AQUI, A GENTE DÁ O OSSO MAIOR DO QUE Marcel Telles...

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FOTOS GABRIEL RINALDI POR ROBERTO SETUBAL, PRESIDENTE DA HOLDING ITAÚ-UNIBANCO S/A SEDE DA AMBEV/SP AQUI, A GENTE DÁ O OSSO MAIOR DO QUE O CARA PODE ROER. E VÊ SE ELE CONSEGUEMARCEL TELLES, DO 3G CAPITAL, FALA A ROBERTO SETUBAL, DO ITAÚ-UNIBANCO, SOBRE CULTURA CORPORATIVA, ATRAÇÃO E RETENÇÃO DE TALENTOS, AQUISIÇÕES, O PAPEL DO CONSELHO E SEU OTIMISMO EM RELAÇÃO AO BRASIL Marcel Telles Roberto Setubal

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P O R P A U L O K A K I N O F F , D A G O L L I N H A S A É R E A S

F O T O S G A B R I E L R I N A L D I

P O R ROBERTO SETUBAL , P R E S I D E N T E DA H O L D I N G I TA Ú - U N I B A N C O S /A

SEDE DA AMBEV/SP

AQUI, A GENTE DÁ O OSSO MAIOR DO QUE O CARA PODE ROER. E VÊ SE ELE CONSEGUE”MARCEL TELLES, DO 3G CAPITAL, FALA A ROBERTO SETUBAL, DO ITAÚ-UNIBANCO, SOBRE CULTURA CORPORATIVA, ATRAÇÃO E RETENÇÃO DE TALENTOS, AQUISIÇÕES, O PAPEL DO CONSELHO E SEU OTIMISMO EM RELAÇÃO AO BRASIL

Marcel Telles Roberto Setubal

ROBERTO SETUBAL Eu queria começar fa-lando de cultura empresarial, que é algo importantíssimo e para a qual não se dá o devido valor no Brasil. O histórico de vocês mostra claramente que existe um ponto comum nas empresas do grupo, que é justamente a cultura corporati-va desenvolvida desde os tempos de Garantia. Quais os elementos dessa cultura que você acha mais importante e quais deles tiveram o maior impacto no sucesso de empresas como AB InBev, Burger King, Heinz...? MARCEL TELLES Se eu tivesse de definir numa única palavra, Roberto, diria que temos a cultura de ownership. A gente quer que todo mundo se sinta dono, nos mais diferentes níveis. Dono por ser o

dono daquela máquina. Dono daquela área financeira. Daquele projeto. E dono da empresa também, através da socieda-de. Nossa característica mais importante é uma busca incessante pelas pessoas que funcionam bem nesse ambiente. Nossa cultura é de alta performance e de alta demanda. Porque dono é dono, Roberto. Dono acorda às 5 da manhã e só sai quando a padaria fecha. Então, tem de ter esse tipo de atitude aqui. E não é todo mundo que tem ou que gosta. É que nem esporte de alta performance. Tem alguns que querem. Outros, não. Nossa cultura é um pouco assim.

ROBERTO SETUBAL Mas o que isso signi-fica, na prática, para o executivo do

segundo e terceiro escalões? Não falo do CEO, porque este já deve estar ali-nhado com toda a cultura. MARCEL TELLES Significa, primeiro, que nesse nível ele já é provavelmente sócio importante da companhia. Já tem ações. O patrimônio dele está muito ligado ao desempenho da empresa. Segundo, ele tem uma autonomia muito grande. Você dá liberdade de um lado, mas responsa-bilidade do outro. E ele tem um compro-misso importante, fundamental até para sua avaliação, que é a formação de gente. Temos de ver se esse executivo está for-mando gente que pode ser melhor do que ele. Até para que ele suba. Isso é como a gente olha essa pessoa.

ROBERTO SETUBAL Você fala bastante da questão de pessoas. Como se dá o pro-cesso de atração de talentos, retenção e desenvolvimento nas empresas do grupo? MARCEL TELLES Atração vem da gente mesmo. Diria que 99% de quem a gente recruta vem do programa de trainee. E somos nós que vamos às principais fa-culdades do mundo. Não é o cara do RH. Eu é que vou. Ou o Carlos Brito [CEO da AB InBev], ou o João Castro Neves [ex--presidente da Ambev, atual presidente da AB InBev para a América do Norte]. Isso faz uma diferença brutal. Na medida em que você tem um histórico, a coisa fica mais fácil. O que funciona muito nessas visitas é levar junto um trainee que está conosco há dois, três anos e dizer: “Ó, esse aqui entrou como trainee e eu já dei uma fabricazinha para ele tocar na República Dominicana ou alguma coisa comercial no Equador”. Aqui, é o seguin-te, Roberto: a gente dá o osso maior que o cara pode roer e vê se ele consegue

roer. Isso deixa o jovem muito animado. Jovem é idealista pra burro, você sabe. Então, é fácil de vender o nosso sonho. Só que temos de entregar o que a gente vendeu, senão ele vai embora. Então, o mais importante na retenção é deixar o trainee crescer na velocidade do esforço e do talento, limpando a área, removendo todos os obstáculos da frente dele. Tem de deixar a pista livre. Porque, se bobear, o jovem bom, esperto, atravessa a rua e vai para outro lugar.

ROBERTO SETUBAL Hoje, do time lá de cima da companhia, quantos vieram destes programas e quantos vocês foram re-crutando no mercado? MARCEL TELLES Em relação aos principais executivos da companhia, eu diria que de 80% a 90% vêm do programa de trainee. Tem gente de fora, mas não é comum.

ROBERTO SETUBAL Vou só re-latar um episódio sobre a cultura Ambev que minha turma testemunhou. Nes-ses eventos que vocês fazem nas universidades americanas, um pessoal do Itaú assistiu à apresenta-ção da Ambev. A sala estava lotada. E aí vocês começaram a falar como funcionava a cultura da companhia, que o camarada tinha de acordar cedo, trabalhar muito... MARCEL TELLES Começou a esvaziar. [risos]

ROBERTO SETUBAL Foi esvaziando e no fim sobrou apenas aquela meia dúzia que se identifica com a cultura. MARCEL TELLES É assim mesmo. São poucos.

Não gosto muito de usar essa analogia, mas eu vejo assim como uma espécie de formação de Mariners. Não é todo mundo que gosta daquilo, daquele nível de exercício, de exigência, de quase dor. Mas quem gosta, gosta pra valer. Tem um orgulho imenso e provavelmente não trabalharia em outro lugar.

ROBERTO SETUBAL Imagino que o nível de renovação ali dentro da antiga Anheu-ser-Busch deve ter sido enorme... MARCEL TELLES A gente faz isso. O primeiro escalão normalmente sai, porque põe

muito dinheiro no bolso e não quer mais fazer aquilo que fez durante anos. Muita gente do segundo e do terceiro escalão gosta do que faz e começa a se mover. Al-guns são aproveitados na empresa, outros vão ao mercado. E a gente põe um bando de jovem na equipe. A dinâmica tem de ser de abrir o caminho. Então, sim, tem uma renovação grande. E muita gente está progredindo por lá. É assustadora a quantidade de talentos nos Estados Unidos. São imigrantes ou filhos de imi-grantes que trabalharam bastante para

chegar a Stanford, Harvard. Esse pessoal vem com faca no dente. Um exemplo é um jovem, filho de um imigrante nige-riano, que conseguiu com o rúgbi fazer um MBA em Harvard. Fui entrevistar o garoto e ele me disse um negócio bacana, que não saiu de minha cabeça. Perguntei o que ele tinha aprendido no rúgbi e que poderia ser transportado para a vida real. Ele disse: “eu aprendi a nunca passar a bola numa situação que pusesse qualquer colega em risco”. Incrível. O cara está deslanchando na empresa.

ROBERTO SETUBAL Pegando esse gancho... A cultura de vocês valoriza muito o talento, a competência individual, a capacidade de execução. Como fica o trabalho em equipe? Não existe aí nenhum tipo de in-consistência nessa cultura empresarial? MARCEL TELLES A gente sempre presta atenção nisto. A pri-meira coisa que ajuda muito é o espaço aberto. Espaço aber-to, sem salas, sem divisórias, evita conversinhas por trás,

agenda que não seja do trabalho. Outro fator é nosso desdobramento de metas. Para eu bater minha meta pessoal, pri-meiro a companhia tem de bater a meta. Depois a zona [a região] tem de bater a meta. Aí a minha área tem de atingir a meta e só então tem o peso da minha meta pessoal. Então, se eu não trabalhar em equipe, minha área não chega lá. Eu posso ter o melhor desempenho do mun-do que não adiantou nada. Nós queremos sempre crescer 10% de Ebitda todo ano. E todos têm de trabalhar pensando nisso.

Ao final da entrevista de uma hora e meia na sede da Ambev, depois de se despedir de Roberto Setubal, o anfitrião Marcel Telles comentou: “O Roberto é impressionante, né? Veio com todas as perguntas prontas, divididas por temas, organizadas. O

Itaú é ele. Fosse eu o entrevistador e seria tudo no improviso...” O dono do Itaú-Unibanco, recém-empossado presidente da holding

financeira do banco, futuro presidente do conselho, diz que aprontou as perguntas quando se dirigia à Ambev, ainda no helicóptero, durante o trajeto de pouco mais de oito minutos entre o bairro do Jabaquara, sede do Itaú, e a região do Itaim, QG da cervejaria. Chegou, britanicamente, no horário com-binado (meio-dia), tomou o elevador de número 4, desceu no 4º andar e foi recebido por Marcel, sócio do 3G Capital (dono do Burger King, da Heinz e da AB InBev, controladora da Ambev). O empresário levou o banqueiro para um rápido tour pelo escritório. Mostrou, orgulhoso, o espaço “sem salas nem divisórias (aqui, é transparência total)”, apontou cada departamento, falou sobre a profusão de jovens da companhia e exibiu a praça do sol, local onde a turma da Ambev recebe seus convidados, geralmente para reuniões rápidas. Ali, a dupla posou para as fotos. Quinze minutos depois, Setubal e Marcel já estavam na pequena sala de reunião onde aconteceria a entrevista-almoço. Sushi com Guaraná Antarctica. “Sou eu que faço as perguntas, né? Pelo menos foi isso o que eu entendi”, disse Setubal. Marcel confirmou. Setubal sacou o celular, correu o dedo pela tela, achou a lista de perguntas e mandou ver:

“É preciso ter a cabeça de dono nas empresas. E dono acorda às 5 e só sai quando a padaria fecha”AÇÃO / LIDERANÇA

MARÇO 2015 / ÉPOCA NEGÓCIOS / 2928 / ÉPOCA NEGÓCIOS / MARÇO 2015 Fotos: GABRIEL RINALDI

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ROBERTO SETUBAL Isso também gera uma pressão para que todo mundo dê um pouco de palpite na área do outro. MARCEL TELLES Uma relação bastante sau-dável, de cada um apertando o outro. Enfim, dá trabalho. Você também toca um negócio enorme e sabe o trabalho que essas coisas dão.

ROBERTO SETUBAL Como vocês avaliam a importância do currículo na hora de contratar? Vale mais a faculdade ou a experiência de vida? MARCEL TELLES Eu quero aquele cara, e me desculpe o clichê, com um brilho no olho e faca no den-te. É personalidade. E esta você não muda. Se vier junto com boa educação, é espeta-cular. Por isso que eu estava citando os Estados Unidos. Lá, a gente está começando a ter um nome que nos per-mite entrar nas universida-des de ponta e pegar o cara que, além da boa formação, tem uma história de vida que mostra resiliência, vontade de chegar lá. Eu diria, Rober-to, que aqui a personalidade está sempre acima da educação formal. Recentemente eu entrevistei uma russa, que foi para os Estados Unidos jogar tênis, sofreu um acidente grave e largou o esporte. Aí ela botou toda a energia do tênis no estudo, se formou em Wharton e tem faca do dente. É aquele tipo de pes-soa que você entrevista e diz Caramba! E temos uma meta específica para isso. O Brito tem de me apresentar todo ano dez pessoas assim, que podem crescer bastante na empresa. E ele, obviamente, desdobra essa meta para baixo.

ROBERTO SETUBAL E qual é o passo seguin-te no desenvolvimento da carreira? Como se dá a meritocracia? MARCEL TELLES Osso maior do que o cara pode roer. Sempre assim. E uma vez por ano a gente faz uma revisão das pessoas – de 50 a 250 – que realmente a gente quer olhar. Praticamos isso há muito tempo. Chamamos de Xadrez de Gente. Olha-mos cada cara para ver qual é o próximo passo da carreira dele e fazemos até um leilãozinho informal. Vou dar um exem-plo. Tem um sujeito no financeiro que o superior não está dando a “velocidade”

adequada. O cara de vendas pode dizer: “manda para cá que eu tenho um pulo para a carreira dele”. Todo ano tem esse xadrez de gente.

ROBERTO SETUBAL Mas não pode levar de lado, né? Para função similar hierarquicamente. MARCEL TELLES Não. Isso não. É promo-ção. Claro, vai ter sempre uma gritaria. Mas na próxima vez, o que perdeu aprende a gerenciar o talento que está na equipe dele.

ROBERTO SETUBAL E como faz para limpar o trilho, abrir espaço? Obviamente a companhia vai crescendo, abrindo outros empreendimentos e levando gente para outras unidades, mas nem sempre você tem unidades para dar espaço para todo mundo. MARCEL TELLES Acho que todo mundo aqui conhece a regra do jogo, Roberto. Todos nós temos metas e uma revisão trimestral dessas metas. Além disso, há uma transparência total no processo de avaliação. Então não tem surpresa. Às vezes a companhia anda mais rápido

do que a pessoa consegue acompanhar. Mas ela com certeza vem recebendo um feedback. Por outro lado, todo mundo aqui, em ge-ral, ganha bastante dinhei-ro. Provavelmente ele sairá bem recompensado por aquilo que fez.

ROBERTO SETUBAL Existe algu-ma definição, um percentu-al, da quantidade de pesso-as que têm de sair? MARCEL TELLES Não. Isso é uma lenda que já teve aí, de tirar

10% e coisa e tal. Às vezes acaba acon-tecendo de ser 10%, mas é coincidência. Eu estou sempre colocando trainee na empresa. Não interessa se precisa ou não precisa. Boto uns 20 a 30 por área. Então, são 150 por ano.

ROBERTO SETUBAL De uma turma de trai-nee que entra quantos ficam, por exem-plo, cinco anos depois? MARCEL TELLES Metade.

ROBERTO SETUBAL Cultura é exportável?

MARCEL TELLES Totalmente. Em cada país a gente consegue pessoas que têm uma afinidade muito grande com a nossa cul-tura. A maioria não, mas sempre acha-mos as pessoas certas.

ROBERTO SETUBAL O que mais motiva as pessoas? É a remuneração, o projeto... MARCEL TELLES Eu acho que o sonho. En-quanto você tem um sonho, qualquer que seja, dá um friozinho na barriga.

ROBERTO SETUBAL Mas qual é o sonho pos-sível para a AB InBev nessa altura? MARCEL TELLES Tem sonho, sim. A gente continua querendo ser o melhor no nosso ramo. E tem um desafio muito grande de se adaptar ao ambiente de negócios, que está mudando. Se no passado tínhamos um sonho mais orgânico de crescimento, agora o sonho é muito mais de responder bem às mudanças que estão acontecendo por aí, que são grandes.

ROBERTO SETUBAL Como se dá uma aqui-sição? Quem decide? MARCEL TELLES De onde vem, né? Vem de todos os lados. Eu diria que é uma dis-cussão permanente. É muito mais uma questão de oportunidade. A gente tem uma cabeça assim: se você é muito bom no que você faz e está atento ao mundo, em algum momento vai passar aquele cavalo selado.

ROBERTO SETUBAL E quando acontece você já está preparado, não? MARCEL TELLES Sim. Porque todo ano o

conselho e os executivos fazem essa revisão. Todo ano a gente olha as seis coisas que, se acontecessem, nós gos-taríamos muito de participar. Então, a gente conhece bem os números, conhece bem a companhia, sabe o quanto vale, o que propor, pensa muito em como fazer.

ROBERTO SETUBAL Quando vocês compram uma empresa, qual é a primeira ação para implementar o modelo de alta performance? MARCEL TELLES Primeiro é explicar clara-mente o que é a cultura e qual é a regra do jogo. Normalmente, alguém como o Brito ou o Ricardo Tadeu [da Corona, no México], promove encontros com funcionários, fornecedores, fala com 5 mil pessoas. E às vezes fala coisas que as pessoas não gostam de ouvir, mas elas sempre saberão exatamente qual é a regra do jogo. Quando você passa a implantar as metas e os programas, o aculturamento se torna natural.

ROBERTO SETUBAL Vocês acabaram de as-sumir uma companhia. Quantas pes-soas levam para lá para poder mudar a cultura? MARCEL TELLES Meia dúzia, uma dúzia, no máximo. Normalmente você vê lá dentro quem você acha que é bom para ocupar o primeiro escalão, que normalmente saiu. Então já ocorrem algumas promoções. Não levamos muita gente, não.

ROBERTO SETUBAL O que vale mais: inova-ção ou execução?

MARCEL TELLES O Brito, uma vez, num even-to anual com 3 mil pessoas, perguntou: “Se vocês pudessem trabalhar numa área que só faz coisas novas, bacanas, quantos de vocês gostariam de ir para lá?”. Aí todo mundo gritou, vibrou. O Brito voltou à carga: “E se vocês pudessem trabalhar numa área que é noventa e cinco por cen-to dos ganhos da companhia?”. A turma teve a mesma reação. Ele disse: “Olha, não dá. É incompatível”. O que quero dizer é que a gente tem de trabalhar no core, que é 95% do nosso lucro e não podemos tirar o foco dali. Mas tem uma areazinha na empresa, sim, que pensa no futuro. Esse balanço tem funcionado.

ROBERTO SETUBAL Mas a execução tem um peso evidente... MARCEL TELLES Execução é manter o que você tem e melhorar o que você tem. Eu quero a Skol espetacular e eu quero ganhar market share com a Skol. Mas eu também quero entrar no mercado de cervejas artesanais, e estamos nos associando com alguém que conhece. Nos Estados Unidos, estamos com a Goo-se Island. É uma cervejaria artesanal superpremiada, pioneira nesse negócio de envelhecer cerveja em barril que foi usado para vinho ou para Bourbon. Es-tamos falando de cerveja de US$ 20, US$ 30, para concorrer com vinho. Hoje em dia, nos Estados Unidos, você entra em qualquer restaurante e tem uma carta de cerveja tão extensa quanto a de vinho. Então, a gente está procurando ter em nossa rede os melhores representantes

TODO ANO, OLHAMOS SEIS GRANDES NEGÓCIOS QUE, SE ACONTECESSEM, A GENTE GOSTARIA DE PARTICIPAR”

“Cobramos muito, mas temos de deixar a pista livre para o jovem crescer. Senão, ele vai embora”AÇÃO / LIDERANÇA

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regionais e assim criar um portfólio para conseguir transformar algumas de suas marcas em marcas nacionais. Nos Esta-dos Unidos, 80% das artesanais são IPA [Indian Pale Ale, uma cerveja mais escura, com bastante lúpulo]. Nós podemos pegar as melhores IPAs dessas representantes e colocar em nosso sistema de distribuição. É um laboratório.

ROBERTO SETUBAL Vocês estão comprando essas empresas pequenas? MARCEL TELLES A gente compra e deixa os caras lá tocando.

ROBERTO SETUBAL Nestes casos, não há a adaptação ao modelo de metas? MARCEL TELLES Não, é outro animal. A gente ajuda os empreendedores com o que eles precisam. Compra de insumos, por exemplo, para dar poder de negociação. Eles continuam com total autonomia.

ROBERTO SETUBAL E as cervejas artesanais no Brasil? MARCEL TELLES A gente acabou de comprar uma em Minas Gerais [a Wäls]. Tem o seu nicho. Não é como nos Estados Uni-dos, em que as artesanais têm 8% do mercado. Aqui, é muito menos que 1%. Mas é o futuro, não adianta. Gosto da-quela frase que diz que “o futuro já está aqui, só está mal distribuído ainda”. Pois a cerveja artesanal já está aqui. E agora eu vou entrar na onda.

ROBERTO SETUBAL No fundo, vocês estão comprando uma opção?

MARCEL TELLES Estamos olhando também bebidas à base de malte que parecem coquetéis: limeritas, crawnberitas, stra-wberitas. No ano passado, esse segmento vendeu 600 milhões de latinhas nos Esta-dos Unidos. Estamos vendo. Aprendizado é sempre divertido. Difícil, mas divertido.

ROBERTO SETUBAL Simplicidade ou sofisticação? MARCEL TELLES Roberto, aqui é tudo mui-to simples. Sofisticação... vou te dizer uma coisa: é malvista aqui. A gente diz, brincando, que as nossas pessoas não sabem fazer discurso, não sabem nem comer bonito com garfo e faca. A gente sabe operar e fazer bem as coisas. Nor-malmente, tem muita borbulha nesse mundo executivo. O que nos interessa é o que o cara tem lá dentro mesmo, a capacidade de entregar.

ROBERTO SETUBAL Qual é o papel do con-selho e o papel do comitê executivo? E como o conselho pode ajudar o CEO? MARCEL TELLES Eu tenho aquela tentação enorme de meter a mão no operacional [Marcel integra o conselho da AB InBev e da Heinz]. Às vezes meto. E o Brito bate na minha mão. Na verdade, o conselho não deve operar. Mas acho que o con-selho tem de conhecer muito bem as principais pessoas nos três primeiros níveis da companhia para ter certeza de que o plano de sucessão é aquele mesmo, que a transição vai ser feita de maneira correta. Eu pessoalmente toco o Comitê de Gente da ABI [AB InBev]. O esforço

grande é de conhecer bem os três esca-lões da companhia. Acho que isso é um papel do conselho e acho que é minha principal atribuição. E, lógico, o conse-lho tem de ver o que está acontecendo. Esse negócio de digital, por exemplo. O conselho pode trazer muita coisa assim, digamos, de visão, que talvez escape a quem está na operação do dia a dia. O CEO não consegue parar para ver tudo. Nós temos um conselho que foi afinando ao longo do tempo.

ROBERTO SETUBAL São quantas pessoas? MARCEL TELLES Somos 12. Quatro do lado brasileiro. Quatro do lado belga. E quatro independentes. Nosso chairman é sem-pre independente, uma regra que ado-tamos. E nós temos uma reunião anual com o [guru de gestão] Jim Collins, que eu chamaria de grande reunião de ali-nhamento estratégico. Vai o conselho, vai o CEO... O Jim é muito bom de fazer per-guntas. Ele não fala nada, mas pergun-ta muito bem. E as perguntas dele nos fazem chegar a um bom alinhamento.

ROBERTO SETUBAL Vocês três [Marcel, Beto Sicupira, Jorge Paulo Lemann] sempre se entenderam muito bem, sempre foram muito alinhados. E aí de repente chegam sócios belgas, fa-mílias de, sei lá, 300 anos de história. Como foi essa interação, esse choque cultural? MARCEL TELLES As famílias sempre qui-seram o que a gente tinha, que era a capacidade de administrar, a cultura

etc.. É claro que na hora em que acon-tece, a interação é mais dura do que parece. Mas os representantes das famí-lias foram bem escolhidos. A McKinsey [consultoria] nos ajudou bastante neste processo de encontrar jovens talentosos dentro das famílias. Uma delas tinha 300 pessoas, não foi fácil.

ROBERTO SETUBAL Eu imagino que possa ter havido casos de executivos mui-to tradicionais, históricos dentro da companhia lá na Bélgica, que de repente... MARCEL TELLES Mas foi rápido, Roberto.

ROBERTO SETUBAL Isso não cau-sou nenhum problema? MARCEL TELLES Causa descon-forto, mas nunca causou nenhum problema. Tudo foi feito de uma maneira transparente. Tanto que o Brito assumiu em dois anos. Primeiro, expusemos o Brito no Canadá para mostrar que ele não era um sucesso só de Brasil. E aí rapidamente ele assumiu a InBev, pôde mon-tar seu time e seguir. Nesse ponto, os sócios foram espetaculares... Poxa, com o Nizan foi mais fácil [O publicitário Nizan Guanaes entrevistou Marcel na edição de março de 2009 de Época NEGÓCIOS, a primeira de conversas entre presidentes]. O Roberto está me dando um calor [risos].

ROBERTO SETUBAL É o papel do entrevis-tador [risos]. Vamos falar do mundo digital. Como é que você vê o impacto disso, de forma geral, e no negócio de vocês, em particular?

MARCEL TELLES Em geral, eu sou meio pa-ranoico. E essas mudanças agora estão me deixando mais ainda, porque eu vejo companhias extraordinárias sofrendo. Acho que não tem nenhuma companhia que eu admire mais do que o Walmart. E vejo a Amazon disruptando [sic] o negócio deles. Vejo indústrias inteiras mudando, desaparecendo. A nossa co-meça a mudar também. Antes, eu fazia um anúncio de 30 segundos na televi-são, falava com 100 milhões de pesso-as. Hoje, para falar com as pessoas eu tenho de ter 30 canais diferentes, pela

internet, pelos aplicativos, pelo cabo. A maneira de você se comunicar com o consumidor mudou muito. Esse é um ponto. Acho que o próximo passo nessa revolução é toda a parte de distribuição. Os apps facilitam a entrega de cerveja gelada em casa. Na China já é assim. É uma tendência. Isso é o que eu enxergo. Eu fico sempre com medo do que eu ainda não enxerguei. ROBERTO SETUBAL Essa compra e entrega de cerveja na China é feita via uma

Amazon da vida, ou existe, sei lá, o site da cerveja? MARCEL TELLES Não. É via o Alibaba, onde você põe sua loja virtual para vender. Lá, já aconteceu e a distribuição é monstru-osa. Você pode comprar um contêiner de cerveja ou seis latinhas pela inter-net e vai receber de alguma maneira. É assustador.

ROBERTO SETUBAL A venda nesse formato já é maior que a venda física? MARCEL TELLES Na China, é. Nós temos de nos adaptar e ver onde o nosso tamanho

e a nossa escala podem nos dar uma vantagem.

ROBERTO SETUBAL E nos Esta-dos Unidos, esse processo de distribuição de cerveja pela internet está come-çando a evoluir? MARCEL TELLES Também. É tudo muito rápido. O que tem de app hoje em dia... A gente tem um escritório em Palo Alto, com três garotos feras nesses assuntos. Tem um cara que era da Marinha, que fazia sonar para subma-

rino. Digo para eles: ‘ó, se vocês tiverem alguma ideia, contem para a gente’.

ROBERTO SETUBAL No banco, internet já passou a agência em volume de transações. Mobile sozinho deve passar esse ano ou no ano que vem. A agência tem um crescimento leve. Internet registra um crescimento maior, de 20% a 30% e o mobile, de 50% a 60%. MARCEL TELLES A vantagem é que vocês estão em tecnologia há mais tempo.

NÃO TEM EMPRESA QUE EU ADMIRE MAIS DO QUE O WALMART. E, HOJE, A AMAZON O AMEAÇA O TEMPO TODO”

“Estamos olhando as cervejas artesanais e bebidas à base de malte. Aprendizado é sempre divertido”AÇÃO / LIDERANÇA

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ROBERTO SETUBAL Mas é um megadesafio. Muda muito a forma como você se organiza. São muitos sistemas, pro-dutos. Tem um esforço de arquitetura de sistemas muito grande. MARCEL TELLES Agora, para o usuário é bastante fácil de mexer. Eu sou clien-te do Itaú e acho fácil. A interface é tranquila. Eu sou burro, então tem de ser um negócio simples para funcionar bem. E funciona.

ROBERTO SETUBAL Estamos bem nesse ponto. A gente olha no mundo e não tem coisa muito mais evo-luída, não. Mas sempre há espaço para melhorar. No nosso mundo, tem muito a questão de dados, de big data. O banco obviamente tem muitos dados e o desa-fio é a forma de organizar e usar esses dados.

MARCEL TELLES No Itaú tem gente no conselho que se expõe em áreas diferentes, que pode trazer uma visão mais disruptiva? ROBERTO SETUBAL Seria bom diversificar mais o conselho. Tem muita gente com uma visão finan-ceira, muito bancária. Precisamos nos abrir mais.

MARCEL TELLES São quantas pessoas? ROBERTO SETUBAL Estamos com 12 hoje. Fora do mundo bancário, tem uma pessoa.

ÉPOCA NEGÓCIOS Como vocês estão vendo o Brasil? Como avaliam o ambiente de negócios no país? MARCEL TELLES Não nos preocupamos mui-to com aquilo que a gente não tem muita influência. Sempre tivemos uma visão de longo prazo de que o Brasil é para cima. Vai subir, descer, subir de novo, sempre em torno de uma linha ascendente. Para nós, as prioridades são Brasil e Estados Unidos. Há uma quantidade extraordi-nária de empreendedores nesses dois lugares. No Brasil, onde você anda, em qualquer lugar, tem alguém fazendo al-

guma coisa nova, fora dos padrões. É isso o que nos interessa. Eu sou animado com o país no longo prazo. E falando com toda a franqueza, esse negócio do dia a dia, da política, o ano da economia... A gente leva em consideração, mas, de novo, não podemos fazer nada a respeito. Temos de ser o melhor possível naquilo que a

gente faz e ponto final. Essa é a nossa filosofia, sempre.

ROBERTO SETUBAL Eu concordo. No curto prazo, esse momento tá parecendo um pouco mais difícil, complicado. Mas o país, ainda que tenha flutuações tem-porárias, sempre aponta para cima. MARCEL TELLES Eu vivi com inflação de 30% ao mês, pô!

ROBERTO SETUBAL Nós, que já vivemos conjunturas complicadas, mudanças de regras e de cenários a todo instan-

te, crescemos aprendendo a nos virar. Tem de dançar conforme a música. Veja o exemplo de mudanças de regulamentação interna-cional dos bancos. Lá fora, há uma dificuldade imensa em se adaptar. Fica uma discussão eterna, achando que a regra não está boa. Enfim, a regra está lá, acabou, vai embora, vai trabalhar.

MARCEL TELLES Life is unfair, get used to it... [A vida é in-

justa, acostume-se] ROBERTO SETUBAL Exatamente.

[A entrevista é interrompida pelo ba-rulho de um helicóptero]

MARCEL TELLES Roberto, seu táxi chegou. Eu o acompanho ao heliponto.

SEMPRE TIVEMOS A VISÃO DE QUE O BRASIL É PARA CIMA. EU SOU ANIMADO COM O PAÍS NO LONGO PRAZO”

AÇÃO / LIDERANÇA

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