APRESENTAÇÃO...no final do ano, no PIB, de 7,5 por cento. A maior quebra do PIB nos tempos...

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03 | APRESENTAÇÃO

04 | 1. NOVO CORONAVÍRUS E GESTÃO DA CRISE CONTRATUAL: ESTRATÉGIAS JURÍDICAS

Prof. Doutor António Menezes Cordeiro

10 | 2. FORÇA MAIOR E IMPEDIMENTOS DO DEVEDOR

Prof.ª Doutora Ana Perestrelo de Oliveira

16 | 3. MORATÓRIA BANCÁRIA

Dr.ª Madalena Perestrelo de Oliveira

21 | 4. MORA DO CREDOR

Prof.ª Doutora Maria de Lurdes Pereira

28 | 5. ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS

Prof. Doutor A. Barreto Menezes Cordeiro

36 | 6. MODIFICAR E RENEGOCIAR O CONTRATO, REDUZIR AS PRESTAÇÕES

Prof.ª Doutora Catarina Monteiro Pires

45 | 7. ARBITRAGEM

Prof. Doutor Diogo Costa Gonçalves

ÍNDICEWWW.CIDP.PT | 02

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A pandemia gerada pelo Novo Coronavírus representa provavel-mente um dos maiores desafios das últimas décadas. Desafio

às ciências, à sociedade, às democracias, ao comércio internacional e, também, ao Direito. Em poucas semanas, assistimos à aprovação de vários diplomas legislativos, impondo regulações especiais e excecionais. Ao lado da “nova regulação de crise”, permanecem disponíveis mecanismos consolidados há largas décadas no seio do Direito Privado.

Perante este novo “mosaico legislativo” e perante as várias questões que têm inquietado juristas, cidadãos e agentes económicos, o CIDP decidiu promover um conjunto de conferências virtuais, gratuitas, destinadas a analisar e a discutir os principais impactos jurídicos da pandemia, a “legislação de crise” e as exigências de atualização do Direito Privado a estes novos tempos.

A primeira sessão é dedicada à “Gestão da Crise Contratual”, seguindo--se várias outras sessões temáticas regulares, a anunciar oportunamente.

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1 NOVO CORONAVÍRUS E GESTÃO DA CRISE CONTRATUAL:ESTRATÉGIAS JURÍDICAS

C aros Colegas, Caros Estudantes e Ilustre Público interessado, bem-vindos às Jornadas Covid-19 do Centro de Investigação

de Direito Privado da Faculdade de Direito de Lisboa. As Jornadas Jurídicas Covid-19 vão desenrolar-se com uma periodicidade quinzenal ou, se a evolução dos factos e do Direito o justificar, com uma periodicidade semanal. O seu objetivo vai ser o de debater com seriedade e em tempo real os meios jurídicos destinados a enquadrar os problemas suscitados pela pandemia Covid-19 e de examinar as diversas soluções encontradas pelos órgãos de soberania. Esta primeira jornada tem certo sentido introdutório e vai ocupar-se do novo coronavírus e gestão da crise contratual, estratégias jurídicas.

Para debater este tema, temos aqui um painel de sete pessoas, todas investigadoras do Centro de Investigação de Direito Privado da Faculdade de Direito de Lisboa e todas com experiência prática como advogados, como jurisconsultos e como árbitros. Eu próprio, sou António Menezes Cordeiro e, pela benevolência dos meus colegas investigadores, sou coordenador de Centro de Investigação de Direito Privado.

Temos connosco a Doutora Ana Perestrelo de Oliveira, Professora na Faculdade de Direito de Lisboa, especialista em sociedades, em grupos de sociedades e em Direito dos contratos.

Temos a Doutora Madalena Perestrelo de Oliveira, docente da Faculdade de Direito de Lisboa e que aguarda a prestação de provas de doutoramento; é especialista em Direito das obrigações, em Direito comercial e em Direito bancário.

PROF. DOUTOR ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO

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Temos a Doutora Maria de Lurdes Pereira, Professora na Faculdade de Direito de Lisboa, especialista em Direito civil, em Direito comercial e em Processo.

Temos o Doutor A. Barreto Menezes Cordeiro, Professor da Faculdade de Direito de Lisboa, especialista em Direito civil, em Direito comercial, em Direito da proteção de dados e em Direito dos valores mobiliários.

Temos a Doutora Catarina Monteiro Pires, Professora na Faculdade de Direito de Lisboa, especialista em Direito das obrigações, em Direito comercial e em Contencioso.

E temos o Doutor Diogo Costa Gonçalves, Professor da Faculdade de Direito de Lisboa, especialista em Direito civil, Direito das sociedades e Direito da arbitragem.

Feita esta apresentação vou referir muito rapidamente o pano de fundo que ocasiona estas nossas Jornadas Covid-19.

Em primeiro lugar a doença. Estamos perante um coronavírus causador de uma virose que provoca pneumonias. Relativamente a esse coronavírus, não existe, neste momento, imunidade na população, não existe, neste momento, nenhuma vacina e não existe nenhuma terapêutica direta. A única solução é paliativa, isto é: tentar que os organismos das pessoas infetadas sejam capazes de expulsar o vírus, mantendo-as, naturalmente, vivas.

As consequências, em traços largos, são as seguintes: neste momento (números de 8 de abril de 2020), a taxa de morbilidade – a taxa de morbilidade é a relação que se estabelece entre a população e o número de infetados – em Portugal, é de 1.23 por cada 1.000 habitantes e a taxa de mortalidade, portanto o número de falecimentos entre os infetados, neste momento, é de 2.8 por cada 100.

Quantos aos números: tivemos um primeiro doente identificado em Portugal no dia 2 de março de 2020: lembram-se de que era um médico de 60 anos, que tinha vindo de Itália.

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No dia 11 de março a Organização Mundial de Saúde declarou o estado de pandemia mundial; no dia 17 de março tivemos um primeiro falecimento em Portugal e nessa altura já havia 448 infetados.

Passado uma semana, portanto 24 de março, tínhamos 2.382 infetados e 33 mortes; passado outra semana, em 31 de março, já estávamos com 7.443 infetados e 160 mortes.

Na semana seguinte, portanto 7 de abril, subimos para 12.442 infetados e 345 mortes. São dados de anteontem; ontem já tínhamos mais 699 infetados e mais 35 falecimentos.

Se nós compararmos estes números com os números da Europa, começando por Espanha, verificamos que em Espanha ocorriam ontem 141.942 infetados e havia 14.045 falecimentos. São números muito elevados e, perante eles, parece que estamos numa situação tranquila. Todavia, se quisermos ser realistas, temos de, nestas contas comparativas com outros países, ter em conta a população de cada um. Vamos fazer esse exercício.

Vamos tomar como base a situação portuguesa. A Portugal vamos atribuir o índice de 100, o que significa 1,23 infetados por cada 1.000 habitantes. Então Espanha terá 250: uma situação duas vezes e meia pior do que a nossa; Itália 200, uma situação duas vezes pior do que a nossa; França 140; Holanda 100, ou seja, a Holanda está mais ou menos ao nosso nível; Alemanha 90, está melhor; no Reino Unido estava em 69, embora os números no Reino Unido estejam a progredir muito rapidamente.

Saindo da Europa e fazendo a comparação com países extra europeus, temos Estados Unidos da América do Norte 100 (em rápida progressão), portanto neste momento estavam com um índice de morbilidade idêntico ao nosso. Agora reparem bem: Coreia 16; Brasil 5 e China 5, ou seja, a situação da China, onde tudo começou, é 20 vezes melhor do que aquela que se verifica no nosso País.

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Tudo isto significa que a situação não é desesperada, mas também não me parece nada brilhante: a responsabilidade destas afirmações é minha: parece-me que algumas intervenções de figuras públicas são bastante otimistas... enfim, não têm em conta esta realidade que eu referi. Oxalá eu esteja enganado.

Quais são as consequências, meus amigos, desta situação?

Perante uma doença para a qual não há vacina e para a qual não há imunidade, a única solução é a que já tinha sido encontrada na Antiguidade e na Idade Média: a confinação. Os infetados são fechados num sítio onde não possam contagiar mais ninguém e evitam-se contactos entre as pessoas, para que se não possam contagiar entre si. Velha solução medieval.

Consequências práticas: supressão de atividades básicas, supressão do turismo, supressão do transporte aéreo, supressão da restauração e supressão do pequeno comércio.

Depois temos quebras noutros ramos de atividades. Sector automóvel: uma quebra de 60 por cento nas vendas – eu devo dizer que esta cifra parece-me bastante favorável, não estou a ver ninguém a comprar automóveis neste momento, mas enfim – os números de que eu disponho, são os do último Expresso. Quanto à reparação, quebra de 80 por cento; auto-estradas 70 por cento; ginásios e cabeleireiros 95 por cento – também me parece um número exagerado, não estou a ver ninguém nos cabeleireiros, mas enfim –; tribunais, 90 por cento, parece que aqui a situação não será assim tão má neste momento; médicos não ligados ao Covid-19, 80 por cento; obras públicas e construção civil, 60 por cento; combustíveis, 70 por cento; têxtil, 80 por cento; edição, 70 por cento; artes, 95 por cento; economia paralela... economia paralela não paga impostos mas contribui para a riqueza nacional, 95 por cento. Eu suponho que os 5 por cento que sobrevivam são os tais que andam a traficar máscaras e álcool e outras coisas...

Ora bem, então o que é que funciona neste momento, mais ou menos?

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Funcionam as comunicações, funcionam as farmácias, funciona alguma alimentação, funcionam alguns jornais e funcionam muito mais os serviços hospitalares ligados ao Covid-19. Os números disponíveis, neste momento, indicam que um terço das empresas portuguesas – estamos a falar de 400.000 empresas – está, pura e simplesmente parado.

Isto implica, para essas empresas, uma quebra no volume de negócios de dois terços. Dois terços, estamos a falar de 256 bis – um bi é um bilião de euros, portanto 250 bis são 250 mil milhões de euros – e temos uma quebra no valor acrescentado de 48 bis, portanto 48 mil milhões de euros.

Estimativas favoráveis apontam neste momento para uma quebra no final do ano, no PIB, de 7,5 por cento. A maior quebra do PIB nos tempos recentes foi a verificada em 1975 em que o PIB caiu 5,2. E caiu 5,2 em 1975, porque, como se lembram, houve uma situação de grande perturbação social e política no País, e, por isso a economia praticamente também parou.

A despesa corrente do Estado aumenta 10 por cento e a dívida pública vai dar um pulo para 136 por cento do PIB, no que me parece um número bastante favorável.

Meus amigos, em termos sociais, nós neste momento temos 2.000.000 de trabalhadores com o posto de trabalho em perigo, o que representa 47 por cento da população ativa. Temos meio milhão de trabalhadores em lay off, temos meio milhão de desempregados – o número ainda não chega lá mas aproxima-se rapidamente – e depois temos uma outra situação que não aparece nas estatísticas e que é o puro e simples desaparecimento de muitas pequenas empresas. Estou a pensar em pequenos comércios, pequenos cafés que funcionam com marido e mulher e um ou outro familiar, e que pura e simplesmente desapareceram. Não surgem no número dos desempregados, mas é uma percentagem significativa da população.

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Quanto ao ensino: o ensino universitário, como nós sabemos, em especial na Faculdade de Direito de Lisboa, está a funcionar e até está a funcionar bastante bem, uma vez que nós conseguimos manter o trabalho à distância. Em compensação, o pré-escolar, o básico e o secundário estão em maiores dificuldades. Então o que é que está a funcionar? Aparentemente não está a funcionar nada a não ser a função pública, pois essa, apesar de mal paga, continua a receber, ainda que haja muitos funcionários públicos em casa, neste momento, sem fazer nada, não porque não queiram mas porque não podem. Não têm contacto com o público e não podem ir às respetivas repartições. O que é que se pode dizer? Ou isto acaba depressa, e o depressa tem que ser agora no final de abril ou então... reticências e reticências que ficam à imaginação de cada um.

Meus amigos, o que é que o Direito faz nestas circunstâncias? Os contratos, tema básico de que hoje vamos aqui falar um pouco, os contratos são praticamente todos atingidos, uns diretamente e outros indiretamente.

Já temos diplomas de exceção, que têm vindo a ser promulgados ou publicados: mais de 70 diplomas, neste momento. Uns são muito circunscritos, por exemplo o despacho que declarou situação de calamidade pública no Município de Ovar, outros são mais extensos como por exemplo os diplomas relativos à defesa da crédito e à banca. E depois temos institutos de ordem geral que podem ser utilizados numa situação desta natureza, estou a pensar, por exemplo nas impossibilidades supervenientes ou nas alterações de circunstâncias.

Bem, este é o pano de fundo e agora então vamos conversar sobre ele. Muito obrigado. •

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2S enhor Professor, muito obrigada, gostaria de lhe dirigir um

cumprimento muito especial numa época em que todos nós gostaríamos de estar juntos, mas em que, pelo menos, temos a oportunidade de partilhar, através das novas ferramentas, a discussão de problemas que reclamam uma reflexão conjunta.

Gostaria também de cumprimentar todos os meus colegas com muita amizade e esperar que todos possamos estar juntos brevemente nos corredores da nossa Faculdade de Direito de Lisboa.

Num tempo em que o princípio pacta sunt servanda – os “contratos são para cumprir” – passou a ser a exceção e não a regra, avolumam-se as interrogações sobre o destino das prestações e das contraprestações nas mais diversas áreas de prática contratual. Uma das perguntas que surge com frequência é se a pandemia da Covid-19 representa uma situação de força maior e o que significa isso no direito português. A pergunta é pertinente sobretudo porque muitas situações que estão a ser apresentadas como de força maior não o são, nem à luz da lei nem à luz dos concretos contratos celebrados, e o inverso também sucede.

Em geral, um caso de força maior é um evento que escapa ao controlo

do devedor que impede a execução do contrato, que não poderia ter sido

razoavelmente previsto aquando da conclusão do contrato e cujos efeitos

não podem ser evitados por medidas adequadas. Ou seja, sem prejuízo da modelação contratual que pode ter lugar, um caso de força maior em sentido puro implica verdadeira impossibilidade de prestar. Se a prestação é possível ainda que com esforço ou custos desproporcionais para o devedor por confronto com o interesse do credor não há força maior. É o tradicional caso, por exemplo, do encerramento do canal

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FORÇA MAIORE IMPEDIMENTOSDO DEVEDOR

PROF.A DOUTORA ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA

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do Suez, que se considerou não preencher o conceito de força maior uma vez que a exportação contratada poderia ser feita através do Cabo da Boa Esperança, ainda que envolvendo uma viagem de 11 000 milhas em vez de 4 000 milhas previstas originariamente. Nestas situações entram em jogo outros institutos e outras cláusulas: nomeadamente a alteração das circunstâncias e também as conhecidas cláusulas de hardship, que se referem precisamente a casos de agravamento da prestação debitória. Ou seja, pode ser ultrapassada a “álea normal” do negócio e ser atingida a “justiça contratual imanente” mas não há verdadeira e própria impossibilidade.

Isto dito, a “força maior” não existe como instituto jurídico a se

no direito português. No Código Civil, a referência à força maior surge mas apenas raramente e nunca a respeito das perturbações da prestação. O conceito é, isso sim, muito utilizado na prática contratual. O nosso Código lida, diretamente, com a situação de impossibilidade, legal ou natural. Se existe a expetativa de que a prestação se venha a tornar novamente exequível em termos de realizar o interesse do credor o dever de prestar fica suspenso e não há mora do devedor, nos termos do 792.º. Naturalmente, a contraprestação fica suspensa também, em nome da sinalagmaticidade do vínculo e em paralelismo com a resolução em caso de impossibilidade definitiva. O devedor não responde pela mora – que tecnicamente nem existe – mas o credor nada tem de pagar também porque não existem bens a serem entregues ou serviços a serem prestados.

Poderá por vezes questionar-se a justeza da solução, considerando que, em muitas situações, o devedor fica em situação difícil porque mantém boa parte das despesas que teria em qualquer circunstância mas não tem nenhum benefício. Haverá fundamento para uma solução diferente, no fundo para uma diferente repartição dos riscos? Por exemplo, no direito inglês, se o tribunal considerar justo tendo em conta as circunstâncias do caso, pode permitir ao devedor reter ou recuperar a totalidade ou parte das somas desembolsadas ou a desembolsar.

Em Portugal, haverá mecanismo equiparável? O princípio da boa fé por exemplo poderia ditar outra solução, pelo menos nas relações correntes de negócios? Poderá argumentar-se existir abuso de direito ao recusar

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em absoluto o pagamento relativo à suspensão? É possível introduzir juízos de equidade de forma a que o credor suporte parte do risco e, portanto, parte dos custos? Existe algum princípio invocável? A meu ver a resposta é negativa, sem exceções. Pode é outra coisa resultar do contrato, expressa ou implicitamente. Mas aí existe, isso sim, um problema interpretativo.

À luz do sistema, aquele que está legal ou naturalmente impossibilitado, sem culpa, de prestar não tem direito à contraprestação nem pode reaver as despesas que tenha incorrido pois não há nenhum título para a sua imputação a outra esfera jurídica. A situação afinal não é diferente do que sucede no caso da resolução: também aí se produz, por regra, um duplo efeito liberatório ex nunc e restitutório ex tunc. A parte que assumiu custos por conta da prestação não tem direito ao seu reembolso total ou parcial mesmo que seja definitivamente impossibilitada de prestar. Ponto é haver verdadeira situação de impossibilidade, o que em diversos casos não sucede.

Usando um exemplo muito falado, dos colégios: se for viável o ensino à distância, existe alteração das circunstâncias mas não impossibilidade; nos casos em que não seja viável (creches, por exemplo) a situação é de impossibilidade. Não pode haver prestação, logo não haverá lugar a contraprestação. O Estado pode intervir mitigando os problemas para os estabelecimentos mas, à luz do direito dos contratos, a solução é esta.

Outro problema que se coloca, em termos práticos, é até quando a impossibilidade é temporária? Ou seja, durante quanto tempo fica o credor nesta situação de indefinição neste estado de pendência? No fundo, a pergunta é: pode um impedimento temporário fundamentar o direito de resolução? O artigo 1218 do Código Civil francês, por exemplo, refere que “a execução da obrigação fica suspensa a menos

que o atraso resultante justifique a resolução do contrato”. A resposta, também no direito português, é que pode haver resolução em duas circunstâncias:

(i) Perda de interesse, como resulta expressamente do artigo 792.º/2 (que diz que a impossibilidade só é temporária enquanto se mantiver o interesse do credor, tendo em conta a finalidade da obrigação).

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(ii) Inexigibilidade da manutenção do vínculo mesmo suspenso. Apesar de tecnicamente não haver perda de interesse, o princípio da boa fé implica que pode haver justa causa para a resolução do contrato quando a suspensão ocorrer por um período excessivamente longo tendo em conta a factualidade do caso concreto. Ou seja, são casos em que é desrazoável manter o sujeito preso ao contrato. O BGH chegou a decidir um caso, que se prendia com a guerra no Irão, em que o contrato estava suspenso há três anos. Não excluo que a crise do Covid-19 possa representar uma situação desse tipo em determinados contextos contratuais: claro que a duração, expectavelmente, não é tão longa quanto a de muitas guerras. Porém, em algumas situações contratuais específicas a indefinição quanto ao momento em que a prestação tornará a ser possível pode ter um impacto na posição do credor muito significativo. A lógica é de ponderação de interesses:

quando o interesse na desvinculação seja manifestamente superior

ao interesse da contraparte na manutenção do vínculo o princípio

da boa fé reclama o direito à desvinculação unilateral.

Assim se vê que o nosso direito tem flexibilidade suficiente para lidar com as diversas situações, ainda que inesperadas. Mas a existência de cláusulas contratuais de força maior é muito útil.

(i) Por um lado, podem alargar os casos considerado por lei como

impossibilidade, i.e., aplicar consequências típicas da impossi-bilidade a casos que tecnicamente não são de impossibilidade. Situações que, à luz da lei, dariam lugar a outros institutos (como alteração das circunstâncias) mas que as partes consensualmente equiparam a verdadeiras situações de força maior. É a autonomia privada a funcionar na distribuição de riscos. Imagine-se o caso da interrupção das cadeias de fornecimento: à luz da lei, os requisitos para haver impossibilidade são muito exigentes, de tal maneira que se existir uma fonte alternativa de fornecimento, mesmo que com agravamento severo dos custos, o problema não é de impossibilidade. Poderá, porém, ser tratado como tal pelo contrato.

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(ii) E será que podem restringir os casos que seriam considerados

de força maior, no sentido de configurarem situações de

impossibilidade, excluindo as respetivas consequências típicas?

Por exemplo, uma cláusula que prevê que o devedor responde por todo e qualquer atraso independentemente da sua causa. A não ser que outra coisa resulte do contexto do contrato, estar-se-á a fazer recair o risco de impossibilidade in totum sobre o devedor. Esta cláusulas devem ser havidas como válidas: afinal o que está em causa é um problema de definição contratual da prestação exigível, não havendo razões de ordem pública para impedir o funcionamento da liberdade contratual das partes, sem prejuízo de um controlo ad hoc relativo ao abuso do direito. Não se trata de renúncia antecipada a um direito mas antes de delimitação das obrigações contratuais e de regulação negocial do risco. Se as partes pretendem fazer recair o risco de um impedimento temporário na esfera do credor não haverá que obstar.

E como é que sei, em suma, se existe à luz do contrato um caso de força maior? Os contratos variam nas técnicas utilizadas: podem fazer uma referência genérica à força maior, podem elencar eventos específicos, mas, em princípio, serão utilizados conceitos funcionais ou de escopo. São conceitos com caráter fundamentalmente normativo e não ontológico ou pré-jurídico: tal implica que no seu preenchimento não importa tanto a situação fáctica por si, mas o significado que apresenta na economia do contrato. Não é possível um mero juízo de subsunção, antes implica sempre um juízo valorativo. Por outro lado, não pode esquecer-se o papel do princípio da boa fé, enquanto diretriz interpretativa auxiliar: este princípio implica, designadamente, a incorporação no contrato das ideias de proporcionalidade e razoabilidade, tratando em termos idênticos soluções que materialmente o sejam. Apenas o caso concreto permite confirmar estes princípios gerais. Obviamente que, se o contrato tiver sido celebrado após o início da pandemia ou quando esta já era previsível, só existirá um evento de força maior caso resulte do contrato que, mesmo previsto, as partes pretenderam aplicar esse regime.

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No direito português não existem princípios específicos para a interpretação ou integração destas cláusulas. Aliás, mesmo nos direitos anglo-saxónicos tem vindo a prevalecer a ideia de interpretação de acordo com o sentido natural do contrato e não de acordo com regras pré-definidas como sucedeu no passado. Significa isto também que não há respostas gerais para os problemas que se colocam. Por exemplo, se o contrato só previr os casos de força maior com impacto definitivo na prestação, quid juris no caso de impedimentos temporários? Existe uma lacuna que tem de ser integrada, seguindo os princípios do Código Civil. Não há soluções uniformes. O mesmo vale para a generalidade dos problemas. Incluindo a discutível questão da causalidade: saber o que tem de ser demonstrado para se poder afirmar que a inexecução resulta de um evento de força maior ou se, por exemplo, uma causalidade indireta é suficiente: tudo está em apurar o sentido juridicamente vinculativo da cláusula. •

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3Queria começar por cumprimentar o Senhor Professor e agradecer

a oportunidade para estar aqui hoje a discutir estes aspetos jurídicos e a oportunidade para, apesar de por estes meios virtuais mais distantes, conseguirmos estar juntos nesta discussão. Cumprimento também os meus colegas e amigos com quem tenho o gosto e grande honra também de partilhar este painel virtual.

A pandemia Covid-19, para além das evidentes e devastadoras consequências para a vida de tantos e para a saúde pública, acarreta também impactos económicos esmagadores. Tendo em vista a sua mitigação, foi aprovado, a 26 de março, o Decreto-lei 10-J/2020, que, entre outras medidas, prevê uma moratória bancária concedida até 30 de setembro deste ano. Em termos gerais, fica proibida a revogação de linhas de crédito e de empréstimos concedidos; consideram-se prorrogados todos os créditos com pagamento de capital no final do contrato e é suspenso o pagamento do capital, rendas, juros e quaisquer encargos de créditos com reembolso ou vencimento parcelar de capital ou de outras prestações pecuniárias.

O diploma esclarece que a moratória não deve ser qualificada como incumprimento contratual nem ativa qualquer cláusula de vencimento antecipado, ou seja, não é considerada um event of default.

Em contrapartida, e como forma de compensar o sector financeiro, durante o período de prorrogação, os créditos continuam a vencer juros, que são capitalizados no valor do empréstimo, sendo que, para evitar a capitalização, os devedores podem solicitar que seja suspenso apenas o reembolso do capital ou de parte deste.

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MORATÓRIABANCÁRIA

DR.A MADALENA PERESTRELO DE OLIVEIRA

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DR.A MADALENA PERESTRELO DE OLIVEIRA

A concessão generalizada de uma moratória traduz o reconhecimento por parte do legislador de que se alterou a base negocial objetiva ou, mais precisamente, a grande base do negócio em que as partes assentaram a decisão de celebrar os contratos de financiamento. É um regime que confere segurança e certeza jurídicas e socializa o risco da pandemia por via da sua repartição equitativa. No entanto, não afasta a aplicação do regime civil geral.

Ou seja, as entidades que não são abrangidas pelo escopo de aplicação do DL mantêm a possibilidade de se valer do regime civil da alteração das circunstâncias, renegociar o contrato e obter moratórias privadas.

Então, quem pode lançar mão deste regime? O artigo 2.º delimita as entidades beneficiárias da moratória, sendo que a ideia base é proteger as pessoas coletivas que tenham sede ou exerçam a sua atividade em Portugal e as pessoas singulares, em relação ao crédito para habitação própria e permanente, que tenham residência em Portugal, e que ficaram numa situação de particular vulnerabilidade económica na sequência da pandemia. Os critérios precisos para a qualificação como entidade beneficiária constam do artigo 2.º.

O regime é equilibrado: pressupõe que os beneficiários não estejam previamente numa situação de incumprimento perante os seus bancos ou perante o fisco ou segurança social. A exigência é natural e visa prevenir comportamentos oportunistas de devedores inadimplentes já antes do coronavírus que se poderiam aproveitar desta crise para mitigar os efeitos de um incumprimento anterior.

Ao contrário daquilo que acontece por exemplo em Itália, o legislador optou por estender esta proteção a todas as empresas, independentemente da sua dimensão e não apenas às micro, pequenas e médias empresas.

Quanto às operações abrangidas, o DL aplica-se, com algumas exceções, às operações de crédito concedidas por instituições de crédito, sociedades financeiras de crédito, sociedades de investimento, sociedades de locação financeira, de factoring, de garantia mútua, bem como sucursais de instituições de crédito e financeiras a operar em Portugal.

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DR.A MADALENA PERESTRELO DE OLIVEIRA

A expressão da lei é bastante ampla: refere-se a “operações de crédito”. Parece-me, por isso, que o regime se aplica, por exemplo, à emissão de obrigações e de papel comercial em que os subscritores sejam entidades elencada neste artigo 3.º. Nestes casos, a emissão obrigacionista constitui um mero expediente técnico e societário para conceder financiamento à sociedade emitente. O banco não pretende exercer os poderes normais de um credor obrigacionista. Surge como um normal financiador bancário.

Se a emissão for também subscrita por entidades não abrangidas, a sociedade já não pode beneficiar do regime da moratória. Se o regime se aplicasse isso significaria que as obrigações subscritas por uma instituição relevante podiam beneficiar da moratória e as restantes já não, situação estruturalmente avessa à qualificação das obrigações como valores mobiliários que representam, necessariamente, situações jurídicas homogéneas, o que implica que o direito de crédito representado seja fungível. A aplicação de um diferente regime quanto ao prazo de pagamento quebraria de forma irremediável essa homogeneidade.

Em operações de crédito sob a forma de locação financeira, a suspensão do pagamento das rendas devidas não importa uma prorrogação do contrato de leasing, simplesmente o locatário mantém o pagamento das rendas após a cessação do contrato.

Ficam fora do escopo de aplicação do Decreto-lei outras operações de crédito, como, por exemplo, o renting, que não sejam concedidas por entidades abrangidas pelo artigo 3.º. É uma opção política. Considerou-se que as entidades elencadas, pela sua função de financiamento da economia, têm um especial dever de participar no esforço de mitigação das consequências da Covid-19. Quanto às restantes entidades, a distribuição dos riscos que resultam da pandemia deve ser avaliada casuisticamente, de acordo com o regime civil geral.

Pergunta-se, ainda, se estão abrangidas pelo diploma as operações de crédito concedidas por instituições de crédito com sede noutro Estado-Membro, mas que estejam a prestar serviços em território português, em regime de livre prestação de serviços. Perante esta omissão, parece-me que a teleologia do diploma permite descobrir uma lacuna no regime.

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DR.A MADALENA PERESTRELO DE OLIVEIRA

Em termos valorativos não existem fundamentos para distinguir entre entidades em livre prestação de serviços e sucursais a operar em Portugal. É verdade que o regime regulatório é diferente e que as entidades em livre prestação de serviços estão, em larga medida, de fora da supervisão prudencial do Banco de Portugal, mas a suspensão do pagamento não é matéria regulatória, mas, sim, contratual. O diploma impõe uma modificação dos termos contratados entre entidades beneficiárias e mutuantes abrangidos pelo diploma.

Logo, se o contrato for regulado pela lei portuguesa, deve ser aplicada esta moratória legislativa também às entidades em livre prestação de serviços.

Se, pelo contrário, o contrato for regulado por lei estrangeira, também me parece que o diploma deve ser aplicado porque o regime da moratória é de aplicação imediata, para efeitos do artigo 9.º do Regulamento Roma I. Ou seja, é um regime que pode ser convocado mesmo que não faça parte da lei aplicável ao contrato.

Efetivamente, esta moratória cumpre todos os requisitos para ser qualificada como norma de aplicação imediata:

(i) em primeiro lugar, é um regime obrigatório, na medida em que não pode ser derrogado por acordo entre as partes. São as entidades beneficiárias que decidem se querem aderir ou não à moratória, mas, perante o pedido e verificados os seus pressupostos, o credor fica vinculado a suspender os pagamentos.

(ii) em segundo lugar, a observância deste regime é crucial para o Estado português: visa salvaguardar os seus interesses públicos, em particular a sua organização social e económica.

(iii) e, por último, é um regime aplicável independentemente da lei que rege o contrato nos termos do Regulamento. Ou seja, é um regime autolimitado, no sentido em que apresenta uma esfera de aplicação no espaço diferente da que resultaria da atuação do sistema de direito dos conflitos. Embora o regime não refira expressamente a sua prevalência sobre outra legislação, nem defina

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DR.A MADALENA PERESTRELO DE OLIVEIRA

de forma clara o seu âmbito de aplicação espacial, o Tribunal de Justiça tem vindo a dizer que cabe aos tribunais avaliar o conteúdo e objetivos da norma para assegurar a necessidade da sua aplicação.

Neste caso, apenas a aplicação do regime, independentemente da lei que rege o contrato garante, em situações internacionais, a salvaguarda dos interesses protegidos pela concessão da moratória. Por isso, justifica-se restringir o âmbito de aplicação da norma de conflitos geral.

Por fim, queria deixar a nota que, de acordo com as orientações de 2 de abril da Autoridade Bancária Europeia, a concessão desta moratória não implica que os créditos sejam considerados em restruturação para efeitos prudenciais. Como a moratória foi concedida em (i) resposta à pandemia Covid-19, (ii) é aplicada de forma generalizada a um conjunto pré-definido de devedores, independentemente de uma avaliação individual da sua capacidade de cumprimento; (iii) oferece as mesmas condições a todos os abrangidos; (iv) e apenas altera o calendário de pagamentos não é considerada uma medida de restruturação.

Certamente muitas outras questões haveria para discutir relativamente ao regime da moratória bancária, mas também haverá certamente outras oportunidades para continuarmos esta discussão em breve.

Muito obrigada, Senhor Professor.

António Menezes Cordeiro:

Muito obrigado Senhora Dr.ª Madalena Perestrelo de Oliveira, haverá certamente outras oportunidades, o tema é interessantíssimo, a sua intervenção foi muito esclarecedora.

Num momento ulterior havemos de conversar aqui todos quanto a saber se a banca está ou não está a acatar esse diploma. •

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4Aproveito para cumprimentar o Senhor Professor, assim como para

cumprimentar todos os meus colegas e desejar, como já fizeram a Dr.ª Madalena Perestrelo Oliveira e a Doutora Ana Perestrelo de Oliveira, que em breve estejamos em condições de nos encontrar não apenas neste espaço virtual.

Ora bem, de facto eu vou falar, embora não apenas, sobre o tema do impedimento do credor e vou começar a minha intervenção por uma história pessoal. Todos temos certamente muitas histórias ligadas à epidemia da Covid-19 e a minha permite ilustrar, a meu ver, um dos problemas que eu pretendo aqui retratar.

Na primeira quinzena de Março, quando se começaram a fazer sentir, praticamente por todo o globo e especialmente na Europa, progressivas restrições ao funcionamento das instituições públicas e privadas, à liberdade de deslocação e até limitações fronteiriças, eu encontrava-me na Alemanha, em Hamburgo, a prosseguir uma investigação no Instituto Max-Planck de Hamburgo, e tinha, para este efeito, tomado de arrendamento um apartamento na Gästehaus da Universidade de Hamburgo, que é uma instituição que arrenda apartamentos – e apenas arrenda apartamentos – a pessoas que se encontrem a fazer investigações, a participar em projetos ou a trabalhar na Universidade de Hamburgo ou noutras instituições ligadas à Universidade de Hamburgo.

À medida que foram sendo progressivamente impostas restrições e até que a sensação de perigo foi aumentando, houve vários hóspedes desta Gästehaus que foram abandonando os apartamentos, foram regressando aos seus países de origem. Eu tentei manter-me um pouco

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MORADO CREDOR

PROF.A DOUTORA MARIA DE LURDES PEREIRA

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mais, mas houve um momento em que o Instituto Max-Planck restringiu bastante a possibilidade de nós estarmos presentes nas instalações do Instituto, de tal forma que o projecto que eu tinha, que consistia em fazer aquela investigação nas instalações do Instituto e, portanto, com recurso designadamente aos livros que nos são disponibilizados, acabou por se frustrar, pelo menos, numa grande medida.

Decidi regressar cerca de uma semana mais cedo do que contava, mas ainda enquanto estive em Hamburgo, de facto, já existiam muitas restrições na utilização das instalações do Instituto Max-Planck onde eu fazia a investi gação.

A pergunta que esta situação coloca imediatamente é a de saber: poderei pedir o reembolso parcial da renda que paguei com fundamento no facto de, pelo menos na segunda quinzena do arrendamento, não ter podido usar ou não ter podido fruir das instalações do Instituto Max-Planck? É que, na verdade, eu celebrei o contrato de arrendamento no pressuposto de que poderia frequentar livremente o Instituto Max-Planck e o meu locador, ou seja, a Gästehaus, conhecia perfeitamente esse meu fim.

Ora bem, tentando tratar este problema à luz da lei portuguesa – e só a lei portuguesa me interessa – eu diria que a resposta é negativa, ou seja, eu não posso exigir reembolso algum. A arrendatária tem de pagar a renda na medida em que o senhorio cumpre a sua «obrigação» – aqui a expressão obrigação vai entre aspas, porque é questionável esta caracterização relativamente àquilo que o locador dá no contrato de arrendamento. Mas, diria eu, que o senhorio «cumpre» a sua «obrigação» proporcionando o gozo da coisa, nos termos do artigo 1031.º do Código Civil, e a Gästehaus continuou a assegurar o gozo do apartamento mesmo depois de serem introduzidas aquelas limitações à frequência das instalações do Max-Planck.

Parece-me indiscutível que o locador cumpre o contrato colocando a coisa à disposição do locatário, com as qualidades contratualmente acordadas e é indiferente se o locatário perdeu o interesse em utilizar a coisa e se a usa ou não efectivamente. E a meu ver também do artigo 1040.º do Código Civil, que nos diz que o locatário que sofra

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privação ou diminuição do gozo da coisa locada pode reduzir a renda proporcionalmente ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta, deste artigo, dizia, não resulta nada de diferente porque a verdade é que, mesmo durante aquele período em que eu me vi impedida ou, pelo menos, vi fortemente restringida a possibilidade de frequentar o Instituto Max-Planck, ainda assim eu continuava a ter o apartamento à disposição e, portanto, não houve nenhuma privação ou diminuição do gozo.

Eu penso que a solução deste caso pode ser aplicável depois a uma generalidade de prestações diferentes e de contratos diferentes e pode ser condensada na seguinte afirmação: o risco de emprego da prestação onera o credor, em princípio.

É evidente que podem resultar regras diferentes do contrato, ou seja, é possível que as partes tenham disciplinado, por intermédio de cláusulas contratuais, este tema do risco de emprego. E há ainda a possibilidade de terem regulado indirectamente, fazendo depender o cumprimento da prestação da própria satisfação do emprego que o credor pretende dar à prestação. Mas a regra geral é de que o risco de emprego continua a pertencer ao credor e não é muito comum encontrar regulações deste tipo nos contratos. Feita, no entanto, sempre a reserva de que pode existir uma regulação dessas.

Em particular, há uma confusão frequente, e que é importante afastar, que é a importância do emprego que o credor pretende dar à prestação do ponto de vista da determinação das qualidades intrínsecas ou das propriedades da prestação devida. O emprego a que o credor destina a prestação não é indiferente, pode conformar a prestação devida. Mas conforma apenas, em regra, as suas qualidades intrínsecas e isto significa que se o emprego da prestação se vir frustrado por razões extrínsecas à prestação, por razões «ambientais», essa frustração do emprego não se converte, em princípio, numa impossibilidade da prestação. Isto para falarmos do caso de pura perturbação do risco de emprego.

Há situações um pouco mais complexas do ponto de vista do seu tratamento jurídico do que aquelas que acabo de descrever, porque nalguns casos as intervenções legislativas ligadas, no caso português,

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ao estado de emergência, portanto, as medidas legislativas destinadas a conter, quanto possível, a progressão da doença, levam a que o devedor por vezes não execute a prestação devida, não por estar impedido de o fazer, de acordo com a legislação aprovada, mas antes porque o credor se encontra impedido de prestar a colaboração necessária, designadamente se encontra impedido de disponibilizar o substrato da prestação.

Há um conjunto de exemplos de casos deste tipo. Pense-se no caso do transporte das crianças para as escolas, contratado a empresas especializa das. As crianças não são entregues ao transportador e acabam por não ser transportadas por essa razão. Pelo menos numa fase inicial, as transportadoras podiam continuar a operar, acontece é que não tinham crianças para entregar nas escolas. Pense-se também nas empresas que fornecem refeições a outras ou que fornecem serviços de limpeza e que, de um momento para o outro, porque todos os trabalhadores da empresa credora são colocados em teletrabalho, deixam de poder prestar os seus serviços porque as instalações se encontram fechadas e não há ninguém que receba as refeições ou ninguém que abra a porta para que seja efetuado o serviço.

O problema que surge nestas situações é um problema semelhante ao que eu coloquei inicialmente, é o de saber se os pais que contrataram o serviço de transporte assim como a empresa a quem eram servidas as refeições ou onde era feita a limpeza poderão recusar-se a pagar o preço dos serviços ou eventualmente pedir o reembolso de quantias já pagas com fundamento nas restrições que a lei impôs às actividades nos estabelecimentos de ensino e ao trabalho nas instalações das empresas.

Ora bem, no plano substancial, eu penso que há uma semelhança clara, uma notável proximidade entre os casos anteriores da pura perturbação de fim de emprego e estes casos em que o credor não está em condições de aceitar a prestação ou de disponibilizar o substrato da prestação. Porquê? Porque em ambos os casos, parece-me, o credor deixou de ter interesse na prestação que contratou, pelo menos temporariamente a prestação deixou de ter para ele a utilidade prevista.

Esta semelhança substancial entre as situações, no entanto, não pode esconder uma diferença no plano estrutural porque, neste segundo tipo

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de casos, a prestação deixa de ser executada. No caso que apresentei inicialmente, a «prestação» não deixava de ser executada por causa das restrições que existiam à minha frequência do Instituto Max-Planck, mas nestes casos o que acontece é que o devedor é impedido de executar a prestação e esta é a diferença entre estes casos e os anteriores. A pergunta evidentemente que resulta desta proximidade substancial dos casos e da sua diversidade estrutural é a de saber se o regime não deve ser o mesmo.

Penso que, de facto, a proximidade substancial leva a que o regime seja o mesmo, mas a diversidade estrutural leva a que haja uma diferença no plano das consequências. A meu ver, nestes casos em que o credor se encontra impedido por força das regras ligadas ao estado de emergência, de prestar a sua colaboração, eu diria que ele tem que pagar o preço, tem que executar a contraprestação, no entanto, porque o devedor foi impedido de cumprir, por força dessa falta de cooperação, devem ser descontados da contraprestação os custos que ele economizou e ainda descontados os ganhos que ele teve – enfim, pouco prováveis na situação presente –, os ganhos que eventualmente ele teve em consequência de não realizar a prestação.

Estas deduções correspondem à aplicação de regimes gerais. Encontram-se consagradas em disposições como o artigo 795.º, n.º 2, do Código Civil ou o artigo 815.º, n.º 2, e parecem-me adequadas ao caso.

Bom, como é que se fundamenta esta segunda solução no Direito vigente? Devo dizer que o tempo de que disponho evidentemente não me permite explicar este enquadramento e a legitimação da solução que apresentei no Direito vigente. Devo apenas sublinhar que estes casos são casos de enquadramento duvidoso. Há quem entenda que estamos perante uma impossibilidade da prestação, há quem entenda que estamos próximos ou que estamos mesmo numa situação de mora do credor e há quem entenda que nem uma coisa nem outra. Enfim, a localização ou enquadramento destes casos no nosso Direito é duvidosa. A meu ver, em qualquer caso, à partida, os casos que eu agora designaria de risco de substrato devem ter um tratamento idêntico aos casos de risco de emprego, com as diferenças que sublinhei a propósito dos descontos que devem ser feitos na contraprestação.

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Ora bem, posto isto, há aqui uma questão difícil a resolver. E a pergunta é esta: estes regimes que fui expondo adequam-se bem a situações normais. Se as crianças não forem transportadas porque estão doentes, se as refeições não puderem ser entregues na empresa porque os trabalhadores encarregados de as receber estão em greve, por exemplo, a contraprestação deve ser paga ao devedor. Isto é um resultado quase intuitivo. Agora, numa situação como aquela em que nos encontramos, perante uma pandemia, uma situação absolutamente excepcional e que atinge a generalidade da população, será que faz sentido que se continuem a aplicar os regimes gerais do Código Civil?

Trata-se de um tema evidentemente complexo, só posso fazer aqui uma reflexão sumaríssima. Mas há um ponto fundamental, a meu ver, que merece atenção: é que as intervenções do legislador no contexto do estado de emergência, são «cegas» do ponto de vista da estrutura da obrigação. Já há pouco vimos, na intervenção da Professora Ana Perestrelo de Oliveira, que, por vezes, essas intervenções impedem o devedor de cumprir e noutros casos – são aqueles de que eu me ocupei – impedem o credor de cooperar. Isto leva a que, se nós aplicarmos os regimes gerais do Código Civil, haja uma distribuição arbitrária do risco. Por vezes, essas medidas implicam que todo o risco recaia sobre o devedor. Por vezes, essas mesmas medidas implicam que, aplicado o regime geral, o risco recaia todo sobre o credor. Eu penso que temos aqui uma área em que é necessário redistribuir o risco destas medidas, que são medidas gerais, e que a redistribuição do risco dessas medidas deve ser feita equitativamente por todos os agentes económicos.

Uma primeira via ponderável para alcançar estes resultados seria eventualmente o recurso a institutos civis, como o da alteração das circunstân cias. Parece-me, no entanto, que este instituto é francamente desadequado para lidar com este problema e que o problema da redistribuição deste risco só pode ser encarado seriamente por uma intervenção correctiva legislativa. Portanto, menos uma intervenção correctiva no plano judicial e com recurso aos institutos tradicionais, e mais uma resolução do tema através de intervenções legislativas.

Muito obrigada e era isto que eu tinha para dizer.

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PROF.A DOUTORA MARIA DE LURDES PEREIRA

António Menezes Cordeiro:

Professora Maria de Lurdes Pereira, uma excelente intervenção sobre um tema que é extremamente difícil.

Eu estava a pensar no caso da Gästehaus do Max-Planck, talvez pelo Direito alemão se conseguisse arranjar uma outra solução, se se conseguisse recorrer ao parágrafo 812 do BGB – Ungerechtfertigte

Bereicherung. Enfim, ficará para um debate mais atento na Faculdade de Direito de Lisboa.

Meus amigos, nós temos aqui alterações em grande escala, são atingidos os contratos. Eu, há pouco, corri o risco de dizer que todos os contratos de alguma maneira saem direta ou indiretamente atingidos. Temos aqui uma alteração de circunstâncias, uma grande alteração de circunstâncias. Quais são as consequências? •

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5S aúdo todos os meus colegas, saúdo a audiência, esperemos que

no final deste mês estejamos todos cá fora, vamos avançar então a todo o gás. A minha intervenção, sobre a alteração das circunstâncias, encontra-se dividida em três partes.

Uma introdução, depois uma análise aos elementos da alteração das circunstâncias e finalmente algumas considerações sobre o conceito da grande alteração das circunstâncias e qual é que é a minha intuição – uma intuição que falhou no âmbito da crise financeira de 2008 – em relação ao que os nossos tribunais irão fazer.

Vamos então a isso. Breve introdução. Desde a entrada em vigor do Código Civil de 66, portanto, o Código Civil português que está em vigor, que o Direito Cível português pode ser caracterizado como sendo um Direito civil social.

Significa o quê?

Antes de mais, o Direito civil social encontra no princípio da boa-fé a sua face mais visível, mas não tem de ser necessariamente assim. Há outros sistemas jurídicos que encontraram ou conseguiram prosseguir esta socialização, não em sentido político, mas em sentido jurídico, através de outros institutos. No caso do Brasil, por exemplo, foi alcançado, essencialmente, através da constitucionalização do Direito civil e do princípio da dignidade da pessoa humana.

A ideia central do Direito civil social consiste em limitar o princípio da autonomia privada, em especial a liberdade de contratar, quer seja a liberdade de estipulação, de determinar o conteúdo dos contratos,

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ALTERAÇÃODAS CIRCUNSTÂNCIAS

PROF. DOUTOR A. BARRETO MENEZES CORDEIRO

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PROF. DOUTOR A. BARRETO MENEZES CORDEIRO

quer seja a própria liberdade de celebração, ou seja, eu posso ser obrigado a celebrar um contrato ou impedido de celebrar um contrato, e também de exercer direitos, tendo em vista proteger os interesses de outras partes, os interesses de terceiros ou o interesse da comunidade.

Como exemplos paradigmáticos da socialização do Direito Civil refira-se o artigo 227.º do CC, que impõe deveres de lealdade e de informação às partes na negociação de contratos ou o abuso do direito, artigo 334.º do CC, que impede o exercício de direitos quando esse exercício defraude a confiança suscitada ou quando se mostre excessivamente prejudicial a outro sujeito.

Esta socialização atravessa todo o Direito privado.

É muito interessante confrontar a evolução do Direito português, por exemplo, com o Direito inglês, em que não há uma socialização do Direito privado. Vigora um Direito civil muito mais liberal. Apenas uma referência jurisprudencial inglesa para perceberem o que isto significa. Há um célebre acórdão em que as partes, através de um ato preparatório, acordaram atuar de boa-fé em negociações contratuais futuras. Este ato preparatório chegou aos tribunais ingleses e o juiz considero que as partes se comprometerem a contratar de boa-fé era repugnante. Não sei se o nosso Primeiro-Ministro António Costa se inspirou ou não neste acórdão nas palavras que preferiu em relação ao ministro das finanças holandês, mas a expressão utilizada foi repugnante.

Ora, esta ideia de equilibrar as posições jurídicas, de limitar o exercício da autonomia privada, encontra outra das suas manifestações no regime da alteração das circunstâncias. Ou seja, verificados os pressupostos legais, os pressupostos que constam do artigo 437.º do CC, é possível as partes modificarem o conteúdo de contrato com o propósito de voltar a equilibrar as posições, para não ficar alguém a ganhar muito e outro perder muito e, no limite, proceder à resolução do contrato.

O regime da alteração das circunstâncias foi especialmente discutido nos nossos tribunais no âmbito da crise que se iniciou em 2007 e que durou quase dez anos a passar em Portugal, e parece que agora vamos ter outra, sendo naturalmente expectável que a aplicação do artigo 437.º do CC volte a ser discutida.

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Vamos então aos elementos da alteração das circunstâncias. Vou ler rapidamente os elementos e depois fazer algumas considerações práticas. Primeiro elemento: as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; segundo elemento: tiverem sofrido uma alteração anormal; terceiro elemento: tem a parte lesada direito à resolução ou à modificação do contrato; quarto elemento: desde que a exigência das obrigações assumidas afecte gravemente o princípio da boa-fé; e quinto elemento: não esteja coberta pelos riscos do contrato.

Primeiro elemento: as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar. Não me parece que este primeiro elemento suscite especiais dificuldades no âmbito da pandemia que vivemos. Apenas interessam as circunstâncias objetivas e já não as subjetivas, bem, no caso em análise é evidente que o as circunstâncias respeitam são objetivas – sem descurar, naturalmente, a necessidade de proceder sempre a uma análise casuística. Vamos partir do seguinte exemplo: temos um contrato de fornecimento que foi celebrado pelo período de um ano, as partes estabeleceram as quantidades, estabeleceram o preço, estabeleceram todas as demais condições. As partes contrataram com base numa determinada realidade de mercado (oferta e procura), quer seja no universo da restauração, da hotelaria ou de qualquer outro sector. Essa é a circunstância objectiva.

Segundo elemento: essa circunstância objectiva sofreu uma alteração anormal. O critério da anormalidade é preenchido através da ideia de imprevisibilidade. É anormal aquilo que é imprevisível. Exemplo, imagine-se que tinha sido celebrado um contrato de fornecimento relativo a um estabelecimento comercial no Algarve. O contrato é celebrado na Primavera, funciona tudo perfeitamente, chega ao Inverno e uma das partes vem dizer “ai meu Deus, no Inverno não há turistas no Algarve, isto era totalmente imprevisível, não estava à espera e por isso peço a modificação do contrato”. Vê-se logo que não pode ser, portanto tem de ser uma alteração anormal, uma alteração imprevisível.

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Nos últimos anos têm-se discutido se a crise financeira de 2007 pode ou não ser apresentada como uma ocorrência imprevisível. A maior parte dos juristas considerou que era imprevisível, mas mesmo assim discutiu-se a sua eventual previsibilidade com o argumento de que as crises são cíclicas por natureza. Dificilmente poderá esse argumento ser agora invocado. Bem sei que as pandemias são, em certa medida, cíclicas, mas não me parece que a imprevisibilidade desta pandemia venha a ser contestada. Mas atenção, é necessário atender ao momento em que o contrato foi celebrado. Se o contrato foi celebrado em Agosto, não há problema nenhum. Se foi celebrado quando o vírus já estava ativo na China também me parece que não suscitará dúvidas. Quando a situação começa a ficar crítica em Itália e, subsequentemente, a Organização Mundial de Saúde declara a pandemia mundial, torna-se mais complicado às partes invocarem a imprevisibilidade da ocorrência.

Terceiro elemento: tem a parte lesada o direito à resolução ou à modificação do contrato. Não vou analisar este elemento. Todavia, ele respeita aos mecanismos concretos que as partes podem invocar na busca por um reequilíbrio do contrato.

Quarto elemento: desde que a exigência das obrigações assumidas afecte o princípio da boa-fé. Ora, o princípio da boa-fé no Direito português está presente de forma tão forte, que mesmos naqueles institutos – como é o caso do das alteração das circunstâncias ou da culpa in contrahendo – em que, em outros ordenamentos jurídicos a ligação à boa-fé se perdeu, pelo menos formalmente, no Direito português mantém-se, ou seja, a boa-fé assume-se como um efetivo e autónomo elemento do artigo 437.º do CC. Permite afastar aquelas situações em que o ponto de vista do equilíbrio, sempre à luz da socialização do Direito, não se justifica modificar ou resolver o contrato. Por exemplo, alterações menores, alterações sem relevância, que não têm qualquer impacto no que respeita a danos. Também não me parece que este elemento vá suscitar especiais dúvidas, mas sempre salvaguardando a ideia que é necessário analisar casuisticamente.

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Finalmente o quinto elemento: não esteja coberto pelos riscos do contrato. Este último elemento foi o elemento mais discutido pela jurisprudência da crise, em especial no âmbito dos contratos de swap, em que se discutia, basicamente, se os contratos de swap celebrados previam, no respetivo texto, a descida abrupta das taxas de juros para níveis próximos de zero. Este ponto foi muito discutido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. Será que no caso da presente pandemia este elemento vai voltar a assumir semelhante preponderância? A minha intuição é que não. E que não pelo seguinte: primeiro, os litígios não vão envolver, aparentemente, este tipo de contrato de financiamento. E caso envolvam, como as taxas de juro já estão muito baixas, não me parece que venhamos a ter uma repetição do mesmo argumentário. Segundo, a maior parte dos contratos onde neste momento a questão se tem colocado, são contratos de fornecimento, de arrendamento, prestações de serviço menos complexas e dificilmente aí poderá ser dito que o contrato cobre riscos decorrentes de pandemias desta natureza.

Em princípio, sempre salvaguardando a necessidade de uma análise casuística, julgo que facilmente se conseguira demonstrar o preen- chimento de todos os elementos do artigo 437.º do CC.

Vejamos agora a relevância de classificar uma alteração das circuns- tâncias como sendo grande ou pequena. A expressão ou o conceito de grande alteração das circunstâncias foi cunhada na década de 40 ou 50 pelo jurista alemão Kegel, que se notabilizou no estudo do Direito internacional privado. A ideia é bastante simples e intuitiva. Existem grandes alterações das circunstâncias: grandes crises, guerras mundiais, grandes pandemias, e as pequenas alterações das circunstâncias, que ou afectam um contrato ou um conjunto de contratos, mas não afetam a sociedade enquanto um todo. Será então o presente momento enquadrável no conceito de grande alteração das circunstâncias? Sim. Da mesma forma, como a crise financeira de 2007 poderia ser apresentada nestes termos, mas reparem, o que efetivamente importa analisar não é se se trata de uma grande ou pequena alteração, mas sim qual é a relevância dessa recondução. Agora, o que interessa saber é qual é que é a relevância desta denominação. Dizer que a crise financeira de 2007 é uma grande

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alteração das circunstâncias, que a Segunda Guerra Mundial é uma grande alteração das circunstâncias ou que a presente pandemia consubstanciam grandes alterações das circunstâncias é, do ponto de vista expositivo, apelativo, mas e do ponto de vista jurídico?

Deixo-vos três dúvidas:

Primeira dúvida: o artigo 437.º aplica-se a todas as alterações, pequenas ou grandes? E a resposta parece-me inequívoca: sim, aplica-se a todas. Não há nenhum elemento, aplicando o artigo 9.º do CC, que permita afirmar que o artigo 437.º não se aplica às grandes. Não há trabalhos preparatórios, não há elemento teleológico, não encontro qualquer fundamento interpretativo que sustente a afirmação de que o artigo 437.º do CC não se aplica às grandes alterações. Na realidade, os nossos tribunais nem sequer diferenciam as grandes alterações das pequenas alterações. Apenas encontrei um acórdão de 2012 onde o problema é mencionado e a resposta é inequívoca: aplica-se a todas as alterações. Portanto, não há uma discussão jurisprudencial sobre essa matéria.

Segunda dúvida: as medidas legislativas impedem que os nossos tribunais intervenham, ou seja, invoquem o 437.º? A resposta irá depender do caso concreto e dos efeitos produzidos pelas medidas legislativas efetivamente implementadas. Se essas medidas tiverem como resultado o equilíbrio das posições contratuais, então diria que sim, que os nossos tribunais não podem intervir. Mas se essas medidas não alcançam esse resultado, ou seja, se as posições jurídicas continuam desequilibradas, então não vejo como é que os tribunais possam dizer que não podem ou não devem intervir.

Terceira dúvida, e que é a mais difícil, mas acaba por ser a mais fácil porque não é jurídica. É a seguinte: irão os nossos tribunais aplicar o 437.º do CC? Reparem, historicamente os nossos tribunais mostram-se avessos a invocar a o 437.º em relação a grandes alterações de circunstância, apesar de não utilizarem o termo. Foi assim no 25 de Abril, foi assim nos processos de descolonização e de nacionalização, mas em todos esses casos, os tribunais não afirmaram que não aplicavam, em concreto, o 437.º do CC, não por

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considerarem que este preceito não abrangia as grandes alterações. Invocaram, para o efeito, aspectos técnicos e fáticos, recorreram a uma argumentação jurídica muito meticulosa para afastar a aplicação do 437.º do CC.

Os nossos tribunais mostram, historicamente, grandes cautelas em intervir quando as consequências dessa intervenção extravasem uma dimensão meramente jurídica e assumam, potencialmente, um grande impacto político ou social. O caso paradigmático é o da resolução do BES. Em 2014, numa conferência na nossa Faculdade organizada pelo Professor Paz Ferreira disse "eu coloco as minhas mãos no fogo em como os nossos tribunais cíveis vão proteger a parte mais fraca. Os lesados do BES vão ser protegidos." Porque se o Direito civil sofreu um processo de socialização, então o Direito bancário e o Direito dos valores mobiliários assumem-se como ramos jurídicos muito socializados, onde a protecção da parte mais fraca resulta de forma inequívoca da lei. Mas os nossos tribunais mostraram cautelas. Mostraram cautelas porquê? Presumo que em resultado das consequências políticas que poderiam resultar dessa decisão.

Resumindo, (i) o preenchimento dos elementos do artigo 437.º não suscitará especiais dificuldades – salvaguardando a necessidade de proceder a uma avaliação casuística; (ii) a sua invocação adequa-se perfeitamente ao Direito Civil português – trata-se de um Direito Civil social; (iii) a apresentação da presente pandemia como consubstanciando uma grande alteração das circunstâncias não releva para efeitos da sua aplicação; (iv) todavia, fica a dúvida se efetivamente os nossos tribunais a irão aplicar. Eu não vou colocar as minhas mãos novamente no fogo. A minha intuição é que sim, que vão aplicar o 437.º, sempre que as medidas legislativas não permitirem um equilíbrio das posições, mas não podemos ignorar as aparentes cautelas que os nossos tribunais classicamente assumem sempre que da sua intervenção possam resultar consequências políticas.

Muitíssimo obrigado pela vossa atenção.

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António Menezes Cordeiro:

Muito obrigado Sr. Professor António Barreto, realmente mãos escaldadas não é de água fria, etc., etc. Uma excelente intervenção sobre um velho e sempre jovem instituto que é este da alteração das circunstâncias. Eu não sei se segundo a doutrina do Bolsonaro, se realmente as coisas imprevisíveis acontecem, não é? Suponho, segundo essa doutrina, as coisas imprevisíveis pura e simplesmente não sucedem e com isso resolve-se o problema de alteração das circunstâncias. •

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6B om dia a todos, eu começo por dirigir saudações virtuais, mas

calorosas, ao público e também ao nosso coordenador, Professor António Menezes Cordeiro e aos meus queridos colegas e amigos aqui presentes.

O povo diz que depois da tempestade vem a bonança, mas também há quem diga que há alguma bonança no meio da tempestade, eu acho que este nosso encontro aqui hoje também é um sinal disso mesmo.

Este tema que me cabe é o da modificação do contrato e da redução das contraprestações, portanto, dentro dos mecanismos de gestão da crise contratual, eu vou falar sobretudo de situações em que uma das partes pretende invocar uma redução de uma das prestações, ou uma modificação de uma das prestações. E, dentro deste contexto mais amplo, eu seleccionei a redução e a modificação das prestações pecuniárias. Este é um tema em que, naturalmente, é intuitiva a sua associação a um cenário de crise. Perante uma crise do contrato, uma ideia que surge imediatamente ao espírito é a da tentativa da redução do preço que se paga ou a tentativa de elevação do preço que se recebe e, portanto, a minha exposição tem em vista saber se o preço da empreitada se mantém ou não, se a renda do arrendamento se mantém ou não, se o preço da compra e venda se mantém ou não, e em que circunstâncias.

E porque é que eu seleccionei estas obrigações pecuniárias? Porque as obrigações pecuniárias são tratadas de forma especial no Direito Civil. Em primeiro lugar, porque em relação a estas não se aplicam todos os institutos que podem conduzir a um afastamento da pretensão de

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MODIFICAR E RENEGOCIARO CONTRATO, REDUZIRAS PRESTAÇÕES

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cumprimento, ou se quisermos, em termos mais amplos, uma cessação do dever de prestar. Em segundo lugar, porque certos institutos clássicos, como o instituto da alteração de circunstâncias, também não se aplicam da mesma maneira relativamente às obrigações pecuniárias.

O que vou tentar fazer é um esquema de análise destas situações, procurando individualizar os vários passos do caminho crítico que pode estar a na origem de uma estratégia de redução do preço num contrato, ou de modificação do contrato, que seja afetado por esta crise causada pelo novo Coronavírus. Então que passos críticos são esses? Começamos pelo contrato, e seguimos depois para a análise da lei.

Uma primeira premissa que eu estabilizaria é a da prevalência da

solução contratual. O contrato é uma auto-regulação privada de interesses, uma expressão de autonomia privada das partes. Em regra, o Direito Civil não fixa ordenações de preferências na utilização de bens e, portanto, havendo uma regulação no contrato, tendencialmente essa regulação poderá prevalecer. Muito bem, se aceitarmos esta premissa, que regulação contratual é que pode ser importante para este tema?

Eu aqui distinguiria entre regulação contratual evidente, ou exposta, e a regulação contratual não evidente ou escondida. Entre a regulação contratual evidente, naturalmente que pensamos em cláusulas como cláusulas de modificação do preço, cláusulas de modificação adversa de circunstâncias, cláusulas de hardship, até algumas cláusulas de força maior podem prever situações deste género, cláusulas variadas, mas em que conseguimos estabelecer uma relação directa entre o preço e determinados contextos ou circunstâncias. Sempre que existam cláusulas destas, temos os casos fáceis (ou mais fáceis): são casos de interpretação dessas mesmas cláusulas, no contexto do negócio como um todo. A perceção de que essas cláusulas são potencialmente aplicáveis é comum a juristas e não juristas.

Temos, depois, cláusulas que também são evidentes, mas de forma indireta. Quais? Desde logo, as cláusulas de preço fixo ou as cláusulas que determinam que o preço assenta no chamado mecanismo de locked

box, ou mecanismo de caixa fechada. O que é que isto quer dizer? Bom, se as partes convencionaram uma cláusula de preço fixo, a relevância

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dessa cláusula vai depender do tipo de contrato. Um exemplo muito rápido, numa empreitada de um contrato chave-na-mão com uma cláusula de preço fixo, em regra, sem prejuízo da análise do contrato, o que essa cláusula quer dizer é que há uma assunção dos riscos de variação dos custos, dos custos da matéria-prima, dos custos da mão-de-obra pelo próprio empreiteiro e, portanto, uma exclusão desse risco a cargo do dono da obra. Mas, por exemplo, se se tratar de um contrato com execução diferida como uma compra e venda de acções que implica compra e venda da empresa, nesses casos, em certas circunstâncias, a estipulação de uma cláusula de preço fixo ou de um mecanismo de determinação de preço em caixa fechada, pode significar tão só e apenas que o comprador pretendeu não incorrer em riscos que resultam da circunstância de o vendedor manter a gestão da sociedade durante um período que decorre entre a assinatura do contrato e o fecho do negócio. Como destes exemplos se percebe, temos duas cláusulas de preço fixo, mas a sua funcionalidade é muito distinta e, portanto, o seu impacto também será muito distinto quanto ao apuramento das condições de uma possível modificação do preço.

Dizia eu que as cláusulas podem também estar escondidas. E que cláusulas são estas que são menos evidentes e que podem ter aqui alguma relevância? Começo por salientar as chamadas cláusulas de remédio único, que é uma tradução directa da expressão inglesa cláusulas de sole remedy. Estas cláusulas normalmente o que dizem é que as partes convencionam determinado mecanismo para fazer face a perturbações no contrato, com exclusão dos demais. Quer dizer, as partes estabelecem no figurino contratual as reações que pretendem que sejam aplicáveis a certos cenários e excluem as outras reações ou os outros mecanismos previstos no Código Civil. Naturalmente que há aqui uma questão prévia de validade destas cláusulas à luz do Código Civil e também na sua análise ao abrigo do artigo 809.º do Código Civil. Não tenho tempo para analisar estes argumentos, mas tenho sustentado uma posição de princípio de tendencial validade

das cláusulas de remédio único e, portanto, se nós tivermos uma cláusula de remédio único no contrato, apesar de não estar lá escrito nada sobre modificação do preço ou alteração de circunstâncias, será que as partes quiseram reforçar riscos ou isolar riscos e excluir vários mecanismos que se encontram na lei civil, desde mecanismos

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associados a alteração de circunstâncias ou até outras normas especiais? É uma hipótese e não deve deixar de ser explorada.

Outras cláusulas que têm também relevância indireta nesta matéria são as cláusulas que estão dispostas ao longo do contrato e que implicam uma temporalização ou uma finalização das prestações. E reparem que aqui o meu raciocínio é indireto, ou seja, uma cláusula que temporaliza ou que finalize a prestação não tem impacto directo na prestação pecuniária em si, mas terá o impacto na prestação de dar ou de fazer e, por ter um impacto na prestação de dar e de fazer, terá um reflexo, tratando-se de uma contrato com prestações recíprocas, na prestação pecuniária. E porquê? O que é isto da temporalização ou da finalização?

Temporalização é muito fácil de compreender com um exemplo. Imaginem que no contrato da empreitada existe um determinado momento para conclusão de parte da obra e a conclusão dessa parte da obra naquele momento é conditio sine qua non da atribuição de uma licença pela entidade administrativa, sob pena de preclusão. Ora bem, estamos perante uma prestação de prazo absolutamente fixo: o credor não tem interesse no cumprimento no dia seguinte, só tem interesse no cumprimento até àquele momento e, havendo temporalização no contrato, o que significa é que há uma imediata impossibilidade da prestação e isto vai ter consequências no ponto de vista do pagamento do preço.

Um exemplo de finalização da prestação. A finalização depende naturalmente da interpretação do contrato, não só da cláusula do objeto, mas de várias outras cláusulas. Imaginem que um contrato de arrendamento tem uma componente atípica e, portanto, não se trata apenas do gozo do bem, mas do gozo do bem tendo em vista determinadas finalidades como, por exemplo, a venda de determinados bens no mercado ou atingir determinados volumes de vendas. Ora bem, há aqui uma finalização e, portanto, se não for possível este gozo concreto do bem “assim finalizado”, pode haver um impacto também no pagamento da renda.

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Temos até aqui que, começando pelo contrato, e analisando estes vários aspetos do contrato, podemos logo conseguir aqui estabelecer um figurino e uma estratégia. Mas vamos admitir que não temos regulação especial no contrato ou que, tendo regulação especial no contrato, as partes não afastaram o regime geral do Código Civil. Neste caso há, fundamentalmente, três institutos que podem permitir uma redução da prestação pecuniária:

a) a alteração das circunstâncias;b) a renegociação do preço e;c) a impossibilidade parcial da prestação.

Começando pela primeira, alteração das circunstâncias. Eu não vou analisar os requisitos da alteração de circunstâncias, queria só salientar umas notas muito rápidas. A primeira nota é que, em princípio, a impossibilidade de prestar prevalece sobre a alteração das circunstâncias e, portanto, há que ver bem se a prestação é finalizada ou se não é, se a hipótese configura um caso de impossibilidade e não um caso de alteração de circunstâncias. Segunda nota: a alteração de circunstâncias serve paradigmaticamente para fazer face a desproporções entre prestação e contraprestação ou a perturbações da base do negócio. E eu acrescento, da base de negócio objetiva.

Ora bem, se assim é, daqui resulta que a alteração de circunstâncias não serve por si só para fazer face a meros aumentos de custos, nem a meras perdas de receitas. Há mais custos, é mais difícil prestar porque existe uma pandemia, mas o sítio certo enquadrar o problema pode não ser o artigo 437.º do Código Civil. Da mesma maneira, se a expectativa de receita é menor, em virtude da pandemia, por si só esta diminuição esperada da receita poderá não ser uma circunstância atendível no âmbito do artigo 437.º. O “problema” (se vier a sê-lo) terá de ser resolvido através de outros institutos.

Se a alteração das circunstâncias for aplicável, podemos ter uma modificação do contrato, e aqui coloco algumas questões de ordem prática.

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Primeira: como é que opera a modificação do contrato? A resolução do contrato por alteração de circunstâncias parece-me que deve operar extrajudicialmente. Não é doutrina pacífica, há quem tenha entendimento contrário, mas eu não vejo razões para afastar a regra geral do Direito português da resolução extrajudicial. A resolução, sendo feita extrajudicialmente, pode ser ilícita, o que é potenciado por não ter havido um terceiro a escrutinar a bondade dos argumentos. Bom, é verdade, mas todas as resoluções podem ser ilícitas, e depois aplicam-se os mecanismos existentes. A situação não é diferente na alteração de circunstâncias e, portanto, se a resolução pode ser extrajudicial, a modificação não tem de ser judicial. Seria estranho ter aqui uma solução diferente para uma e outra, parece-me que a modificação pode ser feita extrajudicialmente. Bom, mas se assim é como é que eu consigo compatibilizar esta minha ideia com a circunstância de o artigo 437.º aludir a juízos de equidade? Parece que os juízos de equidade convocam aqui a intervenção de um terceiro. Parece-me que o que o artigo 437, n.º1 impõe é que a modificação quando realizada por um tribunal, seja ele judicial ou arbitral, deve ser feita de acordo com os juízos de equidade, mas não afasta a possibilidade dessa mesma modificação ser conseguida por outra via, extrajudicial, e com recurso a outros critérios, a critérios fixados pela autonomia privada das partes, a outros critérios limitados naturalmente pela regra da boa fé.

Segundo ponto: imaginemos que a modificação é feita extrajudicialmente, a outra parte não acata e, no final, temos um litígio. Qual o momento relevante para efeitos da determinação da alteração das circunstâncias e do pedido de modificação do preço ou dos pagamentos? Ora bem, parece-me que os efeitos devem aferir-se à data do pedido de modificação extrajudicial e, portanto, ela também é bastante importante por isto. Não é o momento do pedido judicial ou do pedido arbitral, não é o momento da sentença, é o momento do pedido extrajudicial.

Terceiro ponto. Riscos da reação da contraparte. A contraparte recebe um pedido de modificação extrajudicial e pode dizer que a modificação é ilícita. Bom, se disser que a modificação é ilícita poderemos ter aqui uma situação de impasse e, naturalmente, se existir ilicitude da

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modificação e a parte persistir nesse comportamento, pode dar azo ou a um incumprimento do contrato ou a uma declaração antecipada de não cumprimento, daqui podem ser extraídas consequências, e o próprio contrato pode ser afectado por uma crise ainda mais grave. Mas também pode acontecer (e estes casos são interessantes), que a modificação não seja ela própria ilícita, ou seja, o artigo 437.º permite uma modificação, mas a contraparte diga “Bom, eu contratei um contrato com uma determinada equação económica e com um determinado pressuposto. Se o preço a pagar agora é outro, então eu quero sair deste contrato”. Este raciocínio é lícito? Ora bem, no passado, alguns juristas portugueses já admitiram que sim, em nome da autonomia privada: ninguém poderia ser obrigado a persistir num contrato que não quer e, portanto, poderia haver sempre uma oposição no mecanismo da resolução quando existisse aqui uma modificação. Eu confesso que aqui tenho várias dúvidas, porque me parece que o ponto central é saber se a modificação é, ou não, exigível. Se a modificação for exigível, ela é exigível por força da regra da boa-fé e, portanto, não me parece que esta parte possa ser afastada apenas com base neste raciocínio. Mais: também por causa da autonomia privada e valorizando este argumento. Porquê? Porque, quando é analisado o pressuposto da modificação do contrato, é analisada não só a posição da parte afectada, mas também a posição da contraparte e, portanto, a modificação é exigível ou não é exigível tendo em conta estes dois vectores, estes dois núcleos de interesses. Se for exigível então ela poderá ser determinada e deverá ser cumprida.

Avançando.

Segundo mecanismo: renegociação. A renegociação é um mecanismo “à margem” do artigo 437.º para permitir uma redução do preço? Ora bem, a renegociação tem sido falada em Portugal em dois contextos: no contexto do artigo 437.º, como uma espécie de “antecâmara” a um início de um processo de alteração de circunstâncias, e fora do artigo 437.º. Primeira pergunta: quando ela ocorre no âmbito do artigo 437.º, quais os mecanismos aplicáveis, se a outra parte não renegociar ou se a negociação se frustrar por causa imputável a uma parte? Ora bem, aqui os mecanismos são os do próprio artigo 437.º. A parte pode recorrer ao tribunal e, portanto, pedir uma modificação

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do contrato. Poderá haver aqui danos e responsabilidade civil por culpa

in contrahendo, esta pode não está excluída, mas na generalidade dos casos será muito difícil alegar e provar a existência aqui a existência de danos, a não ser que haja investimentos feitos por causa de negociações chicaneiras ou com propósitos fraudulentos. Caso mais difícil: o caso da renegociação não ocorrer ao abrigo do artigo 437.º, mas ao abrigo do artigo 762.º, n.º 2 do Código Civil, portanto ao abrigo da regra da boa-fé. A boa-fé pode impor, paralelamente ao artigo 437.º em determinados tipos de contratos, designadamente em contratos prolongados, uma renegociação das prestações pecuniárias. E, neste caso, pergunta-se: o incumprimento desse dever de renegociação – que é um dever-processo, não é um dever-resultado – , pode ou não implicar responsabilidade civil? Pode implicar responsabilidade civil em princípio enquadrável na responsabilidade por culpa in contrahendo e em princípio também, podendo dar azo a uma indemnização pelo interesse contratual negativo. Naturalmente que o tempo não me permite aqui a exposição de todas as posições e noto que estas posições que tenho defendido nestes últimos minutos são as minhas e, portanto, há certamente visões contrárias a esta, pelo menos não posso excluir que existam.

Finalmente, e antes de terminar, terceiro mecanismo: a impossi-

bilidade. Uma forma de reduzir o preço é a impossibilidade definitiva parcial. Estamos a assistir a situações de impossibilidade definitiva parcial neste momento? Estamos. Estamos em alguns casos, quando temos certas situações de prestações temporalizadas e de certas prestações finalizadas. E, neste caso, qual é a regra? A do artigo 793.º do Código Civil: quando está em causa uma impossibilidade parcial não imputável às partes, determinada pelo cenário da pandemia, o devedor exonera-se mediante a prestação do que for possível, devendo neste caso ser proporcionalmente reduzida a contraprestação. Existem depois regras especiais, nomeadamente no âmbito do arrendamento, o artigo 1040.º do Código Civil, mas mantendo-nos nesta regra geral, a pergunta que podemos fazer é como é que opera a redução da contraprestação? Reparem que a lei diz uma redução proporcional, mas não diz como e, portanto, um prático do Direito pode perguntar como é que determina exatamente essa redução, quando o contrato é um contrato prolongado, é um contrato complexo e, portanto, é muito difícil fazer esta

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redução proporcional. Haverá algum elemento de apoio no sistema? Ora bem, temos um elemento de apoio no sistema que é o artigo 884.º do Código Civil, que é uma norma que se encontra prevista para a compra e venda, mas que pode ser certamente aplicada a outros contratos onerosos, designadamente contratos onerosos de carácter translativo ou não translativo. E o artigo 884.º do Código Civil o que nos diz é que se a venda ficar limitada a parte do seu objeto, o preço respeitante à parte válida do contrato é o que neste figurar se houver sido discriminado como parcela do preço global. Se não for discriminado como parcela do preço global, como tantas vezes acontece, então a consequência está no número 2, na falta de discriminação a redução é feita por meio de avaliação.

De uma maneira geral eram estes três pontos que queria correr convosco hoje. Gostaria apenas de terminar dizendo que os mecanismos de gestão da crise contratual causada pela pandemia são diversos. É importante que não sejam inflacionados certos institutos, é importante que a ciência jurídica e os utilizadores do Direito tenham consciência que existem dezenas de mecanismos previstos na parte geral e na parte especial do Código Civil e o exercício devido neste momento é, enquanto não temos uma lei que altere estas perturbações do cumprimento no seu todo (e talvez até seja bom que não a tenhamos), é saber manusear adequadamente esses institutos com a certeza que o nosso Código Civil não deixa de fora nenhuma situação, nem permite que desequilíbrios sejam perpetuados ou agravados, além daquilo que já sofremos nos últimos dias. Muito obrigada.

O presente texto corresponde à versão escrita da exposição oral que fiz no videocast do CIDP dedicado ao tema “Modificar e Renegociar o Contrato, Reduzir as Prestações”. Para um texto desenvolvido, pode ver-se Catarina Monteiro Pires Impossibilidade da Prestação, Almedina, Coimbra, 2017 e Contratos, I, Perturbações na Execução, Almedina, Coimbra, 2019, p. 21 ss e p. 179 ss. •

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7C omeçava por cumprimentar o Senhor Professor e agradecer-lhe

pontificar esta iniciativa do Centro de Investigação do Direito Privado, que nos permite não só estar a reflectir sobre temas tão prementes e tão interessantes de Direito, como nos permite voltar a estar juntos – virtualmente juntos – depois deste confinamento forçado em que nos encontramos.

Agradeço a iniciativa, cumprimento todos os meus colegas e começo por dizer que da multidão de questões que aqui foram colocadas durante esta nossa conversa, todas elas, irão num determinado dia, ser testadas num tribunal e numa decisão jurisdicional.

Por isso, se de facto o nosso sistema jurídico está sob stress ou sob tensão – e se estamos a testar as fronteiras do próprio sistema e as capacidades aplicativas de institutos que muitos de nós ensinámos várias vezes aos nossos alunos, mas que nunca os tivemos que aplicar concretamente –, esse teste último passa necessariamente por um acto de jurisdição.

Togada ou não togada, judicial ou arbitral, será num ato de jurisdição que iremos perceber e, talvez, recriar o próprio sistema nas suas virtualidades aplicativas.

O Senhor Professor Menezes Cordeiro perguntava há pouco "como é

que vamos fazer com tribunais fechados, ou com a justiça paralisada?". A situação é, de facto, preocupante. No momento em que vivemos, o principal contributo do sistema jurídico não é só a solução material dos problemas que se colocam, é também a solução célere, flexível, expedita, que não a estamos a ter ou que não vemos grande possibilidade de a vir a ter neste contexto.

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ARBITRAGEM

PROF. DOUTOR DIOGO COSTA GONÇALVES

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É tempo, portanto, de reconsiderar as virtuosidades da arbitragem e olhar para ela, justamente, como um modo de resolução de litígios que – sob stress dos institutos materiais e sob tensão dos meios judiciais –, nos pode ajudar bastante a superar as dificuldades coevas.

Para ponderar a crise e o seu impacto numa arbitragem doméstica ou internacional, é útil começar por sublinhar duas notas sempre presentes em qualquer questão arbitral: a arbitragem é funcionalmente um exercício de jurisdição, titulada por um negócio jurídico. Esta precisão é importante porque a solução de muitos dos problemas que se nos colocam na arbitragem depende da natureza funcional de jurisdição, o que nos leva a procurar a solução na natureza da função que está a ser exercida; mas outros problemas e outras soluções dependem do título causal do exercício da jurisdição e, por isso, da dogmática do negócio jurídico constitutivo ou atributivo de poder jurisdicional aos árbitros.

Com esta perspectiva, vejamos qual foi a intervenção do legislador na administração da justiça, motivada pela crise que atualmente vivemos.

Até ao momento, são pelo menos 70 os diplomas normativos Covid. E digo pelo menos porque ainda não vi o Diário da República e é possível que, enquanto estou a falar convosco, tenha sido publicada mais alguma legislação desta natureza... Estas nossas comunicações são feitas, na verdade, sob reserva do legislador não nos ter desmentido enquanto estávamos a conversar aqui animadamente.

A primeira intervenção do legislador relativa à administração da justiça corresponde à Lei n.º 1-A/2020, de 19-mar., já alterada esta semana pela Lei n.º 4-A/2020, de 06-abr. Aí se decidiu a suspensão dos prazos processuais. O legislador foi muito claro: suspendem-se os prazos para a prática de quaisquer actos processuais ou procedimentais nos processos que corram termos em tribunais judiciais ou arbitrais.

Como estão recordados, a primeira versão deste diploma recorria à figura das férias judiciais, o que quanto à arbitragem era especialmente infeliz, porquanto estar em causa uma figura absolutamente estranha ao instituto arbitral, cuja aplicação colocava uma série de problemas. O legislador emendou a mão, afastando a figura das férias judiciais

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como paradigma da suspensão do processo, mantendo, ainda assim, a suspensão generalizada. Contudo, abriu numa janela aquilo que fechou na porta: número 5, alíneas a) e b), do art. 7.º permite a prática de atos urgentes ou não urgentes, presenciais ou não presenciais, desde que seja possível garantir meios telemáticos para a sua prática. Esclarece-se ainda que a suspensão não afasta a possibilidade de conhecer o mérito.

O que é que está realmente suspenso? Eu creio que ninguém percebeu ainda muito bem...

Centremo-nos na aplicação desta suspensão – que podemos chamar «suspensão Covid» – às arbitragens. Há um primeiro problema que imediatamente se nos coloca: que elemento de conexão tem que ter uma

arbitragem com a lei portuguesa, para que se lhe aplique o regime da

suspensão Covid? É a lei aplicável ao processo? É a lei da nacionalidade das partes? É a lei que conhece o mérito da causa? É a lei do país onde a decisão arbitral vai ser executada?

Para responder a esta questão tão pouco é irrelevante saber se a suspensão Covid é uma mera tutela adjectiva, e por isso de organização de processo arbitral, ou se estamos perante algo mais – a tutela substantiva de algum interesse juridicamente atendível, ainda que na pendência de um processo.

Todavia, porque em causa está uma primeira reflexão sobre variadíssimos problemas que se irão colocar nas arbitragens, eu sugeria centrar a minha atenção noutros aspetos.

Vamos admitir que temos todos os elementos de conexão com a lei portuguesa: estamos perante uma arbitragem doméstica, a correr termos em Portugal, ad hoc, com remissões para regulamentos de centros de arbitragem portugueses, o lugar da execução será em Portugal e lei aplicável ao mérito da causa é a portuguesa.

A primeira pergunta que se coloca é saber qual a relação entre o regime da suspensão Covid e a autonomia privada.

A nossa lei da arbitragem é muito clara quanto às regras do procedimento arbitral. Cabe às partes – sempre no respeito daqueles

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princípios cogentes cuja violação determinam a própria invalidade da decisão – a definição do processo e aos árbitros a sua condução (e a sua definição se as partes sobre isso não chegarem a acordo). É o que resulta do artigo 30.º/2 e 3 da LAV. Neste contexto, em que medida a suspensão COVID pode ser afastada ou modificada pelas partes (e pelo próprio Tribunal)? Qual a natureza da disponibilidade desta suspensão?

Creio que há três teses possíveis. Já as vi discutidas as três ainda antes de 6 de abril. A primeira tese é a da indisponibilidade absoluta. Estamos perante uma legislação de emergência: o legislador quis suspender todos os prazos para a prática de actos processuais ou procedimentais, independentemente da natureza do tribunal. Por isso, qualquer acto de jurisdição – seja ele de um juiz togado, seja ele de um árbitro – está sujeito à mesma suspensão. O legislador afastou qualquer ponderação da autonomia privada. Neste cenário, não se colocaria nenhum problema de disponibilidade ou não disponibilidade da suspensão Covid: ela seria de aplicação automática, ope legis, tal qual num tribunal judicial.

Em minha opinião, esta tese da indisponibilidade absoluta é de rejeitar. Fundamentalmente por três razões. Já chamei a atenção para uma delas: a definição e condução do processo arbitral estão marcadas pela disponibilidade: as partes e o tribunal definem livremente as regras de condução do processo arbitral.

Depois, porque a tutela que o legislador quer conferir, é uma tutela que, à partida, pode ser dispensada pelas partes tuteladas. Nada justifica impor uma suspensão contra aqueles que – beneficiados pela suspensão – , dela desejam prescindir.

Por fim, porque a nova redacção dada ao artigo 7.º/5 a) e b) pela Lei n.º 4-A/2020, de 06-abr., aponta claramente no sentido da dispo-nibilidade da suspensão.

Não sendo absolutamente indisponível, pergunta-se: a suspensão, para ser aplicada, requer o acordo das partes, ou a suspensão aplica-se num processo arbitral independentemente de as partes o desejarem.

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No fundo, trata-se de saber se estamos perante uma disponibilidade

negativa – em que a vontade das partes releva para afastar o regime, mas não para a sua aplicação –, ou perante uma disponibilidade positiva – em que é necessária a vontade das partes para que o regime seja aplicado.

Como decidir?

Se o tribunal arbitral se constitui agora – após a entrada em vigor da suspensão Covid – nada impede que as partes possam afastar a aplicação da suspensão e – o que é mais útil – regular como bem lhes aprouver a tramitação do processo na contingência da pandemia: que atos são praticados, como e quando e que salvaguardas serão dadas às partes. Por isso, nas arbitragens que se constituem agora, o problema em rigor não se coloca.

E nas arbitragens que já se encontram constituídas? Bem, nas arbitragens que já se encontram constituídas e tenha havido acordo, das partes e do tribunal, quanto à prática dos actos, também o problema não se coloca: é claríssimo que a suspensão Covid não proíbe a prática dos actos nem a decisão de mérito da causa.

O problema coloca-se, outrossim, naqueles tribunais já constituídos em que a uma das partes interessa a tramitação do processo e à outra a suspensão. Ou em que o grau de litigiosidade é tão intenso não há acordo possível quanto a esta matéria. Aqui sim, o Tribunal é chamado a decidir. É nesta hipótese que se coloca a questão de saber, afinal, qual a disponibilidade da suspensão Covid para as partes e para o próprio tribunal.

Eu creio que, para responder, devemos ponderar um ponto prévio, na verdade transversal a várias intervenções dos meus ilustríssimos colegas, relacionado com a interpretação da legislação Covid e com a relação entre as soluções aí preconizadas e as que resultam do sistema. O sistema – dizia há pouco a Professora Catarina Monteiro Pires – , terá todas as soluções possíveis para os problemas que aqui estamos a viver. A Professora Maria de Lurdes Pereira chamava a atenção para o facto de algumas destas soluções, possivelmente, carecem mesmo de

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intervenção legislativa. A legislação Covid resulta, em bom rigor, de uma intervenção do legislador sob pressão, sem tempo, sem densidade técnica, num contexto factual de uma mutação incrivelmente rápida. Isto coloca desafios à interpretação.

Neste contexto, creio que existem duas orientações hermenêuticas que devem ser sublinhadas. A primeira delas consiste na necessidade de uma interpretação conforme ao sistema. O legislador, por princípio, não estará a consagrar, na legislação Covid, soluções substancialmente diversas ou conflituantes com o sistema interno. Pode, por exemplo, estar a intervir para repor o equilíbrio duma relação jurídica (ou de um conjunto-padrão de relações jurídicas), mas tendencialmente o reequilíbrio proposto pelo legislador será aquele a que sempre chegaríamos pelo manuseamento de outros institutos. Depois, mais do que a densidade técnica ou formal dos preceitos, interessa-nos valorizar a ratio do legislador: a dimensão teleológica dos preceitos em causa.

Parece claro que o escopo principal da suspensão Covid é fundamentalmente este: durante o período da suspensão, a nenhuma

das partes pode ser oponível a não prática de um acto, ou uma

consequência nefasta pelo decurso de um prazo processual.

A aplicação desta orientação teleológica no corpus normativo da arbitragem voluntária – e tendo em conta também o previsto no artigo 7.º/5 a) e b) da Lei n.º 1-A/2010 – conduz, em meu entender, ao seguinte resultado: a aplicação da suspensão Covid nas arbitragens já constituídas faz renascer aquele momento normativo previsto na LAV, em que as partes são chamadas a definir o processo arbitral. Não havendo acordo quanto ao modo de condução do processo em face da presente situação pandémica, cabe ao Tribunal já constituído decidi-lo.

Creio, portanto, que a aplicação do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2010 deve ser conjugada com o previsto no artigo 30.º da LAV. As partes devem ser chamadas a pronunciar-se sobre o seu entendimento quanto à conveniência da aplicação da suspensão Covid e quanto ao momento, modo e natureza dos atos que devem ser praticados na pendência da pandemia.

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Não havendo acordo entre as partes, e depois de ouvidas as suas razões, cabe ao Tribunal definir o modo de condução do processo.

Daqui resulta que não há lugar a uma aplicação ope legis da suspensão às arbitragens voluntárias. A aplicação da suspensão é sempre mediada por uma instância de negociação entre as partes e o próprio tribunal, acerca do regime processual a observar, no quadro normativo previsto nos n.º 2 e 3 do art. 30 da LAV.

Era esta reflexão que vos gostaria de propor, numa primeira abordagem destes temas. Muito obrigado.

António Menezes Cordeiro:

Muito obrigado dr. Diogo da Costa Gonçalves, realmente uma primeira reflexão, mas uma reflexão já com muita, muita substância. Nós temos uma tempestade no oceano, e no meio do oceano até a jangada simpática, que é das arbitragens, foi atingida. •

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