Apresentação Terra dos Homens Claval revista Geousp

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Apresentação do livro Terra dos Homens pelo próprio autor Paul Claval na revista Geousp

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  • GEOUSP - Espao e Tempo, So Paulo, N 29, pp. 80 - 86, 2011

    Tenho setenta e oito anos e me interesso pela geografia h mais ou menos setenta anos. Participei do movimento cientfico da disciplina h aproximadamente sessenta anos. Publiquei muitos livros e artigos durante a minha vida, e isso no estilo acadmico. No ano passado, decidi explorar novas maneiras de apresentar a geografia e os seus resultados para divulg-los a um pblico mais extenso. Preparei livros mais breves (manuscritos de at duzentos mil caracteres), usando um vocabulrio mais simples, com sentenas mais curtas, mas sempre baseados na informao mais recente. Para facilitar o uso desses textos pelos colegas e estudantes importante divulgar a bibliografia. O texto incorpora tambm citaes de autores antigos e modernos.

    O meu plano escrever trs livros deste tipo: o primeiro sobre a natureza, a evoluo e o alvo da geografia humana; o segundo sobre o papel da paisagem na disciplina e o terceiro sobre as mudanas da realidade geogrfica desde o fim do sculo dezenove. Os ttulos so: 1- Terra dos homens. A geografia, 2- A Paisagem dos gegrafos e 3- As Trs Geografias. O primeiro volume j est publicado em portugus. A redao do segundo est terminada. Tenho o projeto de escrever o terceiro no comeo do ano de dois mil e onze.

    Agora, vou falar de Terra dos homens. O livro foi publicado pela Editora Contexto (2010), em So Paulo. A traduo foi feita por Domitila Madureira, que foi minha aluna em Paris nos anos oitenta. O livro, em sua verso brasileira, se apresenta como um texto de cento e quarenta

    pginas. Qual sua ambio? Qual o seu alvo? Como ele se estrutura?

    O alvo do livro apresentar a geografia humana como sendo ao mesmo tempo

    experincia comum e cincia.

    Quando se fala de geografia, a gente fala da geografia quer como de um conjunto de experincias, prticas e saberes comuns a todos os seres humanos, quer da geografia como cincia. Existe uma ligao fundamental entre esses dois aspectos da disciplina: a abordagem cientfica raciocina sobre as prticas e os saberes empricos de cada um e os sistematiza. Mas o campo geogrfico como prtica muito largo: at recentemente, a disciplina cientfica s foi capaz de sistematizar uma parte dos saberes e da experincia espaciais das gentes.

    Terra dos homens tem duas faces. A primeira trata da geografia como prtica comum a todos os homens: saberes empricos, savoir-faire (know how) e experincia. A segunda trata da geografia como disciplina cientfica.

    A apresentao da primeira face relativamente breve e a segunda, mais longa. A primeira cobre a geografia como prtica universal da humanidade. A segunda interessa-se pela geografia como cincia. Ela subdividida em trs partes e apresenta primeiramente o nascimento da geografia cientfica na Antiguidade grega e seu desenvolvimento ate o sculo das Luzes, em segundo lugar o desenvolvimento da disciplina do

    TERRA DOS HOMENS : A GEOGRAFIA

    UMA APRESENTAO

    Paul Claval*

    * Professor da Universidade de Paris I - e-mail: [email protected] - Conferncia proferida no Departamento de Geografia da Universidade de So Paulo em 2010.

  • Terra dos homens: A geografia - Uma Apresentao pp. 80 - 86. 81

    sculo dezoito at os anos setenta do sculo vinte, e finalmente a geografia contempornea.

    A geografia como prtica e como experincia

    Saberes prticos, mas no sistematizados.Na vida cotidiana, as pessoas precisam (i)

    de conhecimentos geogrficos diversos (ii). Elas tiram elementos essenciais para dar um sentido a sua existncia e para construir as suas identidades tambm de sua experincia em morar, viajar, e at sonhar.

    As necessidades fundamentais das pessoas so de produzir os seus alimentos e transport-los at seus locais de habitao, de construir abrigos ou casas para se proteger do vento, da chuva ou do frio, ou obter tecidos para se vestir, entre outras. Os problemas que tm so tambm de saber como integrar-se num grupo, como desenvolver relaes com desconhecidos, como usar a sua influncia para exercer poder sobre outros.

    Conhecimentos de contedo geogrfico so necessrios para atingir estes alvos; por exemplo, os povos caadores tm de saber quais so os tipos de vegetao e os tipos de meio ambiente que convm caa; o problema , uma vez estes meios localizados, achar um itinerrio para chegar l. No desenvolver um conhecimento abstrato e geral dos meios ambientes, ou regras gerais para orientar-se e localizar os lugares.

    Os conhecimentos geogrficos que tm um papel na vida da gente so relativos (i) orientao e localizao dos lugares, (ii) ao uso dos meios ambientes, (iii) integrao nos grupos sociais e ao uso das relaes sociais para atingir os seus alvos, e (iv) proteo contra grupos hostis e, mais geralmente, para fazer guerra ou manter a paz.

    Orientar-se e localizar lugares. Os conhecimentos geogrficos mais

    fundamentais so relativos orientao e localizao. Como orientar-se? Como achar o Norte? Como situar um lugar em relao a outros lugares?

    Para se orientar, preciso ter pontos de referncia os mais afastados possveis: uma alta serra a cinquenta quilmetros melhor do que uma encosta ou uma colina distante trs quilmetros.

    O problema mais difcil nas regies de floresta, onde a vista sempre limitada a alguns metros pelos troncos das rvores. No mar, no existem pontos de referncias terrestres.

    O sol e as estrelas e mais particularmente a estrela Polar oferecem melhores condies, por que esto to afastados que aparecem imveis. Todos os povos sabem utilizar a Polar e nortear-se desta maneira.

    Numa zona de mata, no mar ou nas latitudes elevadas onde o sol no visvel por meses, onde a luz fraca e o cu muitas vezes nublado, a orientao repousa sobre outras tcnicas: uma observao da sucesso dos meios ambientes, das suas cores; ao progredir na jornada, adquirir o reflexo de virar-se muitas vezes para descobrir a paisagem como ela aparecer na viagem de volta.

    Uma parte deste conhecimento no verbalizada: para ensinar a orientao a seus filhos, os Inuits viajavam com eles. Eles impunham uma ateno permanente a todos os trechos da paisagem, mas sem descrever ou nome-los.

    Geralmente, a aprendizagem do espao apoia-se sobre a toponmia: os rios, os montes, as aldeias, os cidades tm nomes. Graas a eles, a gente pode falar dos lugares e transmitir conhecimentos sobre eles e a maneira de atingi-los: a descrio de itinerrios tem um papel central na geografia dos povos cuja cultura oral.

    Para a maioria das culturas tradicionais, a localizao dos lugares permanecia relativa: esta aldeia situa-se ao norte desta cidade, a leste desta serra, a oeste deste rio, e assim por diante. O uso do mapa era raro.

    Conhecimentos relativos ao uso dos meios ambientes.

    O segundo t ipo de conhecimentos geogrficos relativo aos meios ambientes e ao seu uso pelas atividades produtivas (caa, pesca, criao de gado, agricultura, fabricao de ferramentas ou objetos de consumo), pela construo de casas, pela abertura de vias de comunicao ou pelo lazer.

    Os agricultores sabiam apreciar a qualidade de um solo; eles sabiam qual tipo de cultura convinha a um campo ou a tal outro. Eles sabem desviar a gua de um rio para irrigar as suas

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    culturas. Eles conhecem tambm o clima e os riscos de seca, de chuvas demasiadamente fortes, ou de geada.

    Os mineiros sabiam localizar as minas de ferro, de cobre, entre outras. Os pedreiros conheciam os lugares de onde se podiam extrair pedras para a construo de casas, entre outros usos. Desta maneira, os conhecimentos geogrficos pertenciam a grupos profissionais diversos. No estavam unificados num corpo nico.

    Nas sociedades que usavam a escrita, a situao mudou: os reis ou imperadores faziam escrever descries de suas terras, dos itinerrios para ir da capital at as fronteiras; recenseamentos das fortalezas, dos armazns onde as suas tropas poderiam guardar trigo. Desta maneira, uma geografia escrita j existia. Geralmente, ela no era divulgada ao pblico.

    Ao mesmo tempo uma literatura de viagens, reais ou imaginrias, comeou a desenvolver-se para responder curiosidade dos governos e do pblico pelos estados e por aqueles que moravam em pases estrangeiros.

    Conhecimentos sobre a insero dos indivduos nos grupos e o uso das relaes

    sociais.A geografia tinha um papel importante

    na vida das populaes por outras razes. Para se alcanar eficincia, importante tirar proveito da diviso do trabalho: no possvel cada um desenvolver conhecimentos sobre todos os meios ambientes e sobre todas as tcnicas para explor-los. melhor cooperar uns com os outros.

    Mas sobre quais bases organizar essa cooperao? Sobre uma base da igualdade, numa associao? Sobre uma base hierrquica de subordinao, entre um dono e seus servidores, ou entre um empreendedor e seus empregados? Como tirar proveito das redes sociais para comunicar? Como construir um sistema poltico baseado no mesmo tempo sobre a fora fsica e a confiana ?

    A organizao espacial dos meios sociais depende das tcnicas de transporte e de comunicao. A transio das sociedades de oralidade pura s sociedades em que a escrita era conhecida foi essencial para o desenvolvimento de estruturas espaciais extensas e capazes de

    organizar grupos numerosos.A vida social se desenvolve no espao:

    inserir-se em um grupo, desenvolver atividades no seu seio, so problemas que tm dimenses geogrficas.

    Fazer guerra ou manter a paz.A vida social no sempre pacfica.

    Existem indivduos e grupos que preferem roubar ou transformar os outros em escravos do que trabalhar com seu prprio esforo pessoal. Existem tambm indivduos com um gosto para a violncia, para a morte. importante ter meios de defesa contra estes indivduos e grupos.

    A guerra faz parte da vida social, e a geografia serve a fazer guerra, como o disse Yves Lacoste uma gerao atrs. O uso militar do espao mudou com a evoluo das armas, das fortalezas, mas tambm com o desenvolvimento de novos meios de transporte e de comunicao.

    A experincia espacial e o sentido da vida individual e coletiva.

    O espao tem um papel central na vida da gente por outras razes. O espao da vida cotidiana confere um sentido de pertencimento a um grupo local; ele tem um papel central na construo das identidades: somos semelhantes por que nascemos num mesmo lugar, frequentamos as mesmas pessoas, falamos o mesmo idioma, fazemos parte do mesmo grupo. A histria do vizinho semelhante minha. A dimenso local dos sentidos de identidade mais forte nas sociedadesnas quais as tcnicas de transporte e comunicao permanecem fracas, mas nunca ela desaparece totalmente.

    Outra experincia fundamental essa da viagem: ela permite fugir aos constrangimentos locais, descobrir outros meios naturais e sociais, fazer a experincia de outro lugares, outras estruturas sociais, outras concepes de vida. Viajar cria oportunidades de renovao para os indivduos, de inovao no domnio tcnico, e de desenvolvimento de outras concepes de vida.

    A experincia do horizonte tambm fundamental, porque ela sugere permanentemente a existncia de outros espaos, de outras possibilidades:

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    O horizonte exprime [] muito mais que a existncia de mundos longnquos. [] Ele remete parte invisvel que reside em qualquer visvel, a esse desdobramento do mundo que faz do real, em definitivo, um espao inacabvel, um meio aberto e que no pode ser inteiramente tematizado. O horizonte o nome dado a essa potncia de desdobramento do ser que se apresenta na paisagem" (Besse, 2009, p. 53).

    Essa experincia desempenha um papel central na construo do alhures das religies e das ideologias, deste alhures que d um sentido vida de cada um e vida coletiva.

    O espao modela a vida humana de uma maneira complexa e diversa. Cada um tem de desenvolver conhecimentos mltiplos para se orientar, explorar o meio ambiente, inserir-se no tecido social. A sua experincia espacial forja, pelo menos em parte, a sua identidade, e contribui para dar um sentido sua vida.

    O alvo da geografia humana cientfica transformar um conjunto de saberes prticos e de experincias num campo racionalmente organizado e estruturado. Essa construo comeou nas civilizaes tradicionais,em que os conhecimentos geogrficos foram coletados sistematicamente pelo Estado para melhorar a organizao do espao e a fiscalizao dos indivduos. Mas foi somente na Grcia que essa transformao tomou uma forma cientifica.

    A primeira geografia cientfica: da Grcia antiga Europa das Luzes

    A geografia desenvolveu-se numa parte da Grcia antiga, a Jnia, no sculo VI antes de Cristo. Para Herdoto, ela j tinha uma tripla ambio: primeiramente resolver os problemas da orientao com o apoio de uma cincia nova, a astronomia; em segundo lugar, usando os resultados dessa nova reflexo sobre orientao, oferecer uma descrio dos pases baseada sobre uma outra cincia nova, a geometria, atravs da produo de mapas; e por fim descrever a diversidade da superfcie da terra.

    A filosofia jnica do sculo VI antes de Cristo analisou o cosmos um pouco como ela analisou as novas formas de organizao da cidade:

    um conjunto de estrelas, de um lado, um conjunto de cidados do outro. A cidade foi baseada sobre a igualdade dos cidados gravitando em torno de um foco central. Da mesma maneira, o cosmos foi concebido como um conjunto de estrelas localizadas sobre uma esfera muita afastada e gravitando em torno de um foco central: uma esfera muita pequena, a Terra: da a possibilidade de utilizar as estrelas para orientar-se. A esfera das estrelas girou a cada dia em torno de um eixo comum esfera celeste e esfera terrestre. A direo deste eixo foi marcada pela estrela Polar.

    O uso de referncias astronmicas para orientar-se oferecia, desta maneira uma resposta geral ao problema da localizao. Uma outra ideia se impunha entre os filsofos e gemetras gregos: a da forma geomtrica dos pases, organizados em quadrados e retngulos. Da a possibilidade de representar os pases por figuras simples por mapas. No sculo V antes de Cristo, Herdoto descreveu a Terra olhando um mapa Jnico, que foi um esquema geomtrico da distribuio dos pases.

    A terceira dimenso que a geografia de Herdoto teve foi a descrio dos aspectos concretos da superfcie da Terra, mas lhe faltaram os conhecimentos para entender a flora, a fauna, as tcnicas produtivas. O nico domnio onde ele teve ferramentas intelectuais eficientes foi quanto aos costumes: o resultado que sua descrio parece hoje mais um trabalho etnogrfico do que geogrfico.

    Essa fraqueza permaneceu at o sculo dezoito, at o desenvolvimento das cincias naturais. A concepo regional da disciplina foi ilustrada por Estrabo, no tempo do Imperador Augusto, mas o seu trabalho tinha as mesmas fraquezas que aquele de Herdoto.

    No sculo III antes de Cristo, Eraststenes foi o verdadeiro criador da geografia cientfica: ele entendeu a possibilidade de localizar pontos na superfcie da Terra usando medidas astronmicas. A geografia tornou-se: Esta cincia sublime que l no cu a imagem da Terra (Ptolemeu). Eraststenes foi o primeiro a entender que a localizao de um lugar qualquer na superfcie da Terra pode ser determinada pela sua latitude e sua longitude. J no tempo de Eraststenes, a medida da latitude atravs da altura do sol ou da

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    estrela Polar era fcil ; para a longitude, a situao era diferente, porque a medida repousava sobre a comparao do tempo local com o tempo do meridiano de origem. Sem relgio, essa medida foi impossvel e permaneceu impossvel at John Harrison, no sculo dezoito.

    At o sculo dezoito, a geografia aparecia essencialmente como uma disciplina dos mapas. Comparando as narrativas dos viajantes e os dirios de bordo de navegadores, os gegrafos fizeram estimativas das distncias entre lugares para medir aproximadamente as longitudes. Eram antes homens de gabinete do que de campo.

    Do sculo dezoito aos anos 1970

    Dois fatores explicam a mudana da geografia no sculo dezoito: 1- a inveno de relgios de marinha, o que facilitou a medida das longitudes; 2- o desenvolvimento das cincias da natureza, visto que permitiram a descrio precisa dos meios naturais, das formas da organizao e de trabalho das sociedades.

    A disciplina atravessou uma crise no sculo dezoito, quando a base da cartografia tornou-se totalmente objetiva e tcnica: a partir da segunda metade do sculo dezoito, ela foi realizada pelos servios especializados do Estado: o exrcito, a marinha militar, ou as Finanas. Os gegrafos no eram mais criadores de mapas topogrficos; eles tornaram-se seus utilizadores.

    Durante os sculos dezenove e vinte, a sua contribuio limitou-se ao desenho de mapas temticos no campo da geologia, da vegetao, da climatologia, da demografia, da urbanizao, da economia, dos transportes. Com o desenvolvimento da cartografia moderna, a disciplina perdeu as suas bases institucionais tradicionais os servios cartogrficos. Ela desenvolveu novos papis: a explorao da natureza, segundo o modelo das grandes expedies martimas da segunda metade do sculo dezoito, ou da viagem de Alexandre von Humboldt Amrica hispnica. No comeo do sculo dezenove, uma nova disciplina cientfica desenvolveu-se no domnio da geografia fsica graas ao progresso das cincias naturais: cobria a geomorfologia, a geografia da vegetao, a climatologia.

    O evolucionismo de Darwin levantou um problema novo: o da influncia do meio ambiente sobre os comportamentos humanos. Estes eram determinados pelas condies externas? Estes resultavam da livre escolha dos homens? Graas a Friedrich Ratzel na Alemanha e a Paul Vidal de la Blache na Frana, a geografia humana se constituiu como uma ecologia do homem. Para entender a distribuio espacial dos fenmenos humanos, a disciplina tinha de analisar as relaes que cada grupo humano mantinha com o meio ambiente, e tambm as que ele desenvolvia com outros grupos: relaes verticais com o ambiente; relaes horizontais de circulao com outros lugares.

    Na primeira metade do sculo vinte, a geografia humana mirou as relaes homens/meio ambiente, analisadas atravs do estudo dos modos de vida (genres de vie). Esta abordagem foi particularmente eficiente para entender a organizao do espao das sociedades rurais tradicionais.

    Nos anos quarenta e cinquenta do sculo vinte, num mundo mais industrializado e mais urbanizado, a abordagem em termos de modos de vida perde uma parte de sua pertinncia: numa sociedade na qual a mobilidade tornou-se cada dia maior, o estudo das relaes entre o meio local e os homens j no podia mais explicar as distribuies humanas. Para entender o papel da circulao e das trocas, os gegrafos tomaram como modelo a economia espacial: foi o tempo da Nova Geografia.

    Nos anos sessenta do sculo vinte, a geografia cientifica tinha a capacidade de localizar os lugares e de representar-los num mapa; ela explicou o uso por os seres humanos da natureza; ela analisou tambm as redes sociais desenvolvidas pelos homens e sua utilizao para estruturar relaes sociais, organizar sistemas polticas, desenvolver trocas a fim de tirar vantagem da especializao do trabalho.

    A geografia cientifica j tinha a capacidade de sistematizar trs aspectos dos problemas geogrficos encontrados por todos os seres humanos: 1- o problema da orientao/localizao; 2- o problema da explorao da natureza para alimentar os homens e construir ferramentas e casas e 3- o problema de organizar sistemas sociais e de inserir-se neles. O que faltou foi a anlise da

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    experincia humana dos lugares.

    A mudana da geografia desde 1970

    At os anos 1970, a evoluo da geografia traduziu o jogo de foras internas disciplina: a ineficincia, por exemplo, da noo de modos de vida para explicar as sociedades industrializadas e urbanizadas do mundo moderno.

    As mudanas contemporneas tm outras facetas. A sua origem foi externa: a crtica da civilizao ocidental, de um lado, e a ideia de que a cincia nunca tem a capacidade de atingir a verdade absoluta.

    Na geografia, o resultado foi uma transformao profunda da pesquisa. Ela se fez mais crtica: nos sculos passados, a disciplina teve um papel importante no desenvolvimento das tcnicas de fiscalizao e organizao do espao, porque ela fornecia mapas teis para a definio de estratgias de dominao. A disciplina teve uma conexo forte com o desenvolvimento do Estado moderno, na Europa e na Amrica do Norte, e no imperialismo alhures.

    A perspectiva crtica mostrou tambm que a interpretao dos ambientes humanizados s pode se fazer atravs do conhecimento das prticas das populaes estudadas: para entender a geografia dos povos de caadores era importante estudar os conhecimentos destes grupos sobre a vegetao, a fauna selvagem, e conhecer tambm suas armas e a organizao social da caa. Para entender a geografia dos agricultores era importante estudar os conhecimentos que eles tm sobre os solos, as plantas, o papel do gado na restituio dos elementos fertilizantes, e conhecer as suas ferramentas e as suas prticas.

    O desenvolvimento da geografia humana na primeira metade do sculo vinte resultou da incorporao, no discurso cientifico, das prticas e dos conhecimentos geogrficos sobre o meio ambiente das populaes estudadas foi o interesse maior da noo vidaliana de modo de vida.

    Desta maneira, a geografia reintegrou os saberes tradicionais das populaes que ela estudava: existia uma correlao entre o

    desenvolvimento de formas mais abrangentes da geografia cientfica e a incorporao destes saberes. Na metade do sculo vinte, a geografia j tinha incorporado os saberes populares sobre o meio ambiente; nos anos cinquenta e sessenta, ela incorporou os saberes populares sobre a circulao das pessoas, dos bens e das informaes.

    Mas ao lado das perspectivas crticas, que permitem uma outra leitura das geografias do passado, a mudana dos ltimos quarenta anos teve outros aspectos. Ela mostrou o papel da subjetividade humana na construo do sentido que os seres humanos do ao cosmos, Terra, ao meio ambiente, organizao social. No se pode entender a orientao da ao humana sem integrar a percepo que a gente tem do meio ambiente e da organizao social, sem integrar os sonhos, e o imaginrio dos seres humanos.

    Desta maneira, os gegrafos abrem um novo campo de investigao: aquele que trata do sentido dos lugares, das atitudes frente ao meio ambiente, dos projetos para o futuro. Ela fala dos aspectos normativos da ao humana. Ela d uma forma sistemtica ao conjunto das prticas, dos saberes populares e das experincias que a gente tem sobre o mundo e a vida terrestre.

    Concluso

    Terra dos homens. A geografia apresenta uma vista sinttica sobre a natureza dos saberes geogrficos e sobre a sua evoluo. A sua tese central a seguinte: para sobreviver na superfcie da Terra, a gente tem de desenvolver saberes prticos sobre problemas de orientao e de representao da superfcie terrestre, sobre os usos do meio ambiente e das redes sociais pelos homens. Eles tm tambm de dar um sentido sua experincia na vida sobre a Terra.

    A geografia cientfica trata deste conjunto, mas o seu desenvolvimento foi progressivo. Os problemas de orientao e de representao da superfcie terrestre, j sistematizados pelos Gregos antigos, tiveram sua soluo completada no sculo dezoito, graas aos novos mtodos de medida das longitudes. Os conhecimentos sobre o meio ambiente e sobre as redes sociais foram explorados pela geografia do final do sculo

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    dezenove aos primeiros setenta anos do sculo vinte. A virada cultural da geografia, no curso dos ltimos quarenta anos, incorpora a experincia vivida do mundo no campo da pesquisa cientfica.

    Desta maneira, a geografia humana oferece, pela primeira vez, um mtodo para entender a gnesis e a organizao da Terra dos Homens.