Aqui Bate Um Coração

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  Hely Geraldo Costa Junior | Aqui bate um co ração: exis te amor na me trópole?  :   : Hely Geraldo Costa Júnior  : Não existe amor em São Paulo, declarou o rapper  Criolo em uma canção. Os versos retratam uma cidade fria e impessoal, marcada pela desigualdade social. Uma metrópole onde as relações pessoais são substituídas por relações comerciais, e nas quais o espaço e o tempo deter- minam e institucionalizam a convivência de seus habitantes. Em reação, surge um movimento de intervenção urbana no qual corações vermelhos são colados sobre bustos, estátuas e monu- mentos. O espaço do uxo e da constante transformação torna-se um espaço de renovação da percepção da experiência, ganha uma nova dimensão. Este artigo analisa como uma experiência estética pode alterar a contemplação de esculturas autônomas, dar-lhes novas percepções, ampliar seus signicados e redenir o espaço urbano da metrópole. - : metrópole; percepção; intervenção urbana.   : Tere is no love in São Paulo, the rapper Criolo said in a song. Te verses reveal a cold and impersonal city, marked by social inequality. A metropolis where personal relationships are replaced by business relations, and in which space and time determine and institutionalize how inhabitants live. In response, there is a movement of urban intervention in which red hearts are put on busts, statues and monuments. Te space of ux and constant transformation becomes a space  for renew al of perception of experienc e, gaini ng a new dimension . Tis article examine s how aes - thetic experience can change the contemplation of freestanding sculptures, giving them new insights, expand their meanings and redene the urban metropolis space. : metropolis; perception; urban intervention. “Não existe amor em SP Os bares estão cheios de almas tão vazias  A ganân cia vibra, a va idade excit a Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel  Aqu i ning uém vai pr o céu” , Não Existe Amor em SP. Não existe amor na cidade de São Paulo. Assim proclamou o rapper  Criolo, na canção gravada em . Em seus versos, ele fala de uma cidade fria e impessoal, Doutorando em Design PUC-Rio, professor da Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro. [email protected]

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    aqui bate um corao: existe amor na metrpole?a heart beats here: is there love in the metropolis? Hely Geraldo Costa Jnior1

    resumo: No existe amor em So Paulo, declarou o rapper Criolo em uma cano. Os versos retratam uma cidade fria e impessoal, marcada pela desigualdade social. Uma metrpole onde as relaes pessoais so substitudas por relaes comerciais, e nas quais o espao e o tempo deter-minam e institucionalizam a convivncia de seus habitantes. Em reao, surge um movimento de interveno urbana no qual coraes vermelhos so colados sobre bustos, esttuas e monu-mentos. O espao do fluxo e da constante transformao torna-se um espao de renovao da percepo da experincia, ganha uma nova dimenso. Este artigo analisa como uma experincia esttica pode alterar a contemplao de esculturas autnomas, dar-lhes novas percepes, ampliar seus significados e redefinir o espao urbano da metrpole.palavras-chave: metrpole; percepo; interveno urbana.

    abstract: There is no love in So Paulo, the rapper Criolo said in a song. The verses reveal a cold and impersonal city, marked by social inequality. A metropolis where personal relationships are replaced by business relations, and in which space and time determine and institutionalize how inhabitants live. In response, there is a movement of urban intervention in which red hearts are put on busts, statues and monuments. The space of flux and constant transformation becomes a space for renewal of perception of experience, gaining a new dimension. This article examines how aes-thetic experience can change the contemplation of freestanding sculptures, giving them new insights, expand their meanings and redefine the urban metropolis space.keywords: metropolis; perception; urban intervention.

    No existe amor em SP Os bares esto cheios de almas to vazias

    A ganncia vibra, a vaidade excita Devolva minha vida e morra afogada em seu prprio mar de fel

    Aqui ningum vai pro cu

    criolo, No Existe Amor em SP.

    a metrpole e a vida cotidiana

    No existe amor na cidade de So Paulo. Assim proclamou o rapper Criolo, na cano gravada em 2011. Em seus versos, ele fala de uma cidade fria e impessoal,

    1 Doutorando em Design PUC-Rio, professor da Universidade Estcio de S do Rio de Janeiro. [email protected]

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    marcada pela desigualdade social e habitada por pessoas gananciosas. Uma metr-pole onde as relaes pessoais se perderam em meio ao mercantilismo, ao caos e agitao da vida moderna. Segundo Pion, um local onde os habitantes esto submissos razo e racionalidade, em prol da reproduo da vida na sociedade urbana, onde o cotidiano impe-se como um tempo na metrpole e da metrpole para ns (apud SILVA, FREIRE & OLIVEIRA, 2006, p. 64). Nessa grande cidade, todos esto submersos em um tempo de instrumentalizao e racionalidade, um tempo que controla o fluxo e estabelece toda a dinmica de circulao na reproduo da vida social diria:

    [...] a metrpole agrega, conjuga o cotidiano, a vida moderna, a racionalidade instru-mental sociedade urbana. A metrpole a conjugao desses fenmenos e even-tos associados na sua materializao em escala geogrfica expresso da condio da reproduo ampliada do capital. A metrpole , pois, casualidade e finalidade. A metrpole inter-relao de homens e homens, homens e objetos, e objetos e objetos. Enfim, sujeitos e sujeitos, sujeitos e mercadorias, e mercadorias e mercadorias, nela os homens sujeitos e atores so, verdadeiramente, sua real substncia, pois so os por-tadores da objetividade social e espacial que a reproduzem. Nela o tempo histrico irreversvel no sentido dos acontecimentos sociais. (apud SILVA, FREIRE & OLIVEIRA, 2006, p. 64)

    Na msica de Criolo, a velocidade do ritmo de vida em So Paulo inviabiliza os encontros e a descontinuidade. O cotidiano urbano assume um sentido indus-trial, que conspira contra as prticas bsicas, em prol do capital e de sistemas de produo flexveis, nos quais as relaes sociais tornam-se relaes de reproduo e de mercadoria e cedem lugar ao individualismo, como observa Sennet:

    O individualismo moderno sedimentou o silncio dos cidados na cidade. A rua, o caf, os magazines, o trem, o nibus e o metr so lugares para se passar a vista, mais que cenrios destinados a conversaes. A dificuldade dos estrangeiros manterem um dilogo entre si acentua a transitoriedade dos impulsos individuais de simpatia pela paisagem ao redor centelhas de vida no merecem mais que um lampejo de ateno. (SENNET, 1997, p. 289)

    Em uma perspectiva analtica, a prpria noo de reproduo expe a identi-dade urbana, que se constri a partir da vida cotidiana como o lugar de reprodu-o, instaurado como parte indispensvel da representao do mundo moderno na metrpole. Um cotidiano que se estabelece por meio do conflito: entre a impo-sio de novos modelos culturais e comportamentais em contraposio s antigas formas de relaes. Assim, a reproduo do espao urbano um acontecimento ininterrupto, em constante movimento, ou seja, a sociedade transforma-se inva-riavelmente medida que a metrpole altera seu cotidiano.

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    Essas transformaes motivam novos modelos estticos, gostos, valores, moda, constituindo-se como elemento orientador, fundamental reproduo das relaes sociais (CARLOS, 2001, p. 20). Processos que vo revelar-se efetivamente na vida cotidiana. Nesse sentido, a reproduo est diretamente relacionada pro-duo de relaes sociais constitudas a partir de prticas de acumulao, preser-vao e renovao. Com sua imponncia opressiva, exuberante e ensurdecedora, a metrpole se estabelece como o lugar de expressivas transformaes. Uma cons-tante metamorfose imposta pelo espao e pelo tempo, que invariavelmente modi-fica a vida cotidiana:

    Assim, a noo de cotidiano liga-se de reproduo, que compreende uma multipli-cidade de aspectos, sentidos, valores. Da analisarmos as relaes entre a reproduo do espao e a reproduo da vida na metrpole com base na vida cotidiana um lugar onde se constata a tendncia desigual e contraditria da instaurao do cotidiano. (CARLOS, 2001, p. 21)

    Para Lencioni (apud SILVA, FREIRE & OLIVEIRA, 2006), o termo metrpole expressa um conceito polissmico, que, independentemente das mais diver-sas conotaes, apresenta alguns pontos em comum. O primeiro deles que uma metrpole constitui-se de uma forma urbana de grandes propores, seja pelo nmero de habitantes que a compem, seja pelo seu tamanho territorial. O segundo ponto diz respeito vasta e diversificada gama de atividades econmicas e servios. A metrpole, como local de inovao e novidade, o terceiro ponto a ser destacado. O quarto fator que se trata de um local de grande densidade de emisso e recepo de fluxos de informao e comunicao. E, por ltimo, a metrpole se estabelece em um s significado de redes, seja de transporte, infor-mao, comunicao, cultura, inovao, consumo, poder ou, mesmo, de cidades:

    Essa intensidade particularmente identificvel na cadncia exacerbada de nossas cidades grandes. Maquinismos exagerados, lazeres sufocantes e imperativos, rapidez das relaes e dos meios de comunicao, tudo contribui para a intensificao da vida nervosa que era, conforme Simmel, a caracterstica das metrpoles modernas e, claro, com mais fora, das megalpoles ps-modernas. (MAFFESOLI, 2005, p. 144)

    De acordo com Sennet, a cidade tem sido um locus de poder, cujos espaos tornaram-se coerentes e completos imagem do prprio homem (SENNET, 1997, p. 24). nesse ambiente que vivem, de acordo com Certeau (CERTEAU, 1994), os habitantes ordinrios da metrpole. Parte fundamental dessa configurao urbana so os caminhantes e os pedestres, cujos corpos obedecem s diretrizes dos espa-os impostos, corpos que escrevem um texto urbano, porm no podem l-lo:

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    Esses praticantes jogam com espaos que no se veem, tm dele um conhecimento to cego como no corpo-a-corpo amoroso. Os caminhos que se respondem nesse entre-laamento, poesias ignoradas de que cada corpo um elemento assinado por mui-tos outros, escapam legibilidade. Tudo se passa como se uma espcie de cegueira caracterizasse as prticas organizadoras da cidade habitada. As redes dessas escrituras avanando e entrecruzando-se compem uma histria mltipla, sem autor nem espec-tador, formada em fragmentos de trajetrias e em alteraes de espaos: com relao s representaes, ela permanece quotidianamente, indefinidamente, outra. (CERTEAU, 1994, p. 171)

    No espao da metrpole retratado por Criolo, as relaes sociais ocorrem e concretizam-se de forma fragmentada. So relaes traadas pela ao de um tempo fixado, determinado. Para Carlos, assim que espao e tempo aparecem por meio da ao humana em sua indissociabilidade, uma ao que se realiza como modo de apropriao (CARLOS, 2001, p. 24).

    Para Certeau, esse processo um artifcio indeterminado de estar ausente e procura de um prprio. Onde a errncia multiplicada e incorporada pela cidade, gerando uma gigantesca e fragmentada experincia social que cria uma espcie de tecido urbano. Nesse contexto, quanto maior a desigualdade entre os habitantes, mais simblica a identidade criada em seu cerne, onde existe somente um pupi-lar de passantes, uma rede de estadas tomadas de emprstimo por uma circulao, uma agitao atravs das aparncias do prprio, um universo de locaes frequen-tadas por um no-lugar ou lugares sonhados (CERTEAU, 1994, p. 183).

    Na metrpole, a desigualdade marca fortemente os modos, as relaes sociais e, consequentemente, o modo de organizao da vida cotidiana de seus habitantes. As relaes pessoais so substitudas gradativamente por relaes comerciais, nas quais o espao e o tempo determinam e institucionalizam a convivncia de seus habitantes. Enquanto o espao impe novas dinmicas de circulao e envolvi-mento, o tempo parece acelerar-se em funo do desenvolvimento e do progresso da tcnica, que tambm contribui para redefinir as relaes dos habitantes com o lugar, criando novas prticas socioespaciais:

    Parece no haver dvida de que a cidade se reproduz, continuamente, como condio geral do processo de valorizao gerado no capitalismo no sentido de viabilizar os processos de produo, distribuio, circulao, troca e consumo e, com isso, permitir que o ciclo do capital se desenvolva e possibilite a continuidade da produo, logo, sua reproduo. (CARLOS, 2001, p. 15)

    Sennet observa que ao longo do sculo XIX, o desenvolvimento urbano valeu-se das tecnologias de locomoo, de sade pblica e de conforto privado, do mer-cado e do planejamento urbano para combater a demanda das massas e privilegiar os clamores individuais, um processo que sempre esteve atrelado ao materialismo

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    (SENNET, 1997). A metrpole dissolve antigos modos de vida e modifica as relaes entre as pessoas, assim como redefine as formas de apropriao do espao. Em funo de todas essas imposies, surgem novos hbitos e comportamentos que transformam o modo de habitar a metrpole, ao que adquire novos significados e sentidos.

    o amor no espao-tempo da metrpole

    Em contraposio cano composta por Criolo, surgiu, na cidade de So Paulo, no incio de 2012, um movimento de interveno urbana chamado Aqui bate um corao. Um grupo de vinte amigos decidiu manifestar-se, por meio da interven-o artstica no espao urbano, e mostrar que, apesar das dificuldades e mazelas impostas pela metrpole e pela vida moderna, ainda existe amor na cidade. Aps um extenso mapeamento, o grupo saiu s ruas, na madrugada do domingo, dia 5 de maro, e colou coraes vermelhos, feitos de isopor, em diversos monumentos, esculturas e bustos espalhados pelo espao pblico, com o cuidado de no danifi-c-los. Como afirma Le Breton: As representaes populares de nossas sociedades conferem ao corao uma imagem simblica que o associa ao amor, generosi-dade, ao carinho, etc. Cada rgo mobiliza sentimentos particulares (LE BRETON, 2006, p. 151).

    Praa da S, Vale do Anhangaba, Praa da Repblica, Largo do Arouche, Parque do Ibirapuera e Trianon, espaos de grande circulao e aglomerao de pessoas, em So Paulo, foram alguns dos lugares onde as frias e estticas esculturas de bronze ou pedra receberam um corao vermelho em seu peito, a fim de sus-citar o pensamento sobre o amor no cotidiano da metrpole. Espaos de grande relevncia para a cidade, capazes de proporcionar experincias ligadas ao passado histrico e com significado poltico:

    Existe um trabalho do tempo e da memria sobre as emoes, um trabalho de signifi-cado, que leva, por vezes, modificao da forma como um acontecimento experimen-tado. Isso pode ocorrer quando, por exemplo, o sujeito depara com o novo testemunho dos eventos, o que faz tomar repentinamente conscincia de um fato inicialmente des-percebido e traar, graas a uma conjuno de fatores, um elo entre acontecimentos inicialmente apartados. (LE BRETON, 2006, p. 118)

    Divulgado por meio de redes sociais na Internet, como Twitter e Facebook, o projeto gerou grande repercusso, sendo noticiado por grandes veculos de mdia e meios de comunicao nacionais e internacionais. Na sequncia, cidados de outras cidades brasileiras, incentivados pelo movimento paulistano, tambm espalharam coraes vermelhos por seus monumentos. Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador,

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    Campinas e Recife foram algumas das cidades brasileiras pelas quais o projeto se espalhou. A interveno ultrapassou tambm as fronteiras do pas, e outras cidades pelo mundo tambm receberam a ao, como Londres, Barcelona e Montevidu.

    Intervenes urbanas, juntamente com a publicidade, manifestaes sociais e polticas e monumentos so linguagens que representam as principais foras ope-radoras na cidade. De acordo com Canclini (2008), os monumentos so, quase sempre, obras em que o poder poltico exalta pessoas e acontecimentos ligados ao Estado. J a publicidade busca estabelecer uma relao entre a vida cotidiana e o poder econmico.

    Enquanto as intervenes expressam a crtica e a insatisfao popular ordem imposta, no movimento urbano os interesses comerciais fundem-se com os inte-resses histricos, estticos e comunicacionais. As batalhas semnticas travadas na busca por neutralizar, confundir e alterar a mensagem alheia ou transformar o seu significado, e subordinar os demais prpria lgica, so metforas dos conflitos entre foras sociais: entre o mercado, a histria, o Estado, a publicidade e a luta pela sobrevivncia.

    Assim, as trocas entre os monumentos e a interveno poltica situam, em redes heterclitas, a organizao da memria e da ordem visual e, consequente-mente, em outra apreenso e apreciao esttica do meio urbano. Um processo sociocultural de hibridizao, no qual estruturas ou prticas que existam de forma independente misturam-se para gerar novas estruturas, objetos e prticas. Um processo que surge da criatividade individual e coletiva, no s no campo artstico como tambm na vida cotidiana, na qual se procura reconverter um patrimnio para reinseri-lo em novas categorias de produo (CANCLINI, 2008, p. XXII).

    Segundo Magnani (MAGNANI, 1996), uma metrpole como So Paulo, que nutre representaes que a identificam com o trabalho, a formalidade, a frieza das relaes impessoais e o anonimato da vida cotidiana, constitui um espao privile-giado para intervenes desse tipo. Soma-se a esse fato a diversidade de seus habi-tantes, a riqueza de suas tradies culturais, a variedade de seus modos de vida.

    Na madrugada, os coraes invadem os espaos pblicos e tentam ali-los ao homem. A cidade tomada como campo de experimentao potica e nmade. Lugares inicialmente concebidos como de todos, quando tomados pela movimen-tao urbana, acabam por isolar as pessoas. Um espao que se tornou apenas lugar de passagem, rpida e necessria.

    O espao do fluxo e da constante transformao torna-se um espao de reno-vao da percepo da experincia: os monumentos, que muitas vezes passam des-percebidos aos olhos dos habitantes, ganham uma nova dimenso. Para Peixoto, o espectador passa de uma contemplao deambulatria de objetos autnomos,

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    apresentados num contexto neutro, para viver uma experincia esttica (PEIXOTO, 2002, p. 18). Essa nova experincia esttica altera a contemplao de esculturas autnomas, dando-lhes novas percepes e ampliando seus significados.

    A interveno colabora para redefinir o espao urbano da metrpole, cria novas tramas com os marcos e o urbanismo ao redor e enfatiza novos aspectos, que at ento no estavam inscritos no local. Ocorre uma apropriao da arte pblica: ao escolher as esculturas que recebero os coraes vermelhos, buscam-se monumentos especialmente dotados de significado histrico ou imaginrio:

    A obra impe algo estranho que permite organizar a experincia do lugar. Uma ao que reestrutura a percepo de um espao dado. A emergncia de novas relaes entre as coisas num contexto dado mais que a qualidade intrnseca da prpria coisa engendra novas significaes e novos modos de ver. (PEIXOTO, 2002, p. 22)

    Os coraes contribuem para se repensar o sentido dos monumentos e sua relao com a cidade, a arquitetura e o ambiente urbano. Um procedimento que redefine a especificidade desses mesmos monumentos e proporciona um novo tipo de experincia esttica em meio ao cotidiano.

    o que Certeau define como prticas estranhas ao espao geomtrico das gran-des cidades (CERTEAU, 1994). Prticas que remetem a formas especficas de opera-es, que proporcionam novas visibilidades para a metrpole. De acordo com o autor, o espao um lugar praticado, assim, os coraes vermelhos colocados sobre as esculturas transformam poeticamente o espao no qual elas esto inseridas.

    Em meio vida agitada e catica das metrpoles, os coraes de isopor pare-cem nos mostrar que o homem mais do que um ser produtivo e que suas relaes vo alm de sua insero nos modos de produo flexvel impostos pelo capita-lismo. Para Eagle,

    O espao social o lugar onde se realiza a coexistncia entre os homens, onde se cons-tri o tecido social que faz a ao poltica, que, por sua vez, exige um coletivo de indiv-duos, mas s agimos no conjunto da sociedade. Nesse espao, so construdos os inte-resses coletivos, dos quais emerge a importncia do ns, do agir em conjunto. O poder nasce dessas relaes de concordncia entre os homens, de um curso comum da ao, pois sem o grupo social ele no existe. (apud SILVA, FREIRE & OLIVEIRA, 2006, p. 248)

    Segundo Maffesoli, a ao poltica uma instncia que, em seu sentido mais forte, define a vida social, limitando-a, constrangendo-a e, ao mesmo tempo, per-mitindo sua existncia. Assim, podemos pensar o poltico como uma srie de necessidades inevitveis que geram conflitos e negociaes, tenses paradoxais responsveis pela relao com o outro. Segundo o autor, toda agregao social comea com a violncia:

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    O outro me nega, e devo acomodar-me a essa negao, compor com ela. Desde a comea o poltico. Retomo aqui uma excelente definio de Julien Freund para quem o poltico instncia por excelncia do desdobramento, da gesto e da soluo dos conflitos. (MAFFESOLI, 2005, p. 26)

    O ato de colar coraes vermelhos nos monumentos do ambiente urbano busca solucionar, mesmo que efemeramente, o conflito gerado pela agitao e o caos da metrpole, que negam e dificultam as relaes pessoais. Trata-se de um conflito que , na maior parte do tempo, racional, porm transpassado pelo afeto. Uma pequena ao que gera grandes efeitos. Um deslocamento, uma leve modi-ficao na paisagem urbana que se torna vetor de uma grande interveno, que sai das ruas de So Paulo e espalha-se por outras cidades do mundo. Pequenas modificaes do esttico que favorecem uma dinmica importante. De acordo com o autor, o ritmo ps-moderno feito do encontro desses fragmentos de atem-poralidade, no qual o ldico e o imaginrio pontuam a vida cotidiana: a vida cotidiana salva, transfigurada, por essas rupturas pontuais, esses instantes em suspenso, respiraes musicais que permitem o bom funcionamento ou a harmo-nia de determinado conjunto (MAFFESOLI, 2005, p. 147).

    Dessa maneira, a interveno abre caminho para a valorizao do efmero e do espontneo na vida cotidiana, e possibilita entender o sentido que Hlderlin d ao habitar, quando prope que o homem habita poeticamente o mundo (CARLOS, 2001, p. 216). Trata-se de um novo modo de apropriao do espao urbano, que implica em uma nova maneira de agir, sentir e perceber a metrpole. Assim, a interveno contribui para a formao da identidade e da visibilidade da cidade, modificando-a e humanizando-a:

    A passagem do tempo de trabalho ao tempo de no-trabalho, do espao como valor de troca para aquele do uso, redundaria num deslocamento do interesse social do produto para a obra, do trabalho produtivo para a ao potica e por conseguinte do quantita-tivo ao qualitativo, do valor de troca ao valor de uso. (CARLOS, 2001, p. 216)

    A interveno, a metrpole e o sujeito constituem assim uma trade, que altera a percepo do espao urbano e os elementos nele contidos: os coraes colados sobre os monumentos proporcionam-lhes uma nova visibilidade, que s pode ser percebida pelo olhar sensvel do sujeito. Trade que est diretamente relacionada aos modos de vida, s relaes culturais, sociais, econmicas, polticas etc.

    O dilogo entre a interveno e os habitantes da metrpole somente se via-biliza no espao de circulao da cidade, transformando-se em uma experincia esttica. Para Chinem & Silva (2011), retoma-se a experincia corprea do espec-tador, uma vez que ele conduzido a um passeio que une o ato sensvel entre o ver e o caminhar pela metrpole. O conhecimento da interveno deve-se s diversas

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    transaes entre os pontos de vista do observador e o monumento observado, que se integram na (re)descoberta do espao.

    A interveno provoca uma ruptura na ordem mecnica da metrpole e intro-duz uma descontinuidade. Uma pequena e fugaz transformao, que tem o poder de mudar o entorno e levar poesia para o ritmo irregular da metrpole. Ela se produz a partir da apropriao dos monumentos espalhados pelo espao pblico, envolvendo-os de sensibilidade e transformando-os. O ato de espalhar coraes pela cidade afasta-se dos gestos repetitivos, do comportamento normalizado e da reproduo, desprendendo-se da homogeneidade imposta pelo cotidiano e per-mitindo pensar os limites impostos pelo espao-tempo da cidade. Com Aqui bate um corao, pode-se dizer, como afirma Le Breton, que uma nova cultura afetiva est socialmente em construo na metrpole (LE BRETON, 2006).

    referncias bibliogrficas

    CANCLINI, Nstor Garca. Culturas hbridas: estratgias para entrar e sair da modernidade. Trad.: Ana Regina Lessa, Helosa Pezza Cintro. 4a ed. So Paulo: EdUSP, 2008.

    ______. Diferentes, desiguais e desconectados. Trad. Luiz Srgio Henriques Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

    CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espao-tempo na metrpole: a fragmentao da vida coti-diana. So Paulo: Contexto, 2001.

    CERTEAU, Michel de. A inveno do Cotidiano: 1. artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrpolis, RJ: Vozes, 1994.

    CHINEM, M. J. & SILVA, D. O. S. A interveno da potica visual de Eduardo Kobra na cidade de So Paulo. In: Anais SEMINRIO INTERNACIONAL SOBRE ARTE PBLICA EM LATINOAMRICA, Vitria-Belo Horizonte: C/Arte, 2011, p. 492-501.

    LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Trad. Sonia M.S. Fuhrmann. Petrpolis: Editora Vozes; 2006.

    MAFFESOLI, Michel. A transfigurao do poltico: tribalizao do mundo. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005.

    MAGNANI, Jos Guilherme C. & TORRES, Lilian de Lucca (Orgs.) Na Metrpole Textos de Antropologia Urbana. So Paulo: EDUSP, 1996.

    PEIXOTO, Nelson Brissac (org.). Intervenes urbanas: arte/cidade. So Paulo: SENAC, 2002.SENNET, Richard. Carne e pedra. Trad. Marcos Aaro Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997.SILVA, Catia Antonia da, FREIRE, Dsire Guichard & OLIVEIRA, Floriano Jos Godinho de

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    Recebido em 23.03.2014Aceito em 02.06.2014