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P R Ó L O G O

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Após uma tarde de treinamento intenso, Charly Gaticker não me mandou para o vestiário.

— Esta noite vamos jogar um “torneio de dinheiro”.

Eram torneios comuns na Argentina, que reuniam te-nistas dos mais variados tipos. Os frustrados, que chegaram ao pro� ssionalismo, mas � caram pelo caminho; os desiludidos, pela falta de apoio, que se recusavam a desistir; os verdadeiros operários do tênis, literalmente correndo atrás do dinheiro; e jovens como eu, cheios de sonhos e com um terrível medo de um dia ser como eles.

Não se jogava por pontos num ranking, muito menos por troféus. Era por dinheiro, e mais nada.

Meu adversário era adulto, bem mais velho que eu, com meus 15 anos. Seu jogo, pelo menos naquela noite, era baseado na intimidação. Ele me olhava feio, falava bobagens nas viradas de lado, queria ganhar também no grito.

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Senti medo, pois ainda era muito inexperiente para sa-ber que as ofensas e ameaças que vinham do outro lado da rede eram, na verdade, sinais da mais pura fraqueza mental. Duas horas de sofrimento, jogo brigado, e estávamos no iní-cio do segundo set. Eu tinha perdido o primeiro.

Foi quando a tarde inteira que passei treinando me co-brou seu preço: meu corpo deixou de me pertencer.

— Não tenho mais pernas, estou morto! — gritei para meu preparador físico.

A resposta curta talvez tenha sido a maior lição que aprendi:

— Fernando, se você não tem mais pernas, vença com o coração.

Venci.

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Assim tudo começou

Sete e meia da manhã.Calculei que não podia me atrasar para pegar o ônibus.

Uma hora e pouco até o ponto mais perto do clube, mais uma caminhada, e eu estaria na quadra às nove.

Saí congelando de frio. Calle Serrano, à esquerda na avenida Córdoba, cinco

quadras até a avenida Caning, e me pus a esperar o ônibus ver-de, número 15. Ele demorou mais de uma hora. Entrei e sentei num banco, a raqueteira do lado, o ônibus ainda meio vazio.

Mas logo encheu e a raqueteira veio para o meu colo.As mulheres mais velhas, ou com crianças, entravam, e

os homens que estavam sentados imediatamente cediam seus lugares. Aos 15 anos de idade e com um dia de treino pela frente, � car em pé não fazia parte dos meus planos. Mas, de um jeito ou de outro, aprendemos a ser gentis.

Desci no meu ponto às nove horas e dois minutos. Duas quadras depois, a alguns passos da entrada do clube, pude ver meu futuro técnico, na calçada, de braços cruzados.

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Que moral. Primeiro dia de treino e o cara já foi me receber na porta... Cheguei com o peito estufado. Charly me cumprimentou.

— Olá, Fernando.— Olá, Charly.— Que horas são?— Nove e quatro.— E que horas combinamos?— Às nove.— Pega as tuas coisas e volta amanhã. Na hora certa.

Por cima do ombro dele pude ver todos os outros me-ninos já fazendo aquecimento na quadra. Não sabia o que dizer. Argumentei que não estava tão atrasado, que o treino ainda não tinha começado.

— Até amanhã, Fernando. Às nove.

“Estou pagando.”“Tua obrigação é me dar treino.”“Não importa se atrasei.”“Porra, o ônibus demorou uma hora e meia para chegar!”

Todos esses pensamentos passaram pela minha mente adolescente. Ainda bem que não se transformaram em pala-vras. Voltei para casa chorando no ônibus.

Mas Charly me fez entender que pontualidade é res-peito.

Esse foi o primeiro dia de uma convivência que durou dois anos e meio na academia Barral Gattiker, a melhor da Argentina em treinamento para tenistas. Dois anos e meio

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que foram fundamentais na minha formação de atleta e de homem.

Mas essa história começou algum tempo antes, na sala da casa dos meus pais, em São Paulo.

Não nasci numa família de esportistas. Meu pai cres-ceu ajudando minha avó numa quitanda, em Buenos Aires, e virou fotógrafo na garra, um vencedor autodidata.

Em 1975, recebeu um convite para trabalhar no Brasil. A Fiat estava lançando um novo carro, e a agência que

tinha a conta da montadora italiana por aqui quis contratar um fotógrafo experiente. Meu pai veio e � cou seis meses lon-ge da família.

Nos meses seguintes, o que era um trabalho esporádi-co se transformou em algo mais freqüente, até que meu pai achou que valia a pena mudar de país, apesar de sua carreira sólida na Argentina.

Minha mãe lembra da conversa que aconteceu numa tarde de sexta-feira.

Ela achou a idéia um pouco complicada. Não só pela carreira do marido, mas porque ela tinha acabado de abrir uma loja de representação de algumas marcas famosas de roupas. Aos poucos, ela conta que foi se acostumando à mudança.

Minha mãe, minha irmã Paula e eu viemos de ôni-bus, tamanha era a quantidade de tralhas que trouxemos de Buenos Aires.

Após as primeiras horas da longa viagem, eu já conhe-cia todo mundo. Ou melhor, todo mundo já sabia quem era aquele moleque de 4 anos que enchia a paciência dos passa-geiros. Nessa idade não temos idéia do ridículo.

Também não temos idéia da importância das coisas. Eu me lembro que minha mãe e minha irmã não se diverti-ram tanto. Elas sabiam que estávamos passando por um mo-

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mento importante. Não era necessariamente ruim, mas era certamente difícil.

Chegamos a São Paulo e fomos direto para o aparta-mento onde iríamos morar. Paula e eu dividíamos o mesmo quarto, e, logo, as mesmas di� culdades de adaptação em um novo país, a uma nova língua e a novas pessoas.

Assistir ao Fantástico aos domingos e não entender nada, por exemplo.

Vivíamos entre tapas e beijos, mas com muito compa-nheirismo. Paula era a minha protetora na escola, onde todos se acostumaram a ver aquele menino chorão que saía corren-do da classe, descia as escadarias e se metia na sala da irmã, pedindo ajuda, pelo menos três vezes por semana. Ela nem pedia licença para a professora. Largava o que estava fazendo e ia resolver o problema.

Não sei se até hoje ela sabe quanto me ajudou.Foi nesse colégio que tive os primeiros contatos com

esporte, na aula de educação física. Que o Thiago Camilo e o Flávio Canto não me ouçam, mas minha primeira paixão foi o judô. Meus rolamentos no tatame eram perfeitos... A passagem da faixa branca para a azul foi um dos momen-tos mais importantes da minha infância. A primeira vez que meus pais me viram disputar uma competição.

Naquela época, tênis, para mim, era o meu Kichute preto. O caminho mais lógico era o futebol. Eu até tentei.

Os outros meninos me chamavam de Mario Kempes, a� nal, eu era o recém-chegado da Argentina. Mas o Mario � caria envergonhado se me visse envergando seu nome com uma bolinha tão pequena. No primeiro campeonato, joguei de centro-avante. Franzino, mas um azougue. Nosso time fez oito jogos, empatou um e perdeu todos os outros. O artilheiro aqui não marcou nenhum gol.

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Foi bom descobrir cedo que a bola grande não me da-ria muito futuro.

Mas no clube A Hebraica, perto de casa e mais barato para meus pais, encontrei meu caminho. Apesar de ter come-çado no futebol de salão, não demorou para que eu seguisse o exemplo da Paula, que já jogava tênis, estimulada por meu pai.

Ele costumava jogar futebol com os amigos. Era um goleiro muito considerado na posição, especialmente por ser argentino. Uma tarde, chocou-se com o joelho de um ata-cante, numa dividida feia. Traumatismo craniano, um baita susto na família inteira e, claro, adeus ao futebol.

Buscou um esporte sem contato e encontrou o tênis. A Paula o seguiu, e eu cheguei por último, em parte porque, após o acidente com meu pai, o futebol de salão parecia assustador.

Atrás de casa tinha uma garagem onde a Paula gostava de � car horas batendo bola na parede, e eu � cava olhando aquele ritual. Ela tirava a raquete da mala, cuidava como se fosse de ouro. É claro que, quando me deixava usá-la, eu ras-pava aquela coisa preciosa no chão, só de sacanagem. Eu não percebia que ela me incentivava para, em breve, me fazer de bobo na quadra.

A vontade de ganhar da Paula me motivou. Meu pri-meiro professor foi o inesquecível José Flávio Nunes. Profes-sor com P maiúsculo. Em meio às primeiras raquetadas da minha vida, o Nunes já falava em dedicação, em amor pelo que fazemos e em fé.

E eu já começava a descobrir que adoraria treinar, jo-gar, competir.

Mas ainda não fazia isso aos 8 anos. Comecei indo uma vez por semana, depois pedi mais um dia... quando meus pais perceberam, eu já estava na quadra a semana inteira. Logo o

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Nunes se transformou em um companheiro e numa in� uên-cia importantes. Para meus pais, que trabalhavam muito, era uma tranqüilidade saber que eu passava boa parte dos dias com uma pessoa que eles conheciam e em quem con� avam. Tanto que, com 10 anos, eu já viajava com o Nunes para alguns torneios pelo Brasil.

Foi nessa época que meu pai percebeu que alguma coisa estava acontecendo:

Muitos pais me perguntam: quando é que você teve cer-

teza de que seu � lho seria um tenista pro� ssional?

Eu poderia encher de prosa a cabeça desses angustia-

dos e enaltecer minha infalível intuição. Que nada. Foi

numa tarde em que cheguei ao clube onde ele estava

disputando seu primeiro torneio da categoria 10 anos.

Fiquei longe, o momento pertencia a Nunes e Fernando,

a mais ninguém.

Fernando perdeu um jogo em que só faltou fazer chover.

Lutou com uma garra que eu desconhecia. Jurei que fa-

ria todo o possível para que ele fosse um tenista pro� s-

sional. Se ele quisesse.

Osvaldo Meligeni

Minha mãe sofreu nessa época. Foi eleita a motorista da casa, mesmo que essa fosse uma decisão arriscada. Ela levava meu pai, a Paula e eu para todos os torneios existentes na cidade, e fora também.

Até hoje perguntam a ela como sobreviveu ao tênis familiar, e ela responde que alguém tinha de trabalhar na família...

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Eu não jogava esses torneios para ganhar, mas sim para aprender. A competição ensina valores sem que se perceba. Respeitar o técnico e os adversários. Aceitar as derrotas. Sa-ber ganhar, o que é mais difícil.

A partir dos 12 anos, mudei de clube e tive outros téc-nicos. Gente que me ajudou muito e de quem me lembro com carinho. Gringo, Cidinho, Jarrão, Sérgio Ferreira.

Mudei várias vezes de escola, também. Minha rotina de “projeto de tenista” implicava muitas faltas, nem todos os colégios aceitavam. Contava com a paciência e a colabo-ração dos colegas na hora dos trabalhos em grupo. E com a assistência da Paula na hora de me preparar para as provas, com exigentes chamadas orais. Ela só não precisava contar para a minha mãe quando � cava evidente que eu não tinha estudado absolutamente nada.

Para mim, já estava claro o que queria fazer da vida. Todas as escolhas levavam em conta que o tênis seria a mi-nha pro� ssão. Mas em casa as pessoas ainda não estavam to-talmente convencidas. Pelo menos, era o que eu achava. Não sei se eles estavam sendo discretos ao máximo para não me pressionar muito, ou se não gostavam do fato de a escola � car em segundo plano.

O que me animava era ver que meu pai se esforçava muito para me bancar. Claro que às vezes não dava. Eu me preparava para jogar num torneio fora de São Paulo, e ele chegava à noite dizendo que infelizmente não tinha dinheiro para aquela viagem. Eu tinha de guardar a minha empolga-ção para outro dia e treinar mais uma semana.

Com 15 anos, bati numa parede. Treinava duro, ganhava mais do que perdia, era um

tenista respeitado na minha faixa de idade, mas estava aco-modado naquela vida de treinos e jogos.

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Sentia que meus dias estavam ligados no piloto automá-tico. Sentia falta de uma estrutura que me � zesse pensar apenas em tênis. Ao mesmo tempo, a adolescência é um período de descobertas. A vida estava � cando bem atraente fora da quadra. Meus amigos iam para as matinês das boates, alguns já toma-vam suas cervejinhas. E eu sabia que esse era um caminho que ia no sentido contrário ao de quem quer viver do esporte.

Mas e se eu me privar dessas coisas todas e não conse-guir chegar aonde quero? Será que não dá para levar as duas vidas juntas?

Foi aí que tivemos aquela conversa na sala de casa.Meus pais já tinham percebido que eu estava numa

encruzilhada. Na verdade, mais do que isso, eles sabiam que aquele momento chegaria.

Queriam investir na minha carreira, queriam me dar a oportunidade de ser pro� ssional. E tinham uma boa idéia: mandar-me para a Argentina.

Naquela época, o tênis argentino tinha vários jogadores entre os melhores do mundo. E em Buenos Aires havia uma espécie de centro de excelência para a formação de tenistas.

A opção � cou clara após um episódio ridículo.Aos 15 anos, joguei todas as etapas de uma série de

campeonatos na América do Sul chamada Circuito Cosat. Ganhei várias. Quando chegou a época do Banana Bowl, em São Paulo, eu era o número 2 do ranking sul-americano, mas não fui convocado pela Confederação Brasileira de Tênis para disputar o torneio mais importante do país.

O motivo, que nunca foi dito com todas as palavras: eu era argentino, provavelmente estava tomando o lugar de alguém.

Protestamos na Confederação Sul-Americana e acabei sendo convocado na marra, como cabeça-de-chave número 2 do torneio.

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Cheguei à � nal contra outro tenista argentino, Martin Stringari. Perdi, mas isso não foi o pior. Naquela época, os tro-féus eram entregues aos jogadores logo após o jogo, na quadra. Esperamos quase meia hora, até que alguém da confederação chegasse para entregar os prêmios a dois argentinos.

Era óbvio que tinha que sair daqui.Meus pais achavam também que uma mudança de

ares seria boa. Fazer algo diferente do que se fazia no Brasil. Outro ambiente, outro tipo de treinamento, outra exigência.

Claro que eles também imaginavam o que uma expe-riência como essa signi� caria para mim, não só como tenista.

Hoje eu me lembro daquela conversa e imagino como deve ter sido difícil dizer para um � lho que o melhor para ele é buscar sua própria vida em outro país. Este é só mais um episódio que me faz ter orgulho de ser � lho da Conce e do Osvaldão. E do alicerce familiar que eles criaram para nós.

Durante um mês de férias em Buenos Aires, exigência da minha mãe para que revíssemos os parentes e matássemos a saudade, percorremos as melhores academias da cidade em busca do lugar certo para treinar.

E, ironia do destino, ouvimos as desculpas mais lamentá-veis, como “só treinamos tenistas de renome”, ou “desculpe, mas nunca ouvimos falar dele, a senhora deve trazer um currículo”.

Mas os técnicos da Barral Gattiker nos receberam mui-to bem. A escolha estava feita.

Meu pai exigiu metas ambiciosas:Terminar o ano entre os oito melhores juvenis da Ar-

gentina.Fazer um curso de fotogra� a.Fazer um curso de computação grá� ca para que, se

tudo desse errado, eu pudesse trabalhar no seu estúdio de fotogra� a.

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E fazer um curso de inglês.Nos cursos de fotogra� a e computação, não me for-

mei. No curso de inglês, não me matriculei.Já em relação ao objetivo esportivo...Fui morar na casa de um cara que, anos depois, se

transformou em um adversário duríssimo no circuito, e num grande amigo. Quem conhece tênis certamente já ouviu fa-lar de Luis Lobo. Era um esquema de intercâmbio, de morar numa casa de família. Claro que o fato de ter um tenista mo-rando lá ajudou.

Logo eu estava desembarcando na cidade onde nasci quinze anos antes, o pai do Lobito à minha espera. O meni-no que era chamado de “argenta” no Brasil, agora era um “brasuca” na Argentina. Vai entender.

Fiquei quatro ótimos meses com eles, que � zeram tudo para que eu me sentisse confortável. Tinha um quarto só para mim, comia o que quisesse. O Lobito me levava aos lugares que ele queria que eu conhecesse, até fomos a um Boca Ju-niors x River Plate, que me fez virar torcedor do Boca.

Logo percebi que a primeira parte da experiência era so-frer. No Brasil, eu levava a vida de um moleque, e jogava tênis. Na Argentina, eu só jogava tênis. Aprendi que solidão e sauda-de da família são sentimentos difíceis de enfrentar. Eu chorava direto, pensei muito em desistir, liguei para casa dizendo que queria voltar. Meu pai teve toda a paciência do mundo para, todas as vezes, me convencer que essa fase passaria. E que não tinha sentido voltar antes de tentar de todas as formas.

Tentar, de todas as formas.Decidimos por uma mudança. Eu iria morar com a

minha avó, Cata. A casa dela era mais longe do clube, mas família é família. Por melhor que fosse o tratamento na casa dos Lobo (e era maravilhoso), com minha avó, eu não me

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sentia um hóspede. Ela me chamava de “meu médico”, dizia que minha presença lhe trazia saúde.

Eu dormia na sala, ao lado do canário Frederico, que cantava todo dia às sete da manhã. Tinha meu canto na casa da minha avó, com quem tinha convivido tão pouco. E ela, que já reclamava de � car sozinha, adorava ter-me por perto. Não sei quem cuidava de quem. Só sei que passei a me sentir muito melhor. Os cafés-da-manhã com doce de leite e os jan-tares do jeito que eu gostava (quase sempre massa e um belo bife) não atrapalharam nem um pouco...

É lógico que no segundo dia de treinos eu cheguei no horário combinado.

Os técnicos me explicaram por que fui mandado de volta para casa pelo atraso no dia anterior. Mostraram que, mesmo com apenas 15 anos, o tênis já era a minha pro� ssão. Exigiram responsabilidade. Posso não ter percebido na hora, mas aquilo era exatamente o que eu precisava.

O treinamento em si não era muito diferente do que eu já conhecia. O que saltava aos olhos era a dedicação dos técnicos, a importância que davam a cada dia de trabalho. E mesmo quando o treino acabava, havia uma espécie de teste. Um dia, só estava liberado para tomar banho e almoçar quem conseguisse acertar quinze saques fortes seguidos. Eu � quei mais de uma hora tentando depois do treino. Achei que não conseguiria. Falei para um dos treinadores que ia desistir. A cara de decepção que ele fez me chocou, � cou marcada na minha memória por anos como um sinal de que desistir não é uma opção.

O esquema era pro� ssional. Os melhores juvenis da Argentina estavam divididos em duas academias, a nossa e a do Pancho Mastelli. Três horas de manhã, três horas à tarde, reuniões semanais para avaliar os jogadores. O obje-

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tivo de todos era estar entre os doze melhores, que tinham treinamento pago, preparador físico, médico, passagens para torneios internacionais e, o mais gostoso, status de melhores jogadores da academia.

A competição entre nós era evidente, mas saudável. Resolvi que se não chegasse em casa com dores pelo corpo, não tinha treinado su� ciente.

Mas sempre havia alguém que treinava mais do que eu. A cultura tenística na Argentina era formidável, os ídolos estavam todos por perto, uma verdadeira escola.

Os dois primeiros torneios que disputei em Buenos Aires foram experiências inesquecíveis. Duas etapas do Campeo-nato Metropolitano. Na primeira, talvez por ser quase total-mente desconhecido e ter fama de brasileiro, escolheram o cabeça-de-chave número 2 para jogar comigo.

Ganhei rápido. E fácil.Depois do jogo, apareceram com uma liminar para me

tirar do torneio, por eu ser brasileiro! Imagine a cara que � ze-ram quando viram minha carteira de identidade argentina...

Ganhei o campeonato e, a partir daí, eles me conhe-ceram melhor.

Na segunda etapa, enfrentaria um dos tenistas mais prestigiados da Argentina. Para aumentar a pressão, seu téc-nico foi uma das pessoas que esnobaram minha mãe quando ela procurava uma academia para mim.

Ganhei em dois sets, graças a um papelzinho no bolso dos shorts, com instruções do meu técnico.

Minha mãe não se surpreendeu:

Ao término dos anos que passou na Argentina, Fernando

era o número 3 do mundo na categoria 18 anos. Nenhum

dos seus resultados me chamou a atenção, pois ao con-

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trário do raciocínio do Osvaldo, que pretendia dedicação

e obediência total, sempre acreditei que ele conseguiria

coisas extraordinárias quando chegasse o momento. Sen-

timento que me acompanhou depois, durante o pro� ssio-

nalismo, em que ele nunca me decepcionou. Mãe é mãe.

Concepcion Meligeni

A tão complicada transição de juvenil para pro� ssional foi um processo tranqüilo para mim. Não tenho dúvida de que só foi assim por causa da decisão de voltar para Bue-nos Aires. Como disse antes, formação de tenista e homem. Obstinação, trabalho duro, responsabilidade. Não sei se teria conseguido de outra forma.

Dois anos e meio depois, quando já estava totalmente adaptado à vida na Argentina, surpresa! Meu técnico, Daniel Musacchio, que era casado com uma brasileira, decidiu se mudar para o Brasil. A opção de vir com ele, que poderia ser meu treinador particular, pareceu óbvia.

Eu tinha adorado a Argentina, mas nunca havia dei-xado de me sentir brasileiro. Resolvi voltar. E tomei outra decisão importante: me naturalizar.

Se aos 16 anos ser argentino foi um problema para mi-nha evolução, voltar ao Brasil me criou outras di� culdades, em especial em relação a patrocínios.

A naturalização era algo que eu queria por me sentir brasileiro.

A família impôs uma única condição: não se envolve-ria no processo.

A decisão era minha. E só minha.

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