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Psicologia.pt ISSN 1646-6977 Documento publicado em 18.06.2017 Edvaldo Soares, Érica Gonçalves dos Reis 1 facebook.com/psicologia.pt APROXIMAÇÕES ENTRE A ABORDAGEM HOLÍSTICA DE GOLDSTEIN E OS FUNDAMENTOS DA ATUAÇÃO DO TERAPEUTA OCUPACIONAL NO PROCESSO DE REABILITAÇÃO EM ACIDENTE VASCULAR ENCEFÁLICO 2017 Edvaldo Soares Doutor em Neurociências pela Universidade de São Paulo. Professor de Neurociências na Universidade Estadual Paulista UNESP e Coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva LaNeC Departamento de Psicologia da Educação Faculdade de Filosofia e Ciências FFC UNESP Marília, São Paulo, Brasil. [email protected] Érica Gonçalves dos Reis Terapeuta Ocupacional Faculdade de Filosofia e Ciências FFC UNESP Marília, São Paulo, Brasil. [email protected] RESUMO Este estudo consiste numa comparação entre a abordagem de Kurt Goldstein e os princípios básicos da concepção e da atuação do profissional de terapia ocupacional, em relação aos episódios de acidente vascular encefálico - AVE. Objetivos: a) apresentar e discutir os elementos comuns entre a abordagem holística de Kurt Goldstein em relação aos fundamentos da atuação do terapeuta ocupacional em relação ao AVE; b) resgatar o pensamento holístico como fundamento para o processo de reabilitação. Métodos e Procedimentos: a partir da literatura pertinente verificar aproximações da abordagem de Goldstein em relação aos fundamentos teóricos e metodológicos que norteiam a atuação do terapeuta ocupacional em pacientes acometidos pelo acidente vascular encefálico (AVE). Palavras-chave: Terapia ocupacional, acidente vascular encefálico, holismo, reabilitação. Copyright © 2017. This work is licensed under the Creative Commons Attribution International License 4.0. https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/ INTRODUÇÃO

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ISSN 1646-6977 Documento publicado em 18.06.2017

Edvaldo Soares, Érica Gonçalves dos Reis 1 facebook.com/psicologia.pt

APROXIMAÇÕES ENTRE A ABORDAGEM HOLÍSTICA

DE GOLDSTEIN E OS FUNDAMENTOS DA ATUAÇÃO

DO TERAPEUTA OCUPACIONAL NO PROCESSO

DE REABILITAÇÃO EM ACIDENTE VASCULAR ENCEFÁLICO

2017

Edvaldo Soares

Doutor em Neurociências pela Universidade de São Paulo. Professor de Neurociências na Universidade

Estadual Paulista – UNESP e Coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva – LaNeC –

Departamento de Psicologia da Educação – Faculdade de Filosofia e Ciências – FFC – UNESP – Marília,

São Paulo, Brasil.

[email protected]

Érica Gonçalves dos Reis

Terapeuta Ocupacional – Faculdade de Filosofia e Ciências – FFC – UNESP – Marília, São Paulo, Brasil.

[email protected]

RESUMO

Este estudo consiste numa comparação entre a abordagem de Kurt Goldstein e os princípios

básicos da concepção e da atuação do profissional de terapia ocupacional, em relação aos episódios

de acidente vascular encefálico - AVE. Objetivos: a) apresentar e discutir os elementos comuns

entre a abordagem holística de Kurt Goldstein em relação aos fundamentos da atuação do terapeuta

ocupacional em relação ao AVE; b) resgatar o pensamento holístico como fundamento para o

processo de reabilitação. Métodos e Procedimentos: a partir da literatura pertinente verificar

aproximações da abordagem de Goldstein em relação aos fundamentos teóricos e metodológicos

que norteiam a atuação do terapeuta ocupacional em pacientes acometidos pelo acidente vascular

encefálico (AVE).

Palavras-chave: Terapia ocupacional, acidente vascular encefálico, holismo, reabilitação.

Copyright © 2017.

This work is licensed under the Creative Commons Attribution International License 4.0.

https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/

INTRODUÇÃO

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A Teoria Organísmica de Kurt Goldstein (1878-1965) fundamenta-se em uma abordagem

holística, segundo a qual, a verdadeira compreensão da condição individual só é alcançável se

considerarmos o indivíduo como parte da totalidade da natureza e em particular da sociedade

humana a qual pertence. (SOARES, 2004a; 2004b). A Terapia Ocupacional tem o olhar voltado

para a ação, para o fazer humano e para o cotidiano do indivíduo. É uma área que busca desenvolver

atividades terapêuticas em conformidade com a realidade vivida pelas pessoas, possibilitando

assim, proporcionar maior grau de autonomia e independência aos indivíduos acometidos por

patologias diversas. Este estudo procura resgatar a abordagem Kurt Goldstein, um médico e

fisiologista alemão que atuou principalmente na década de 1930 e, que apesar de ter exercido

grande influência entre filósofos e fisiólogos, ainda é pouco estudado no Brasil. Tal resgate será

realizado a partir da apresentação e da discussão dos elementos comuns entre a abordagem holística

de Kurt Goldstein em relação aos fundamentos da atuação do terapeuta ocupacional no processo

de reabilitação de indivíduos acometidos por acidente vascular encefálico - AVE.

A Terapia Ocupacional e o Acidente Vascular Encefálico

A doença cerebrovascular é considerada uma das síndromes mais comuns nos países

industrializados. A Organização Mundial de Saúde estima que o Acidente Vascular Encefálico

(AVE) ocupa o terceiro lugar das estatísticas de mortalidade e o segundo entre as doenças

cerebrovasculares (THOM; EPSTEIN, 1994). No Brasil estima-se que as doenças

cerebrovasculares estejam entre as principais causas de óbito nos grandes centros urbanos

(BHERING, 2002; SOCIEDADE BRASILEIRA DE DOENÇAS CEREBROVASCULARES,

2001; LIRA; DRUMOND, 2000). AVE é comumente conhecido como derrame ou “choque”

devido ao seu início súbito. É definido por uma síndrome clínica neurológica complexa causada

por lesão cerebral, resultante da interrupção da irrigação sanguínea encefálica, causando lesão

celular e danos nas funções neurológicas. Os AVE’s podem ser classificados, de forma geral,

conforme o tipo patológico, em isquêmico ou hemorrágico (O’SULLIVAN, 2004; OMS, 1995;

DUUS, 1989). A isquemia encefálica ou AVE isquêmico (AVEi) pode ser subdividido em quatro

grupos: a) embólico (um êmbolo se desprende de um vaso, ocluindo uma artéria cerebral e

impedindo o fluxo sanguíneo); b) trombótico (acontece devido a formações de placas

ateroscleróticas nas ramificações e curvas das artérias cerebrais); c) lacunar (obstruções do fluxo

sanguíneo em artérias cerebrais profundas de pequeno calibre) e d) transitório (refere-se à

interrupção temporária por menos de 24 horas do suprimento sanguíneo ao cérebro, geralmente

não persiste por tempo suficiente para desenvolver um infarto cerebral que provoque uma

incapacidade funcional significativa). Geralmente o AVE hemorrágico (AVEh) apresenta-se com

deficiências mais intensas dentro de horas após a sua ocorrência, seguindo uma melhora à medida

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que o edema regride e o sangue extravascular é reabsorvido (EKMAN, 2000; ANDRÉ, 1999).

Entre os sinais e sintomas típicos dos AVE’s, podemos citar, entre outros, a cefaleia, o vômito, a

confusão mental, a alteração na marcha, as quedas, a convulsão, a perda da visão, a afasia sensitiva

e motora, a vertigem, a elevação da pressão arterial, a cianose, a alteração de memória. É

importante destacar que os sinais e sintomas do AVE dependem da localização e do tamanho da

lesão. (LUNDY-EKMAN, 2004). Os fatores que podem provocar os AVE’s podem ser

classificados em dois grandes grupos: modificáveis e os não modificáveis. Entre os fatores de risco

modificáveis podemos apontar: 1) hipertensão arterial, considerado um fator isolado, relacionado

diretamente aos casos de AVEi; 2) doenças cardíacas, especialmente a fibrilação atrial, a estenose

mitral e anormalidades estruturais (forame oval permeável e aneurisma atrial septal); 3) diabetes;

4) tabagismo; 5) uso excessivo de álcool; 6) drogas ilegais, especialmente cocaína; 7) estilo de

vida, como obesidade, inatividade física, dieta e estresse emocional. Entre os fatores de risco não

modificáveis podemos citar: 1) idade (maior que 64 anos apresentam maior probabilidade); 2)

gênero (nos indivíduos do sexo masculino o risco é sensivelmente maior); 3) raça (nos indivíduos

negros o risco é maior); 4) fatores genéticos. (REIS; SOARES, 2010).

O AVE é um episódio inesperado, portanto estressante, que representa ameaça ao senso de

controle pessoal e afeta a avaliação subjetiva que o indivíduo faz de sua própria vida. Nesse sentido,

Rabelo (2006) observa que, no momento em que as seqüelas resultantes do AVE geram limitações

no desempenho funcional e, portanto, prejuízos na autonomia e independência do indivíduo

acometido, se estabelece uma relação entre as incapacidades e o bem-estar. O indivíduo que

sobrevive ao AVE enfrenta geralmente, incapacidades residuais tais como dores em diversas partes

do corpo, problemas com a memória, dificuldades na comunicação e deambulação, além de

problemas de ordem física, como falta de mobilidade nas articulações e rigidez nas partes do corpo

afetadas. Os déficits físicos, sensoriais e cognitivos, decorrentes do AVE, normalmente alteram o

desempenho do indivíduo, comprometendo, em maior ou menor grau, a realização das atividades

de vida diária (AVD), gerando, conforme o comprometimento, diferentes graus de dependência.

Tal dependência pode, conforme o grau, se traduzir em perda da autonomia, o que significa perda

da identidade e da cidadania. A situação de dependência se torna mais dramática quando se trata

de população idosa. Não raras vezes o idoso dependente, em função de AVE passa a ser visto como

um entrave à autonomia familiar, o que torna precária a relação entre ele e os seus familiares.

Muitas vezes a solução encontrada, tanto pela família como pelo próprio idoso, é a

institucionalização nas chamadas instituições residenciais de longa permanência para idosos

(IRLPi’s). (SOARES et al., 2010; PERLINI; LEITE; FURINI, 2007).

As condutas tomadas diante de um AVE em fase aguda são fundamentais e podem reduzir a

letalidade dessa afecção. Após o episódio, o tratamento de reabilitação deve ser iniciado

precocemente, objetivando: melhora de desempenho em relação às atividades da vida diária;

melhora em relação à força muscular; redução da espasticidade; melhora em relação ao equilíbrio;

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melhora da deambulação e reativação o lado afetado (BRUST, 1997), de forma a amenizar as

incapacidades, garantindo a autonomia parcial ou total do indivíduo. Após a fase crítica, o

tratamento compreende, além da medicação, a terapia, entendida como trabalho multidisciplinar,

envolvendo profissionais das áreas de terapia ocupacional, fisioterapia e a psicoterapia, os quais,

considerando o campo de atuação, se mostram fundamentais no processo de recuperação do

indivíduo acometido por AVE. O problema é que, em função de fatores econômicos e de

infraestrutura do sistema de saúde, raras vezes o trabalho multidisciplinar é realizado.

Os procedimentos terapêuticos objetivando a recuperação após lesão são influenciados por

modelos teóricos relativos ao funcionamento do sistema nervoso (SN). O modelo clássico, de

caráter isolacionista e fundamentado na idéia de ‘centros’, concebe o SN como uma estrutura

imutável que funciona mecanicamente, a partir de leis inflexíveis. De acordo com este modelo, as

funções cerebrais estão localizadas em áreas circunscritas do SN. Dessa forma, a lesão em

determinada área teria sua gravidade relacionada não só à sua localização, mas à extensão,

considerando que outras áreas não seriam capazes de assumir a função relacionada à área lesionada,

limitando quase que totalmente o processo de recuperação. (SOARES, 2003; 2004b; COHEN,

1998). Outro modelo, o qual podemos denominar de ‘sistêmico’, considera que o SN funciona em

conjunto com os outros sistemas do organismo. Tal modelo, ao contrário da posição isolacionista,

considera que o organismo se relaciona de forma dinâmica com o ambiente. Contrário à hipótese

localizacionista estrita, este modelo considera, em função das propriedades plásticas do SN, que o

efeito das lesões são menos catastróficas, como no modelo clássico, o que, teoricamente

proporciona uma maior probabilidade de recuperação do indivíduo. Assim, considerando o modelo

sistêmico, as intervenções terapêuticas devem ser concebidas em um contexto maior, ou seja, um

contexto que transcenda as concepções mecanicistas e dualistas e que se fundamente em uma visão

integral de homem. (SOARES; BUENO, 2005a; 2005b). Além da influência dos modelos teóricos

relativos ao funcionamento do SN, também exerce influência a concepção acerca da ‘recuperação

de função’. Podemos destacar entre outras, duas concepções correntes. A primeira, mais estrita,

concebe que o indivíduo, após lesão, se recuperou quando, as funções prejudicadas com a lesão,

estão em termos objetivos, sendo executadas de forma igual ou similar ao que eram antes da lesão.

A segunda, mais ampla, acredita que ocorre recuperação quando o indivíduo pode reassumir uma

vida ‘normal’, relativamente independente, mesmo havendo comprometimentos menores.

(ALMLI; FINGER, 1988; FINGER; STEIN, 1982).

Terapia Ocupacional

A Terapia Ocupacional é uma área de atuação profissional regulamentada que envolve os

seguintes pressupostos: compreender a atividade humana como processo criativo, criador, lúdico,

expressivo, evolutivo, produtivo e de automanutenção. É uma área que tem o olhar voltado para a

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ação, para o fazer humano e para o cotidiano do indivíduo, ou seja, é uma área que compreende o

ser humano como um ente práxico. Assim, a prática terapêutica desenvolvida pelos profissionais

desta área procura interferir no cotidiano de indivíduos que apresentam comprometimento em suas

funções práxicas. Tal intervenção, feita a partir da ‘realidade vivida’ pelos indivíduos

comprometidos funcionalmente, busca possibilitar maior grau de autonomia e independência e

conseqüentemente uma melhor qualidade de vida a esses indivíduos (ALMEIDA; TREVISAN,

2011). Em síntese, a Terapia Ocupacional procura, através de suas práticas e procedimento, auxiliar

o indivíduo a recuperar, desenvolver e constituir habilidades que são fundamentais para a

independência funcional, para a saúde, para a segurança e para a integração social, ou seja, de

forma geral, para a cidadania. Nesse sentido, a orientação à família é fundamental, pois se esta não

entender a nova realidade do indivíduo enfermo, suas necessidades e potencialidades, a atividade

terapêutica não será completamente eficaz.

No caso de indivíduos acometidos por AVE, a Terapia Ocupacional, considerando a

reabilitação em seu sentido mais amplo, desenvolve, a partir do cotidiano do indivíduo, ações

práticas e mudanças adaptativas que tem como alvo a promoção da autonomia funcional.

Metodologicamente lança mão de atividades artísticas, expressivas ou de lazer, as quais

consideradas como meio de formação de vínculo, aproximação e intermediação, para que se possa

iniciar a construção conjunta de novos projetos de vida (MALFITANO, 2005). Tais atividades têm

por finalidade auxiliar o indivíduo, submetido ao processo de reabilitação, a reassumir suas funções

no sentido amplo do termo. Para tanto, emprega métodos que auxiliam o indivíduo a aprender

novas habilidades, agora necessárias em função dos déficits decorrentes da lesão e/ou reaprender

habilidades existentes antes do AVE. O uso dos ambientes da vida real do indivíduo em processo

de reabilitação é fundamental pois favorece a generalização das habilidades aprendidas, a melhoria

funcional e conseqüentemente o processo de adaptação (RADOMSKI; FLINN, 2005). Assim, em

Terapia Ocupacional, preconiza-se combinação de atendimento ambulatorial e domiciliar,

considerando que tal combinação favorece a aprendizagem do indivíduo em processo de

reabilitação em relação às suas dificuldades nas AVD’s (Atividades de Vida Diária).

Anteriormente da aplicação de atividades objetivando o processo de adaptação do indivíduo

acometido por AVE, se faz necessária a realização de anamnese, a qual deve levantar a existência

de fatores que podem direta ou indiretamente interferir no processo de reabilitação ou retardar a

progressão. Entre tais fatores podemos citar a incidência de doenças preexistentes, motivação do

indivíduo e o suporte social existente. (CANIGLIA, 2005; YOUNGSTROM, 2002). O processo

anterior ao início da aplicação das atividades deve compreender também uma avaliação inicial, a

qual deve enfatizar a forma de execução das atividades valorizadas pelo indivíduo a ser submetido

ao processo de reabilitação, identificando fatores que ocasionalmente estejam interferindo no

desempenho funcional. Entre tais fatores destacamos, além de atividades relacionadas às atividades

da vida diária – AVD’s, o processamento sensorial-perceptivo e as habilidades cognitivas, tais

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como linguagem, memória e atenção, bem como a condição emocional do sujeito. Neste processo,

os testes clínicos e escalas são instrumentos essenciais tanto para a avaliação inicial,

acompanhamento e avaliação dos resultados do processo terapêutico.

A escolha da técnica a ser utilizada e sua indicação devem observar as necessidades,

interesses e vocações do indivíduo e as exigências do modelo teórico ou da abordagem. As

atividades devem ser previamente selecionadas, analisadas e adaptadas de forma individualizada

para cada sujeito, visando um objetivo terapêutico definido. A Análise de Atividades compreende

a divisão da atividade em fases definidas, operacionalizadas e de forma seqüencial. Devem ser

observados os componentes estáveis e situacionais, avaliando ainda o tipo de desempenho

necessário para realizar a atividade prescrita dentro dos enfoques cognitivo, motor, afetivo e

perceptivo, O grau de complexidade da atividade terapêutica envolve a definição do instrumental,

dos materiais permanente e de consumo utilizados, bem como o ambiente, aspectos de segurança

e fatores de risco. (CAVALCANTI, 2007).

A Abordagem de Kurt Goldstein

Kurt Goldstein (1878 - 1965) foi um neurologista e psiquiatra alemão, considerado um dos

pioneiros da Neuropsicologia moderna. Goldstein estudou Filosofia na Universidade de

Heidelberg e depois Medicina em Breslau, onde atuou como assistente de laboratório de Ludwig

Edinger e estudou com Carl Wernicke. Goldstein defendeu em suas obras uma teoria holística do

organismo, com base na teoria da Gestalt. (FINGER, 1994). Em 1934 publicou a obra Der Aufbau

des Organismus, traduzida mais tarde como The Organism: A holistic approach to biology derived

from pathological , considerada sua obra mais importante e na qual Goldstein, criticando as

hipóteses mecanicistas e isolacionistas ou atomistas em Fisiologia, concebeu o homem como um

todo orgânico inserido em um contexto. Assim, de acordo com tal concepção, se deve levar em

consideração as necessidades biológicas de desenvolvimento e crescimento. (SOARES; BUENO,

2005a; 2005b), o que não acontecia na Fisiologia clássica, então vigente. Nesse sentido, Goldstein

(1961; 1995) observou que junto com a grande especialização da ciência, se produzia uma notável

desintegração da vida do indivíduo. Tais limitações do modelo fisiológico vigente seriam

superadas mediante o ponto de vista holístico; o único, em sua opinião, segundo o qual a vida

humana seria compreensível. Conforme Goldstein (1961; 1995) uma verdadeira compreensão da

condição individual só seria alcançável se o indivíduo fosse considerado como parte da totalidade

da natureza e em particular da sociedade humana a qual pertence. Nesse sentido, observou que

seriam muitas as manifestações patológicas que unicamente resultam compreensíveis à luz da sua

origem social e somente podem ser eliminadas tomando em conta essa origem. Tal conceito conduz

o estudo das relações mútuas entre o indivíduo e a sociedade as diferenças entre povos e nações e

variação dos próprios indivíduos, ou seja, entre o indivíduo e o seu meio. (GOLDSTEIN, 1936;

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1952; 1995). Ainda contrariando a hipótese isolacionista, Goldstein (1961; 1995) defendeu que, se

o organismo fosse uma soma de partes isoladas, as quais fosse possível estudar separadamente, não

deveriam ocorrer dificuldades em combinar o conhecimento sobre essas partes para compreender

o organismo todo e, assim, constituir uma ciência em sua totalidade. Entretanto, segundo ele, todas

as tentativas feitas para compreender o organismo como um todo, a partir das suas partes isoladas,

tiveram pouco sucesso. Isso se dava, segundo ele, justamente pelo fato do organismo não ser uma

simples soma de partes isoladamente constituídas. Dessa forma, se organismo é um todo e cada

uma de suas partes funciona normalmente dentro desse todo, então, em uma abordagem analítica,

que isola as partes à medida que se estuda, as propriedades e funções de qualquer dessas partes

devem ser alteradas por um isolamento de todo o organismo. Portanto, a análise isolada dessas

partes não pode revelar o funcionamento dessas na vida normal. Assim, conforme Goldstein, para

o entendimento do funcionamento do organismo se faz necessário o abandono da concepção de

que o organismo está dividido em ‘órgãos isoladamente dispostos’. Também, segundo ele, a visão

dualista, ou seja, de que existe uma divisão mente e corpo deve ser abandonada. Para ele seria

necessária a adoção de uma premissa coerente com a definição do organismo como um todo que

reage ao ambiente, de tal forma que, nada seja independente no organismo. (GOLDSTEIN, 1995;

SOARES, 2003). De acordo com esta concepção, uma lesão no SN, mesmo que estritamente

localizada, envolve o ‘todo’ do indivíduo, considerando todas as suas dimensões (física, psíquica,

social, etc.), às quais estão relacionadas às habilidades tais como percepção e reconhecimento de

objetos, uso de símbolos, memória, emoção e imaginação, assim a capacidade adaptação geral às

limitações causadas pela lesão, incluindo reações ao sucesso e fracasso. Um indivíduo lesionado

pode apresentar em um grau extremo, a imagem de solidez de comportamento que Goldstein

considera característica de deterioração orgânica. (HANFMANN; RICKERS-OVSIANKINA;

GOLDSTEIN, 1944). Consequentemente tal concepção nos leva a afirmar que, um trabalho

terapêutico que desconsidere o organismo holisticamente não seria adequado. Mas, será que uma

terapia que trabalha segundo a concepção isolacionista ou atomista tem consequências negativas

para o organismo?

Segundo a concepção de Goldstein (1961), sim. Para ele são inumeráveis os fatos que provam

como se altera o funcionamento do ‘setor’ ou parte do organismo como resultado de seu

isolamento. Por exemplo, os estímulos terapêuticos, utilizando-se de uma abordagem atomista

produzem, segundo ele, reações que são ligadas aos estímulos de uma forma anormal, os quais

geram respostas forçadas, as quais não fazem parte do repertório comportamental natural do

organismo (GOLDSTEIN, 1936; 1952; 1961). A reação, naturalmente considerada, não é apenas

determinada pelo estímulo, mas também pelo efeito das reações anteriores aos que são provocados

ao mesmo tempo pelo estímulo. Esses pós-efeitos correspondem aos processos que ocorrem não

só na parte estimulada do organismo, mas também no resto do mesmo. Se a parte estimulada é

mais ou menos isolada do resto do organismo, os processos de estimulação não podem ser

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utilizados para induzir uma reação em sua forma natural. Pelo contrário, isoladamente, os estímulos

externos adquirem um predomínio anormal e obrigam o organismo a reagir de uma forma mais

acentuada que o normal. (GOLDSTEIN, 1961). Ainda segundo ele, tal resposta anormal a um

estímulo presente se manifesta também quando a estimulação tem sua origem não exteriormente,

senão em uma excitação de uma parte qualquer do organismo, se esta parte é isolada do todo. Esse

efeito do isolamento ocorre particularmente nos indivíduos lesionados, os quais estão muito mais

sujeitos às influências dos estímulos externos e, são menos capazes do que os indivíduos saudáveis,

em se esquivar de estímulos aversivos. Tais fenômenos são característicos de condições

patológicas. Entretanto, podem também se apresentar na vida normal, se o estímulo cobra uma

intensidade anormal ou adquire uma duração anormal que perturbam o processo normal de

igualdade e de excitação.

Goldstein (1961) observa que toda lesão do sistema nervoso, como por exemplo às causadas

pelos AVE’s, no comprometimento das estruturas das reações normais do substrato do processo

de recuperação do equilíbrio. O resultado é que o organismo enfermo não é se que capaz de

responder adequadamente aos estímulos normais, tornando-se insuficientes. A reação catastrófica,

por consequência, tem um lugar mesmo durante as tarefas normais, e as situações catastróficas se

apresentam com facilidade. Elas também põem em perigo a existência do indivíduo anormal em

maior grau do que o indivíduo normal, porque encontramos suas ações como limitadas pela

enfermidade, sendo provável que seja incapaz de realizar as capacidades essenciais. Se tomarmos

tais premissas em sentido terapêutico, podemos considerar que o principal objetivo da terapia não

é simplesmente forçar a adaptação do organismo ao meio, mas adaptar o ‘meio do organismo

enfermo’, diferente do ‘meio anterior’ ao advento da patologia e, assim, o viver em um meio que

permita uma conduta ordenada, em especial que permita uma recuperação normal do equilíbrio

que é requisito indispensável para a vida do organismo. Tal conduta teria por finalidade de evitar

que o organismo apresente uma conduta catastrófica. Por diversas razões, esta situação se apresenta

com maior frequência em pessoas acometidas por lesão do que em pessoas não lesionadas.

Goldstein (1961) salienta que o fenômeno da ansiedade é parte de uma conduta catastrófica,

isto é, a ansiedade corresponde há um aspecto subjetivo, e uma condição em que a existência do

organismo se encontra em perigo. A ansiedade é a experiência subjetiva desse perigo para a

existência. O organismo abalado por um choque catastrófico está relacionado com uma realidade

objetiva definida e, o fenômeno básico da ansiedade, a apresentação da conduta desordenada, só é

compreensível em função dessa relação. Assim, a ansiedade deve ser compreendida como

resultado do funcionamento desordenado de seu organismo em relação a uma realidade

objetivamente colocada e não de uma reação a um objeto ou estímulo isolado. É, portanto, inegável

que as situações catastróficas são especialmente perigosas para o indivíduo enfermo. Evitar tais

situações só é possível se o indivíduo chegar a um ‘entendimento do mundo’, não obstante de suas

próprias deficiências; se ele decidir, se encontra em um novo meio que se adéqua a sua condição

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deficiente, ou um meio no qual não possa originar estímulos que os levem a uma situação

catastrófica. O autor salienta ainda que o organismo trata, em geral, de se proteger de outro modo;

isto é, evita as situações especialmente perigosas e busca outras que permitem o mínimo de

estímulos irritantes. O que atua como irritante é o simples fato de que o estímulo provém de uma

situação que não pertence ao ambiente imediato do paciente; exigindo assim, uma adaptação

especial que ele não é capaz de realizar. Nesse sentido, uma atuação terapêutica que não leve em

consideração o contexto do organismo está fadada ao fracasso e, tal contexto é modificado pós-

lesão. Ou seja, o mundo é definido a partir do sujeito que o ‘experimenta’ a partir de sua condição

existencial. Assim, o processo de reabilitação teria que partir do mundo objetivo do sujeito e não

do mundo objetivo do terapeuta. (SOARES; BUENO, 2005a; 2005b; SOARES, 2003). Ainda em

relação às respostas do organismo, Goldstein (1961) acredita que todos os atos que se podem

observar são manifestações das atividades do organismo como um todo, o qual responde

unicamente aos estímulos que são ‘adequados’; isto é, que interessam à sua natureza. Em outros

termos, a estímulos que fazem ‘sentido’. Assim, o comportamento natural do organismo só é

possível se o organismo se encontrar em um estado de conduta ordenada e, enquanto não é afetado

por estímulos inadequados ou ‘sem sentido’. É só nesse estado que o organismo é capaz de realizar

os atos que correspondem a sua natureza. (SOARES, 2003). É importante observar que cada

organismo, tem seu próprio ambiente característico. Esse meio que é um setor que o rodeia,

constitui seu mundo. A este meio Goldstein (1961) chama de meio adequado, isto é, apropriado à

natureza do organismo. O contato com tal meio não afeta o organismo no sentido de torná-lo

incapaz de realizar sua própria natureza. Os estímulos provenientes deste ambiente adequado ou

meio natural são os chamados estímulos adequados. O organismo assim não reage naturalmente

aos estímulos que são inadequados a ele. Tais estímulos só geram reações se forem muito intensos

ou agressivos ao organismo. Entretanto, tais estímulos ‘inadequados’ levam o organismo à situação

catastrófica. Isso ocorre não só pela incapacidade do organismo em reagir adequadamente a tais

estímulos. Tal situação pode levar o organismo a não ser capaz de executar atos essenciais à sua

existência. Nesse sentido podemos considerar a conduta ou reação catastrófica como uma ameaça

à existência do organismo. (GOLDSTEIN, 1995; 1961; SOARES; BUENO, 2005a; 2005b). A

estimulação, como parte do processo terapêutico, deve, conforme Goldstein (1995), conceber a

doença como uma manifestação de mudança do estado de relação entre o organismo e seu

ambiente. Nesse sentido o autor observa que um sintoma local não é suficiente para entender a

‘doença’ e que a cura ou recuperação do organismo após uma injúria não viria por ‘reparo’ mas

por adaptação. Isso porque um organismo, após sofrer uma lesão, não pode simplesmente retornar

ao estado precedente ao evento ou lesão que o modificou, mas tem que se adaptar às condições que

causaram o novo estado.

O comprometimento de qualquer parte do organismo gera mudanças de comportamento que

mostram como estes estão relacionados aos comportamentos do organismo como um todo. Assim,

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segundo ele, fica mais fácil apreciar a organização dos atos em indivíduos enfermos, e também

mais fácil compreender sua forma de adaptação às condições que se modificam. Isso ocorre,

segundo ele, porque para o corpo enfermo, encontrar uma adaptação às condições normais

produzidas pela enfermidade é uma questão de sobrevivência. (GOLDSTEIN, 1961, 1995).

Entretanto é importante ressaltar que, apesar da verificação dos fenômenos causados pós-lesão,

Goldstein (1961) adverte que, não sabemos se os fenômenos observados correspondem às

propriedades essenciais do organismo ou se são expressões puramente acidentais do organismo em

determinadas condições. Goldstein (1961) destaca ainda que, geralmente as perturbações como por

exemplo, aquelas causadas por lesões no SNC, tem sido descritas como alterações isoladas em

estritos campos de atividades, tais como percepção dos movimentos, linguagem, emoções,

memória etc. Entretanto, deve-se, segundo ele, entender que a característica dos desvios de conduta

corresponde a uma alteração do ‘mundo’ em que vive o paciente; ou seja, com o advento de um

estado patológico, por exemplo, causado por um AVE, a modificação não ocorre simplesmente no

organismo, mas no mundo que o cerca. (GOLDSTEIN, 1944; SOARES; BUENO, 2005a; 2005b).

Conforme Goldstein (1961) se pode afirmar que para o paciente há um mundo lá fora em que ele

se opõe. O enfermo estaria, segundo ele, impedindo em sua capacidade de separar de si mesmo e

do mundo que o rodeia; separação esta que requer um processo de abstração. Disso decorre que

sua incapacidade para execução dos atos que exige uma atitude abstrata, gera não só a ‘diminuição’

da sua personalidade, mas também uma diminuição do mundo em que vive. Assim, por exemplo,

uma lesão no SNC não só produz uma redução do conteúdo do ambiente do indivíduo e de suas

capacidades, mas também uma diminuição da liberdade de ação desse indivíduo. (GOLDSTEIN,

1961, 1952, 1942). Assim, em termos terapêuticos, necessitamos de um conhecimento que leve em

consideração todas as dimensões do organismo, pois em termos biológicos, a ação sempre afeta o

indivíduo no todo. Mesmo que um estímulo esteja circunscrito a uma parte do organismo, tal

estímulo pode perturbar o funcionamento do todo. Em função disso, metodologicamente, uma

abordagem atomista e mecanicista do organismo não se mostra adequada à compreensão do

organismo como um todo e à compreensão do seu comportamento natural. (SOARES; BUENO,

2005a; 2005b).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A Terapia Ocupacional segue, na atualidade, em sua intervenção uma abordagem holística,

coerentes com os princípios apontados por Kurt Goldstein. A Terapia Ocupacional é concebida

como um grande sistema que atua, a partir de uma perspectiva multidimensional. Conforme tal

concepção, a atuação do terapeuta ocupacional em processos de reabilitação envolve aspectos

físicos, psicológicos, sociais e culturais; aspectos esses concebidos como interdependentes e não

arrumados numa seqüência de passos e medidas isoladas. De acordo com tal perspectiva, o ser

humano, para a terapia ocupacional, é concebido como um ‘todo’ composto por várias dimensões

que não podem ser isoladas umas das outras. Portanto, podemos inferir que, para a Terapia

Ocupacional, uma abordagem atomista não é ideal para entender o ser humano e, muito menos

para nortear a atuação do terapeuta ocupacional. A Terapia Ocupacional se mostra, segundo essa

abordagem, centrada apenas no sujeito/paciente, entendido como um ser isolado do seu meio; ela

leva em consideração todo o contexto que envolve o indivíduo; ou seja, inclui, por exemplo, a

cultura, as condições socioeconômicas, a história de vida, além de suas relações pessoais, como

por exemplo, a família, os amigos e os cuidadores. (BARROS; GHIRARD; LOPES, 2002;

BENETTON, 2001). Portanto, o terapeuta ocupacional, conforme tal perspectiva, adota uma

abordagem que ultrapassa o ponto de vista físico do indivíduo; ou seja, concebe no processo de

avaliação e de intervenção, questões culturais, sociais, econômicas, familiares e emocionais, como

fundamentais para compreender e, assim beneficiar, mediante o processo de intervenção

terapêutica, o indivíduo de maneira global. No processo de reabilitação de sujeitos com sequelas

de AVE, o terapeuta ocupacional parte das necessidades do mesmo. Tais necessidades envolvem,

por exemplo, processamento sensorial, tônus muscular, habilidades cognitivas, perceptuais,

habilidades sensoriais, atividades básicas de vida diária, etc. Ou seja, tudo que faz parte da vida do

indivíduo, seja no âmbito fisiológico e em todo o contexto de seu dia a dia deve ser considerado.

O tratamento terapêutico ocupacional na sua atuação com o indivíduo como um todo, não

indica, no processo de reabilitação, a aplicação de estímulos/atividades terapêuticas que possam,

de alguma forma, levar o paciente a uma situação catastrófica, pois, considera que em tal situação,

o sujeito pode se recusar, em função de seu estado psicológico, a responder, ou mesmo a tentar

responder, a determinados estímulos; o que normalmente leva o paciente a um estado de ansiedade

e frustração e, não raras vezes, pode levar o mesmo a um quadro depressivo. A atuação em Terapia

Ocupacional procura também corrigir componentes de desempenho (sensório-motor, cognitivos,

psicológicos e psicossociais) e modificar o meio para melhorar o desempenho nas tarefas, evitando

assim uma situação catastrófica, diante da não realização de uma atividade. Interessante observar

que, de acordo com Goldstein (1961) quando o indivíduo está exposto a um determinado estímulo

que o deixa diante de uma situação catastrófica, como visto anteriormente, ele pode não ser capaz

de executar suas ações, nem sequer aquelas essenciais para sua existência.

A Terapia Ocupacional em sua conduta de intervenção em pacientes acometido por AVE

realiza atividades e/ou exercícios com a finalidade de reabilitar não só um componente isolado ou

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melhorar um desempenho, independente do contexto atual do indivíduo. Ou seja, a Terapia

Ocupacional está sempre preocupada com o contexto global do indivíduo, inclusive fora do setting

terapêutico, objetivando promover a independência/ autonomia do sujeito. Concebe ainda que,

para que o processo terapêutico seja eficaz e contribua para uma vida independente, é fundamental

a consciência de que a intervenção deve estar voltada para o ‘novo meio’ em que o indivíduo estará

inserido após a lesão e, não simplesmente em adaptar o esse organismo ao mesmo meio em que

ele vivia antes de sofrer o AVE. Nesse sentido, se preconiza, de maneira coerente com a visão

holística de Goldstein, que as atividades propostas pelo terapeuta ocupacional, sejam elas artísticas,

expressivas ou exercícios, devem ‘fazer sentido’, ou seja, devem ter significado não só biológico,

mas para o sujeito como um todo; para o ‘novo organismo’ desse indivíduo.

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