Aqueça Meu Coração - PerSe · A Regina e a Carina são minhas melhores amigas desde sempre....
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Aqueça Meu Coração Série Essas Coisas Acontecem I
Nanda Meireles
Nanda Meireles
Aqueça Meu Coração Série Essas Coisas Acontecem I
Perse 2013
PERSE PS Autopublicação e Prestação de Serviços Ltda.
Rua Turiassú, nº. 390,
17º andar, conjunto 176
Bairro das Perdizes
São Paulo/SP
CEP 05005-000
AQUEÇA MEU CORAÇÃO MEIRELES, Fernanda
2ª Edição
Agosto de 2013
Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia
autorização da autora.
Tremendo, com a visibilidade quase nula
e uma força que desconhecia em mim,
avancei passo a passo, subi na pia
e quase caí para trás.
Só pensava:
Por favor, Deus, me ajude.
Havia gás por todo lado,
qualquer sinal de faísca poderia
levar o lugar pelos ares e senti que
deveria dar o meu máximo
ou morreria.
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Capítulo I
“Um livro? Contando tudo o que aconteceu naquele ano?
TUDO? Não sei se essa ideia me agrada, mas pensando bem...
Acho que pode ser um bom jeito de ver toda história através dos
olhos dela.”
EU SEMPRE DESEJEI VER A NEVE.
Isso mesmo: neve. Não, eu não estou drogada, também não
tenho nenhum tipo de demência e óbvio, eu moro no Brasil.
Cara, eu sou carioca.
Muito provavelmente você já ouviu falar na minha cidade.
Linda? Com certeza.
Encantadora? Sem dúvida.
Mas quente, como o Rio é quente.
No inverno, raras vezes faz menos de 16 graus e, quando
faz, todo mundo sai colocando casaco e pegando gripe. O
outono é tranquilo, com mais dias frescos que qualquer outra
coisa, mas na primavera a cidade já parece verão.
Há dias consecutivos que o calor beira os 40 graus.
Você deve estar se perguntando: mas e a praia? As
montanhas? As mil coisas que se tem para fazer por lá? Bem,
por 17 anos eu morei na Baixada Fluminense. Isso quer dizer na
parte menos privilegiada da cidade. Para chegar à praia leva-se
no mínimo duas horas, saindo e entrando de ônibus.
Uma verdadeira viagem.
Ah, claro. Lá nós também temos cachoeiras que ficam
relativamente perto, mas as estradas não são nada boas. O que
significa 40 minutos em um ônibus precário chacoalhando pela
estrada de barro.
E tem o fator pobreza.
Não, eu não sou nenhuma metida à rica, só sou reservada.
Simplesmente nasci no lugar errado, ok?
Mas se você fosse até a pequena trilha de água da cachoeira
e a visse ficar abarrotada de gente pulando, gritando, fazendo
churrasco e levando cachorro, ia querer sair correndo...
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Pois é, assumo que eu fui lá uma vez.
Era um dia muito quente. Nossos vizinhos recém-mudados
queriam conhecer o lugar e acabei indo de carona. Vi tudo isso
com meus próprios olhos e vou te contar uma coisa, de carro nós
demoramos quase o mesmo tempo que de ônibus, por causa dos
buracos pela estrada. Fora que o ar do carro não deu vazão.
Chegando lá, aquele formigueiro sem tamanho. Eu nem vi a
cor da água, mas deu para perceber que a coisa estava feia.
Além do amontoado de pessoas ao redor, por todo lado se viam
coisas jogadas no chão. Eram latinhas, garrafas pets, embalagem
de marmita de alumínio... Talvez, se eu fosse uma recicladora de
lixo, poderia até enriquecer dando uma limpa naquela área. Em
menos de 10 minutos todos nós entramos no carro e voltamos
para casa.
Os meus vizinhos, eu acabei percebendo, também não eram
muito fãs de pobreza. O carro da família era um modelo do ano
e impecável, o terreno que compraram ao lado da nossa casa
ficou em obra por um ano mais ou menos e hoje a casa deles é
enorme, toda em estilo colonial. O seu Jorge e a dona Ana eram
um casal jovem de quase 40 anos, que tem uma filhinha linda
chamada Clarinha, que naquela época havia acabado de
completar sete anos.
Mas vamos começar direito.
Você deve estar se perguntando quem sou eu...
Eu me chamo Raquel Duarte e em breve completarei 19
anos. Sou a filha única do seu Carlos Duarte e posso te garantir
que não existe pai mais maravilhoso no mundo.
Minha mãe se chamava Ariel. Acho o nome lindo e por isso
meu personagem infantil preferido sempre foi A Pequena Sereia,
mesmo depois que aquele sabão em pó idiota surgiu. Deveria ser
proibido pôr nome de gente em marca de produto...
Mas voltando a minha mãe. Ela tinha só 16 anos quando
engravidou. Era muito bonita e se envolveu com o cara errado.
A maior prova disso foi ele ter sumido assim que minha mãe
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disse estar grávida. Minha avó ficou furiosa, mas o que ela podia
fazer?
Nunca fiz questão de saber qualquer coisa sobre ele. Sempre
fiquei com medo de magoar minha família se andasse por aí
perguntando pelo meu progenitor fujão. Minha mãe seguiu com
a gravidez (é óbvio!) e certo dia conheceu o homem dos seus
sonhos. Ele tinha 12 anos a mais que ela, mas tenho certeza que
era um gato de despedaçar corações, porque veja bem, ele ainda
é um tremendo partido.
Eles se apaixonaram e queriam se casar para cuidar da
menininha linda que nasceria. Mas nem tudo é como a gente
quer...
Minha mãe estava esperando um ônibus em frente à
maternidade onde fazia o pré-natal quando um carro perdeu o
controle da direção e invadiu a calçada a toda velocidade. Bom,
o resto dá para imaginar...
Como a maternidade era bem ao lado, eles conseguiram me
salvar.
Eu nasci de oito meses e pouco depois minha mãe faleceu.
Foi horrível. Até hoje meu pai guarda os artigos que saíram
no jornal. Parece que o motorista estava alcoolizado. Minha avó
ficou arrasada, tentou pôr o culpado na justiça, mas depois de
alguns anos desistiu. A dor de trazer tudo à tona em cada
audiência era um preço alto demais para todos nós.
Meu pai acabou me registrando e criando. Ele nunca mais
pensou em se casar. Dizia que a única vez que sentiu vontade de
manter um laço assim foi com minha mãe, embora ele sempre
desse um jeito de arrumar alguma namorada, coisa que não era
nada difícil. Apesar de beirar os 50 anos, meu pai é bem
inteirão. Eu nunca o deixei comer porcaria e sempre cuidei bem
do seu cabelo. O resultado disso é um homem alto, loiro e com
porte físico bem saudável. Ah, ele é auxiliar de serviço geral em
um prédio lá no centro da cidade.
Entendem porque me acho com sorte? Sempre gostei de ver
o lado bom da maioria das coisas, exceto talvez, esse bendito
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calor.
Meu pai e eu morávamos em uma casa simples de dois
quartos, cozinha, sala e banheiro. Eu deixava sempre tudo muito
organizado. Era fácil já que éramos apenas nós dois.
Mas quando o sol estava a pino, a casa virava um forno, não
tinha como fugir. Meu pai chegou a colocar um ar condicionado
reformado em seu quarto e quando estava muito quente
dormíamos lá. Mas como a conta passou a vir muito alta,
poupávamos o quanto dava na hora de ligá-lo.
Então veja bem: eu sobrevivi por um milagre, ganhei um pai
que me ama e de quebra veio uma avó muito coruja, a mãe da
mamãe. Ela e o meu pai viviam implicando um com o outro,
acho que no fundo a culpa era por terem gênios muito parecidos.
Como ambos queriam me criar, sempre acabei presa no meio de
suas tolas e constantemente divertidas discussões. Em todos
aqueles anos, eu fiquei indo e vindo da uma casa para outra.
Mas só para registrar, eles moravam a apenas um quarteirão
de distância. Então embora eu tivesse dois quartos, dois guarda-
roupas e duas bicicletas (porque tudo entre eles era disputado
por quem deu o melhor), ainda tinha só uma escola e os mesmos
vizinhos.
Para uma garota que tinha 17 anos e estava no último ano do
segundo grau, branca como papel, de cabelo longo e negro como
a noite, altura média, olhos estranhamente acinzentados que às
vezes podem se passar por azuis e um corpo razoável, a
pergunta seria óbvia: e os garotos?
E eu deveria responder: “Ah, cara, eu era a sensação da rua
e na escola eu os tinha comendo na palma da minha mão”. Mas
não, a resposta correta seria: “que garotos?”.
Na escola, que por sinal era a mesma desde o jardim, os
garotos também eram os mesmos.
O Caio era bonitinho, mas muito alto. Não era à toa que o
chamavam de “Girafão”. Tinha o Rafael e o Renato também,
mas qual é? Eles eram uns idiotas, só sabiam falar palavrão e se
coçar. Então te digo, na escola não tinha nada de bom.
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Na rua tinha até um ou dois rapazes interessantes, mas ou
estavam namorando, ou só sabiam ficar olhando. Sério, só
olhando.
A Regina e a Carina são minhas melhores amigas desde
sempre. Claro, eram vizinhas e colegas de escola também. A Rê
sempre foi linda, moreninha e alta, estava sempre ficando com
alguém, alguns muito bonitos, outros já nem tanto. A Carina é
crente e é como uma irmã para mim. Ela quer ser escritora.
Tenho quase certeza que lê um livro por dia. Ela é o que eu
chamo rata de biblioteca.
Embora a Rê fosse a que mais saísse com os garotos,
acredito que quase todos os meninos da rua eram gamados na
Carina. Veja bem, ela é loirinha, mediana e não saía com
ninguém porque achava que devia esperar o cara certo. Sempre
se vestia normalmente, nunca foi daquelas fanáticas, então se
tornava uma conquista difícil. Os rapazes adoravam isso.
Ela recebia vários pedidos para namorar, mas nunca
aceitava, porque não era “o cara”. A Rê a zoava direto, dizia que
era meio estranho ela nunca sair com ninguém, mas sempre
achei completamente compreensível.
Quer dizer, eu já saí com uns dois carinhas da rua, os dois
queriam namorar em casa, mas eles não tinham nada a ver
comigo.
O primeiro rapaz que beijei foi meio estranho. Um estalinho
molhado e rápido, mas completamente insosso. O apelido do
cara era Cafú, dá para acreditar? Acho que é porque ele jogava
futebol, sei lá. Ele pediu para minha prima me colocar na “chave
dele” e como eu nunca tinha ficado com ninguém, (é, eu só tinha
uns 13 anos quando isso aconteceu) aceitei. Nós ficamos
conversando sozinhos em uma rua próxima de casa e quando o
silêncio ficou incômodo, ele me deu um beijo.
Não foi nada demais.
Depois notei minha prima na esquina e me despedi.
Confesso ter pensado que quando meu pai me visse saberia na
hora que eu tinha dado meu primeiro beijo, mas é claro que ele
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nem notou. Fui dormir pensando “é assim? Só isso? ”.
No dia seguinte aconteceram duas coisas: primeiro, o Cafú
ficou passando toda hora na frente de casa. Talvez estivesse
pensando que eu ficaria de novo com ele. O que não faria de
jeito nenhum. E a minha prima, que nos juntou, parou de repente
de falar comigo. Algum tempo depois, soube que ela gostava
dele de verdade e achou que eu devia ter percebido e recusado
na hora a ficar com o rapaz.
Mas qual é? Como eu ia adivinhar? Nós nunca fomos muito
próximas e por que cargas d’água ela não se recusou a fazer o
papel do cupido? A Rê sugeriu que ela não queria dar pinta do
que sentia para o menino. Vai entender...
Ah, mas está tudo bem. Eu nunca me dei muito bem com ela
mesmo.
O segundo beijo foi mais desastroso. Foi na festa da Carina
de 15 anos. Ainda faltava uns dois meses para eu também fazer
15 e fui apresentada a um colega do primo dela, o Marcos. Ele
era bonitinho e muito simpático, ficamos conversando sobre
várias coisas, acabamos nos beijando no fim da festa e achei
bem legal.
No dia seguinte, enquanto eu voltava da escola com as
meninas, fiquei pensando “esse beijo foi melhor, talvez seja só
prática, quem sabe com outro menino...”, mas meus devaneios
foram brutalmente interrompidos ao ver Marcos e meu pai
conversando animadamente no portão de casa. Isso mesmo, os
dois conversando na minha casa.
Acontece que o Marcos acreditou que com o beijo nós nos
tornamos namorados quase que imediatamente. Depois do susto
inicial, achei lisonjeiro que ele quisesse realmente namorar
comigo, mas caramba, eu mal o conhecia. E não, eu não gostava
dele tanto assim. Mas me deixa esclarecer mais uma coisa, eu
nunca fui muito boa em contrariar as pessoas. Se minha opinião
é diferente da sua e não há real necessidade de expressá-la, eu
simplesmente a guardo para mim. Tudo para não ficar batendo
boca ou criando confusão.
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Conclusão: eu deveria ter dito naquele mesmo dia – “Olha,
acho que você entendeu errado. Gostei de ficar com você, mas
não estou a fim de namorar sério” – mas eu não disse. Apenas
aceitei e fiquei com ele de novo, só que na porta de casa.
Não, não fiquei com ele porque “não resisti”. Também não
mudei de ideia depois disso. Ao contrário, percebi que não podia
mesmo tolerar aquilo, definitivamente. Beijar quem não se gosta
é agoniante.
Então o que fiz? Eu fugi. Isso mesmo. Eu sei, fui uma
grandessíssima covarde, mas toda vez que Marcos ia lá em casa
para “namorar”, eu inventava uma desculpa jurando para mim
mesma: “Hoje você vai terminar com essa situação ridícula”.
Mas não conseguia.
Quando não podia fugir, graças ao meu pai que, aliás, o
adorava, eu ficava calada e a mais distante possível. Até que um
dia ele me surpreendeu, dizendo como eu estava estranha e
achava que deveríamos dar um tempo. Já estávamos naquela
situação há quase um mês.
Isso mesmo, ele terminou comigo. Não, não ria. Eu aceitei
na hora e acredite se quiser, o único que sentiu por esse
rompimento foi meu pai.
Não foi à toa que quando contei tudo para as meninas e
decretei que só sairia com alguém que eu realmente, realmente
estivesse a fim, elas não pegaram no meu pé. Nem ficaram me
cobrando pelo meu muito tranquilo quase ausente lado
romântico da vida.
Eis como era a minha rotina:
Dias de semana
Manhã — escola.
Tarde — cuidar da casa.
Noite — cuidar do meu pai e ficar, às vezes, no portão
com a Carina, já que a Rê tinha sempre “melhor” companhia
Fim-de-semana
Praia — era muito longe. Além disso, sou muito branca e
fico um camarão em 20 minutos.
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Cachoeira — nem pensar.
Esporte — nada disso.
Cinema — às vezes.
Shopping — muitas vezes!
Shows, danceterias — com quem?! Fala sério!
Igreja — às vezes, quando a Carina me obrigava a
acompanhá-la.
Babá — todo sábado.
Pois é... Eu também era babá.
Lembra daqueles meus vizinhos? Eles eram os donos de
duas padarias em bairros vizinhos ao meu. Então, no sábado e
em alguns domingos, eles me pediam para ficar com a Clarinha.
Ela tinha aula de natação no clube que ficava a 15 minutos de
ônibus. Então eu a levava lá no sábado de manhã e ficava com
ela até às 3 da tarde. Isso me rendia uns trocados, além do que
eu gostava muito da garotinha. Era tão educadinha, meiguinha e
como eu nunca tive uma irmã, fazia aquilo com gosto.
Minha vida era simples. Sei que para muitos pode até
parecer tediosa, mas para mim era tranquila, feliz e completa.
Eu disse que me considerava com sorte.
Pelo menos até aquele momento...
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Capítulo II
“Uma coisa que sempre me encantou nela é essa ligação
com seu Carlos. Gostaria de ter isso com meus pais.”
NO FIM DO MÊS DE MAIO meu pai chegou mais cedo do
que o habitual, me chamando assim que pôs os pés em casa.
— Estou aqui — gritei do quarto onde fazia um trabalho
(manual) sobre a evolução da internet nos últimos dois anos.
— Quequel, Quequel... — Ele só me chama assim quando
está muito feliz, o que confirmei assim que ele se jogou ao meu
lado na cama, me abraçando forte.
— Pai... — Murmurei, sufocando entre seus braços.
— Ah, minha filha, você não vai acreditar no dia
maravilhoso que tive hoje. — Deu um pulo e passou a andar de
um lado para o outro. Antes de ter tempo para perguntar o
motivo de tamanho alvoroço, ele mesmo respondeu.
— Fui promovido, querida! Promovido!
Meu queixo caiu enquanto olhava meu pai falar ofegante,
com o peito estufado, os olhos verdes brilhando e face corada.
Depois de um segundo para assimilar tudo, pulei da cama
fazendo a festa que com certeza ele esperava de mim.
— Promovido? Caramba! — Gritei e pulei eufórica,
rodando com ele pelo quarto.
— Sim, sim e sim! Vamos sair essa noite para comemorar...
Depois de um tempo, sua voz perdeu o entusiasmo, mas os
olhos ainda brilhavam.
— Quequel, a gente precisa conversar. Isso vai trazer muitas
mudanças para as nossas vidas, para melhor claro, mas mesmo
assim... Preciso saber da sua opinião sobre uma coisa.
Fomos para a sala e enquanto eu sentava em uma das
poltronas, ele me contava como tudo aconteceu. Fiquei
pensando em coisas como “puxa, depois de tantos anos dando
um duro danado na firma onde trabalha, finalmente estão lhe
dando uma oportunidade”.