Apresentação dos Pontos de Ordem pelo Juiz Conselheiro Jubilado, Dr. João Carlos Trindade

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1 Apresentação da obra Pontos de Ordem, de Gilberto Correia Minhas senhoras e meus senhores, Não posso deixar de começar por agradecer ao Dr. Gilberto Correia e à W Editora o generoso convite que me dirigiram para vir fazer a apresentação dos seus Pontos de Ordem, nesta sessão de lançamento. Foram, por certo, os laços de amizade e mútua consideração que mantenho com o autor, forjados ao longo dos últimos vinte anos, que justificaram esse convite, pois haveria, certamente, quem, com muito maior qualificação e competência do que eu, pudesse aqui estar a discorrer sobre a obra. Conheço o Dr. Gilberto Correia desde o longínquo ano lectivo de 1993-94, quando, por um feliz acaso, fui seu professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da UEM. No ano lectivo seguinte agora, já não por acaso convidei-o para ser meu monitor e creio que constituímos, na altura, uma boa equipa pedagógica. Durou pouco essa parelha, porque a seguir cada um trilhou o seu caminho ele iniciando a sua carreira de advogado e eu prosseguindo na magistratura judicial , mas durou o suficiente para fazer nascer em ambos um profundo respeito mútuo. É, pois, com elevada honra e satisfação que aqui estou. Caros amigos, Sou daqueles que entendem que apresentar um livro não é propriamente resumi-lo: essa é tarefa de quem se dedica, por gosto ou por dever de ofício, à actividade de recensão. Também não é interpretá-lo: seria fastidioso e desinteressante, num

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Apresentação dos Pontos de Ordem pelo Juiz Conselheiro Jubilado, Dr. João Carlos Trindade

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Apresentação da obra Pontos de Ordem, de Gilberto Correia

Minhas senhoras e meus senhores,

Não posso deixar de começar por agradecer ao Dr. Gilberto Correia e à W Editora o

generoso convite que me dirigiram para vir fazer a apresentação dos seus Pontos de

Ordem, nesta sessão de lançamento. Foram, por certo, os laços de amizade e mútua

consideração que mantenho com o autor, forjados ao longo dos últimos vinte anos,

que justificaram esse convite, pois haveria, certamente, quem, com muito maior

qualificação e competência do que eu, pudesse aqui estar a discorrer sobre a obra.

Conheço o Dr. Gilberto Correia desde o longínquo ano lectivo de 1993-94, quando,

por um feliz acaso, fui seu professor de Direito Processual Penal na Faculdade de

Direito da UEM. No ano lectivo seguinte – agora, já não por acaso – convidei-o para

ser meu monitor e creio que constituímos, na altura, uma boa equipa pedagógica.

Durou pouco essa parelha, porque a seguir cada um trilhou o seu caminho – ele

iniciando a sua carreira de advogado e eu prosseguindo na magistratura judicial –, mas

durou o suficiente para fazer nascer em ambos um profundo respeito mútuo. É, pois,

com elevada honra e satisfação que aqui estou.

Caros amigos,

Sou daqueles que entendem que apresentar um livro não é propriamente resumi-lo:

essa é tarefa de quem se dedica, por gosto ou por dever de ofício, à actividade de

recensão. Também não é interpretá-lo: seria fastidioso e desinteressante, num

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momento como este. Muito menos criticá-lo: isso exige de quem critica um nível de

reflexão e de maturação argumentativa pelo menos igual, senão mesmo superior, ao

do criticado. Entendo que apresentar um livro é, acima de tudo, revelá-lo na sua

relação concreta com um leitor, que, neste caso, é personificado pelo próprio

apresentador.

Irei tentar fazê-lo o melhor que posso e, dessa forma, espero contribuir para a

sensibilização dos presentes – se dela ainda necessitarem – tendo em vista a leitura dos

textos que integram a colectânea.

Em Pontos de Ordem, o autor reúne as principais observações, análises, perplexidades e

convicções formadas ao longo dos cinco anos do seu mandato como Bastonário da

Ordem dos Advogados, e que foram sendo apresentadas nos diferentes espaços de

intervenção pública em que esteve presente. No livro estão reproduzidos os discursos

e comunicações feitas em sessões solenes, como a da sua tomada de posse e as

cerimónias de abertura do ano judicial, nas Conferências nacionais e internacionais

que a Ordem organizou ou nas quais se fez representar, nas sessões de entrega de

carteiras profissionais aos novos membros – que, normalmente coincidem com a

celebração anual da Semana do Advogado – nos editoriais assinados no Boletim Informativo

da OAM e, ainda, nas cerimónias de tomada de posse dos órgãos sociais da Ordem a

nível provincial.

Os textos, no seu conjunto, deixam facilmente descortinar a clareza de raciocínio, a

sobriedade da exposição, a ponderação, sagacidade e espírito crítico que são apanágios

do autor. Porque a riqueza e a variedade das temáticas abordadas tornam praticamente

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impossível a tarefa de nos debruçarmos, em detalhe, sobre cada uma delas, irei

seleccionar cinco temas que considero de particular interesse, não apenas pela

recorrência com que foram tratados, mas também pela actualidade que mantêm.

O primeiro refere-se, como não podia deixar de ser, ao modelo de advocacia que o

autor considera mais consentâneo com um Estado de Direito Democrático em

construção, como o nosso, e que a Constituição da República expressa e

programaticamente adoptou.

Logo no discurso da tomada de posse (pág. 22), o Bastonário Gilberto Correia

afirmava:

“… Temos a consciência de que há que preparar a advocacia do futuro, sem descurar o

presente. Que o futuro passará por uma advocacia livre, independente, auto-determinada,

auto-organizada, focalizada nos grandes combates pelos direitos, liberdades e garantias dos

cidadãos, pelos direitos humanos e pela erradicação da corrupção (…). Só uma advocacia

técnica e deontologicamente bem preparada, uma advocacia empenhada e solidária, poderá ser

útil à comunidade e ao país”.

Estava dado o mote para um combate persistente, que iria atravessar todo o seu

mandato, visando, não apenas, a dignificação do estatuto do advogado, enquanto

actor privilegiado do sistema integrado de administração da justiça, mas também a

afirmação da Ordem como um dos pilares fundamentais do complexo edifício em que

esse sistema assenta.

Na abertura do ano judicial de 2009 (pág. 35) fez recordar aos mais distraídos que

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“… diante de um processo-crime determinado, o Procurador é um Advogado (o Advogado da

República) e o Advogado é igualmente um Procurador (o Procurador do cidadão)”… [Por

isso] “as regras do Estado de Direito não deveriam permitir que, perante um processo

concreto, acusar um cidadão seja mais importante do que defendê-lo”.

Esta ideia da necessidade de assegurar a igualdade de armas entre a acusação e a

defesa no Processo Penal – um dos debates sempre em aberto quando se discute o

direito constitucional aplicado – seria repetida mais tarde, noutras ocasiões.

Mas, fora do âmbito estritamente processual, também no relacionamento com os

demais operadores judiciários, designadamente com a Polícia e as magistraturas, o

autor revela sempre muita firmeza no combate pelo respeito e consideração devidos

ao advogado e pela valorização do papel deste no quadro das instituições judiciárias.

Não posso deixar de apontar, pelo seu significado, o grito de indignação e a pronta

denúncia pública do tratamento inqualificável dispensado pela Polícia a três

advogados (dois dos quais estagiários), em momentos e circunstâncias distintas, aos

quais dedicou alguns parágrafos nos seus discursos das cerimónias de entrega de

carteiras profissionais, de Setembro de 2009 (pág. 226), e da abertura do ano judicial

de 2010 (pág. 47). Tratou-se, de facto, de dois momentos de ignomínia que ilustram o

longo caminho que ainda falta percorrer para que as normas da Constituição e da lei

ordinária, respeitantes ao estatuto do advogado, sejam acatadas e assumidas por todos.

Não se pense, porém, que a atitude do autor, na construção dessa “advocacia do

futuro”, de que falava na tomada de posse, se resume a uma mera reivindicação

corporativa ou de exaltação das virtudes da classe. No seu olhar para dentro, na

avaliação introspectiva do desempenho dos seus pares, o ilustre Bastonário

interrogava-se na cerimónia de entrega de carteiras profissionais, em Setembro de

2009 (pág. 222):

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“A pergunta que se impõe é a seguinte: a advocacia moçambicana tem contribuído para

assegurar eficazmente o direito de defesa reconhecido a todos os cidadãos? Infelizmente, a

resposta a essa pergunta, como todos sabemos, só pode ser negativa. Os mais acomodados

dirão que somos muito poucos, cerca de 600 advogados, para satisfazer a demanda de acesso

à justiça, num país com uma população de cerca de 20 milhões de habitantes. Dirão ainda

que o Estado não cumpre com o seu papel impulsionador para o surgimento de uma advocacia

social independente e que se afastou, de forma inaceitável, das demais responsabilidades que

lhe são inerentes. É verdade! Mas, é só uma meia verdade. Porque o facto de sermos poucos

não significa que devemos cruzar os braços (deveríamos ser poucos mas bons). Muito menos,

que devemos aguardar que os números cresçam para começarmos a desempenhar com maior

acuidade o nosso importantíssimo papel social e de interesse público. A realidade demonstra

que os advogados no nosso país demitiram-se do seu papel social, que se acomodaram à sua

função privada e que a maioria só trabalha em troca de um soldo”

Mais adiante, acrescentava, com audácia e frontalidade:

“O advogado deve ser mais um servidor da justiça do que um servidor do mercado. A sua

consciência profissional deve estar ao serviço de todos os cidadãos e não somente ao dispor

daqueles que podem pagar os seus honorários”.

Devo confessar que considero reconfortante, para quem, como eu, fez a sua carreira

profissional na judicatura e, em tantos momentos difíceis e dramáticos, teve de lidar

com o clamor de justiça dos mais fracos, ler estas palavras de sabedoria e de elevação.

Estou seguro de que a Ordem prosseguirá, nesta matéria, a mesma linha de

orientação, tanto mais que me parece haver, quanto a ela, grande similitude de

pensamento entre o anterior e o actual Bastonário, Dr. Tomás Timbane.

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Por isso, merece, a meu ver, total solidariedade a reivindicação do autor, no discurso

de abertura do ano judicial de 2009 (págs. 37-38), para que sejam atribuídos à Ordem,

por parte do Estado, os indispensáveis recursos financeiros que lhe permitam exercer

o seu importante papel de prestador de serviços públicos, e para que, de igual modo,

jamais a Ordem seja excluída dos Planos Estratégicos que venham a ser definidos para

o sector.

O segundo tema que gostaria de evidenciar é o da reforma do sistema de justiça, a que

o autor prestou igualmente atenção redobrada e que, pelo seu carácter transversal,

merece ser sublinhado.

Onde a questão apareceu abordada com maior profundidade foi durante os trabalhos

do 1º Congresso para a Justiça, sob o lema “Todos juntos por uma justiça de qualidade,

pronta e mais credível”. No seu discurso de abertura do Congresso (pág. 105),

encontramos as seguintes palavras:

“É indisfarçável que o nosso sistema de administração de justiça continua em crise. Uma crise

que tem um pouco de tudo. É, simultaneamente, uma crise de meios e de resultados; de

celeridade e de qualidade; de previsibilidade e de credibilidade”.

Mais adiante, o autor relembra que, para combater essa crise, muitas reformas já

foram ensaiadas ou realizadas. Os resultados é que ficaram, invariavelmente, muito

aquém do esperado. A principal razão apontada, com a qual não podíamos estar mais

de acordo, é a de que

“… tais reformas não resultam de uma visão holística e harmoniosa do sistema (…). A

percepção que temos é que neste sector são promovidas reformas pontuais, descoordenadas,

assentes em paliativos, retoques ou remendos. A máquina da administração da justiça parece

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clamar por uma reforma profunda, horizontal e global, feita a partir da aprendizagem obtida

com os erros do passado, da projecção das necessidades futuras e do conhecimento e

experiências colectivas acumuladas”

Como resultado dessa falta de visão estratégica, da ausência de uma perspectiva

partilhada por todos e cada um dos sujeitos intervenientes no cenário da justiça, que –

nunca o esqueçamos –, deve englobar a Polícia de Investigação Criminal (ou Polícia

Judiciária, se preferirem),

“… volvidos cerca de 37 anos de independência nacional temos ainda uma justiça cara, de

difícil acesso e extremamente morosa. Paira no horizonte uma sensação permanente de que a

verdadeira reforma do sector, a mãe de todas as reformas, ainda está para ser feita”.

Sinto-me confortável reproduzindo aqui este entendimento, esta maneira de ver as

coisas, porque, como muitos sabem, tive o privilégio de coordenar uma equipa de

trabalho, quando ainda exercia as funções de director do Centro de Formação Jurídica

e Judiciária, que elaborou um conjunto de propostas legislativas do qual se destacava o

abortado “anteprojecto de lei de bases do sistema de administração da justiça” e

incluía, também, os anteprojectos de lei orgânica dos tribunais judiciais e dos tribunais

comunitários, bem como o anteprojecto de lei do acesso à justiça e ao direito. Todas

estas propostas foram acolhidas pela UTREL, mas, por razões que desconheço, só a

lei orgânica dos tribunais judiciais viria a ser aprovada pela Assembleia da República.

Todavia, as alterações introduzidas, quer de substância quer de filosofia, foram tantas

que dificilmente se lhe reconhece alguma relação com a proposta original.

No anteprojecto de lei de bases, que tinha sido objecto de ampla discussão, tanto em

Maputo como na Beira, Nampula e Inhambane, envolvendo todos os actores

judiciários – Ordem dos Advogados incluída –, bem como organizações da sociedade

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civil, estruturas comunitárias, confissões religiosas, etc. (estou a reportar-me aos anos

de 2004/2005), várias questões foram inventariadas, entre elas, a necessidade de um

sistema integrado, que pusesse em permanente articulação o Judiciário formal,

profissionalizado, e os diferentes mecanismos não judiciais de resolução de conflitos

reconhecidos pelo Estado ao abrigo do famoso artigo 4 da actual Constituição. Por

isso, estou igualmente sintonizado com a ideia de que devemos prosseguir

“a busca comprometida de soluções para que em Moçambique a justiça seja previsível e

acessível a todos; seja administrada em tempo económica e socialmente tolerável e com padrões

que se aproximem das concepções colectivas de justiça predominantes na nossa sociedade”

(discurso de abertura do 1º Congresso para a Justiça, pág. 108).

O terceiro tema que quero referir é um daqueles a que nenhum magistrado judicial ou

do Ministério Público, nenhum advogado, nenhum cidadão e, provavelmente, muito

poucos oficiais e agentes da PIC podem ficar indiferentes. Trata-se, como é bom de

ver, da sempre prometida e eternamente adiada reforma da Polícia de Investigação

Criminal, que o autor considera “a mais urgente e importante reforma do nosso judiciário”

(discurso da cerimónia de abertura do ano judicial de 2012, pág. 76). Como o próprio

constata,

“Não é novidade para ninguém que existe a percepção generalizada de que temos uma

investigação criminal ineficiente, ineficaz e fragilizada por problemas internos e externos de

diversa índole. Problemas ligados à falta de adequados recursos humanos, financeiros e

tecnológicos, bem como a uma estruturação incorrecta desta polícia estão, dia após dia, a

tornar esta importante instituição da administração da justiça cada vez mais distante dos

resultados que a sociedade civil espera que produza. Esta percepção amplia-se quando estejam

em causa três grandes males que apoquentam a nossa sociedade: a criminalidade violenta, a

criminalidade organizada e a corrupção. É um contra-senso propalarmos uma vontade

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arreigada de combater o crime organizado e a corrupção e, simultaneamente, pugnarmos por

manter a PIC tal como está, adiando ‘sine die’ as necessárias reformas”.

Pouco mais há a acrescentar sobre este assunto. Creio que a grande maioria dos

operadores judiciários e, em geral, dos académicos e profissionais a quem este tema

mais directamente interessa (como ficou, aliás, bem saliente durante os trabalhos do 1º

Congresso para a Justiça), está de acordo com esta pertinente observação de Gilberto

Correia, no discurso da cerimónia de abertura do ano judicial de 2013 (pág. 86):

“Todos conhecemos os argumentos dos que defendem a reforma profunda da PIC e a

respectiva retirada desta polícia de natureza judiciária do Ministério do Interior. Mas, do

lado oposto, são secretos e insondáveis os argumentos dos que insistem em manter as coisas tal

como estão. Reina um estrondoso défice de debate em relação aos fundamentos dos que

preferem ver a PIC como um departamento do Ministério do Interior”.

Resta esperar que essa manta de secretismo que impede o avanço das reformas

preconizadas se desvaneça um dia e que o assunto possa ser levado a uma discussão

séria, responsável e esclarecedora, porque a eficiência da prevenção e da repressão do

crime e a segurança pública dos cidadãos e das outras pessoas jurídicas dependem, em

larguíssima medida, do desempenho deste precioso instrumento de auxílio ao

Ministério Público e aos tribunais.

O quarto tema que saliento é o da corrupção no Judiciário. O autor aborda-o, sem

receios nem tabus, em várias das suas intervenções. Identifica causas, aponta

caminhos de reforço da sua prevenção e combate, exemplifica com factos concretos

que por muitos de nós são conhecidos. Não preciso de fazer aqui mais citações.

Limito-me a convidar os leitores a procurarem nos discursos de abertura dos anos

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judiciais de 2011 (pág. 63) e 2013 (pág. 89) alguns subsídios para o debate deste

problema.

Em meu entender, a míngua de resultados no combate ao flagelo da corrupção já não

tem a ver com a falta ou deficiência dos instrumentos legais, com a exiguidade de

meios para o levar a cabo (embora reconheça que este é um sério constrangimento a

considerar) ou com a deficiente qualificação dos agentes envolvidos. O factor decisivo

é, sem qualquer dúvida, a falta de uma clara, inequívoca e determinada vontade

política dos titulares dos órgãos de decisão, ao mais alto nível. Como diria o

Bastonário Tomás Timbane, “nós não somos ingénuos”: os sinais emitidos nos casos mais

recentes mostram que os jogos de influência, os actos de pressão ou de intimidação

sobre o Judiciário, só não são exercidos ou desencadeados, de forma velada ou

manifesta, quando não estão em causa interesses políticos, económicos ou de outra

índole de certas pessoas ou instituições. Neste tipo específico de criminalidade, mais

do que em qualquer outro, domina a regra de que a lei só é implacável para o “peixe

miúdo”, desvanecendo-se em brandura quando o alvo é o “tubarão”. Basta lembrar o

triste episódio de Moatize, nas vésperas do último acto eleitoral para os órgãos

municipais. Creio não ser necessário acrescentar mais nada.

O quinto e derradeiro tema para o qual chamo a atenção dos leitores é o do

inadmissível e condenável défice de cultura de Estado e de respeito institucional,

protagonizado pelo Comandante Geral da PRM, Jorge Khálau, em mais do que um

dos seus pronunciamentos públicos. Trata-se de um assunto de extrema gravidade,

envolto em inevitável polémica, que o autor – em minha opinião – analisa muito bem,

principalmente no editorial do Boletim Informativo nº 2 da OAM (págs. 121 e segts.).

Nesse texto, o antigo Bastonário não só manifesta o seu assombro por uma das “frases

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assassinas” (sic) de Khálau, proferida no início do mês de Maio do ano passado1, como

revela a expectativa que se gerou na sociedade quanto à intervenção firme do

Presidente da República, no sentido de exonerar e substituir o referido Comandante-

Geral, e, também, a sua perplexidade face à reacção, que considera inapropriada, do

Digníssimo Procurador-Geral da República.

Quanto à gravidade das inusitadas declarações, o autor escreve:

“Com as suas palavras e actos, o Comandante-Geral da PRM tentou lançar as bases de uma

espécie de Estado Policial, em prejuízo manifesto do Estado de Direito democrático. Se este

episódio ficar impune, como até agora se encontra, abre-se inevitavelmente um perigoso

precedente, o qual configurará um retrocesso no processo de consolidação do Estado de Direito

em Moçambique”.

No que à intervenção do Chefe de Estado diz respeito, a expectativa seria

completamente gorada no decorrer do tempo. Dias depois das controversas

declarações, por ocasião das festividades do “Dia da Polícia”, o Presidente reiteraria a

sua total confiança na corporação e no seu Comandante-Geral e, mais recentemente,

no último 3 de Fevereiro, Dia dos Heróis moçambicanos, atribuiu mesmo a Jorge

Khálau, como reconhecimento dos seus “actos excepcionais de coragem, sacrifício,

solidariedade, empenho pessoal e dinamismo de direcção”, a Ordem Samora Moisés Machel do

1º Grau (Jornal A Verdade, edição de 4 de Fevereiro)…

1 De acordo com a notícia publicada no jornal “O País” em 01.05.2013, a frase reportar-se-ia a uma decisão do

Tribunal Judicial do Distrito de Nacala, que mandou restituir à liberdade o Comandante distrital e mais três

agentes da PRM, acusados por Jorge Khálau de envolvimento em tráfico de armas, e teria sido do seguinte

teor: “Nós conhecemos as leis. Nós não obedecemos a nenhum juiz. Nós tomamos as nossas medidas internas. Agora dizem que

(o regulamento) está ultrapassado! Muito obrigado! O Código Penal de que ano é? 1886. Só o Regulamento da Polícia é que

está ultrapassado? Houve violação de normas internas (…)”.

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Sobre a reacção do Procurador-Geral da República, o autor considera que o

Digníssimo magistrado “não deve colocar os seus (maus) hábitos de não comentar declarações

proferidas pelos altos dirigentes do Estado acima do seu dever de se posicionar e de intervir na

reposição da legalidade, onde e quando tais declarações consubstanciam manifestações penais e

flagrantes violações à Constituição da República” (pág. 124). E critica o facto de o PGR ter

encetado “uma espécie de ‘fuga para a frente’, ao solicitar a apreciação da constitucionalidade do

Regulamento da PRM (...), ao invés de agir sobre os actos e as declarações ilícitas do Comandante-

Geral da PRM que consubstanciam o verdadeiro busílis desta problemática toda” (idem).

Têm os leitores, naturalmente, a liberdade de se posicionarem sobre estas questões,

que são tudo menos despiciendas. A mim, fica-me a sensação – quase a certeza – de

que, num Estado de democracia mais desenvolvida e consolidada, dificilmente os

acontecimentos teriam o desfecho que tiveram entre nós. Isso só pode significar que,

aqui, como noutros domínios da Governação, a luta continua por um país mais justo,

mais democrático e em que os valores, princípios e normas consagrados na

Constituição e nas leis sejam respeitados por todos, governantes e governados.

Minhas senhoras e meus senhores,

Além destes temas, que achei pertinente destacar na minha apresentação de Pontos de

Ordem, vários outros assuntos relevantes são tratados na obra agora posta à disposição

do público. Como já mencionei, seria impossível debruçar-me sobre todos eles. Mas

estou seguro de que, à medida que penetrardes na leitura, descobrireis reflexões e

recomendações, sempre bem elaboradas e fundamentadas, sobre várias matérias que

se prendem com a gestão interna da Ordem, com a imperiosa necessidade de

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ratificação do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional – na

medida em que a não ratificação “enfraquece o Estado de Direito, coloca em causa a

credibilidade internacional do Estado moçambicano e permite que os responsáveis por crimes contra a

humanidade vejam o nosso país como um refúgio seguro” (pág. 51) –, assim como as questões

relativas ao processo de selecção, recrutamento e formação de advogados e

magistrados, aos avanços e retrocessos na organização prisional do país, à importância

do envolvimento dos cidadãos e das organizações sociais no processo de revisão

constitucional ainda em curso, e outras matérias relevantes.

Não quero, como é evidente, adiantar-me às vossas expectativas, nem aumentar a

curiosidade, que vos deve estar a dar cabo da paciência.

Comprem o livro (passe a publicidade) e façam bom proveito da leitura.

Muito obrigado.