, assim, e pela luta, evidentemente, fraternal , oEspaço 1)ivo para os nossos seres vivos.,

Para conquistar a chama da verdade estética tive-·mos de extinguir sob os nossos passos OS archotes men­tirosos de uma cultura artística mentirosa; agora, é o'nosso 'própr io fogo - o fogo de nós todos - que vaiacender os archotes.

Não os abandonemos à sua existência fumegante e·miserável, depois de tudo. O nosso único direito, de fu­turo, é o de iluminar e não de abandonar. Se queremosser felizes juntos é preciso, antes de tudo, sofrer em co­mum. Porque tal é, como já vimos, o princípio essencial.da arte e, com maior razão, da arte viva.

Nos nossos dias, a arte viva é uma atitude pessoalque deve aspirar a tornar-se comum a todos.· Eis por­que devemos conservar 'em nós essa atitude, onde quer'que a vida nos reúna; abandoná-la é o único, compro-omissa que nos está vedado.

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Estes, desenhos não são, propriamente, as ilustraçõesdas páginas precedentes., A.:reforma da encenação ar­rasta, com ela, uma nova concepção da arte dramática eessa .arte toca de tão perto a ,nossa existência; pessoal e

a,nossa vida social, que não é possível tratá-la sem alte-' 1)?~, ,~Íl!:t$í@-_ ; quantidade de noções e hábitos qu~ nos pare­

, 'iqll~~~ :<it~~se imutáveis ,,ou, -pelo .~enos , demasiado invete­: r;ará.:~s~~'~ra serem mudados, de repente. O espectáculo da, iC~~xt~.; ~~~ qualquer ângulo que se encare, é a reprodução~:re '.fn n:'í i agm ento:d~ nossa e~istência. 'Pelo 'que não eu-

, ' ' ·1tendo que seja um' espelho ~e . costumes, como .se tempretendido. A nossa vida interior, as suas alegrias, assuas dores e os seus conflitos, são perfeitamente indepen­dentes do~ nossos costumes; mesmo onde os co~.tumes

parecem determenomies. As paixões humanas são eter­nas - eternamente as 'mesmas : os costumes não 'f~zemmais do que colocá-Ias superficialmente, conio a forma

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. , ; '.(Ypi.\~sente capitulo servia de preâmbulo à reprodução de umasM'le'"çle -desenhos .de Adolphe Appía, que ilustravam as suas ce­nograrías para diversos espectáculos teatrais" O multo reduzidointeresse que a reprodução de tais desenhos oferece hoje.:- comoaliás é reconheclôo pela própria Fondation Adolphe Appla, de Gê·neve, detentora; ' dos direitos do autor desta obra -levou a elimi­ná-los da presente edição. Manteve-se contudo este texto introdu­tório, pelo seu actual interesse ensafstlco, Independente das ilus­trações que na primeira edição se lhe seguiam.

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ADOLPHE APPIA

de um vestuário nos indica uma época. Mas, a alma quese oculta nesse vestuário não tem data; é a alma hu­mana, simplesmente. Do ponto de vista dramático, umfragmento' da nossa existência é um fragmento da hís­tória dessa alma. Por consequência, a forma que damosaos nossos espectáculos é bem adequada a esta definiçãoe não há, lugar para mudanças; ou, pelo contrário, re~

sulta de uma inércia particular, de um conservantisrnoque se torna um anacronismo. A questão tem duas faces:uma, artística, outra, puramente humana e social, poiso Teatro é uma festa em comum. Que me sejam perrni­tidas, aqui, algumas indicações que, comentando estesdesenhos, esclareçam também a obra que os precede.

A questão artística diz respeito aos meios de que nosservimos no Teatro e à. maneira de os empregar. Ora,vê-se logo que, em arte dramática, a própria técnica édependente da concepção que fazemos dessa arte. Teo­ricamente, esta .concepção pode ser discutida, porquenos é permitido procurar se a força de inércia não terádetido o dramaturgo .numa forma rígida e incapaz deseguir as evoluções do nosso pensamento e do nossogosto. Mas, pràticamente, trata-se, acima de tudo, deadaptar a nossa técnica às .peças já existentes; o que ébastante íncómodo, devido a uma dependência reciproca.No entanto, parece evidente que a concepção dramáticatomará a dianteira; Iporque não haverá apenas a ideiade criar novos rneios técnicos para obras ainda inexis-

.tentes. 'A proporção não é constante, de facto. O drama­turgo pode, até, ultrapassar, em determinada altura, oestado' cénico que se Ihe oferece; e, por seu turno, esse

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A OBRA bE ARTE vrvA

estado cênico pode avançar, mornentâneamente, de talmaneira que novos meios arrastarão com eles um novodesenvolvimento da forma dramática,

Resulta que, se uma obra dramática não encontra,na economia teatral que lhe é: contemporânea, umaforma conveniente, é que, por um lado, o dramaturgonão teve em conta os meios postos à sua disposição; poroutro, que a encenação não seguiu a evolução do gostoque essa obra testemunha,

Em 1876, Richard Wagner inaugurou o seu teatrode Beirute, Teve de o fazer, porque não encontrou, emqualquer parte, a atmosfera de excepção e os elementoscorrespondentes a uma I obra que rompia; deliberada­rnente com as convenções e as tradições da sua época,

Em que óonslatía 'a sua reforma? Era positivamentetécnica? Não, com certeza. Wagner, esclarecido por umalonga e dolorosa experiência, compreendera que a artedramática é uma arte de.excepção e que era preciso con­ceder-lhe o seu carácter, sob pena de a vermos declinare morrer, A. sua vida era, ,cada vez mais, orientada paraeste golpe de estado dramátíco ; a sua .produção tomavao carácter decisivo; e não foi senão 'pelo preço de inu-

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meráveis compromissos pessoais inauditos que ele che ...gou a representar .os seus dramas nos nossos palcos derepertório, Em Beirute era, finalmente, livre! Pôdedar à suas representações um carácter excepcional econferir-lhes; assím, 'uma ,solenidade nova para nós, 'Tudo foi dito a esse respeito. A disposição da sala e, daorquestra é, igualmente, bem conhecida,

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/...(~~Da, L P H E A P P r A

A prodigiosa evolução musícal-í-'que nos obstina­mos em tomar à conta do .próprío .. Wagner-músico)quando 56 Wagner-dramat~rgo deve .assumir a esmaga­dora responsabilidade - faz, há muito, 'Parte da nossabagagem técnica moderna. A sua influência, reposta doponto de vista musical, foi reconhecida: mas o mal estáfeito:' Evidentemente que não. se . desnatura impune­mente e a eese ponto~ corno MS fiz~ - o objectivode uma obrigação técnica! , '. I , ' ,

Sem a sua música, Wagner teria corrido o risco denão atrair a nessa atenção; com ela, corrompeu-nos,porque tornárnos a letra musical pelo espírito dr~mático.

Wagner não pretendia compor a sua música como ofez; mas foi obrigado pela nova concepção clramáticaque queria revelar-nos acima de tudo. Em última aná­lise, encontramo-nos, com ele, perante um dramaturgo.Se não triunfou, apesar d~ Beirute; foi 'por que a suaobra contém 'êm si mesma' Uih~ p'r:ofunda contradição.o' autor desta obra foi parti~.Ül~nn~nte sensível ao di­iema posto por Wagner e a. sui obra;"~ 'o s~frimento quesentiu pô-lo no caminho de uma'Iíbertação, para a quala obra do grande mestre não seria senão um ponto departida ou, se se prefere, unia gt.an'diosa 'e'saiutar adver-tência. . . "

Richard Wagner só operou uma. única reforma essen­cial. Por meio da música, pôde conceber uma acção dr a­rnática de que todo o peso - centro de gravidade......:-. re­pousava no interior, das personagens -e que, contudo,tpÔde ser completamente eorprvmuio para o auditor eisto não apenas por palavras e gestos indicadores, mas

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A OBRA Dm ARTE VIVA

por um desenvolvimento 'plást ico que esgotava, sem ' re­-servas, o conteúdo passional dessa acção. Quis, então,levá-la à cena.: isto é,' oferecê-la aos nossos ~olhos; e foiai que fracassou! Dotado, .corno ninguém antes dele,de uma potência absolutamente' incomensurável no quediz respeito à. técnica dramática fora da representação,Wagner julgou que a .enc en acão resultaria automática­mente; não imaginava uma técnica decorativa diferenteda dos seus contemporâneos. Maior cuidado e maior luxopareciam-lhe, suficientes..Sem dúvida, os actores, .comoportadores da nova acção, foram objecto de uma aten­ção especial; mas ---:- coisa verdadeiramente estranha­se fixava minuciosamente a sua, representação e purifi-.ca'va, assim, as nossas ,tristes convenções de ópera,achava natural, em seguida, .,colocar· em torno e atrásdeles telões verticais e pintados, cujo contra-senso redu­zia a nada qua-lquer esforço para a harmonia e a verdadeestética do seu drama represeniaâo , Teve consciênciadisso? Será difícil afirmá-lo, ainda que, num opúsculoconsagrado às representações do «Parsif'al», .em Beirute,em 1882 (alguns meses antes da sua morte) tenha es­crito que sentia' que a sua arte dramática represenituiaestava ainda na infância. .

Em resumo: a reforma wagneriana diz, respeito. .à

concepção do próprio drama; a música de Wagner éuma resultante; e o todo confere à obra um tão grandealcance, que é. preciso isolá-la em representações solenese de excepção, Esta última conseqüência aplica-a Wag­ner a toda a arte dramática; portanto, é um Precursor.Mas ele não soube fazer concordar a forma representa-

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AbOLPI1m APPIA

tiva - encenação - com a forma . dramática que adop..tou, Donde resultou um afastamento tão considerávelentre às suas intenções e· a sua realização visual, quetoda a sua obra se viu enfermada e desfigurada ao pontode s6 uma ínfima minoria compreender do que se trata.Ta-l é ainda o caso e pode afirmar-se, sem qualquer exa­gero, que ainda ninguém viu em cena um drama deWagner.

O tema, por mais simples que pareça, é de uma com­plicação ínextrícável. Além disso, a situação de Wagner 'é imortalmente trágica. Será difícil Ipara aquele que osabe e quer salvar o que resta para salvar dessa obraadmirável, agir a sangue-frio: a figura do gigante deBeirute erguer-se-á sempre diante de si. E, no entanto,

I s6 pode testemunhar-se-lhe um respeito infinito conser­, vando-se perfeitamente livre; e essa liberdade não "se

adquire senão ·por um conhecimento profundo e minu..) cioso, linha por linha, medida por medida, das obras do

mestre.

Tal foi a atitude do autor, procurando e enoontromdo) nas pr6prV:uJ Partituras os cenários ,representados por

alguns destes desenhos. Esforçou-se por atenuar, até oimpossível, a contradição wagneriana; de tomar o autor

r viv.o como ponto de partida e de o colocar, não maisdiante mas no meio de terrenos e de linhas que lhefossem estritamente destinados 'e correspondessem aosespaços e durações ditados pela 'música do seu papel.Sendo a música, em Wagner, a fonte de inspiração dra­mática, à autor procurou na música desses dramas aevolução visual que lhe concedeu sem esforço. Sem dú-

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A OBRA DE ARTE VIVA

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vida que tudo isto é ainda um compromisso; mas é-o,pelo menos, com conhecimento de causa e pode, por isso,pretender aproxlmar-ae, tanto quanto possível, da har­monia integral, aquela de que Wagner não suspeitou,ainda que a sua obra 'a reclamasse.

Tudo isto' se destina à'compreensão dos desenhos quese aplicam' aos dramas de Wagner. Pedem, natural­mente, ao leitor um esclarecimento mais ou menos apro­ximado das peças em' questão. Os que se lhes seguem,como é fácil de 'verificar, são odesenvolvimento do mes­mo principio; mas 'sem ü apoio de uma obra positiva.São, portanto, simples sugestões com o objectívo deestabelecer um' estilo sob as ordens do corpo humano,ele próprio estilizado' pela música. Despojados, pouco a'pouco, do romantismo' inerente à obra de Wagner~ eque se tem conservado ~"chegam a 'Uma espécie de clas­sicismo,' donde é i severamente eliminado tudo o que nãoirradia da presença 'viva e móvel do 'actor. São Espaçosdestinados a essa presença soberana. Às obras compete,depois, fixar as suasdimensões e o seu desenvolvimentorespectivos.' ,

Vê-se, por estas considerações gerais, o caminho quefoi -seguido pelo autor desta obra. Tendo partido do sen­timento doloroso que teveperante a contradição wagne­riana e o mal-entendido irreparável que ela estabelecia,conseguiu fundar', sobre essa mesma contradição, umprlncipio cénico já' não arbitrário ou tradicional, masorganicamente construído sobre. uma justa hierarquiados elementos representativos, partindo da forma viva eda plástica 'do actor. No seu livro «'A Música e a Ence-

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. ADO'LPHID ,APPIA

.nação» (aparecido, em alemão, em 1899, em Munique,editado por Hugo Bruckmann), o autor desenvolveu, empormenor, esse 1frincípio e os seus resultados dramáticose técnicos.

Nessa época, -a obra de Wagner era a única que podiaservir de ponto de partida.. Esta obra está, portanto,ainda sob: o signo de Wagner, ultrapassando muito oalcance, forçosamente restrito, desta obra. Depois, oautor fez algumas experiências cênicas concludentes, emParis,' Dresde e Genebra e, em particular, no InstitutoJacques Delcroze. Exprimiu-se, também, em numerososartigos e opúsculos e publicou desenhos em revistas devários países; fizeram-se, ainda, projecções para ilustrarconferências, etc .. Jacques Delcroze, pela criação genialda sua Rítmica, deu-lhe a confirmação definitiva do queentrevira;. porque, já em 1895, muito tempo antes doscomeços da Rítmica, o autor escrevia em «Música eEncenação», que era absolutamente necessário encon­.t r ar uma «g inást ica musical» para .conduzir o actor .par aas durações e dimensões da música. A presente obra dáa história técnica desta evolução e vai até às conclusõesque ela irrwõe. Estes desenhos não vão tão longe! Mas,o leitor benevolente encontrará, talvez, a. sugestão sufi­ciente para seguir o maravilhoso futuro da arte 'Viva,que se lhe depara e, se ele próprio se colocar no meio d,es­ses espaços, poderá evocar o espectáculo sem espectado-. .res, de que fará, então, parte e que deve continuar, paratodos nós, 'um ideal a prosseguir sem desfalecimentos enão importa so~ que forma.

Ad. APPIA

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