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1 APRESENTAÇÃO Em junho de 2019, a premiada escritora indiana Dipika Mukherjee visitou o Departamento de Letras Modernas e tomou parte em um bate-papo com alunos e professores. Antes da visita ela nos enviou um texto, que foi traduzido pelos alunos das duas turmas de Tradução: Análise Contrastiva Inglês-Português, com o apoio da Profa. Lenita Maria Rimoli Pisetta. O texto foi discutido na ocasião com a autora, que permitiu que a tradução fosse publicada aqui. Doppelgänger Dipika Mukherjee Neste conto escrito em resposta a eventos atuais ocorridos na Malásia, uma escritora enfrenta um Doppelgänger que tem o intuito de silenciar seu discurso político. Maya Chin, famosa autora reclusa da Malásia, não publicou nada em sete anos. Ela, definitivamente, não escreveu o artigo que está segurando agora, no jornal de hoje, embora o texto esteja marcado com seu estilo sarcástico. Os olhos da Maya correm por cima das colunas de texto e param em sua assinatura mais uma vez. Acima de seu nome está uma fotografia, a que foi tirada dez anos atrás e a única que ela usa para sobrecapas de livros. Ainda é cedo. Ela tinha examinado rapidamente a coluna do obituário, depois as manchetes, e, então, virando a página das fotos em preto-e-branco com os recém- falecidos, ela a viu, bem ali, na página central do New Straits Times do lado das cartas ao editor: uma coluna com o nome dela e, mais inequivocamente, sua foto. Após a reportagem do Wall Street Journal sobre a transferência, pelo primeiro ministro malaio, de US$700 milhões dos fundos públicos, o primeiro-ministro estava acusando um ex-primeiro ministro de estar por trás dessa calúnia internacional. Sim, isso estava acontecendo, essa era a conversa nos cafés da cidade, mas não era algo sobre o que Maya quisesse comentar publicamente. Certamente não quando o governo estava bloqueando sites para manter a “estabilidade nacional”. Seu terceiro livro, que ela está editando agora, abordará o tema da corrupção na Malásia sob o disfarce de uma ficção de ritmo acelerado; ela não precisa escrever artigos de jornal. Maya lê o texto rapidamente. Começa com seu estilo característico de usar maiúsculas em frases importantes: "Preparem a pipoca, moradores de Bolehland Em breve, em um cinema muito perto de você, Jurassic World com Legendas em Malaio! Depois disso

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APRESENTAÇÃO

Em junho de 2019, a premiada escritora indiana Dipika Mukherjee visitou o

Departamento de Letras Modernas e tomou parte em um bate-papo com alunos e

professores. Antes da visita ela nos enviou um texto, que foi traduzido pelos alunos das

duas turmas de Tradução: Análise Contrastiva Inglês-Português, com o apoio da Profa.

Lenita Maria Rimoli Pisetta. O texto foi discutido na ocasião com a autora, que permitiu

que a tradução fosse publicada aqui.

Doppelgänger

Dipika Mukherjee

Neste conto escrito em resposta a eventos atuais ocorridos na Malásia, uma escritora

enfrenta um Doppelgänger que tem o intuito de silenciar seu discurso político.

Maya Chin, famosa autora reclusa da Malásia, não publicou nada em sete anos.

Ela, definitivamente, não escreveu o artigo que está segurando agora, no jornal de hoje,

embora o texto esteja marcado com seu estilo sarcástico. Os olhos da Maya correm por

cima das colunas de texto e param em sua assinatura mais uma vez. Acima de seu nome

está uma fotografia, a que foi tirada dez anos atrás e a única que ela usa para sobrecapas

de livros.

Ainda é cedo. Ela tinha examinado rapidamente a coluna do obituário, depois as

manchetes, e, então, virando a página das fotos em preto-e-branco com os recém-

falecidos, ela a viu, bem ali, na página central do New Straits Times do lado das cartas

ao editor: uma coluna com o nome dela e, mais inequivocamente, sua foto.

Após a reportagem do Wall Street Journal sobre a transferência, pelo primeiro ministro

malaio, de US$700 milhões dos fundos públicos, o primeiro-ministro estava acusando

um ex-primeiro ministro de estar por trás dessa calúnia internacional. Sim, isso estava

acontecendo, essa era a conversa nos cafés da cidade, mas não era algo sobre o que

Maya quisesse comentar publicamente. Certamente não quando o governo estava

bloqueando sites para manter a “estabilidade nacional”. Seu terceiro livro, que ela está

editando agora, abordará o tema da corrupção na Malásia sob o disfarce de uma ficção

de ritmo acelerado; ela não precisa escrever artigos de jornal.

Maya lê o texto rapidamente. Começa com seu estilo característico de usar maiúsculas

em frases importantes: "Preparem a pipoca, moradores de Bolehland — Em breve, em

um cinema muito perto de você, Jurassic World com Legendas em Malaio! Depois disso

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vêm declarações sobre plantas rasteiras tropicais e variedades de serpentes rastejantes, e

o artigo termina com "O Wall Street Journal não é Utusan Melayu dei, Queremos Os

Fatos!"

O artigo é uma obra-prima de duplo sentido e insinuações dissimuladas, parecendo algo

que o New Straits Times publicaria, mas insidioso em cada linha. Maya examina a

astúcia do parágrafo de abertura e deseja poder ter escrito algo tão mordaz. A escritora

usa a imagem da mídia ocidental limpando a política malaia com um espanador

neocolonial (o texto vem acompanhado de uma charge), porém o que as palavras

efetivamente acabam por fazer é levantar todo o pó, logo um turbilhão de poeira, e em

seguida deixar toda a sujeira se assentar outra vez sobre o governo.

É genial pra caralho.

Maya examina a foto outra vez. Poderia haver outra Maya Chin, uma escritora mais

jovem de quem ela nunca ouvira falar? A imagem a contempla de volta, o reflexo da

mulher feliz que ela havia sido dez anos atrás, com uma expressão sonhadora fixando o

vazio além de uma enorme primavera florida, como se ela escrevesse tolas baboseiras

românticas em vez de histórias de suspense com fundo político. Maya se lembra de que

cortara seu cabelo num estilo reto feito pelo Terri do A Cut Above no shopping Bungsar;

ela reconhece o reflexo das luzes castanho-avermelhadas em seu cabelo feito no salão.

Que absurdo! Como alguma escritorazinha de quinta ousa juntar algumas palavras e

estampar a coluna com seu rosto e seu nome? Seria ela a última espada rebelde, aquela a

ser empunhada com impunidade quando o país estava sob censura? Deveria ela agora

esperar uma batida na porta, um interrogatório da Autoridade Especial de Investigação

da Avenida Dang Wangi… Ai! Maya se levanta, agarrando as bordas da mesa do café

da manhã e deixando o frio do mármore gasto penetrar em suas mãos.

Ela sente falta de Michael. Ela sente falta de sua presença, de seus expedientes, da

forma como ele conhece todo mundo. Através da sua janela ela vê quilômetros de

ondulantes plantações de chá, a neblina do amanhecer pairando baixa sobre o verdejante

campo sem a presença de outras casas. Para alguém que procurara o isolamento durante

a maior parte de sua vida adulta, ela não estava preparada para esta solidão implacável.

Ela havia se irritado com as necessidades de Michael – os encontros sociais, a conversa

fiada durante as refeições, a banalidade do que ele estava lendo ou assistindo – às vezes

ela até desejara invocar uma amante para fazer companhia a ele e assim deixá-la em paz

para entregar-se a períodos sem compromissos. Quando ele viajou o mundo como o

ferrenho defensor de uma grande empresa multinacional, ela mal podia esperar para se

recolher a esse recanto particular de escrita que eles haviam criado. Michael citava

Gibran em casamentos e aniversários de casamento, sobre a necessidade de haver

espaços na intimidade do casal para que os ventos celestiais pudessem dançar entre eles,

mas ela estava completamente despreparada quando levaram o corpo dele embora.

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Ela vendeu a casa geminada que eles dividiam em Bangsar e o dinheiro havia selado a

sua completa reclusão naquelas colinas. Já fazia muito tempo que seus pais haviam

falecido, e era fácil virar as costas para os vários parentes e suas exigências

dissimuladas feitas a uma viúva sem filhos, sem herdeiros, sem rumo. Nos últimos oito

anos ela esteve digitando no computador, três horas pela manhã e quatro à noite nos

dias bons, mas normalmente muito menos. Seu livro está quase concluído, e este é o

livro que vai mudar a Malásia.

Ultimamente uma fadiga toma conta de seus dias e ela tira cochilos com frequência. Ela

não atende a campainha. Ela busca, com pouca regularidade, a correspondência no

correio local, seus olhos ocultos pelos óculos escuros, e às vezes, se dá vontade, ela se

veste como uma mulher malaia, coberta da cabeça aos pés com um baju kurung escuro e

bem amplo. Ela cultiva os próprios legumes e compra especiarias no pasar malam

semanal, onde as luzes tênues do mercado noturno a protegem de olhares curiosos.

Mesmo a sua agente literária, Jane (da Agência Literária Quill and Scribe, de Londres),

trabalha à distância em outro fuso horário, e Maya se prende a um estilo de vida com

pouco contato humano.

E agora esse artigo, que surgiu do nada, ameaça mudar tudo.

Jane! Isso, ela vai ligar pra Jane, que vai conseguir lidar com essa impostora. Jane vai

saber como acabar com essa farsa insolente agora mesmo (sem dúvida, agentes

literários lidam com plagiadores e fraudadores o tempo todo, não?). Maya pega seu

celular, seleciona o contato na agenda. De imediato, ela já se sente melhor.

− Alôôô? A voz de Jane ecoa felicidade. Maya escuta ao fundo uma música eletrônica

no volume máximo e muitas risadas.

− É a Maya. Da Malásia.

− Maya! Oi! Tô com alguns amigos, espera um minutinho, vou sair daqui.

Segue-se uma pausa ofegante até que o barulho se reduz a uma batida abafada.

− Tá tudo bem com você, Maya?

− Não, não tá. Tem um artigo publicado nos jornais hoje que supostamente fui eu que

escrevi. O problema é que não fui eu que escrevi.

− Não foi você que escreveu… ou foi você?

Maya deseja, não pela primeira vez, que sua agente fosse menos idiota.

− NÃO fui eu que escrevi. OUTRA pessoa escreveu sobre o artigo do Wall Street

Journal... sabe, o artigo sobre política na Malásia e corrupção?

Maya aguarda a confirmação de que Jane acompanha as notícias.

− Aham.

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− O negócio é que alguém colocou meu nome e foto em um artigo do New Straits

Times. Saiu no jornal de hoje. Veja online. Na página editorial.

− Você não escreveu o artigo?

− Claro que não!

Silêncio completo. É só porque ela pode escutar o ruído cortante das sirenes que Maya

sabe que a ligação não tinha caído.

− Ma-ya − Jane enuncia devagar. −A gente falou sobre esse artigo dois dias atrás. É

brilhante! Lembra que você me mandou a cópia para eu dar uma olhada? Por e-mail?

− Quê?

− Aí eu mandei a cópia para o New Straits Times e também para o Guardian.

− Eu não mando nenhum e-mail há semanas!

Aquilo foi um suspiro?

− Maya, você mandou. Você me ligou primeiro, nós conversamos sobre o artigo, então

você mandou o arquivo no Gmail. Eu absolutamente ameeeei o que você escreveu! Aí

eu te liguei e nós conversamos sobre as consequências desse artigo, mas a publicidade

vai ser incrível para o livro que sai em dois meses!

− Do que você está falando? Que livro?

Dessa vez, não houve dúvidas quanto ao suspiro impaciente.

− Olha, Maya, vou te ligar depois... É aniversário da minha amiga e a gente... já passa

da meia-noite e eu tenho que voltar para a festa... Eu te ligo... hum... em exatamente

doze horas, tudo bem?

− Não! − Maya se percebe gritando. − Não está tudo bem! Eu não te mandei nada, não

falo com você há meses e nem tenho uma droga de conta no Gmail! Do que você está

falando?

− Maya, por favor. Houve um p.... de um mal-entendido... Eu não sei. Nós temos nos

falado a cada duas semanas pelos últimos três meses, e eu acho que o livro é

EXTRAORDINÁRIO... Eu não sei nem...

Maya desliga o telefone. Ela pensa consigo Isso não é real... Eu vou acordar e não vai

ter nenhum jornal ou telefone.

Mas os raios de sol da manhã já estão listrando a folha do diário matinal que ela tem nas

mãos. Um corvo voa sobre as flores de hibisco grasnando alto. Maya vê a sombra negra

do pássaro e entende, como se ouvisse uma admoestação, que não há ninguém no

mundo a quem ela possa recorrer agora, ninguém para garantir que ela não está

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enlouquecendo. Ela se sente à deriva, com constantes presságios de desgraça a

rodeando.

Por que ela não tinha percebido que isso aconteceria seis anos atrás, quando ela se fez

invisível de forma tão deliberada como se tivesse colocado um mando mágico? Quando

o livro de memórias sobre ter perdido Michael e ouvir seus passos em todos os lugares

se tornou imediatamente um best-seller, fora insuportável falar sobre o livro, sobre

Michael Que Não Existia Mais. Apesar dos convites de festivais literários internacionais

até de lugares distantes como Butão e Portugal, apesar de sua agente lhe encaminhar as

cartas de leitores de todas as partes do mundo expressando seus pêsames, ela não

suportava a ideia de vender sua dor. As indicações a prêmios continuaram a chegar em

grandes quantidades de todos os lugares da Europa, fazendo Jane e a agência muito

felizes, principalmente porque seus dois primeiros livros (ambos thrillers políticos

proibidos na Malásia que em seguida circularam em cópias piratas), tinham sido

aclamados pela crítica, mas foram adquiridos em maior parte por bibliotecas. Jane

tentara convencer Maya a dar entrevistas, mas até mesmo as perguntas enviadas por e-

mails eram rigorosamente escrutinadas pela agência Quill and Scribe, sendo as questões

respondidas pelos estagiários.

Maya pressiona as teclas do seu MacBook ferozmente, buscando alguma prova de ter

enviado e-mails, textos — a merda de um manuscrito inteiro!— sem se lembrar. Ela

está aterrorizada com a ideia de demência, da perda de memória sem qualquer aviso.

Mas não há nada. A sua conta do Yahoo está vazia, exceto por dois e-mails: uma carta

começando com “Minha Querida” e pedindo dinheiro e “Uma dica simples” vendendo

perda de peso. Ela se sente reassegurada, mas um acesso de cólera a faz pesquisar o

próprio nome no Google, algo a que havia resistido durante anos, e ela configura a

busca para mostrar resultados da última semana.

Os números se acumulam rapidamente: 4.009 resultados, indicando páginas no

Goodreads, sites e discussões sobre Maya Chin. O primeiro item diz “Maya Chin estará

no Festival Literário Cooler Lumpur… restam poucos ingressos!!!”. A data em que

Maya Chin deve aparecer é hoje.

Maya aperta uma mão na outra tentando parar de tremer. Então ela clica no primeiro

link que a leva para uma página no Facebook alvoroçada com as notícias da reclusa

Maya Chin finalmente dando uma palestra. Não há fotos da autora, mas as capas de seus

romances e do seu livro de memórias formam um vistoso letreiro. Alguém postou o

artigo do New Straits Times, e ela nota 287 likes e em seguida 59 comentários. Ela

começa a ler:

− hahahaha a escritora viajo na maionese

− Eita! O tio dela é um dos burguês safados da MCA! Cê tem dinheiro mas não

tem escrúpulos e nem inteligência!!!!!

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− Maya Chin vc quer q a Malásia seja a nova Grécia? Psé. Reclama reclama

reclama mas não dá nenhuma solução

− Deus é Fiel. Deus escreve certo por linhas tortas. ELE vai atacar quando a hora

chegar. O regime MAU e FASCISTA será destruído. O tempo está passando.

− Pau que nasce torto nunca endireita, né

− FDP Sua LAIA ESQUERDOPATA INTEIRA HÁ DE SOFRER

ETERNAMENTE COM PRAGAS E DOENÇAS E DOR E O SOFRIMENTO

SEM FIM QUE ATÉ MESMO A MORTE SÓ VAI AUMENTAR E PIORAR

ELA

− Que nem Jesus, né? Acabem com ela enquanto ela tiver viva e levantem

monumentos depois que ela morrer seu bando de idiotas

− A porra ficou séria. Somos todos Maya Chin.

− Eca. País de terceiro mundo? Aff

− Ei Maya Chin, o q vc odeia mais ah, os malaios ou a língua malaia sua

arrombada

− Você é uma excelente escritora e eu procuro ler a sua coluna sempre que a

vejo em publicações. Não deixe os haters te afetarem, deixe para lá!! Hilária e

fabulosa!

− Eu lembro de ter visto as colunas dela em algum lugar. Ela nem era tão

engraçada assim.

− tão triste e chateado por perder sua palestra... não consigo ir, por causa do

trabalho e da família... tô com você em espírito, Maya! abraços e parabéns!

− Puta merda! Agora, isso me faz questionar tudo. Ou não.

− Quem Diabos Usa Letra Maiúscula Em Todas As Palavras. isso me irrita toda

vez

E continua, essa baboseira analfabeta daqueles que xingam muito melhor do que

escrevem frases, os ataques vindos de pessoas religiosas dispostas a salvar a sua alma e

nacionalistas que promovem guerras contra a sua islamofobia. Agora, ela imagina fãs

imprimindo sua foto da Internet, apenas para que a lendária Maya Chin possa autografá-

la sem que eles tenham que ler uma única palavra do que ela escreveu. Maya olha pela

janela para a extensão da natureza inabitada: isso é muito real.

A única coisa a ser feita é sair com o carro e encontrar sua rival. Maya nunca fugiu de

um desafio e enfrentou políticos poderosos com sua escrita, mas ela odeia dirigir,

especialmente na cidade. Mas não há outra maneira se ela quiser desmascarar

publicamente essa fraude literária. Uma intuição a faz entrar nas suas contas bancárias;

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se essa impostora conseguiu chegar a Jane e à agência Quill and Scribe, ela precisa

verificar se seu dinheiro ainda está a salvo. Ela confere uma conta, depois outra, e ainda

outra... Seu dinheiro está todo lá.

Ela fecha os olhos e respira fundo, enquanto projeta a cena em sua mente. Há um palco

com o mediador e a impostora, e entre eles uma mesa com livros organizados

artisticamente ao redor de orquídeas roxas… Então a Maya Chin real entra em cena,

tensa, mas firme. Maya abre o próximo link da busca, que contém uma entrevista

recente − “Uma Exclusiva com a Evasiva Maya Chin!” − mas o artigo, também, não

possui fotos da charlatã. Maya lê com um terror crescente que seu novo romance se

chama Em Solo Nativo e é um livro de memórias sobre crescer sendo malaia, com

direito a verrugas e todo o resto.

Ela escorrega da cadeira e põe o bule no fogo. Se aquela idiota da Jane está enchendo a

cara agora, ela estará ainda mais inútil em doze horas. Em Solo Nativo soa como uma

brincadeira estúpida, não é nada parecido com os livros políticos que ela escreve de

verdade. Suas séries se passam na mística Hirplelaya, onde todos os cidadãos nascem

deformados e andam devagar, mancando. Ela não menciona a Malásia em seus livros,

mas os escândalos do governo são reconhecíveis, assim como os excessos da Primeira

Dama, cujas bolsas exclusivas custam mais que um salário médio anual. Ela checa o

terceiro livro sobre Hirplelaya, que está salvo em seu computador e seguro no backup

do iCloud.

Maya mexe seu chá para misturar o açúcar. A impostora estará falando no Festival

Literário Cooler Lumpur às 15h, o que lhe dá tempo suficiente para dirigir até Kuala

Lumpur. Ela escolhe sua roupa com deliberação: vestido cinza, longo e discreto com

uma jaqueta preta e leve, por causa do ar-condicionado; um cachecol de algodão preto

para cobrir os cabelos; e sapatos baixos para dirigir. Ela escolhe o maior par dentre

todos os seus enormes óculos escuros.

Ao sair, leva consigo um de seus romances. O site diz que Maya Chin estará

autografando livros.

*********

Assim que Maya atravessa o arco decorado que divide Petaling Jaya de Kuala Lumpur,

ela solta os dedos do volante para liberar a tensão em seus braços, então olha

rapidamente para os retrovisores, preparada para trocar de faixa e deixar os motoristas

apressados ultrapassarem. Eles têm total desconsideração pela segurança pública, mas

ela está quase em seu destino.

Seu coração bate forte, pronto para a batalha. Ela não quer flashes ou microfones na sua

cara, por isso precisa ser objetiva e rápida. Ela pratica dizendo: "Eu sou a

VERDADEIRA Maya Chin". Em duas horas, talvez menos, ela espera estar voltando

para casa novamente.

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Quando a familiar cor azul do Mercado Central surge à sua frente, ela se enche de um

sentimento nostálgico. Nos primeiros anos de seu casamento, antes de a Malásia ter o

Cold Storage e o Giant, este era o lugar onde ela e Michael compravam peixes vivos,

que nadavam em tanques. O cheiro dos rambutãs, dos mangostins e das frutas de olho

de gato, das pungentes goiabas maduras, recém-colhidas dos pomares, perfumava o ar.

Ela recorda de pechinchar e barganhar, seu ar de recém-casada forçando a indulgência

dos lojistas.

Agora o edifício pulsa com compradores, mas as barracas estão cheias de lembrancinhas

brilhantes. Maya passa por fileiras de Torres Gêmeas de estanho e por leques de batik.

O cheiro de comida dos restaurantes do primeiro andar – nasi ayam, laksa, roti telur – a

lembra de que ela não almoçou hoje. Maya passa rápido pelas lojas do Edifício Annexe

e fica paralisada na frente da sua própria foto em um cartaz.

Esta imagem é idêntica à do jornal, mas ampliada. Maya abaixa a cabeça nervosamente

enquanto um grupo de estudantes universitários passa por ela. Um casal de mãos dadas

passeia, depois o menino puxa a garota de volta e eles param ao lado de Maya. Maya

segura a respiração. O menino examina o cartaz para obter os detalhes da palestra;

então, com um rápido olhar para o seu relógio, leva a garota embora.

Maya tateia a bolsa em busca de seu livro e atravessa a porta aberta atrás do casal.

Um jovem está no microfone falando em inglês, com algumas frases em malaio

enfeitando seu discurso. Ele diz que a autora deseja autografar livros antes da palestra

para que os fãs possam acompanhar as passagens que ela lerá. Há aplausos do público

jovem; alguns assobios em apreciação. Maya observa a grande sala em busca de uma

mesa com livros empilhados em fileiras organizadas. Ela sabe, por experiência própria,

que a autora estará sentada nas proximidades.

Ela sente a presença da mulher antes de vê-la. Maya vira-se um pouco para ver uma

mulher sentada atrás de uma mesa, caneta na mão. A mulher está conversando com um

jovem, mas está olhando para Maya.

Maya tem a sensação de andar em areia molhada, o chão abaixo de seus pés sugando

seus sapatos, forçando-a a mancar um pouco. Ela não é uma pessoa supersticiosa, não

acredita no paranormal, mas ela já conhece essa sensação de antes: desde o dia em que o

telefone tocou incessantemente na tarde quente e ela sentiu que não podia se mover

rápido o suficiente para atendê-lo, que não deveria atendê-lo porque isso mudaria sua

vida para sempre, quando lhe disseram que Michael tinha morrido.

Ela se questiona se deveria sentar. Mas a fila de gente com livros está crescendo e ela

tem medo de perder esta chance. Maya avança entre as pessoas, faz todo o caminho até

a frente, e os jovens, resmungando, dão passagem, porque ela está decidida.

A impostora continua autografando livros, entabulando pequenas conversas sobre o

nome de uma menina, depois sobre os belos brincos de outra. Quando Maya desliza seu

livro para o outro lado da mesa, a mulher a olha e sorri. Ela assina. Maya observa sua

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própria assinatura se tornar autêntica pelas mãos de outra pessoa, os dois pontos abaixo

do Chin, executados tão perfeitamente quanto o volteio na parte inferior do y. A mulher

põe a data na assinatura. Maya estende a mão, pretendendo pegar seu livro de volta, mas

a mulher coloca a mão sobre a de Maya e ri.

− Não tão rápido! Você deve me dizer seu nome para que eu possa escrever algo

especialmente para você

Maya está prestes a esbofetear a impostora. Está hipnotizada por aqueles olhos. Ela

ouve a impaciência das pessoas que estão atrás dela, querendo que ela diga algo.

Vagarosamente, deliberadamente, Maya tira seus óculos escuros.

− Eu sou a VERDADEIRA Maya Chin, − ela diz.

Um riso nervoso se ouve atrás dela, seguido de risadinhas. Um idiota diz:

− Eu sou o VERDADEIRO Salman Rushdie – e seu amigo faz uma mímica, atirando

entre os olhos dele, simulando uma arma com a mão. Todos riem, incluindo a

impostora.

Um jovem com uma cobra roxa tatuada no pulso aponta para o pôster atrás da

impostora:

− Pera lá, tiazinha, consegue ver a foto ou nem? Maya Chin num é tão velha, lah.

Maya vê o pôster. A semelhança entre a imagem ampliada e a mulher sentada abaixo

dela não é exata, mas ela vê os mesmos reflexos castanho-avermelhados no cabelo da

mulher, a testa sem rugas e os lábios brilhosos. O vestido da mulher é de um tom fúcsia

rosado, o mesmo tom da primavera na fotografia e ela é, provavelmente, alguns anos

mais nova do que Maya era quando a foto foi tirada. O queixo da impostora é mais

largo, seus olhos, menores, mas esses detalhes são insignificantes. Maya, em seu longo

vestido de luto cinza, não parece nada com a mulher ou com a fotografia.

A mulher está com o livro de Maya aberto nas mãos enquanto encara o garoto tatuado.

− Não precisa ser rude! − ela diz secamente. − Será que duas pessoas não podem ter o

mesmo nome? Venha, vou autografar Para Maya Chin, de Maya Chin.

E com um gesto afetado, é exatamente isso o que ela faz. Ela desenha uma careta alegre

e escreve, P.S.: Boa leitura, xará!

O homem do microfone se apressa em direção à mesa. Ele pega o livro com uma mão e

conduz Maya com a outra mão nas costas dela. Ela é empurrada para um assento

próximo enquanto dois homens se sentam um de cada lado. Ela pega o livro que lhe é

entregue.

Os dois homens se acomodam em suas cadeiras. Enquanto um deles relaxa a postura e

mexe os pés sob o assento da frente, Maya o observa mais uma vez. Ela se esquece de

nomes, mas nunca de rostos. Nove anos atrás, em um protesto (algo de que Maya

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costumava participar com regularidade), esse homem estivera vestindo uma camiseta

vermelha com a inscrição “Patriota”. Ele tinha sido um dos brutamontes que ameaçaram

bater nos que estavam vestidos com camisetas amarelas, pessoas como ela, que se

manifestavam por um governo justo e transparente.

Ela ouve, de forma difusa, a conversa dos que estão no palco, enquanto planeja seu

próximo passo. Conversa-se sobre uma Malásia para todas as raças. Quando mencionam

o artigo do Wall Street Journal, a impostora se mostra indignada com a tentativa das

mídias ocidentais de alvejarem governos asiáticos legítimos. Então, a impostora começa

a ler um livro de Maya, escolhendo uma passagem que retrata a falta de demonstrações

de amor em uma família disfuncional. Maya automaticamente abre o livro naquela

página, que vem logo após um trecho que traz todos os detalhes de excessos políticos.

Ela assiste a Maya Chin no palco transformando Hirplelaya. Enquanto a voz fastidiosa

continua a articular palavras que lhe são por demais familiares, Maya percebe que foi

forçada a sair de sua toca para ouvir suas próprias palavras sendo recontextualizadas. O

fato de Maya ter construído suas próprias grades – seu isolamento, sua recusa a atualizar

a fotografia, sua relutância em conceder entrevistas – poupou muitos problemas para

sua inimiga.

Maya se esforça para se levantar. A impostora faz uma pausa para olhar em sua direção

e, então, sorri, levantando a mão direita e acenando levemente, enquanto continua a

falar. Os dois homens ao lado de Maya se levantam e a levam até um pequeno escritório

em que o único som audível é o do ar condicionado. Não há janelas.

Um deles tira uma garrafa de água de um pequeno frigobar.

− Minum? – pergunta ele em malaio.

Maya não olha para os homens. Ela examina o jornal que está sobre a mesa; é um diário

financeiro com a primeira página completamente em preto. O jornal declara, em letras

vermelhas, que a Malásia foi fraudada em 1,83 bilhão de dólares. Há uma nota do editor

no fim da página: “Após esta reportagem, que pode ter sido a nossa última, nós

entregaremos tudo o que temos às autoridades que estão investigando o escândalo da

1MDB e prestaremos todo auxílio a nosso alcance”.

As paredes são de um azul intenso, recém-pintadas. Ela se pergunta por quanto tempo

ficará aqui.

O homem do microfone entra e acena para os outros dois.

− Vou ficar presa aqui?

O homem ri com prazer.

− Claro que não! Você está livre para sair quando quiser.

Ele olha para ela.

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− Nós não queremos confusão no evento literário, só isso. Maya Chin é uma escritora

importante, e as pessoas querem ouvir o que ela tem a dizer.

− Eu vou denunciar isso à polícia. Nem pense que vocês vão ficar impunes.

O homem se senta do outro lado da mesa.

-- Hmm. E o que você acha que a polícia fará? Qual será sua queixa?

-- Você sabe muito bem… Eu tenho meu registro de identidade, minhas digitais podem

ser verificadas nos registros...

− A biometria da autora Maya Chin não coincidirá com a sua nos registros do governo.

− Eu não acredito nisso!

− Você está gravando nossa conversa? Vá em frente, procure seus amigos na mídia,

veja se isso vai funcionar.

Ela agarra o jornal. − Sim, está vendo como a mídia está funcionando?

Ele olha o texto que ela está apontando. “Após esta reportagem, que pode ter sido a

nossa última”?

− Não imagine coisas, lah, eles estão relatando sobre o escândalo da 1MDB pela última

vez; depois disso, ele estará sob investigação oficial. Isso é tudo. Ninguém vai fechar

nada.

Ele abre a tampa da garrafa de água com uma torção e a desliza pela mesa na direção

dela. Ela toma um gole longo.

− A Malásia não é Cingapura. Não há necessidade de prender escritores, nem de enviar

blogueiros para o hospício, nem mesmo de arruinar ninguém, né? Tão desnecessário

tudo isso; chamar a atenção internacional para nossos assuntos internos.

Ele se levanta:

− Venha, você está livre para ir.

Maya não se levanta.

− Viaje um pouco, visite a Coreia, o Japão, países que você não conhece.

Ele desliza sobre a mesa seu cartão de visitas.

− Ligue para mim se precisar de ajuda. Este pode ser o começo de coisas boas.

Eu nunca mais vou poder publicar algo.

Ele não sorri.

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Em solo nativo vai sair daqui a alguns meses.

Maya pensa que um verdadeiro Doppelgänger, um espectro conjurado por um bomoh

malaio de Bornéu para silenciá-la com mágica, teria sido melhor do que um final tão

prosaico. O começo de coisas boas. Ela pensa em toda uma vida de servidão à palavra,

meses de escrita que resultaram na rejeição dos editores. Quanto de sua vida ela havia

desperdiçado tentando coagir frases arredias a partir do nada? Talvez essa impostora

esteja lhe fazendo um favor, libertando-a para que ela viva entre os vivos de novo, livre

dos ditames dos livros a serem escritos, da necessidade de tocar as pessoas que ela

jamais poderá conhecer.

Mas oh, o que ela fará com as ideias que a tiram do chuveiro, com o cabelo ainda não

completamente lavado? O zunido de uma frase bem construída tocando em sua mente?

A profunda meditação de escrever durante toda a noite?

Ela vê sua casa vazia, o silêncio estilhaçado pelo grasnado dos corvos, de noites se

transformando em manhãs sem enlevo, sem fim. Maya se levanta. Pela primeira vez na

vida, ela entende o peso das palavras, da palavra roubada.

Nota editorial: O primeiro romance de Dipika Mukherjee sobre a Malásia foi indicado

para o Man Asian Literary Prize, quando ainda era um manuscrito inédito, e em seguida

foi publicado como Thunder Demons [Demônios do trovão] (Gyaana, 2011), e Ode to

Broken Things [Ode às coisas destruídas] (Repeater, 2016). A autora recebeu o Virginia

Prize for Fiction em 2016 por seu segundo romance, Shambala Junction que será

publicado pela editora Aurora Metro ainda neste ano.