Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

167
Aquilino Ribeiro Aventura maravilhosa De D. Sebastião Rei de Portugal depois da batalha com o Miramolim 1983, Livraria Bertrand. S. A. R. L., Lisboa

description

Aquelas coisas todas, que eu já disse.

Transcript of Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Page 1: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Aquilino Ribeiro Aventura maravilhosa

De D. Sebastião Rei de Portugal depois da batalha com o Miramolim

1983, Livraria Bertrand. S. A. R. L., Lisboa

Page 2: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

António Sérgio Fraterna e admirativamente escrevo aqui o seu nome. Por não poucos

anos comemos o pão amargo às mesas redondas do exílio; não tínhamos, nem temos ainda hoje diferente balsão. À sua galhardia de intelectual no que o termo tem de mais puro; ao ardor e desassombro, que em si assume o culto dos princípios, sempre os mais nobres e humanos; ao talento e zelo, levado por vezes até à cólera, com que exerce a polícia das ideias numa terra bravia, eu devia esta homenagem. Compus o presente livro - vai dar conta - um pouco ao estilo de Veroneso, que vestia os seus rabinos sumptuosos, os seus comedores cananeus, mulheres de tribo no guarda-roupa dos doges e patrícios. Por outra, a linguagem, indumentária do pensamento, nem sempre vem patinada do verde-bronzeado do século em que decorre o drama. Pareceu-me tal requisito fora da razão, ridículo até, abolido no próprio Teatro de D. Maria de pomposa memória, Mas a piratas de Argel, frades da Igreja Latina e monges do Monte Santo, galés epolacras, combates na terra e no mar, sobretudo ao Encoberto e ao Demónio do Meio-Dia, procurei pintar com honesta verdade, segundo os tombos e a luz da crítica. Representar estas duas personagens de alto coturno com preconcebimento de credo ou paixão facciosa seria cometer uma simonia literária de que arrenego. Por essa virtude, ao menos, que o meu preito sei a grato ao contendor vitorioso do Desejado.

Muito seu AQUILINO RIBEIRO

Page 3: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

D. Sebastião carregou à testa dos seus barões. Vestia armas azuladas, o

elmo com que seu avô Carlos V entrara em Tunes, e montava o Pérsio. de mãe que diziam ter alcançado do vento, corredor tão ligeiro e de bom andar que passava na areia sem deixar o sinal das ferraduras. Acaudatavam-no doze pajens com outros tantos cavalos de raça, do mais estremado que aparecera por feiras e coudelarias.

Já a essa altura o terço dos aventureiros, capitaneado por Álvaro Pires de Távora, voltava da primeira refrega com os ginetes de Mulei Ahmede. De armas falseadas uns, gotejando sangue muitos deles, o turbilhão do recuo envolveu a manga dos tudescos, de tal jeito que deixou de se ver o seu balsão quarteado de preto e amarelo flutuar aos ventos da batalha. Debalde Martim de Borgonha, levado no roldão, vociferava em castelhano:

- Hombres, vergúenza! A desordem ganhava a picaria à retaguarda. Entretanto os arcabuzeiros italianos eram britados sob o peso da cavalaria moura e o fogo dos seus mosquetes. Mas os aventureiros, protegidos pela infantaria de Tânger, tornavam à carga contra os elches. E a sua bandeira, duas pirâmides de ouro em fundo verde, viu-se de novo voejar por cima do mar humano, ora trémula, ora ovante, conforme os sacolejões da avançada. Saiu-lhes, porém, de face e de flanco tal poder de inimigos que as suas cinco filas flectiram e foram rotas. Depois de rotas, desfeitas, e não quedou mais que uma meia dúzia de combatentes de pé a afrontar a mourama com a raiva e o desespero de quem não tem melhor recurso do que vender cara a vida.

Quando por sua vez a cavalaria do duque de Aveiro se lançou ao ataque, o corpo de batalha dos cristãos dobrava em toda a linha. Muito provada do tiro à espera que dessem Santiago, mortos ou postos fora de combate os espingardeiros em que devia estribar-se, quebrantada de moral pelo que via, mesmo assim o seu arranco causou grande estrago no inimigo. Mas faltou unanimidade ao rompante e força foi à vanguarda virar de rédea, vindo atropelar em seu espavorido refluxo espanhóis e romanos.

O duque perdera-se na investida. Incurvado na sela sobre a pesada lança, de caradura torva à frente do pelotão, lambuzado de sangue, abrira grande clareira nos africanos. Tombou com um pelouro que lhe abriu corredor do umbigo para as costas depois de trespassar o broquel.

Page 4: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Tentaram ainda uns tantos cavaleiros refazer a frente desbaratada. Tolheram-se com os atiradores a cavalo de Mohâmede Taba, renegado genovês, que avançavam num assopro, até poder plantar o tiro, e num assopro retiravam a recarregar as escopetas. O mestre-de-campo-general, que atirara os fronteiros de África para a artilharia inimiga, embora não chegasse a pôr mão em seus camelos e colubrinas tonitruantes, voltava depois de apresar um estandarte. Mas, ao mesmo tempo, no centro e no couce do quadrado os terços baralhavam-se com gastadores e carriagem. Em seu desmancho, os soldados, quase todos eles bisonhos, lançavam armas por terra e ofereciam pulsos aos grilhões. Caíra já Aldana; Stuckley; D. Alonso de Aguilar com um rugido na boca:

- Ao inferno vá direito quem vira a cara! Caíra o bispo de Coimbra, de estoque em punho; António de Sousa, filho do governador da Casa da Suplicação, quinze anos, imberbe, sem elmo, de rosto aos Janízaros; o barão de Alvito, entrando os mouros com o fez dum turco nos dentes, como lobo; o ancião D. Garcia de Meneses que, derribado da montada, teve ainda alma de arrancar o alfange das mãos dum azuago e embainhar-lho no ventre. Desaparecera Sebastião de Sã jogando-se ao inimigo com chibança à voz desastrada de ter:

- O meu cavalo não sabe voltar! Caíra Simão de Meneses com um estandarte sarraceno enrolado no braço; Gonçalo Nunes Barreto, de espada ao alto a pingar sangue; D. João da Silveira, morgado da Sortelha; D. Rodrigo de Melo, duma virotada, quando tirava a borracha da boca; Manuel Quaresma, vedor da Fazenda, e o filho João; D. Álvaro de Melo, dum tiro de bombarda; D. Lourenço da Silva, regedor da justiça, dum tiro de escopeta em pleno peito; Pedro de Mesquita, bailio de Leça, que comandava a artilharia; e quatro, nada menos, dos cinco irmãos Meneses, da casa de Louriçal, bravos e unidos como os quatro irmãos Aymon.

A calmaria era insuportável. Recalcada pelo céu de canícula contra o solo, uma nuvem de pó e cinza, a cinza do feno e panasco que africanos e cristãos haviam queimado à compita pela várzea para que não houvesse empeço à manobra, sufocava os combatentes. O fragor da luta e a gritaria dos mouros, sobretudo, eram de ensurdecer. Não se percebiam as vozes de comando. Só buzinadas ao ouvido.

Page 5: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

El-rei, depois da primeira arrancada, heróica mas indecisa, correra em defesa da bagagem que os mouros pilhavam. Ali vinham, além da capela com suas Santas relíquias e vasos sagrados de multa estimação, as canas com que ele e o xerife se propunham jogar em Alcácer Quibir, os padrões para marcar, à semelhança dos descobridores, as terras de que se fosse senhoreando, as insígnias e a coroa cerrada que, segundo o programa, havia de coroá-lo Miramolim de Marrocos, senhor de Fez e Tarudante. E como ali viesse parar toda a casta de gente, inerme por natureza e a mais dela desobrigada - frades, lacaios de fidalgos e fâmulos de bispos, amigas dos mercenários e as moças da vida que em Cádis se meteram nos navios - orçada em mais de dez mil almas, tudo era terror e confusão. O saque ia a par com o aprisionamento das pessoas. Mãos postas, olhos ao céu, lábios crispados em articulações dolorosas; fisionomias num espasmo de terror; bocas petrificadas, dir-se-ia, no mais lancinante dum grito; jeito da mulher de Lot a fugir à chuva de fogo tal o painel que oferecia o redil das europeias. já os lapuzes se deitavam de joelhos a pedir perdão aos mouros que, não percebendo, temerosos perante seus esgares, matavam neles a pau e com o coto das chuças como em láparos. E havia já bárbaros que desandavam, uns de trouxa às costas, outros a puxar à rédea para fora do campo aos seus cativos como se levassem animais de pocilga. Todos queriam, porém, o seu quinhão e o invejoso engalfinhava-se no invejoso. Se acontecia ser mulher o pomo da discórdia, para se não chacinarem entre si, convinham em que se degolasse. E tão escandalosa se tornara a rapina que um piquete de lanceiros à voz dum tenente arremetia contra a arraia-miúda dos berberes, disposto a fazer-lhes largar a presa. Foi nessa altura que irrompeu D. Sebastião com a sua hoste.

Temível foi a peleja que ali se travou, por largo espaço não sendo outro o foco da batalha. Dum lado baqueou Almansor, famoso campeão, com os seus parciais. Do outro, o senhor de Tannenberg, jogando o montante às mãos ambas rodeado de agarenos; D. Luís de Moura, mestre exímio da gineta; D. Jaime de Bragança com uma pelourada na aorta; dois filhos de Fernão Teles, costas com costas, como leões; Manuel de Sousa, aposentador-mor; D. João da Silveira, filho do claviculário de Évora; João da Cunha, comendador de Malta; D. Jerónimo, o pintor, filho de D. António de Mafra; D. João da Gama, sargento-mor; Aires da Silva, bispo do Porto; Gomes Freire de Andrade que

Page 6: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

atirara fora o morrião por não poder suportá-lo, muito contuso na cabeça, e que, ombro a ombro com o filho, fizera proezas de pasmar.

D. Sebastião, ferido o Pérsio de morte, mudou para o cavalo Bardez, seguro e galgaz, malhado dum negro tão azul que dir-se-ia pintura. Viram-no arremeter contra as falanges dos mouros que, atraídas pelo estandarte que Luís de Meneses mantinha ao alto, se renovavam incessantemente, ferrenhas como ondas do mar. Em dado momento despedaçou-se-lhe a lança e teve de pegar no estoque. Mas o campo embrulhara-se muito, e ele, como que arrojado à margem do reboliço, à testa de meia dúzia de valentes, foi fazendo grande destroço, massacrando os inimigos tresmalhados e acabando de desbaratar as esquadras meio desfeitas. Os mouros porém foram surgindo uns após outros, juntando-se até serem mais bastos do que gafanhotos. Fernão de Mascarenhas apontou-lhe o vau do Uad-Elmjázen, de que se haviam aproximado nas evoluções do combate:

- Não há outro salvatério, senhor! - Fazei o que eu faço... - e com redobrado furor atirou-se contra a selva

de cimitarras. Abrindo rua às lançadas, por cima de mortos, foi ter aos aventureiros.

Não seriam mais que umas dezenas e, acurralados contra o trem, pareciam prestes a sucumbir, revirando-se num último estremeção de fúria aos andaluzes que os continham à zagalotada. Chamaram-no, havendo-o reconhecido pelo séquito: aquele valido que não arredava passo, o guião de púrpura, os pajeris com os cavalos e o punhado de fiéis que o guardavam como cães de fila. Ah, se não fora esses, os poucos de cavaleiros de Tânger e os aventureiros que se lhe vieram juntar depois do rompimento das alas, e constituíam uma verdadeira guarda do corpo que os mouros incessantemente desbastavam, onde estaria ele? Manuel Rolim, pois que el-rei não dava tento, pôs-se a gritar como um possesso. E tanto se esporteirou ele e os outros que acertou D. Sebastião fazer reparo e dirigir-se para o grupo. Como ele vinha! Elmo amolgado, a loriga em frangalhos, o corcel coberto de espuma, a fumegar! Negro como esfregão! Sentia-se que a sede e a grande ardentia o martirizavam. Para quem quer que fosse, com o sol a pino, a armadura era assador. já os menos sofridos, lassos os membros, rotas as armas, não aspiravam a outra Coisa senão a acabar depressa. Ele, no entanto, alheio a

Page 7: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

qualquer outro sentido que não fosse o de combater, guardava o ânimo todo. A mão sangrava-lhe, mas o golpe, que cortava o guante de revés, não lhe merecia mais cuidados que a arranhadura duma silva. O que tinha era sede e procurou dizê-lo aos seus. Não o entenderam. A voz saía-lhe rouca da garganta viscosa. Mas divisou um espingardeiro a beber pela borracha e dum salto safou-lha da boca. Muitas borrachas então estenderam-se para ele. Bebeu, bebeu, descansou um segundo; tornou a beber. Despejou água pelo gorial; voltou ainda a beber. Babou-se; ficou mais sujo que um cerdo no brejo.

Um instante, graças à trégua efémera que ali se estabeleceu, rodeado de gente em que não deixaria de se quebrar o ímpeto da mourisma, espraiou a vista pela batalha. Foi breve como relâmpago e, todavia, a enormidade do desastre meteu-se-lhe pelos olhos dentro. Além, aquele montão negro, irregular como um parcel, era a sua artilharia; à sua roda, a ressaca deixara toda a espécie de destroços: albornozes e arneses de aço, homens e cavalos mortos ou agonizantes; a quatro passos, era a bagagem, e sobre ela encarniçava-se um vespeiro zumbente de mouriscos. Rapina ou repartimento de despojos, pouco importava já, era o fim. Acolá os tudescos, de três mil que eram, imponente muralha de aço, estavam feitos numa duna de mortulho, os raros sobreviventes em jeito de aguardar o inimigo, não se percebendo bem se para combater se para se entregar. E a todo o lés do açougue imenso, a cainçalha moura esfossava, virava os cadáveres, despia-os, revistava bolsos, e do que menos cuidava era em esbulhá-los das armas, inúteis agora. Cristãos, um que outro corria à rédea solta pelo campo, traquejado por matilhas ferozes de caras-sujas. Alarves armados de alfange, faca e até de estadulho, iam de ferido em ferido, acabando os moribundos e estropiados, tangendo como alimárias mancas para os aduares aqueles que ofereciam esperança de cura. Os cavaleiros do duque de Aveiro, fina flor da fidalguia, onde paravam? Descobria-se um, custodiado por dois alarves, a cambalear e sem armas; outro agonizava debaixo do corcel; aquele passava ao largo, perseguido pelos lanceiros de Musa; já se não avistavam de ferro em punho, cara para a morte, como javalis diante dos mastins. A dois passos estava o espadaúdo João Carvalho Patalim, com a sobrecota em pedaços, boquinegro, olhos de defunto a quererem beber toda a luz do céu; mais adiante o filho, Pedro de Carvalho, com o estertor na garganta. Haviam entrado os mouros de gorra um com o

Page 8: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

outro, e renhido como feras assanhadas. Não longe jazia o respeitável Jorge da Silva, ancião morto com valor de mancebo, que tudo perdera na terra ingrata, até o sono eterno esperado por seu sumptuoso panteão. A morte desfigurara-o, mas cabelos assim brancos, ensopados em sangue, só podiam ser daquele prócere.

De olhos torvos, embaciados pelos bulcões da poeira e pelo ouramento das lágrimas, deu conta D. Sebastião do calvário da pobre gente. Galopavam à solta belos alazões da cavalara pesada portuguesa, torcendo as voltas aos beduínos que corriam atrás. Um ginete branco, fogoso, arrastava pelo estribo ao cavaleiro; outro estrebuchava de patas ao ar, medonho, nas vascas da agonia; além um vulto desprendia-se do seu torpor de defunto e saltava agilmente para o corcel que ia a passar sem dono; morabitos coscuvilhavam de grupo para grupo, gesticulando; eram negros, bastos, crocitantes; a primeira rabanada de corvos.

Os mil ruídos da peleja chegavam-lhe em catadupa, mas por um capricho do ouvido, senão singularidade acústica, entre eles destrinçava os gemidos - verdadeira lamúria de arraial - que soltavam os cativos da peonagem. Tudo se conjurava para lhe incutir a consciência da derrota, a sua alma, porém, não sentia em proporção. Aquilo era como se diante dele dois partidos tivessem jogado as alcanzias; uns haviam perdido, outros ganhado; chorar para quê?! Mas onde se haviam metido os seus? Ter-se-iam fundido no chão os cavaleiros de Tânger? Dado a lide por consumada?

Ah, ele não dava! E acicatado pelo furor, refortalecido por aqueles segundos de repouso, bateu pernas ao cavalo e precipitou-se para o mais denso do inimigo. Seguiram-no os seus, como sempre, sem que lhes desse voz nem senha. Tal o machado que se enterra num madeiro, assim era ele. Lança em riste, ia rasgando passagem, abatendo, esmagando, calcando tudo o que se atravessasse no caminho. Entregues à intemperança da vitória, os mouros não contavam com acometida assim à mão tente. O quê, ainda existia de pé um punhado tão perigoso de inimigos? E fugiam em debandada. Mas ele voava-lhes no encalço até derrear uns, atravessar outros com o ferro, britar o crânio àqueles. Onde avistasse ajuntamentos caía lá e, desbaratando, trucidando, semeava o assombro e a morte. Pouco a pouco, entretanto, acudiam à voz de alarme lanceiros e piqueiros mouros que andavam pelo campo a colher

Page 9: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

cativos, a levantar os seus feridos, a despir mortos e agonizantes, com a apanha respectiva de armas e cavalos. E, fortes em número, lançaram-se-lhe no encalço. Dez, vinte, breve eram centenas de ginetes que galopavam furiosamente em perseguição do romi danado. Ao mesmo tempo os escopeteiros, distraindo-se por instantes da tarefa rendosa da pilhagem, disparavam contra eles os mosquetes. Por muito que a fuzilaria fosse nutrida, não lhe acertavam. Quando os acossadores iam a tocar-lhe, da hoste destacavam-se dois, três cavaleiros que voltando brida, a pé quedo, faziam frente à alcateia. Os mais atrevidos mordiam o chão. Mas eram tantos os atacantes, tantos os golpes que choviam sobre os abnegados paladins, que o recontro era rápido como abrir mão e fechá-la. Deste modo sucumbiram Gaspar Nunes, mantieiro de el-rei, Sebastião de Resende e Lucas de Andrade, do seu guarda-roupa, o padre jesuíta Gaspar Maurício, seu confessor, o criado quartão, verdadeiro tigre real, e D. Fernando de Noronha. Todos estes, desde o começo da acção, nem um minuto haviam desamparado el-rei, protegendo-o pela força do braço e, afinal, com o próprio corpo.

Repetiu-se o lance duas, três vezes, sempre os mouros perdendo de vista ao cavaleiro de armas azuladas, a meio da escolta de leões. Mas o Bardez rebentou, e viu-se a el-rei, quando se ergueu do chão, o braçal ensanguentado até a mão de rédea. Apresentaram-lhe o Bonito, que montou sem esforço aparente. E como a montada estivesse folgada, atento o palafreneiro, à ordem de poupá-la a todo o custo, a arremetida que fez nos mouros foi mais terrível do que nunca.

Um momento se viu de novo de braços livres, como insulado no meio do torvelinho. E não pôde resistir a espraiar olhos pelo arraial.

Ah, lá atravessava em baixo, de corda ao pescoço, mãos atadas atrás das costas, num formigueiro de alarves, o mestre-de-campo. Os terços da retaguarda, que haviam deposto armas quase sem combater, eram distribuídos em récuas, homem acorrentado a homem, e começavam os caides a tangê-los para fora dali. Passou Francisco de Távora de olhos rasos de lágrimas; passaram os algarvios heróicos, negros e decepados por uma hora de combate, mas de cabeça erguida. Para onde quer que deitasse os olhos, via caminhar soldados seus para o cativeiro. Nas fazes dos berberes, encodeadas de lama sobre funcio de fuligem, as pupilas mesmo ao longe brilhavam como

Page 10: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

brasas. Continuavam a crepitar os mosquetes e, de quando em quando, a algazarra parecia recrudescer. Mas esta tinha mais zoeira de arraial que fragor de batalha. Prisioneiros cruzavam-se com prisioneiros e entre adeuses e vozes lastimosas se repartiam em várias direcções. Dois reis de armas, com a maça de prata ainda a tiracolo, entregavam-se a um caciz barbudo, de alfange em punho a mandar. E, ó amor cego da vida, eram eles próprios que atavam aos pulsos a corda! E mais e mais sobre a bagagem se aderiescravasava a mourisma, combatentes já sem ter que combater, alarves das comarcas serranas do Gibel e de Farrobo, trazidos pelo faro do saque. E tão basta era que um enxame que levantasse voo do cortiço e pousasse num palmo de terra não daria impressão de mais revolvente e compacta densidade.

D. Sebastião, à vista do painel desolador dos cativos, com um bando de órraos no meio, transidos como pardais apanhados numa rede, mais e mais se foi compenetrando da imensidade da derrota e da sua temerária imprevidência. Lembrou-se do vão propósito de se fazer coroar imperador da Líbia e pela primeira vez experimentou a garra de fera do desespero a rasgar-lhe o selo. Desespero atroz a que, para cúmulo, se aliava o despeito da sua vaidade ferida, e o seu tanto de remorso pelo dano que causara. E jogou-se novamente contra a mourisma.

Voltaram logo a protegê-lo de flanco e da retaguarda os barões fiéis. Mas eram cada vez menos, e mais densas e mais fortes, pelo contrário, as algaras de mouros que saíam a embargar-lhes caminho. Meter, para onde? À ventura. Breve a lide de el-rei, imposta pela crua realidade, consistia em acometer, dar pancada rápida e, mercê de expeditos volteios, ladeando, evitando o recontro com as formações de janízaros e elches que limpavam o campo, cair sobre esta patrulha, rachar aquele cavaleiro, acudir ao cativo que os mouros zurziam com matracas ou despiam para lhe ficar com a roupa. Nestas andanças aconteceu o alferes-mor, ferido na ilharga e com o braço dormente pela mocada que lhe deu um azuago, clamar em altos gritos que lhe tomassem o estandarte por não poder mais. Acudiu Gonçalo Ribeiro Pinto, capitão de gastadores, que, atravessando-se por diante de espada e rodela, defendeu o balsão até tombar. Deitou-lhe a mão em seguida Luís de Brito, cavaleiro tão ágil que da presteza se valia para, das vezes que lhe matavam o cavalo, num rufo fazer remonta dos que corriam sem dono. E hasteando-o,

Page 11: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

lançou-se na falange de D. Sebastião, que galopava sem norte, arrastado para longe, em direcção ao Uad-Elmjázen. Sentido da sua mal-aventura, dissera-lhe Cristóvão de Távora:

- Senhor, salve-se! - Não, acabe-se tudo! - respondeu em voz débil, rompendo à frente. Sem erguer bandeira nem dar ordens, avançou até o rio. As águas,

engrossadas pela preia-mar, arrojavam à margem os cadáveres daqueles que em seu cego pavor tinham cometido atravessá-lo. Olhou para aquela babugem horrenda, e virou a cara. Não podia ir mais além, e com frenesi volveu ao campo da batalha. A mourisma entregava-se tumultuária e confiadamente à rapina e apenas punhados de cavalaria e piqueiros prosseguiam na operação de bater os últimos redutos. Seria pouco mais de meio-dia. O sol era uma labareda pegada. Os coveiros berberes encetavam a tarefa negra: acabar os feridos cristãos à bordoada e abrir sepulturas para os fiéis de Mafamede. Levas de cativos atravessavam o campo, manietados uns aos outros por aquelas cordas com que eles próprios se propunham fazer récuas nos soldados do Moluco. Para as bandas do Uarur ouviram-se atabales, pífaros e doçainas. Eram os triunfadores que vinham com seus morabitos e cádis assistir ao render do campo. Aqui e além soavam mosquetaços, o golpe de misericórdia, porventura, nas derradeiras resistências.

D. Sebastião, avançando sempre, penetrou no campo, fora, fora, até a linde oposta. Graças às dobras do terreno, ao empecilhamento, próprio de exército desbaratado, e ainda à desordem, explicável em exército vencedor na maré de cupidez, foi-lhe possível iludir a caça que lhe davam. Tido e reconhecido porém pelo cavaleiro invulnerado, tanto bastou para mil albornozes se agitarem ao vento na sua peugada; nos garranos ligeiros e infatigáveis, os alarves do alcalde de Alcácer Quibir aprestaram as bestas; ginetes acorreram à desfilada de todos os pontos. Acometeram-no à carga cerrada, e, pela primeira vez, ante o tropel raivoso o instinto da conservação apoderou-se dele. Voltando brida, disparou seguido pelos seus. Lançada na sua pista, a cavalaria moura tropeava o fero, e os cavaleiros da primeira linha despediam gritos agudos e pragas. Mais ele largava, mais os sarracenos se enfureciam a picar. Que pedisse asas ao vento, o Uad-Elmjázen lá estava para o reter. E já os mouros se abriam em leque a cercá-lo quando na pequena

Page 12: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

coorte se atrasaram João Lobo, Nuno Mascarenhas, Vasco da Silveira e, virando de rédea, esperaram os perseguidores. Eram os três do número daqueles batalhadores que, dedicadamente, com mais fúria que cerva aos seus cachorros, o tinham guardado até ali. Mal os ginetes mauritanos chegaram à distância duma pedrada, calando as lanças, caíram sobre eles, impetuosos. Apenas esses, e fizeram vergar um esquadrão inteiro. As filas enrodilharam-se, as montadas foram a terra, e nem um só golpe bateu em falso. Mas o peso dos mouros estrangulava-os; que lhes valia despachar inimigos para o outro mundo se por um que tombava surgiam dez? Vasco da Silveira, no seu cavalo frisão, dentro do arnês lombardo, esmigalhava quem se lhe punha pela frente. Sucumbiram, afinal, mas quando beijaram a terra, retalhados de golpes, o cavaleiro das armas azuladas onde ia?

A galope, sempre a galope, já na orla do plaino, olhando à retaguarda, dos seus pares de França poucos avistou. Entre eles estava Frei Salvador da Torre, membrudo, negro, truculento, montado numa horsa em pêlo que apanhara desenfreada pelo campo, sem cavaleiro nem sela, e o denodado Luís de Brito, que recebera o estandarte. Afrouxando o galope, disse-lhe:

- A bandeira, Luís? - Levaram-me aqueles perros a haste, senhor, e mais um bocado de

pano. Aqui está o resto; parece uma mortalha - respondeu abrindo o peito e mostrando a seda amarfanhada.

- Pois se é mortalha, amortalhemo-nos nela. O Bonito mal se aguentava em pé. Que era do Medelim, do Cabreira, e,

flor da gineta, do Carocho azeitonado, manso como borrego e fero na referta, do jogo de doze cavalos como não havia iguais no mundo que trouxera para a batalha? E os pajens, cuja missão não estava em combater, mas velar por eles a todo o custo, não olhando a sacrifícios?

Do exaspero descaía para o desânimo, quando avistou, cambaleante à força de feridas, em seu ruço rodado, a Jorge de Albuquerque Coelho. Sempre lhe cobiçara aquele cavalo e, fazendo-se encontrado com ele, ouviu que lhe dizia em tom de lástima:

- Como Vossa Alteza está! - Por mim menos mal; o cavalo é que não vai longe. - O meu não tem uma arranhadura...

Page 13: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Então dai-mo... - Faça Vossa Alteza a mercê de mandar àqueles soldados que me

apeiem... Desceram o fidalgo do aparelho e el-rei, deitando a mão às crinas, dum

pulo saltou em sela. E enquanto o antigo governador de Pernambuco ficava estendido de costas, à espera que uma lança moura o cravasse no solo, mastigando padre-nossos, D. Sebastião voou. já não havia nada a fazer e voou com os que lhe restavam a caminho de Arzila. À vista da ponte sobre o Uad-Elmiázen encontraram-se com um forte destacamento de lanceiros e terçaram o ferro. Vieram abaixo o conde de Vimioso com uma zargunchada; D. Manuel da Cunha, senhor de Pancas, que depois de meter a lança no arcaboiço do seide, os mouros por vingança esquartejaram; D. João de Portugal, que acabava de agregar-se à pequena falange; D. Luís de Brito na mortalha de púrpura da bandeira, e o criado da Casa Real, António Pinto, a quem os mouros só conseguiram derribar do corcel, atirando-lhe o laço.

Cristóvão de Távora rogou-lhe que se rendesse, já que estava tudo perdido, e dispôs-se a erguer um lenço branco no tope da lança. El-rei abateu-lho, dando-lhe de revés com o coto do estoque, e de novo se lançou à desfilada. Ficavam à retaguarda, entretendo os mouros com os seus corpos, os últimos fronteiros de Tânger, o pajem do guião Jorge Telo, e Cristóvão de Távora, o leal amigo. D. Sebastião ia ferido no rosto, com a celada a soltar-se-lhe. Era a terceira ou quarta lança que rompia. A espada, se a não firmasse no talim, cair-lhe-ia ao chão. Tinha o pulso aberto à força de combater.

Mouros que andavam pelo campo, respigango e surripiando, solitários, de sacola às costas uns, outros aos pares, ombro jungido a ombro por uma alabarda em cujo vão, conduziam à dependura tudo a que tinham podido deitar a unha - roupa dos cadáveres, armaduras, arreios - ficavam varados ao vê-lo, mas, breve, convencidos do seu descalabro, punham os carregos no chão e apedrejavam-no. Um dos alarves, que trazia mosquete, mandou-lhe um tiro. Mas as abas do campo estavam desguarnecidas de mouros, em regra atraídos para o centro em que havia que pilhar. A própria ponte não tinha sentinela; a todo o arco do horizonte avistava-se livre o caminho para Arzila. Dando voltas e reviravoltas de modo a evitar os mouros que cruzavam a planície, temeroso agora de pilhos quem lutara como leão, temeroso da

Page 14: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

própria sombra, el-rei fugia, fugia sem cuidar já daqueles que vinham empós. Adiante dele lobrigavam-se vultos rápidos, a pé e a cavalo, estranhamente movediços na terra parada e silenciosa, refazendo às avessas, saibros fora, a pegada do exército. No seu corcel folgado deixou à retaguarda dois ou três desses fugitivos: mercenário que levava a amante na garupa da besta; fronteiro salvo da morte pela própria bravura; lapuzes do terço de peões que ao romper o fogo teriam desertado e, escondidos nos buracos, esperado monção para largar. El-rei passou por eles sem saudar e é provável que sem os ver. Ia sempre em frente, a galope, e só longe, quando os ecos do campo de batalha se confundem.

Page 15: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

II O guardião leu a carta de Frei Álvaro de Olivença, ministro provincial

da Ordem, que acreditava a Manuel Antunes como enviado particular de el-rei. E em silêncio ficou a ouvir as novas da corte que, pelo tom, e ainda dadas de moto próprio, calculou serem o preâmbulo do recado que o trazia aos mosteirinhos de S. Vicente.

Louvores a Deus, curtos dias quedara a nação na orfandade. Sua Alteza, o Cardeal-Infante, resignara-se a assumir o duro encargo de reinar. Fizera-o com sacrifício da saúde, que era frágil, sob o peso dos adiantados anos que lhe davam direito a gozar em sossego o resto dos dias. Mas tantas haviam sido as solicitações dos patriotas, tão instante a deprecada dos Três Estados que se rendera à razão pública, e em sua mão paternal repousava felizmente o destino do reino. Mal chegara a Lisboa a acta do enterro de D. Sebastião, lavrada pelo punho do próprio criado Belchior do Amaral, procedera-se à quebra dos escudos. E logo na manhã seguinte, dia de Santo Agostinho, Sua Alteza era sagrado rei na igreja do Hospital de Todos-os-Santos, prestando juramento, lavado em lágrimas, de bem e fielmente governar os reinos, sustentá-los com justiça e respeitar privilégios e liberdades. Tocaram sinos, soaram charamelas e atabales, e nunca o povo de Lisboa, apinhado Rossio fora até à Betesga, gritou com mais alma e convicção: Real, real. pelo rei de Portugal!

O novo rei - acrescentou o mensageiro - deu ordens para que fosse resgatado o sal e preso o arrematante. Mandou também que o dinheiro dos órfãos tornasse às arcas, e já lá vão, caminho da África, quatro religiosos da Santíssima Trindade a remir os cativos.

O povo vai acalmando e consolando-se à ideia de que já há Paço, missa real em povoado e pregação.

- O cadáver de el-rei foi reconhecido por outras pessoas além do criado? - perguntou o recoleto, saindo subitamente do seu mutismo.

- Não é um só fidalgo, nem dois, e da primeira nobreza do reino, segundo o Belchior, que estão prontos a jurar terem visto o cadáver de el-rei. Os responsáveis da jornada é que se meteram a propalar que o monarca está prisioneiro e que darem-no por morto só tem por fim conseguirem a sua

Page 16: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

liberdade a menos custo. Compreende-se; compreende-se muito bem que lancem semelhante atoarda no intuito de prevenir a sanha do povo que lhes não perdoa terem sido os conselheiros, maus conselheiros, do inexperiente e temerário príncipe. Mas agora, em volta de tão arriscada presunção, bordam-se as histórias mais singulares: umas descabeladas de todo; outras tão bem cerzidas que ameaçam derrancar a passarinha a quem tem as responsabilidades do Poder. Não se diz que Sebastião de Resende, o primeiro que descobriu o corpo de el-rei no meio da mortualha e o entregou a Belchior, o fez de manha, pois não era possível identificá-lo dois dias após a morte, abandonado aos calores tórridos do Rife, desfigurado pela corrupção, o pó e a sangueira da carnificina?...

- Achou-se ao menos com o cadáver insígnia ou coisa que lhe pertencesse? - tornou o frade.

- De facto, não se achou coisa alguma; o corpo estava nu; mas não há que admirar. Em regra o mouro é larápio e sonegador. Tudo a que pode deitar a unha, por mal guardado, perdido, ou exposto ao seu olhar de ave de rapina, o considera legitimamente seu; entra para a vasta categoria das boas presas e esconde-o. Na guerra, então, despoja os cadáveres de tudo o que lhes encontra. Digam-me agora se aquele que teve a sorte de descobrir o cadáver de el-rei, vestindo armas que, salta aos olhos da cara, eram preciosas, roupas brancas, finíssimas, com abotoaduras de oiro e gemas, não era levado por todas as razões a amochilar uma riqueza destas...

- Sim, realmente - disse o frade em tom de quem concorda. - Mas por bem pouco está Sua Alteza receoso... se não possuem outra consistência as suspeitas de que el-rei D. Sebastião é vivo. Ao fumo basta-lhe ser fumo para que se desvaneça.

- O fumo desvanece-se e a nebulosa, que é menos que fumo, condensa-se. É o nosso caso. Ultimamente não correu que el-rei D. Sebastião estava neste mosteiro a curar-se duma ferida que recebera na testa durante a batalha? O pai da galga é um tal mestre da armada, que ficou meto zorato com um tiro de pelouro apanhado em Mazagão. Aconteceu ao pobre homem ter de ir ao Paço dos Tabeliães assinar urna escritura, em que era citado desta forma: mestre que foi na capitânia da armada de el-rei D. Sebastião, que Deus haja. Pois ouvindo o remate que Deus haja, recusou-se a assinar, a título de que el-rei

Page 17: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

estava vivo. - Vivo, ora essa? - retorquiram-lhe. Vivo, sim senhor! - respondeu ele. - Às costas o tirei eu dum patacho e levei por uma escada de pedra, picada na rocha viva, ao mosteirinho dos Caprichos, no cabo de S. Vicente.

- Na corte, é claro, têm-se como invencionices, próprias apenas de imaginações alucinadas, tais histórias...? - tornou o guardião.

- Há quem creia e quem descreia. Como ia dizendo, a teia de aranha está a urdir. De parte a parte se procuram razões e argumentos. Dias antes de eu sair para esta )ornada, deu muito que falar em Lisboa um barbeiro que fugiu da batalha pelo rasto que deixara o exército na avançada para Alcácer. Afirma ele que não só viu passar el-rei com mais dois cavaleiros, como lhe deu água por uma borracha que trazia. Diz mais que el-rei estivera a tirar dele quanto ao caminho de Arzila e ele, para evitar complicações - porque não quisesse confessar cobardia, deixava admitir -, fez de conta que não reconheceu o interlocutor. O mais curioso é que o homem traz uma borracha a tiracolo e mostra-a dizendo: foi por aqui!, e não só a não larga por nada deste mundo como garante a quem muito bem o quer ouvir que ela lhe há-de valer a fortuna. Sua Alteza mandou por linhas travessas averiguar se o homem tinha a razão toda. O físico que o observou veio com a parte de que era um velhaco na quinta casa, que andava a armar com aquela balela à generosidade dos fidalgos.

- Vamos que o homem falasse verdade... objectou sorrindo muito levemente o recoleto.

- Não é provável. Mas não fica por aqui: André da Silva Meneses, capitão de africanos, afiança que viu embarcar el-rei com dois fidalgos de regresso ao reino...

- Ah, e como se explica! 5 Está também mentecapto como os outros? - Doido, doido varrido. Este nem admite que duvidem da sua palavra

honrada. Em plena Rua dos Ourives não puxou da cataria contra Henrique Henriques, na véspera nomeado estribeiro-mor de Sua Alteza, só porque se permitiu gracejar com ele? É por estas e outras que a caminho de Marrocos vão, com os quatro religiosos da Trindade, D. Rodrigo de Meneses e línguas que abram devassa quanto ao fim de el-rei D. Sebastião e não se poupem a canseiras até trasladarem os restos mortais para o reino.

Page 18: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- E no meio desta meada toda que pensa el-rei D. Henrique, nosso amo, ou que pensais vós, senhor Manuel Antunes? - perguntou o religioso.

- Pouco vale o meu pensar, reverendo padre respondeu o enviado, humildando-se. - Cumpro as ordens que me deram, e ao que venho, eu vo-lo digo: pedir-vos que me deis um escrito em boa e devida forma que garanta na corte não ter pés nem cabeça o dito do tal mestre. E é convicção vossa que não terei dúvidas em vos passar esse escrito?

- É sim - respondeu ele, olhando muito fito para o frade. - Estou convencido de que tudo o que se diz, respeitante à sobrevivência de el-rei D. Sebastião, é fantasia; fantasia, não direi de graciosos ou especuladores, mas delírio de entendimentos transtornados pela paixão. Creio que tudo é nuvem, mas se por culpa dos nossos pecados fosse certo, maiores seriam os danos que as vantagens. O malfadado príncipe levou a flor dos portugueses ao cutelo e no fundo ninguém lhe perdoa. Se mais o não execram, é apenas porque está morto. De contrário, levantar-se-iam contra ele as pedras das calçadas. A um sobrevivente da batalha ouvi eu dizer que “se D. Sebastião se tivesse vendido ao Maluco não teria procedido de maneira mais torpe no decurso da Jornada”. Todos os conselhos e vozes de prudência ele repeliu por sistema; fez calar à fina força a boca aos práticos; não deixou aos bravos a liberdade de pelejar; em suma, procurou por todos os meios negativos, movido pelo orgulho, a basófia, a mais maciça confiança em si próprio, que a sorte das armas lhe fosse adversa. A terra lhe seja leve, mas que o seu fantasma nos deixe em paz!

- Terrível responso o vosso, senhor Manuel Antunes! Noto que não gostaríeis de o saber reaparecido...

Pessoalmente, é-me indiferente. Pelo que respeita aos negócios públicos, se é nociva a hipótese, nada mais que a hipótese de que pode voltar, que não seria a realidade?... Não, não, há rei posto, e não teria pés nem cabeça que o antecessor viesse lá das profundas do inferno reclamar o que ninguém lhe usurpou, mas, sim, deixou perder. Não é a doutrina de Frei Álvaro de Olivença?

O frei guardião, àquelas palavras, voltou a ler as credenciais expedidas pelo ministro da Ordem, como se quisesse mais uma vez afirmar-se no que lhe era expresso. Depois, acondicionando o papel entre as folhas do ripanço, disse

Page 19: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

para Manuel Antunes, enviado de D. Henrique, no tom mais despreconcebido do mundo:

- Vinde comigo. Fostes privado de el-rei D. Sebastião...? Conhecia-lo bem...?

- Não fui privado dele, mas conheci-o como às minhas mãos - respondeu o enviado, tornando a olhar fito para o frade.

Seguiram o corredor, tão cheio de ar e ao mesmo tempo tão alagado de silêncio que o ruído dos passos soou aos ouvidos do forasteiro como coisa jamais apercebida. Pela arcada aberta viam-se no céu os volteios das gaivotas e a perder-se em tintas de opala a planície crespa do mar, verde-verdete sob a luz ténue de Outono. E o marouço, aquele arfar e chocalhar da água contra a sapata do Promontório Sacro, ouvia-se de modo a nunca mais se perder do sentido.

Chegados a uma cela, tão erma como as mais celas, disse o guardião apontando o ralo da porta e baixando a voz:

- Fazei a mercê de espreitar... Manuel Antunes encostou os olhos à rótula e, ao cabo dum momento de observação, proferiu em voz perturbada:

- Veio um homem, ainda novo ao que aparenta, vestido com gibão de holanda clara, calças de rexa arenosa, ajoelhado no chão contra a cama. Se não tivesse a face mergulhada na roupa, poderia dizer se o conheço; assim, em minha honra declaro que me é impossível dizer se o conheço ou não!

- Tornar a espreitar... Volveu o homem a mirar, desta vez com certa demora, e em tom não menos patético tornou:

- Não há meio. Se levanta a cabeça da roupa, tapa logo o rosto às mãos ambas... Parece que tem medo de que a luz dos céus lhe dê nos olhos. Quem é, reverendo padre?

- Reparai bem... De novo Manuel Antunes pôs a vista ao postigo. Em menos de nada, desviando-se com manifesta arrelia, proferiu:

Não mostra a cara. Pela cor do cabelo lembra certa pessoa que eu sei... Mas, não, não posso crer. Hem...? Não me tenhais sobre brasas. Quem é...? Hem...? Por quem sois...

Agora é o próprio frade que olhava para dentro da cela. Menos de minuto decorrido, puxando com brusquidão Manuel Antunes para o ralo,

Page 20: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

depois de se reservar uma nesga onde enfiou o rabo do olho, disse sacudidamente:

- Agora... agora... Vedes? Manuel Antunes assestou o olhar e afastando-se em continente, pálido, boquiaberto, acabou por pronunciar com voz assombrada:

- Sim, é ele, é ele! Ah, meu Deus, como pôde isto ser? - Sim, é ele. É ele, mas não quer que o tratem como quem é. Assentai,

senhor Manuel Antunes, que é um pecador e penitente sem nome que está diante de vós.

Ficaram calados um bom espaço e o enviado do novo rei tornou a escrutar pelo postiguinho. Esteve muito tempo a satisfazer a curiosidade, a estudar a cela pormenor a pormenor, a espiar os gestos do recluso, e com os olhos roxos pela contenção, querendo falar para si próprio, disse ao frade:

- E agora? O guardião puxou-lhe pela manga e a passo miudinho, quase medroso,

sem trocar palavra, regressaram à cela donde tinham vindo. Manuel Antunes atirou-se para um cadeirão de couro e ali permaneceu amarfanhado, sucumbido, as mãos apertadas na cabeça, como se o magno problema fosse mais seu que do próprio D. Henrique. A súbitas, emergiu de suas dolorosas cogitações:

- Mas como foi? Como velo parar aqui este homem? Devagar, em voz rezada, voz que ia sempre em frente, cautelosa como passo de homem que desconfia do seu itinerário, contou o religioso tudo o que se relacionava com a estada de D. Sebastião no mosteirinho.

Tinha razão o mestre da armada, como a tinham, não menos, o barbeiro da estrada de Arzila e o fronteiro de Tânger. D. Sebastião escapara à carnificina. Um homem, de facto, o transportara da nave - o patacho que ainda estava na enseadazinha do Beliche - para a cela dos Piedosos com um ferimento no sobrolho, ferimento mal-assombrado embora mais de raspão que profundo, de que viera curá-lo o físico de Lagos, depois de ajuramentado aos Santos Evangelhos em como guardaria segredo. Para ali havia sido conduzido por indicação própria, e fora com voz humilde, voz de peregrino indigente, que de começo ninguém reconheceu, que pediu hospitalidade em casa que sempre distinguira com a sua munificência. Deu-se-lhe uma cela igual a todas

Page 21: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

as outras, segundo o seu expresso desejo, trastejada com enxergão de palha sobre bancos de pinho, um escabelo, e Cristo crucificado à dependura da parede. Mas essa cela dava como todas as mais para o mar e o mar enchia-lha de sopro terrenal com a sua luminosidade de lírios roxos, a estupenda bailara das gaivotas, sem faltar a inquietude duma vela correndo ao largo à voz de mercador honrado ou de corsário. Das pessoas que tinham vindo com ele, apenas fora autorizado a ficar certo religioso da província da Arrábida. Havia de estar lembrado dum pregador de fama que D. Sebastião desterrara para Alcobaça por haver ousado verberar do púlpito e em sua presença os desatinados projectos de guerra... O desassombro dera brado. Diogo de Paiva de Andrade, doutor em cânones e águia da oratória, que costumava zombar daquele rival que tinha sempre as igrejas cheias a ouvir-lhe a palavra exaltada, quis ouvi-lo e conhecê-lo. Deparou-se-lhe um atleta de larga peitaça, voz cheia, gesto amplo, doutrina da melhor, segundo os apóstolos, e génio oratório de primeira; todo ele por fora cortado em grande. Chamavam-lhe Frei Salvador da Torre, por ser oriundo da Torre de Moncorvo - embora o seu nome em religião fosse Salvador da Cruz -, e o nome profano assentava-lhe à maravilha. De facto tinha muito de torre, bela torre de David, tanto na compleição física como na altura a que se guindava seu verbo. Patriota ardente, místico e flagelador de viciosos e corruptos, era uma espécie de Savonarola para as turbas simples da capital, com fome de pão e de justiça. Cristóvão de Távora encontrou-o em Alcobaça e tomou-lhe amizade. Além de pregador de renome, possuía vasto cabedal de conhecimentos, adquirido em anos e anos de estudo e meditação nos centros de saber da província de Espanha da sua Ordem. Ali aprendera ele, com as humanidades, grego e italiano, recebendo ainda tinturas de arábigo. Acabara, em suma, por desmentir com a sua formação o conceito corrente de que “para plantar couves, preparar bacalhau à aragonesa, rachar um monte de cavacos não havia melhor que um arrábido, mas não se lhe pedisse mais”.

Assente a )ornada de África, Cristóvão de Távora persuadira el-rei a que convidasse o capucho para esmoler do exército. Era a hora das transigências, acedeu el-rei e obedeceu o frade. E ei-lo de Cristo alçado entre as esquadras de Alcácer Quibir. Quando viu a fortuna pender para o Islame, o religioso trocou o crucifixo pelo montante. Quem era aquele ferrabrás de

Page 22: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

guarnacha e cabeção que ao lado de el-rei lhe cobria o corpo como muralha e a cada molinete remetia para o reino do esquecimento um caterva de agarenos? O mesmo que agora entrava na cela de el-rei sem pedir vénia; que velava por ele; lhe servia o comer; lhe dava conforto e o confessava; alo e director espiritual ao mesmo tempo.

D. Sebastião, rei de Portugal e dos Algarves, imperador da Líbia, começara a sua reforma moral. Havia dois meses que dera entrada no mosteiro e não vira ninguém, não falara a ninguém, excepção feita do arrábido. Raro saía do cubículo que não fosse para as suas obrigações religiosas. Ao passar pelos corredores a caminho da capela, os frades que o encontravam fundiam-se com as paredes; nem sombras. Ele também não os via; não era certo, pelo menos, que os visse. No coro ia postar-se a toda a frente, contra a grade que deitava para o corpo da igreja. Os frades perfilavam-se à retaguarda, sem rugir nem mugir, possuídos de angústia tão imensa e fluída que se espalhava em volta como um miasma. Os seus alabardeiros eram agora esses frades. El-rei voltava, findo o oficio, de cabeça inclinada para o peito, olhos no chão, abertos o que basta para coarem um raiozinho de luz que o guiasse até a cela. E, novamente, dobrados em dois, os fradinhos daquela casa fingiam que não davam fé. À saída das celas, nos breves desafogos em comum, pelos corredores, ele a aparecer e, estáticos, lembravam os santos de pedra nas catedrais. À missa dominical, muito concorrida por gente de Aldeia do Bispo e de mais longe, assistia de mãos a tapar o rosto, na ânsia de passar encoberto e não enxergar mais que o celebrante. E à elevação rojava-se até tocar a terra com a fronte; borbulhavam-lhe as lágrimas nos olhos e não conseguia reprimir os soluços.

Mas era na cela, na estreiteza daquelas quatro paredes, brancas duma brancura em que Cristo parecia uma chaga gangrenosa, que a sua tragédia se representava. Levava horas de joelhos contra a cama, a vista ardentemente cravada no crucifixo, quando não mergulhava a cara nas mantas à busca da treva que, por sua vez, trouxesse um poucochinho de paz ao seu espírito. Mas o mundo, o mundo ruidoso que deixara, devia ressurgir-lhe na noite estelar das pálpebras descidas. E ao abri-las, a luz mais azul do que nunca derramava à volta pétalas e mais pétalas de violetas e cravos brancos. Era como uma epifania e, olhando pela janela, penetrá-lo-ia o espírito risonho das nereides,

Page 23: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

de Afrodite e mais génios marinhos em sensível farândola à flor do mar. E, magoado consigo, fechava as portadas da janela. Mas a luz pelas mil fendas era como um céu estrelado. Depois era tão etérea, que breve enchia a cela toda varrendo a escuridão; tão alegre, que afogava em alacridade a negra melancolia do Cristo. Ah, não havia meio de encontrar-se sozinho com o seu calvário. Desesperado abria a janela e, de novo, a revoada das aves oceânicas, a tremulina das águas batidas pelo sol, navios em derrota, Frei Aleixo ou soldado da fortaleza a lançar a linha nos cachopos, lhe diziam que, não obstante o seu desespero e aniquilamento na dor, o mundo continuava mundo como dantes.

Rezava terços de enfiada uns após outros, com lúbrica devoção. E, só depois de muitos rosários, é que varado pela lança da ascese, sentia refrigério em sua alma. Acontecia-lhe adormecer de joelhos, a cabeça caída para o catre, e durante o sobressaltado sono decerto anjos bons e anjos maus se lhe digladiavam no selo. Que assim era estava no facto de erguer-se inundado de suor, trémulo, cabelos em pé, um uivo tremendo na boca. Sucedia às vezes ser de noite, e os frades acordavam horripilados; de princípio, com alarme geral; agora, simples alerta. A sua dor trespassava, ao que tinha de penetrante, muros e distâncias. Desde que não gritasse sob a garra do pesadelo, sonhava alto. Seus sonhos eram os pensamentos secretos, que o trabalhavam, a fugir-lhe da consciência, dir-se-ia, por talisgas, como cobras dum serpentário. Não raro batalhava com os mouros. Dava lançadas, recebia lançadas, por muito tempo, até Frei Salvador da Torre acudir a pôr termo àquela tortura. Algumas vezes o arrábido deixava, supunha-se por cálculo mais que por comodidade, que o transe de el-rei se prolongasse pela noite fora. E o convento parecia converter-se num lugar de chacina e de tumulto.

Como vos não importa chegar com noite à Aldeia do Bispo - disse o guardião -, tereis ainda ensejo de avaliar da crise que atravessa o pobre monarca. Mas deveis estar com apetite depois duma jornada de cinco horas, escarranchado em besta de albarda e cadenilha. Permiti que vos convide a merendar... do frugalíssimo que temos...

Conduziu-o para o refeitório onde lhe foi servido do melhor que havia na copa, sobretudo peixe e mariscos.

- Belos lagostins! Quem os pesca, meu reverendo padre?

Page 24: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Um nosso irmão leigo, Frei Aleixo, que daqui podeis ver... Aproximaram-se da janela... Dali media-se a linha do promontório,

com o mosteiro encarrapitado nas rochas mais de cinquenta metros acima do mar, como ninho de alcaravão. O cinábrio das ribas parecia derreter-se ao sol e as águas eram tão transparentes que nelas se estampavam a talhe doce os vultos do convento e da fortaleza. Toda a ponta de Sagres se estendia alterosa e medonha para a banda de lá da curva incerta da enseada do Beliche. Nela o patacho que trouxera D. Sebastião figurava, com velas e traquetes recolhidos, flâmulas e bandeiras arriadas, as bombardas de bronze adormecidas em seus bordos como monstros marinhos, árvore em tudo hibernal.

- Lá... - e o frei guardião apontava com o dedo. Nos cachopos comidos pela salsugem e verdes de limos eternos, à flor da água, divisava-se um vulto. Era o tal irmão leigo, Frei Aleixo de Braga, que ali pescava à cana ou com o bicheiro, de sol-nado a sol-poente, salvo as horas de missa e de coro. Do produto da sua pesca, tanto como do peditório que os fradinhos faziam ao domingo pelas aldeias e casais até Santa Maria do Cabo, se alimentava o convento. Frei Aleixo estava caduco e sofria da gota; não obstante, era ali testo, parte integrante da paisagem marinha como as arnelas do recife à volta do Promontório Sacro. Faziam-lhe, por vezes, companhia um ou outro soldado da fortaleza, ali mandada erguer por el-rei D. João III, e até um ou outro irmão na Capucha. Antes de lançar a linha persignava-se e à primeira anzolada recitava a Paixão de Cristo segundo S. João. Recitava-a com a solenidade que um oficiante põe a ler os Evangelhos. Sempre por ali fora um peixinho, um versículo - quando chegava à altura: Disse-lhe então Pilatos, logo tu és rei? E respondeu Jesus.- tu o dizes, sou rei. Para isso nasci e para dar testemunho da verdade; tudo o que é verdade conta ao seu serviço com a minha voz. E retrucou-lhe Pilatos.- Que coisa é verdade?... tinha repleto o balaio de verga que trazia a tiracolo. A sua recitação era vagarosa e claudicante, com requebros e gemidos, consoante a intensidade dramática, e intercalada de pequenos e inocentes parênteses relativos à faina piscatória. Mas é costume da terra que pela Páscoa se solte um...”Anda xarroquinho, anda para cá; não zarelhes.

- Quereis então que vos solte o rei dos judeus? “Ai, ai, picaste e comeste a isca. Safadão!” Todos à uma gritaram: não queremos esse

Page 25: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

solto...”Vem cá, menino! Vem cá! ó que rico cachuchol ó que rico... Bem hajas, meu Deus, mas Barrabrás. Era milagre do evangelista S. João o que os peixes acudiam ao seu anzol; e sem preferência de lugar, fosse ao lado de quem fosse, pescava sempre na proporção de dez para um.

- E quem é aquele outro frade que vai ter com ele? - perguntou Manuel Antunes, enviado de D. Henrique.

- Não declino bem, mas deve ser Frei Salvador da Torre. É um homem alto? Então é ele, o guardião temível de el-rei D. Sebastião. Quando não está ao pé do seu senhor, deambula por essas escarpas e parece uma alma penada. Coitado, é a sombra do que foi!

Acabada a colação, foram novamente pelo corredor fora direitos à cela de el-rei, tão devagarinho como se houvesse perigo em serem pressentidos. Pela arcaria aberta entrava o hausto imoderado do Atlântico. Ao dobrar da galeria para a outra ala, encontraram no ângulo de incidência dos olhos, mais perto, a Frei Aleixo e a Frei Salvador. O velho lá estava imóvel no seu posto, o coiro da face curtido da brisa, tão entregue à tarefa, que a Paixão de Cristo na sua boca era já murmúrio automático como o das ondas. D. Sebastião tratara com ele, das vezes que viera ao mosteiro descansar das quezílias da corte, e ficara a estimá-lo por pitoresco e simples como os elementos. Decerto voltaria a invejar-lhe hoje a paz de espírito e a naturalidade com que vegetava. E esta inveja, toda terrena, devia ser para ele como que uma das fases da luta de Jacob com o anjo.

Frade e mensageiro de D. Henrique despegaram-se da atracção que exercia sobre eles o pescador miraculoso e com o pé discreto de há pouco chegaram à cela que ocupava el-rei. Colaram o ouvido à porta. Não bulia rumor; não se ouvia no ar o mais leve frémito do sussurro. Esperaram e, ao fim dum longo minuto, durante o qual permaneceram encostados à parede, pensando em mil coisas, ouviram a voz flébil de D. Sebastião.

O murmúrio erguia-se e fixava-se como vespa encarcerada: “O Maluco mandou-me oferecer os lugares marítimos que eu

apetecesse e três léguas de terra. Mas seria manha. Sabe-se lá?... Devia ter aceitado... devia. Para que precisava eu de mais açougues na costa de África?... Este Maluco era atilado.

Page 26: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Vê bem o que fazes”, dizia-me numa carta. - Não te determines à ligeira, nem empenhes por um homem que tem tão negra a ventura como a cara”“ O xerife negro era um pretexto. Que me importavam questões de justiça entre perros?... Nem eles tomariam a sério as minhas razões, tão pouco cuidadosas de lógica elas eram. Mas para eles o jogo era jogar... Dava-se-me tanto que o xerife fosse filho duma escrava negra como descendente em linha direita do Profeta... O que eu queria era combater mouros; martelar neles como Pepino; fazer-lhes da pele pergaminhos de glória imorredoira como o Cid; escrever ali com a espada uma nova história de Carlos Magno... Para que iam na minha comitiva os bispos do Porto e de Coimbra e na bagagem uma coroa cerrada? Para me sagrar de César na mesquita de Alcácer convertida em templo do Salvador do mundo... Tudo ia disposto para tal cerimónia. Desde as toalhas de altar à minha roupa branca, o pano fino ia marcado com a coroa de imperador... Foi-se tudo pela água abaixo... Pobre xerife, tão matreiro como infeliz! Disseram-me que se afogou no Uad-Elmázenl... Também morreu o outro, o meu vencedor, o bárbaro Maluco. Morreu e está no Inferno... Ah, se eu visse todos os diabos a derriçar-lhe na carne teria algum desafogo em minha raiva... A derriçar-lhe na carne como cães famintos, ou então o seu corpo levado na roda de navalhas, aqui deixando farripas, ali um membro, além feixes de músculos; a cada meia volta dilacerar-se e a cada meia volta refazer-se na carcaça maldita e terrenal! ... Ah, meu Deus, rija foi a vossa mão a castigar-me! E porquê?... Eu sei, eu sei: dilatação da fé era menos na minha alma que a soberba e fatuidade de vencer. Mas é justo que por causa do meu orgulho fosse tão implacavelmente provada a família lusitana?!... Minha frota no Tejo, com tantos mastros, tantos, que lembrava um bosque de Inverno! Minhas oitocentas velas enfunadas, mais bonitas que um bando de garças que vai a voar! Meus cavaleiros, vestindo por galantaria sedas e chamalotes do maior preço, com pedras finas desde os botões às fitas dos chapéus, ouro e prata desde as cabeçadas dos cavalos aos torçais que os escravos trazem nas librés! E tudo se perdeu! ... Tudo está hoje espalhado pelos aduares e chiqueiros da raça tinhosa Razão tinhas, Maluco infernal: !Lança bem conta a quantos homens são precisos para botar um morador fora de casa” Tudo se perdeu! Não tinha força para bater o bárbaro e abusei da minha fraqueza.

Page 27: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Blasonei e, por necessidade e orgulho, multipliquei ainda essa fraqueza por mil. Maldição, maldição!”

- Assim leva o tempo a lutar o rei de Portugal proferiu o guardião. - Na primeira noite, permiti-me bater à sua porta para lhe dizer: Sossegai, senhor, que Deus é misericordioso.! Não me ouviu, felizmente, mas saiu-me da cela, que está ao lado, Frei Salvador da Torre com isto: Deixai, deixai, é a revulsão que opera; é Deus a conduzi-lo pelo melhor caminho.

- O bom caminho, depois que Sua Alteza o Cardeal D. Henrique tomou posse do reino, com preito unânime do clero, nobreza e povo, está indicado - proferiu, elevando a voz, Manuel Antunes.

O religioso esteve calado uns segundos, como a pedir inspiração ao Espírito Santo, e em voz lenta, aquela voz sem cor, igual, que parecia doutrem a falar por ele, disse:

- Sim, eu percebo o pensamento de Sua Alteza, o senhor Cardeal-Infante, nosso rei e amo. Os monarcas que por obra do próprio alvedrio se desapossaram do trono não têm o direito de voltar a requerê-lo. Assim o quis a vontade divina que se sobrepõe a todo o foro. Pois ide descansado e sossegai a nosso amo e senhor: el-rei D. Sebastião, 1º deste nome, está bem morto. Há semanas que para ali jaz, alimentado a pão e água. Digo semanas, não, devo dizer séculos. Anos seriam pouco, em duração, comparados aos dias horríveis que vai passando. Dilaceram-no mais os remorsos que os abutres aos cadáveres nos campos de Alcácer. Vive, em imaginação, cercado de mortos, cheios de ira, e de vivos que o acusam e pedem vingança, e é triste sina da criatura continuar a lutar contra tal imensidade de fantasmas. Metade do tempo luta consigo, com as sombras, com o mouro, com o destino, com Deus. A outra metade revolve o passado e delira com o que fez e não devia ter feito, com o que devia ter feito e não fez. Nos raros intervalos deste batalhar sem tréguas reza. Frei Salvador ouviu-o já de confissão geral. Segundo aquele meu irmão em S. Francisco, é propósito de el-rei D. Sebastião partir para os lugares santos a penitenciar-se. Frei Salvador propõe-se acompanhá-lo e já me pediu o placet, como seráfico que é, e credenciais para o convento do vale de Josafat, de Jerusalém. Quando me velo falar, compreendi porque mandara el-rei reter na enseadazinha o patacho que o trouxe. A bordo tem o que basta para se

Page 28: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

demorar em peregrinação três, quatro, cinco anos. Em que idade vai nosso senhor e amo?

- Sua Alteza o Cardeal? Sessenta e oito feitos. - Com a ajudinha de Deus, ainda está para bater! Pois el-rei seu

sobrinho há-de partir encoberto pelo mundo e ficar por lá tanto tempo quantos anos tem de vida e saúde D. Henrique, para bem do seu povo e da Igreja.

- E Frei Salvador...? - Frei Salvador da Torre é tão iluminado como ele. Suponho que não foi

outro quem lhe inspirou a ideia de ir mortificar-se à Terra Santa. Não se arvorou em Tribunal da Consciência do pobre rei? Tem-me consultado, de resto, e sei agora o que convém dizer-lhe.

- Muito bem, reverendo padre. Compreendo quanto está na vossa mão ser útil à causa de el-rei D. Henrique, sem deixar de sê-lo à de Deus, bem entendido. Quer ir fazer penitência a Jerusalém este moço que tem às costas o crime imperdoável de haver causado a ruína da nação? Pois deixá-lo ir, melhor, ajudai a desígnio tão meritório. Que vá e regue todos os dias com suor e lágrimas o chão onde Nosso Senhor derramou o seu sangue inocente; que passeie a língua de louco e autoritário pelas lajes tornadas veneráveis porque nelas pousaram as plantas do justo; que combata contra o otomano com aquele seu incrível valor de braço, que vale pouco num rei mas é de contar num soldado, e, ao cabo de anos, quando o ciclo das coisas for outro e tenha dado sinais de lhe haverem caído as cataratas dos olhos, de ter pisado a soberba, a ira, a vaidade, a jactância, o amor-próprio, a fatuidade, como a grão no almofariz, que volte! Só então nós, os portugueses, poderemos perdoar e aceitá-lo, porventura, como rei. É o parecer de todos, quero supor que o vosso, e decerto vem manifesto na carta de Frei Álvaro de Olivença. Não será assim...?

Sem dúvida alguma, Mas regressai tranquilo; estou neste mosteirinho para zelar a causa de Deus e de el-rei. Pois que se conjugam, melhor.

- Reverendo padre, Sua Alteza o Cardeal D. Henrique é tão generoso com os que o servem como inexorável, há quem diga que vingativo, mas é calúnia, com os que lhe são falsos ou contrários. Não tenho dúvida em afirmar

Page 29: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

que a primeira diocese, sede vacante, não precisa já de ser provida... e que esse dia será de glória na venerável Ordem da Piedade...

- A serviço de Deus e de Sua Alteza - murmurou o guardião, curvando-se.

- Resta, reverendíssimo padre, que lavreis um escrito sumário que me autorize a dizer que tendes como hóspede neste mosteiro ao infeliz e contrito D. Sebastião, rei que foi de Portugal e, para sossego de todos, aluda às salutares disposições em que se encontra...

- Como quiserdes, senhor Manuel Antunes. Mas sempre quero advertir-vos que não é bom trazer veneno connosco. As vezes empeçonha o portador.

O enviado cismou um momento e respondeu gracejando: Não há-de haver novidade. Eu sou cauteloso. De resto, o veneno vai ao

direito para a frasqueira de Sua Alteza, que está guardada a sete chaves. - Ámen! - e o frade, pegando da pena de pato, com que traçava o

lineamento das suas homilias, pôs-se a lavrar a cédula temerosa. - Os corsários dão-nos caça, senhor - velo dizer o capitão. - Trazem

duas galeotas e um bergantim e, a menos que o Todo-Poderoso lance na nossa rota alguma nau de Espanha, temo-la travada. Mandei meter proa ao cabo Teulada, que nos fica a quatro léguas por estibordo. A gente está a postos.

Page 30: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

III Acabou D. Sebastião de se vestir em silêncio e, pondo à cinta a espada

larga de dois gumes, subiu para a coberta, seguido de Frei Salvador. Acabava de se render o primeiro quarto da alva e na luz difusa, mate e lívida, que parecia o revérbero da face do mar, distinguiam-se Já muito bem as galés velejando a todo o pano na esteira do Santo Anjo da Guarda. Estivera uma noite luzentíssima de lua cheia e de nada valera navegar de lanternas apagadas. Bastaria a própria fosforescência da água batida pela quilha, para chamar o olho esperto dos piratas, muito sobejos por aquelas paragens. Mas, andassem ao pairo ou fosse por artes do demónio que tivessem ventos do patacho, o certo era irem marrados nele, apenas aguardando o dia claro para lhe saltar em cima. A nau de linha - muita parra e pouca uva - não os tentava. Por desgraça o Santo Anjo da Guarda tinha mais ar de navio de comércio que de guerra, se bem que guarnecido duma espera, dois berços, dois falcões, e trazer além dos trinta e cinco homens da mareação uns vinte soldados, afeitos ao manejo de todas as armas.

A meia calmaria favorecia as galés que se aproximaram a ponto de se

poderem contar homem por homem da manobra. E aquela que devia ser a capitânia fez sinal para que amainassem. Não obedeceu o capitão, lançando eles um tiro sem bala como a reforçar o aviso. Em resposta o condestável apontou-lhes a espera, e simultaneamente, de rebentina, falcões e berços abriram fogo. Um instante pareceram os corsários desconcertados como se, contando com borrego, lhes saltasse lobo. E quando se esperava que a amostra tivesse efeito salutar e se convencessem a virar de rumo, ei-los colhendo as velas e arvorando bandeiras largas e paveses vermelhos, para se lançarem sobre o patacho à força de remos.

Crescendo, crescendo à superfície estanhada do mar, com velocidade de gerifaltes, a sua artilharia disparou. Rolou o estampido, cobriu-se o céu com fumaceira e por detrás da sua cortina desapareceram por minutos as galés. O silêncio que então se sucedeu foi tão impressionante que pareceu alívio ouvir-se acima do chape-chape dos remos as vozes dos comitres presidindo à manobra e, enchendo o mar, os toques secos das trombetas

Page 31: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

bastardas ordenando os aprestos supremos do combate. Depois, lentamente, foi-se dissipando o nuvarrão de fumo. Viram-se as galés crescer para o patacho a voga arrancada. Mais fero que a cadência dos remos só as pupilas dos piratas, rabidas como de felinos. E com a iminência do risco, se bem que os portugueses fossem gente provada em colisões, as almas se turvaram.

- Fogo! - bradou o mestre, e novamente a espera e os pedreiros despejaram os seus pelouros contra as galés. Mas estas, porque os tiros fossem sofreados ou altos, aceleraram ainda mais o andamento, ao passo que varriam o convés do patacho com toda a casta de metralha. E a manobra da abordagem foi tão bem conduzida que os portugueses, mal refeitos da terrível descarga, só por milagre acudiram aos castelos a tempo de sustentar o ímpeto dos janízaros que acometiam de roldão e em grande poder, levando diante de si tudo raso. Mas o capitão não perdera de todo o ânimo e pôde repartir a sua gente em dois troços, um à proa, outro à ré. E crua batalha se travou nos dois pontos, espada contra alfange, mosquete contra arcabuz veneziano.

Combatiam os portugueses com o desespero de quem não espera salvação senão do próprio esforço, os piratas como feras famintas, assanhadas. E a porfia duns não ficava atrás da decisão dos outros.

Rendei-vos a Argel! - gritavam. Os Janízaros, havendo conseguido içar na adriça o pavilhão verde semeado de crescentes e estrelas de prata, acabaram por fazer-se fortes no castelo da proa e dali não arredavam pé. Apertavam com eles os portugueses e à arma branca e a tiro, arremessando-se dardos e farpões, o combate atingia inaudita ferocidade.

A bombordo, entretanto, os portugueses paravam com brio insuperável a abordagem da segunda galé. Grande, também, era a grita para aquele lado. Já a coberta estava pejada de mortos e feridos e viam-se a lutar com as ondas aqueles dos combatentes cuspidos ao mar nos desatinados vaivéns da peleja. O ataque teria há muito sido repelido se, a poucas braças, o bergantim, que não pudera atravessar-se com o Santo Anjo da Guarda, não fosse disparando sobre ele com pontaria serena os seus arcabuzes de bronze. E, não contente com ajuda tão traiçoeira, um judeu negregado preparou uma bomba incendiária e pela escotilha, com sorte infernal, lançou-a dentro.

Já à proa D. Sebastião e Frei Salvador carregavam o inimigo vitoriosamente; já o sargento de janízaros caíra de borco sobre a bitácula a

Page 32: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

gorgolejar sangue; já a chusma de barretes verdes se apinhava às arrecuas quando, de escantilhão, desabou sobre eles a gente de bombordo. Na sua cola vinham os turcos, de cimitarras e escopetas em punho, olhos esgazeados, boca escancarada, medonhos. E, disparando e acutilando à toa, atravessaram o convés de cambulhada com os portugueses que clamavam:

- Fujam se não querem morrer assados! Os do castelo, olhando à popa, viram uma chama enorme içar-se pelas enxárcias e lamber a traquete como se fosse estriga de linho, atrás dessa outras, e toda a ré converter-se em imensa fornalha. Senhor Deus, misericórdia! já de nada valia lutar e, no entanto, os portugueses procuraram remeter-se do primeiro espanto e resistir. Vã empresa! Entre os dois inimigos - piratagem e incêndio, mais feros um que o outro – os portugueses arrancaram com tal gana que, empurrando os turcos, foram dar cegos de todo à galé que primeiro os abalroara. Poucos restavam já: D. Sebastião, o frade, o condestável da artilharia e dois grumetes.

O patacho era agora uma imensa labareda silvando e enrubescendo céu e mar. Por um leve esfuminho a estibordo denunciava-se a terra, para a qual as naves, ferradas com harpões umas às outras, haviam insensivelmente descaído durante a refrega. Aquele traço de bistre, mais ténue que filamento de neblina a esgarçar-se dum amieiro, era bem o cairel da costa sarda. Continuava a não se avistar vela. Um bando de cormorões erguia dos parcéis para o alto com ar de dizer aos piratas: cuidado, além fora é a Latinidade, com gente, leis, armas, a que manda a prudência se não ofereçam estes espectáculos de sangue.

Depois de dar fundo aos mortos que não haviam sido abrasados, cuidaram os argelinos de pensar os feridos. E não foi pequena maravilha para os portugueses verem a ajudar ao barbeiro de bordo uma rapariga ainda novinha, loira dum tom quente de mel no favo, tão gentil de presença que nem o inédito da surpresa lhe faltava para boa fada. Posto não fosse sarracena a avaliar pelo todo, particularmente pela tez que era translúcida e pelos olhos de íris imaculada, quando os das africanas têm laivos amarelos, trajava à mourisca, só o véu descuidado para os ombros em lugar de lhe fazer coca à roda do rosto. Com isso ficavam-lhe livres e a doidejar os fiapos do cabelo sobre as têmporas e esse desalinho era cheio de graça. Depois de curar os seus, ocupou-se igualmente dos portugueses, sem se importar com a careta de

Page 33: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

reprovação que faziam os janízaros. D. Sebastião recebera uma espadeirada no ombro, e ela lhe lavou a ferida e aplicou os bálsamos da lei hipocrática com tanto jeito e bons modos que enternecia. Fez o mesmo a Frei Salvador e aos outros, mostrando sempre o maior agrado. Além de caridosa, enquanto se entregava ao papel de enfermeira, porque o seu natural fosse faceto, com um tanto de arvéloa que não lhe ia mal, mostrava os belos dentes brancos. Frei Salvador, que tinha mais lanhos nos braços e pelo corpo do que um cepo de carniceiro, pois que a pessoazinha dela era especiosa e agradável aos honestos sentidos como rosa orvalhada de roseira, falou-lhe, para a demorar ao pé deles, de coisas e loisas. Ela não se fez rogada, como se andasse coagida a solidão que lhe era grato romper, e em italiano lhes saciou a curiosidade quanto a saberem quem eram aqueles piratas e ela.

- Pois vou veneziana e chamo-me Bianca, em Argel, Lela Bianca. Meu tio é um armador muito conhecido em toda a Berberia pelo nome de Morato Arrais. Mas é oriundo da Albânia. Uma filha dele foi casada com Molei Moluco, o sultão de Marrocos que morreu durante a batalha de Alcácer Quibir contra D. Sebastião de Portugal. Aqui está. Dizei-me agora quem vós sois... - concluiu ela com donaire, o seu olhar suspenso numa deliciosa expressão de interesse.

Declarou-lhe Frei Salvador da Torre que eram homens de negócio e iam feirar a Cândia, levando especiarias do Oriente e estofos da Flandres para trazer veniaga local, o famigerado vinho malvasia e os queijos de não menos glorioso crédito.

E, fornecendo respostas certas de molde a dar-lhe satisfação sem sofrer dano, tornou o frade:

- Mas como pode a senhorita, tão jovem e mimosa, andar no meio desta alcateia de feras, capazes de tudo, esfaquear Cristo e furar a ponta de punhal o ventre que os gerou?

- Eu sou passageira do bergantim - respondeu ela com certa travessura na voz e riso a iluminar a boca rubicunda. - Mas não me pergunteis agora por que bulas sou passageira do bergantim, que é o meu segredo.

Meteram os cativos na câmara da galé capitânia e mandaram-nos despir. D. Sebastião, que sempre fora pudico e recatado, resistiu; o comitre acenou-lhe com o azorrague.

Page 34: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Meu senhor - disse o arrábido -, quer a Divina Providência que comecem as provações. Não há que fugir.

Despiram-se o rei e os mais, e em troca da roupa que traziam no corpo, tanto a branca como a de cima, lhes deram camisolas velhas de marujo, calças de espantalho dos milhos e hílares carapuços de judeu.

Era em fins de Outubro e as manhãs são frias e preguiçosas de levantar. Quase todos tiritavam naquela indumentária moura de vendedor de amendoim, mas ninguém fez caso do seu bater de dentes. Também lhes não deram calçado, nem bom nem mau, e Frei Salvador murmurou, contemplando os seus famosos joanetes:

O vero Salvador subiu descalço a Rua da Amargura. Paciência! À hora em que a vaga mais estreloiçava na câmara, abafando todos os

ruídos, o arrábido bichanou ao ouvido do rei: - Alma, meu senhor! Alma e saireis magnificado destes trabalhos.

Agora fazei-me a mercê de ouvir: se estes bárbaros soubessem que estão em posse do rei de Portugal, de que não seriam capazes em achincalhe e ganância? Os nossos companheiros não o sabem. Sabia-o o bravo capitão; paz à sua alma; o segredo está bem guardado no fundo do mar. É preciso que os perros nem desconfiem. Por isso eu rogo a Vossa Alteza se digne mudar de nome. Não há inconveniente em que eu continue a chamar-me como sou. Por baixo do saal não há al. Outro tanto não sucede com Vossa Alteza. É assim ou não é assim?

- É assim! - concordou D. Sebastião. - Pois já que Vossa Alteza foi o mais desejado dos portugueses, pode

dizer-se, depois que Portugal é Portugal, porque não há-de adoptar este crisma tão legítimo: Desidério? Desidério Augusto, Augusto como atributo de majestade?...

- Passarei a chamar-me Desidério Augusto - proferiu el-rei. Pela tarde veio um turco, o arrais, a julgar pela importância com que

olhava para os cativos. Descoroçoado com a fraca presa a que o reduzira o incêndio, não podia admitir que um navio que se dizia mercante assim trouxesse tripulação de guerra. Que fazenda levava e que fazenda ia buscar? - e, rugindo, ameaçava-os com ferros se tentassem lográ-lo. Valeu saber Frei Salvador arábigo o que basta para embrulhar uma resposta que, afinal de

Page 35: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

contas, se resumia em repetir o que dissera a Lela Bianca. E interrogados quando à condição de cada um, o franciscano, que prezava a verdade como verdade entre cristãos, e a mentira tanto como a verdade entre infiéis, respondeu serem feitores e criados do rico comerciante que perdera a vida no incêndio do patacho e que, embora tivessem empunhado a espada como homens leais a seu amo, não eram as armas o seu mester como já não tinham sido a sua criação. Pessoas de fracos teres, não podiam pagar grande resgate. Quanto pediam por cabeça?

- Isso trata-se em Argel, não aqui - respondeu o pirata, voltando costas. Trouxeram-lhes uma tarraçada de grugu - arroz com azeitonas - que

comeram da mesma escudela. Pareceu-lhes o pão branquíssimo, a água fresca e saborosa, e ainda que o alimento viesse pelas mãos dos bárbaros, deram graças ao Senhor. À noite, não obstante as vozes e as marteladas, estrépido que lhes deu a entender que os piratas se ocupavam do conserto da galé avariada na batalha, adormeceram, e vencidos pela fadiga, mais forte que a inquietação de seus destinos, o sono lhes foi propício. No dia seguinte um janízaro prendeu-os uns aos outros com uma corrente de apertados e seguros fuzis, e assim os tocou da câmara para o convés. Estava a romper o dia e para as bandas do Oriente o céu representava a imensa pele de cabra, acabada de esfolar, das manhãs luminosas de Portugal. Mais extensos àquela hora não podiam sê-lo os horizontes. Arrepiava ao mar um soprozinho de brisa que lhe esfiocava o azul profundo. Os três navios navegavam de conserva, tão escoteiros, a tão frouxa remada, que, se não fora de quando em quando o ranger das enxárcias e das vergas, passariam sem ser notados das garças adormecidas. Mas foi clareando mais e mais e a costa começou a definir-se, linha escura e caprichosa, carregada aqui, imperceptível ali, dentada acolá, consoante a vestia bosque, areal, ou era ribanceira abrupta. Depois, essa linha tornou-se duma verticalidade fantástica e opressiva, espécie de anteparo a serranias de almagre e cobalto. E, contra um fundo vagamente roxo e pardo, uma pirâmide láctea ia-se erguendo à medida que as galés avançavam, com entalhes como se fosse uma curiosa construção em pôrfiro, quase a pique como vela de gávea enfunada pelo vento. Nessa estranha empena, mais umas braças percorridas, as coisas começaram a singularizar-se: distinguiu-se uma casa, depois outra e outra; uma mesquita; um torreão; uma palmeira... Mais

Page 36: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

duas remadas, rompeu o Sol, e, nem que depusesse envolvente sendal, Argel explodiu em sua brancura e tintas versicolores, tão fechada como pinha, tão empinada pela encosta que todas as casas pareciam de atalaia para o mar, sem que uma tolhesse as vistas da outra. E pelos minaretes, açoteias, terraços dos bastiões, amelas das muralhas, a alcáçova em panos negros de granito, a todo o alto, portas e baluartes, tudo em bebedoiro para o mar, havia uma pulverização de luz tão diáfana e fluída que dir-se-ia regulada pela cortina de tule que eram à retaguarda da planície as montanhas ondulosas.

Quando a pequena frota entrou no porto, os falcões salvaram. Responderam-lhes as troneiras dos baluartes ribeirinhos, e logo começou a afluir ao mole grande peso de gente. Porto e cais estavam já em grande animação. Pescadores saíam com seus caíques, e galés aparelhavam para o corso costumado; mercadores estrangeiros carregavam seus navios de trigo. Martelava-se para as tercenas e, rente aos molhes, nas águas chocas, dormentes, com viscosidades metálicas a boiar, velhos mouriscos, apenas com uma tanga nas partes, negros e sórdidos, pescavam à cana. Por cima deles e na praça do peixe, à retaguarda, miríades de gaivotas descreviam volutas esbeltas picando a água e escalando o céu, soltando guinchados ásperos na disputa de cibo e quando alguma delas, ao fazer presa que se visse, despertava estímulo ou aplausos.

Os cativos viram a mocinha desembarcar do bergantim e, embora ignorassem de certa certeza quem era, tiveram a sensação angustiosa de que uma pequenina divindade tutelar os havia desamparado.

Foi avançando a manhã e nas galés entraram multas e várias pessoas, com a lágrima estas, a gemer aquelas, chispando lume contra os cativos quase todas. Eram as famílias enlutadas pela batalha e os amigos que vinham prantear seus mortos e acarinhar os feridos. E como a propiciação não lhes parecesse completa sem holocausto, caindo sobre os cativos lhes arrancavam as barbas e os moíam a murro e à paulada. já o sol coruscava nos muros brancos e a sombras eram de carvão retinto, quando um cabo de janízaros com a escolta competente os veio buscar. A açudada de gente no desembarcadoiro era tal que um dos tropas teve de sacar do alfange e brandi-lo para que lhes franqueassem passagem. E foi entre empurrões da populaça, insultos e vozes de maldição, que largaram do molhe e meteram por uma rua tão estreita que

Page 37: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

nela não cabiam mais que dois homens de frente. E em seu encalço continuou a zumbir brava, suja e densa como moscas, a praga dos lazarones.

Passaram diante de velhas mesquitas à porta das quais mouras indigentes tomavam o fresco e pediam esmola. De edifícios coroados por zimbórios furta-cores, que eram balneários, viram sair mulheres de bloco. Foram de beco em beco, de viela em viela, com casas baixas e mudas encostadas umas às outras como a emprestar-se reciprocamente sombra e equilíbrio. Algumas tão herméticas eram que mal abriam para a rua uma portinha sonsa, se a não podiam dissimular para a travessa. E careciam de outras frestas além de pequenos postigos por onde seria possível espreitarem olhos de ciúme ou de amor, mas não assomar a cabeça. Mais longe, bairro dos artistas fora, as casas de habitação permaneciam inalteravelmente cerradas e misteriosas, toda a vida interior concentrada à volta do pátio. Mas nas quitandas e baiucas os obreiros mouros, sentados sobre as pernas em cruz, entregavam-se à vista da gente aos variadíssimos mesteres. Com majestosa gravidade, como se dos seus gestos dependesse a sorte de Argel, os chumecos consertavam chalocas achavascadas de judeus e chinelinhas lirós de argelianas em marroquim. Cheios duma sobranceria, que vinha de seu grau elevado na jerarquia dos ofícios, os alfagemes corregiam lâminas de aço e apuravam arneses. Não era também sem distinção que os esteireiros teciam suas junças e combinavam cores, tudo com uma notável pachorra, regalados que os admirassem. Todos eles, soldadores, alfaiates, oleiros, davam mostra de tal contentamento consigo e com a sorte, que dir-se-ia fazerem o comércio ou exercerem a indústria por gozo da notoriedade, como histriões ao exibirem-se em público. Tinha a sua graça, sobretudo, ver os barbeiros, depois de puxar a cabeça dos pacientes para os joelhos, passearem por cima deles um navalhão aguçadíssimo e ultra-rápido, ufanos e com os ares mais distraídos deste mundo.

Judias, a avaliar pela falta de recato comparadas com as mouras, cobertas de mondongos, passavam como formigas. Iam a despejar as imundícies domésticas nas montureiras que se anunciavam de longe pelos gases mefíticos de podridão e cloaca que infectavam um quarteirão inteiro. Em certos sítios as casas, tocando-se frente com frente, telha com telha, não deixavam ver céu. Era lôbrego, e com as ruas a trepar por sucessivos planos,

Page 38: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

sempre a festo, a saída ao alto luzia como tampa de cristal. O chão estava, para mais, coalhado de detritos, cabeças e tripas de peixe, ossos, lixo e mais lixo, e por toda a parte cheirava a peste e a cadáver.

Foram apresentá-los ao baxá que encontraram de pernas cruzadas num estrado, a que cobria rico tapete de Esmirna. Vestia túnica vermelha que lhe chegava aos tornozelos magros e lanzudos e tinha na mão um leque com que se abanava vivamente das moscas e do calor. A sua retaguarda, a todo o longo da parede, desdobrava-se o pavilhão argelino, uma lua de prata, a meio de estrelas, em campo verde. Era um renegado veneziano que adoptara o nome turco de Hassan, Hassan o Vaidoso, como lhe chamavam os mouriscos, gente muito propensa a pôr a alcunha e o ferrete. Ninguém gostava dele. A sua rapacidade era de tal ordem que anos a fio tinha açambarcado o comércio do trigo, principal riqueza da província, provocando a alta que muito bem lhe apetecia com estar na sua mão proibir a importação de cereais. Dizia-se que tinha pregos de ouro pelas paredes e à cautela ia amealhando na sua antiga terra natal, onde contava acabar a velhice enfarinhado de filantropo. Além de ter o monopólio do trigo, acusavam-no de torpíssimas malas-artes e abusos de poder no sentido de apanhar quantos escravos apareciam no mercado por uma tuta-e-meia e revendê-los ao Grão-Turco e a quem precisava deles por mundos e fundos.

A primeira impressão que dava era do tipo presunçoso, mesquinho e reles ao mesmo tempo. Esta impressão contrastava com a que se tinha do homem que estava à sua direita, homem de meia estatura, albornoz de seda, turbante rico na cabeça, borzeguins finos. A barba preta de azeviche, com raros pêlos brancos, vestia-lhe a face, crestada sim, mas alva e quase simpática; os seus olhos eram pequenos, de vivo azougue e risonhos, modo nele, porventura, de esconder a cólera e a crueldade. Cinquenta anos; máscara de inteligência e energia a toda a prova; criatura para dar cartas a Satanás; talvez mais manhoso do que Hassan, sendo de considerar que para pessoas, à margem do direito das gentes, a manha é a suprema virtude: Morato Arrais, terror dos mares.

Na qualidade, decerto, de general das galés que haviam aprisionado os portugueses, lançou-lhes, mal entraram, um olhar anojadiço e desdenhoso, que não escapou a ninguém, e que parecia ter por objecto tal efeito. Aquele

Page 39: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

olhar queria dizer: mal empregado tempo, dinheiro e vidas que se gastaram a deitar a rede a estes cinco iagodes. Os dois grumetes, ou lá o que eram, não passam dum ranho de gente; o frade está na vertente da idade; escaveirado; um roble com a carcoma no cerne.

O barbirruivo vem ferido, e tanto pode ficar aleijado por toda a vida como engangrenar-se-lhe o ombro e levá-lo a maleita; sofrível, tem-te não calas é o homem de olhos bovinos, espantados, que dizem ter sido condestável de artilharia.

- Já deitaste as contas a quanto nos ficou o cisco que aqui temos?! - proferiu em italiano, que lhes era língua comum, depois daquele olhar pejorativo. - De dez remadores feridos, dois vogavantes, feros e tesos como urcos, dormem no fundo do mar; sete estão no hospital, mas três não pegam mais no remo. Da soldadesca, há quatro janízaros com o odebasi mortos e mais de quinze marcados para toda a vida. Porca madona!. Mas tu podes dar graças que não se perderam mais que dois homens na tua galé!

Em resposta o baxá rompeu a encarecer o prejuízo que tivera e, armando ao desinteresse, a falta, mormente, que fazia o odebasi, homem experimentado a guerramar, forte como toiro e duma fidelidade ao aga a toda a prova. Era dizer-lhe metesse as mãos no lume e ele a grelhá-las. Uma das primeiras cimitarras de Argel! Mas para aqueles malditos assim fazerem estrago é que se tratava de gente prática no manejo das armas. O barbirruivo dava mostras de espadachim, bastava olhar-lhe para os bíceps desenvolvidos sobremaneira em desproporção talvez com o tórax. Hem, não lhe parecia que por debaixo do uniforme de pilhanqueiro que lhe vestira o arrais se lobrigava o fidalgo, mas fidalgo de alta senhoria...? Que tal, as roupas não haviam fornecido indício nenhum?...

Morato Arrais afivelou de novo o ricto de desprezo e respondeu com desembaraço:

- Não, as roupas não forneceram nenhum indício aproveitável. Caso contrário, teríamos sido informados. Não estava lá Galeaço, o teu honrado e leal arrais? Zeloso como é, deve trazer-te ao par...

- Tens razão, Galeaço é a pontualidade em pessoa, mas Galeaço não pode ter olhos para tudo. Em suma, assentemos que o barbirruivo não trazia

Page 40: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

consigo sinal que o identificasse. Mas estou na minha: temos pássaro grosso na mão.

- Não creio, mas oxalá o teu palpite bata certo. Os interrogatórios nada deixam prever...

- Santa ingenuidade! Experimentemos às boas a ver se são capazes de confessar que dispararam um tiro contra Argel! Eu cá sou pelos processos de Sua Eminência o Cardeal Cisneiros...

- Está bem, aplica-se a tortura, mas fiquemos entendidos: se o cativo ficar estropiado, como sucedeu há tempos com os irlandeses, os prejuízos são à tua conta.

E de despique em despique exaltaram-se a grau que chegaram a imaginar os portugueses que se atiravam às goelas um do outro. Mas nada disso; acabaram nos melhores termos por convir que os cativos fossem postos no Badistam em hasta pública. A percentagem que revertia a cada um deles forneceu de novo tema à mais encanzinada contumélia. Pedia o baxá que do produto dos cinco cativos lhe fossem entregues três quintos: o primeiro, pois que era prerrogativa do cargo que desempenhava tomar em todas as presas de oito partes uma; o segundo, porque a galé capitaneada por Galeaço era sua, armada com seus dinheiros pessoais e paga a tripulação do seu bolso; o terceiro, afinal, porque a lei, sempre que se tratasse de cativo de qualidade, lho mandava reservar como quinhão; ora bastava observar as mãos, os ademanes do barbirruivo, para se dar conta que se estava em frente de algo.

Contestava o corsário que se a lei lhe conferia uma oitava parte nas presas em sua qualidade de baxá, era absurdo pedir uma quinta parte, consoante as contas que estava a deitar; e se, como armador duma das galés lhe competia um cativo, não lhe assistia o direito de declarar: “Este é de qualidade, fica para mim.” Ora estava averiguado que o patacho era bem um navio de comércio e não levar, além da equipagem, senão pessoal de negócio, feitores e caixeiros; desta opinião eram o seu arrais, Galcaço, e ele depois das inculcas a que procedera.

Morato Arrais argumentava sem grande calor, embora com acrimónia, o que ao espírito de Hassan não era mais que dar jogo baralhado. Uma das forças do corsário era esta: variar de atitude como se lhe fosse possível depor o temperamento e carácter que lhe eram próprios e revestir outros. Depois,

Page 41: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

como se nutriam reciprocamente a maior antecipação, ao travarem-se de litígio, o que sucedia a cada passo, punham-se a raciocinar a modo de cabra-cega. @<Sabes que só te não engano se não puder. Nas minhas razões, o que vês é a máscara doutras razões; ora se eu te falar certo, engano-te com a verdade... Mas, como estás de prevenção... E, por aqui fora, de plano lógico em plano lógico, perdiam-se nesta floresta de ludíbrios, não havendo cito de se entender. Pro forma, Hassan irritou-se; pro forma, Morato Arrais não se irritou. E tiveram de volver ao natural, insultando-se então sinceramente com os nomes mais soezes em que é fértil a gíria italiana. E, quando boquiabertos e divertidos apesar do trágico de suas situações, os cativos se preparavam de novo para assistir a luta de feras, quase amicalmente concordaram em deferir os portugueses ao Badistam, que é a Bolsa dos escravos, submeter a divergência no que dizia respeito ao quinhão à arbitragem do aga dos janízaros.

Foram os portugueses conduzidos ao Banho, prisão dos escravos, pela mesma escolta. Dos cinco, D. Sebastião, o condestável da artilharia e o frade ficaram no Banho de el-rei, em que havia hospital, com barbeiro, sangrador, enfermeiros e, por divina graça, exercida mercê do ânimo esmoler dos mais escravos cristãos, não faltava a sua canjinha de galinha. Consistia num torvo e opaco casarão abobadado, com galerias à roda do pátio em que cantava, também por divina graça, um repuxo de água límpida, e os carcereiros eram renegados mais duros que demónios e mouros que se julgavam por esse facto iguais ao Miramolim.

Quando os dois cativos entraram na lôbrega camarata, a penumbra cegou-os. Mas ao fundo reboavam cânticos e viam-se muitas e pequeninas luzes a bruxulear. Acercando-se, deparou-se-lhes o espectáculo de centenas de fiéis apinhados numa capelinha cheia de candura e de flores, como são as de Portugal. Olhos elevados a Deus, cantavam o salmo Super flumina Babyllonis e nunca um coro fora mais comovente e atrido:

“Assentámo-nos à beira dos rios de Babilónia e, lembrando-nos de Sião, soltaram-se-nos as lágrimas dos olhos.

“Pendurámos as harpas nos salgueiros que ali cresciam e aqueles que nos levavam cativos pediram-nos que cantássemos; que lhes cantássemos um hino de Sião.

Page 42: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Como poderíamos cantar em terra alheia o cântico divino?! “Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, a minha mão direita fique

dormente para todo o sempre! Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, fique-me a língua colada ao céu da boca! Acaso pode Jerusalém deixar de ser a luz dos meus olhos?”

Ficaram os portugueses extáticos ante as vozes doloridas e tão divinas que deviam trespassar as abóbadas e ascender ao Céu. D. Sebastião desencostou-se do frade e, tanto quanto lhe permitia o comprimento da corrente, lançou-se de joelhos diante do altar em que uma Virgem Mãe, branca e vaporosa, lhe estendia os braços e sorria.

Page 43: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

IV Com o fim de serem vendidos em almoeda, conduziram-nos ao

Badistam. Era um largo escantilhado atrás da mesquita velha, com dois casebres de taipa alcatroada a uma banda, tascos salitrosos a outra, donde lufavam acres rescendores de salmoira e peixe frito. Por cima duma dessas tavernas, uma ventoinha rodava, golpeando sobre latas velhas um compasso infernal.

Como aos demais escravos, puxaram-nos para o meio do terreiro para que os vissem bem. Cada récua tinha os seus guardas, látego em punho ou dependurado do pulso, e à desbanda o dono quieto e mudo, só com o olhar importante ou enjoado dizendo que era o dono. Em volta rondavam mercadores: de albornoz claro e turbante, os mouros; de túnica preta apertada à cinta com uma correia, na coroa da cabeça um tachinho também preto, os judeus. E, falando de tudo menos de escravos, vagueavam pela feira os senhores de respeito renegados, turcos da Turquia, almirantes - barbudos, jalecos de alamares, latagã no boldri1é de anta, borzeguins bordados a matiz, a fraldejar o imponente balandrau. Os padres da Santíssima Trindade, de branco, peito chagado pela cruz encarnada, apareciam aqui, mostravam-se além, entreluziam acolá. Sempre presentes a todos os negócios, como lhes requeria o múnus, traziam atrás velhos escravos, nunca resgatados em sua indigência e invalidez, olhar humilde e amoroso de estafados e inúteis cães. E, aqui deitando sentença, cochichando além ao ouvido deste, mais longe puxando um mercante de parte e apontando-lhe a dedo tal ou tal cativo, quem era aquele Judio dos quatro costados, barbicha de bode, olhos de safira pura, pequenino, coleante, rápido, nervoso, chinelas vermelhas nos pés, veste sebenta? Gedeão Jekarim, o mais fino troquilha de Argel e província de Tremecém, mestre em malas-artes, que do bergantim arremessara a bomba de fogo para o Santo Anjo da Guarda.

Quando no Badistam se deu conta dos cativos do patacho português, levantou-se grande reboliço. Todos estavam desertos por avaliar da importância daqueles cinco homens que tão caro tinham custado e de cuja tesura corria fama pela cidade e aduares. Mas à voz de Morato Arrais, que chegara quase ao mesmo tempo, um dos guardas, cabila forçudo e

Page 44: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

alambazado, rompeu à murraça aos mirones e alargou-se o cerco. Então, pouco a pouco, havendo fartado a curiosidade, com certo descoroçoamento por aqueles homens não serem torres nem olharapos, sobressaindo apenas o condestável de artilharia que parecia esfalcado em azinho, cada um se juntou ao seu rancho, aos seus escravos, ao seu senhor e os entendidos puderam aquilatar da fazenda que se lhes oferecia.

Depois de muito paleio e tretas, deu-se início à hasta pública, anunciada pelos editais do baxá. Certo mouro, que trazia um albornoz que nunca vira água, barba que nunca vira pente, avançou com os oficiais da Aduana para a chusma de cativos. E logo se chegaram para ele os mercantes mouros e judeus, os janízaros da guarda, e os bons e infalíveis religiosos da Redenção.

Empurraram para fora do monte ao condestável de artilharia; em breve o leiloeiro rompia a esporteirar:

- Escravo de trinta anos, dentes todos, sem achaque nem matadura; valente como um cavalo; tão bom para servir nas galés como para cortar pedra nas pedreiras; português de nação... tenho uma oferta de mil e quinhentas patacas. Mil e quinhentas patacas... Vejam... Vejam bem...

Um beleguim do Badistam, pelado e jarreta, pegou-lhe do braço e andou a mostrá-lo à roda. Diante de Arachmed-Efendi, que comprava por conta do Divã escravos que dessem remo, parou. junto estava Gedeão Jekarim, muito solícito em mostrar-se útil ao homem importante, todo se derretendo em gatimanhos e cacarejos. Uma vez o bombardeiro em face, pôs-se a mirá-lo e a medi-lo, como apreciador e perito que era em gado desta raça. Mandou-lhe abrir a boca, que examinou no meio da conspecção silenciosa dos presentes, venta erguida, piscando o olho, arregalando a beiça, como se estivesse a olhar por baixo dum sino. Experimentou-lhe, em seguida, os bíceps, os rins, cingindo-os de súbito às mãos ambas, e para se certificar da solidez dos tendões jogou-lhe imprevistamente uma cambapé aos jarretes. Oscilou o colosso, mas não velo ao chão, a tudo se submetendo, industriado pelos velhos escravos, que encontrara no Banho, que mais valia sofrer com resignação aqueles vexames do que provocar represálias com a revolta. E, finda a prova, a meia voz, velo dar conta a Arachmed-Efendi da sua devassa. Entretanto o pregoeiro clamava:

Page 45: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Está em mil e oitocentas patacas. Quem dá mais? Olhem bem: é um hércules possante como dois cavalos; direito como palmeira; viram-no arrancar dez arrobas do chão e atirar com elas para o costelado. Duas mil patacas... A Kheradin Arrais...

O judeu agora fazia-o trotar; como o cativo não manobrasse com a prontidão desejada increpou-o:

- Anda, dá-me às gâmbias, madraço! Queres arrocho? Duas mil e duzentas patacas! - gritou uma voz esganiçada. Olharam para quem cobria o lanço; era um troquilha, também muito

conhecido, Kaleb, que logo desconfiaram estar ali como testa-de-ferro de Morato Arrais. E o pregoeiro retrauteava:

- Está em duas mil e duzentas patacas. Duas mil e duzentas patacas. Se ninguém dá mais, arremata-se...

- Vais muito depressa, pregoeiro dum raio! - disse-lhe Gedeão. - Põe lá duas mil e quinhentas patacas.

- Duas mil e quinhentas patacas... Quem dá mais...? Por ali fora, ora de Kheradin Arrais, que trazia grandes obras nas

fazendas, ora de Archmed-Efendi, arrematou este último por três mil e quinhentas patacas, preço alto mas que não surpreendeu ninguém, pois os escravos andavam caros, tendo a peste grande, que à data começava a amainar, dizimado neles à foice larga.

A seguir foi posto em hasta o barbirruivo. Se bem que mediano de estatura, vestido de andrajos como os mais, dava no goto pelo seu porte, ar distinto e, acima de tudo, pela teimosa e irradiante majestade, que era como brilho de morrão depois de apagada a candela. Não se parecia nada com o pedaço de homem, o animal seguro de trabalho e de força que era o bombardeiro. A arrastada convalescença insculpira-lhe no corpo uma impressionante delicadeza. Pálido, tão escantoado de fronte que o cabelo sobre a testa tomava perfeita forma triangular, exangues e despegadas do crânio as orelhas que eram compridas, afilado até à ossidez o nariz fino, nariz de cartilagens transparentes, o rosto emaciado e anguloso, a desmanchar a oval esbelta o queixo de mórbida proeminência, era a sua sombra. E afivelara na máscara que lhe era peculiar - de homem que nunca deixou de sonhar

Page 46: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

acordado, dormindo, praticando fosse o que fosse uma expressão nova de alheamento e desapego das realidades, confrangedora.

Todos os olhos convergiam para ele e, estudando-o em silêncio, foi parecer unânime transmitido duns para os outros num zumbir de abelha, que estava ali cativo para resgate alto, porventura excepcionalmente alto, porém medíocre trabalhador. Mas as razões deste juízo ninguém as saberia dar. Apartaram-no do bando para que pudessem vê-lo à vontade. O homem arratazanado, que ali exercia funções análogas às de picador nas coudelarias, propôs-se fazê-lo marchar a trote e a galope, como era da regra. Mas o olhar que ele lhe dardejou foi tão sobranceiro, tão cheio de império, que o mouro ficou mais atado do que se o fulminasse paralisia. Era como se as pupilas se abrissem na face dum morto e cominassem. Frei Salvador da Torre, penetrando o drama que ia no íntimo do rei, acudiu aflito:

- Submeta-se aos desígnios de Deus, meu Senhor. Não protestou castigar o orgulho até o extremo limite da humilhação?

O cativo decidiu-se a obedecer, e todos os que se aperceberam da reviravolta ficaram desconfiados de que ali havia grande mistério. Deu alguns passos, e só pela maneira de pisar se capacitaram os presentes, os renegados em especial, que não era pessoa de extracção comum. Morato Arrais cofiava a barba enviezando os lábios, despeitado ou aborrecido. Vários compradores requereram que o escravo se despisse, pelo menos da cinta para cima. Resistiria ou não, o religioso olhou para ele, naquele olhar querendo expressar-lhe mais uma vez quanto lhe cumpria obedecer à Vontade Suprema. E ele, de olhos baixos, sem um pestanejo, abriu a camisola, mostrando a nu o torso de homem pouco mais de adolescente, branco como a neve, imberbe em certos sítios, vestido de lanugem loira noutros, nas conjunturas mormente. E na espalda tinha um sinal preto da grandura dum vintém de Portugal.

A um gesto do juiz das execuções, o leilão daquele cativo abriu por duas mil patacas. Mas dali até cinco mil patacas foi como foguete no ar.

- Está em cinco mil patacas - exclamava o porteiro. - Este homem ficou muito arrasado pelas feridas que sofreu, mas dizem os físicos que é uma besta de força. Tem obra de vinte e cinco anos. Inculcam-no os companheiros por feitor dum rico comerciante que ia para Cândia, mas é ponto de fé que aqui anda príncipe disfarçado. Trata-se dum espadachim de mão cheia. Foi ele que

Page 47: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

despachou para o outro mundo o odebasi de janízaros. Quem se tenta? Está em cinco mil patacas...

- Cinco mil e quinhentas patacas - lançou um homenzinho baixo que representava o aga dos janízaros.

- Cinco mil e seiscentas - proferiu Kaleb. - Cinco mil e setecentas - contrapôs o escrivão-mor da Fazenda. Gedeão Jekarim esteve a conversar na mais desafectada naturalidade

com Morato Arrais e, ao desenfado ainda, porquanto aquele cativo não interessava a Archmed-Efendi, pelo caminho mais casual deste mundo chegou-se ao bicho e pôs-se a examiná-lo. Fazia-o ressaltava claro como a água de suas maneiras e gestos pelo simples amor à arte e ao vício de troquilha. Automaticamente os arrematantes suspenderam o lanço. Ao cabo do exame, que foi demorado e teve o condão de reter todos os olhares, franziu a testa e cuspinhou para a banda em demonstração despicienda. E como se conservasse silencioso, os menos sofridos interrogaram-no:

- Que tal, Gedeão? - Vocês imaginam uma coisa e eu imagino outra. Futuram que está

aqui uma pessoa de qualidade, para pagar mundos e fundos pelo resgate, e eu digo-vos que não.

Fitou um momento o cativo e disse-lhe em castelhano: - Deixa ver a manápula, não te faço mal... O cativo estendeu a mão que Jekarim abriu e examinou um instante. E

depois de a examinar na palma e nas costas, proferiu para os feirantes: - Ná, isto não é mão de grande personagem. É mão robustecida no

trabalho, trate-se de feitor ou do diabo por ele. Inclino-me a que seja um destes soldados que os perros dos portugueses têm em África nas praças marroquinas, capazes tanto de terçar armas como de cavar uma horta. Velam como está dura e grossa a palma da mão... Parece sola. Vejam agora as costas: mão nervosa, espatulada, dedos robustos... Não, lá mecânico não é, mas está longe de ser um grande de Espanha.

O pregoeiro entretanto gritava, a distância de Gedeão o que basta para não ter que corrigir o bando, se houvesse mester de o fazer:

Page 48: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Está em cinco mil e setecentas patacas. Quem quer jogar uma boa vaza?! Este homem é fidalgo português de alto coturno, toda a gente o diz. Está em cinco mil e setecentas patacas. Ninguém dá mais?

Gedeão encolheu os ombros e tornou mais desdenhoso ainda: - Isto grande fidalgo?! Adeus, minhas encomendas! Não se pode dizer

mal-encarado, não, e a arca do peito é de boa aduela, mas tem muito a deitar fora. Se tem!

Passeou o olhar pelos circunstantes, reparou em Morato Arrais, que anediava a barba naquele seu jeito peculiar de pai da manha, olhos para o outro lado da praça e sete sentidos em tudo o que ocorria à sua beira, e volveu chamando o patrão de há pouco:

- Arachmed-Efendi, repara: não é verdade que o tronco deste homem está em desproporção com as pernas, as pernas muito compridas, o tronco muito curto? Todo o lado direito avantaja ao esquerdo. Descai bastante, e ia jurar que acaba leso de meio corpo...

Os licitadores tinham-se apinhado em volta do troquilha. Kaleb, que era seu concorrente no mester, abria a boca, pela fisionomia e silêncio se concluindo que concordava com o horoscópio. O cativo, alvo de todo este exame, estava no meio da gentíaga beduína tão ausente como se estivesse no meio do mar. E, depois de palavras tão esclarecidas, Gedeão Jekarim calou-se precisamente para que os presentes se manifestassem, e cada um não deixou de deitar sentença, como era lógico prever. Uns abundavam na opinião do troquilha, assinalando-lhe uma cicatriz antiga no sobrolho; o braço direito maior que o esquerdo; a mão em correspondência. Outros discordavam, invocando aquele seu porte altaneiro e soberbo de raça; os seus olhos de íris semeadas de estrelas, tão soberanos, que nada viam do que se passava em roda.

Morato Arrais quebrou também o silêncio para dizer que, se na qualidade de general das galés que o tinham aprisionado lhe coubesse em quinhão, havia de pagar com língua de palmo a boa e leal gente que matara. Só por isso era capaz de dar por ele duzentas plastras a mais do seu valor; quanto ao resto estava convencido que não passava dum vulgar caixeiro de especiarias. Em despeito de tais palavras, certo judeu, que até ali estivera mudo, já idoso, tentado subitamente pelo jogo, cobriu ainda o lanço:

Page 49: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Cinco mil e oitocentas patacas! - Está em cinco mil e oitocentas patacas a David Chalafta. O raposo

farejou pitança. Quem dá mais?... Quem dá mais pelo príncipe?... Mustaphá Arrais, que de começo se mostrara desinteressado, acercou-

se do cativo. Era um homem riquíssimo, dos mais ricos de Argel, que subia por oiro para a cama, com muitas galés e polacras de seu e uma soberba quinta fora de portas, onde reunira vinte escravas cristas, só para servir sua mulher, e trinta rapazinhos de nove a quinze anos de todas as raças, mas principalmente italianos, que não tinham licença de sair de casa para que não fossem pervertidos pelos mouros. Estava no pendor da idade e possuir tal cáfila de meninos obedecia menos ao gosto de abominação que ao prazer de fausto e de aparato. Uma expedição aos mares da Córsega havia-lhe desfalcado muito o pessoal de remo e todo o seu afã agora era cobrir as baixas no mais curto prazo. Medindo o cativo com um olhar, um só olhar de águia, como incumbia a homem superior, limitou-se a perguntar a Gedeão:

- De boca, que tal? - Falta-lhe um queixal - respondeu o hebreu. Mas parece mais ter

saltado com estilhaço de pelouro que ter caído de podridão. Tinham todos o olhar nele e viu-se obrigado a dar mostras da sua

importância. Alçando o dedo, pronunciou ao mesmo tempo que se retirava para trás da primeira linha de feirantes:

- Seis mil patacas. - Está em seis mil patacas... - clamava o pregoeiro. - Mustaphá Arrais

nunca se engana. Quem dá mais? Ninguém quer ficar rico de vez?... Seis mil patacas... Quem dá mais...? Vai-se entregar....

Seis mil e quinhentas patacas! Olharam todos para David Chalafta, o velho e trémulo judeu que lembrava um pergaminho a espreitar da bainha duma faca. Era seu o lanço, o que levantou sensação. Em que ia fiado o mamposteiro? De quem era ali testa-de-ferro?

De quem há-de ser? Do baxá - rosnou Morato Arrais para Gedeão Jekarim, que não via claro de todo nesta liça.

- Seis mil e quinhentas patacas ofereceu David Chalafta - dizia o leiloeiro. - Não te supunha tão endinheirado, mostrengo. É para este corvo de bico rachado...? Entrega-se...?

Page 50: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Entregue-se, se ninguém dá mais. E de... sete mil patacasi - atalhou a voz de Kaleb no tom de quem joga a

fortuna toda numa carta. Grande murmúrio, admirados uns, aborrecidos outros com a puxada.

Onde ia arranjar capital aquele judio da má morte? Outrem estava por detrás dele; mas quem? Desconfiavam de Morato Arrais; ora tanas, explicava-se que tivesse empenho particular em valorizar um escravo de que era dono em parte, tanto maior sendo a sua quota quanto maior fosse o montante da adjudicação; compreendia-se, porém, que licitasse para ficar com ele em condições a tal ponto onerosas?

-- Tu dás sete mil patacas por este chupado das carochas? disse espalhafatosamente a Kaleb Gedeão Jekarim. Estás doido varrido, mano. Vale mais ires deitar-te ao mar.

Está em sete mil patacas! regougava o porteiro. - Sete mil patacas e é para o judeu mais reles que há em Argel.

Encarregaram-te da compra, Kaleb? Foram esses marabus brancos? Oxalá que a peste coma o cativo e mais quem o resgata, que matou meu sobrinho!

- Não fica barato o hipocondríaco! - pronunciou o comissário da Sublime Porta. - Eu não o queria por duzentas patacas. Tenho palpite que está héctico.

- Sete mil patacas! ... Ninguém dá mais pelo príncipe encoberto...? Arremata-se, Ebne-Mahamet?

O juiz acenou que sim. Entregaram o ramo a Kaleb. A arrematação do frade, que era homem espadaúdo, mas com ar

decrépito e cansado, e dos dois grumetes não causou surpresa a ninguém. Kaleb comprou ainda o religioso por duas mil e quatrocentas patacas, a título de que era o apêndice do outro, e Kheradin Arrais os dois marujos.

Acabada a praça, foram remetidos os cinco cativos ao Banho, onde aguardariam que o baxá se pronunciasse quanto a prevalecer-se do direito que lhe cabia de opção. Pela tarde mandou comunicar que renunciava a esse direito. Vieram então os ferreiros pôr-lhes argolas nos pulsos e cadeias ao pescoço com a marca dos proprietários. Com certo espanto se soube que o barbirruivo e o frade tinham recebido o ferro de Morato Arrais.

Page 51: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Ao escurecer o Banho abarrotava de escravos. Em chusma vinham dos quatro pontos, das galés, das pedreiras, dos estaleiros, das hortas e pomares fora de muros, e ao transporem os umbrais da caserna, contavam-nos um a um como reses que eram. E repartiam-se pelas tarimbas em que não tinham mais que uma mancheia de palha e um mantéu coçado para dormir. A certa altura, os vigias impunham silêncio. Mas durante um bom pedaço de tempo o tumulto - gritos, desesperos, lamentos, bulhas e impropérios - besoiravam em proporção com a regra dos “sete pobres num palheiro”.

Frei Plácido dos Altos Céus, capelão do Banho, veio confortar o bombardeiro que, vendido para o Grão-Turco, se esbagoava em lágrimas.

Não é Lela Bianca, sobrinha de Morato Arrais? perguntou Frei Salvador da Torre apontando um vulto de rapariga que parecia espreitar pela grade do fundo do dormitório. - A vista começa a falhar-me...

- Sim, irmão, é Lela Bianca - respondeu Frei Plácido. É caso aparecer a esta hora. De ordinário passa aqui à tardinha, quando volta da piscina, e nunca se esquece de deixar a esmola para os cativos. Sabiam que pratica a nossa santa religião? ... É a pérola das pérolas, açucena de Itália, oiro, incenso e mirra de Argel.

- Bianca, que descobriste? - Nada que valha, meu tio. Quando está desperto tem a boca mais

presa do que se a segurasse cadeado; quando dorme, ou está com febre, fala por sete, sim, mas tudo o que diz é sem pés nem cabeça, e não fico mais adiantada.

É singular! Muito esquisito! E à uma porque a língua me é estranha, à outra pelas razões ditas, perco-me no meio daquelas vozes como numa floresta.

Morato Arrais permaneceu um instante silencioso a meditar no que lhe dizia a sobrinha e tornou:

- Mas palavras, pelo menos palavras soltas hás-de lhas ter percebido...? - Ah, sim, tem os seus estribilhos. Deixe ver se me lembro... deixe ver se

me lembro... Olhe, isto: “Lá vêm eles! Lá vêm eles, mais bastos que as areias do mar! Porque me fiei eu na minha cabeça? Perros, perros! Dêem-me a lança e o cavalo Bonito ...” E começa a acutilar com os braços para uma banda e para a outra tão furiosamente que mete medo.

Page 52: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- E o frade? - O frade é o homem mais fantástico deste mundo. Quando o

companheiro dorme, vela por ele como as mães pelos filhos. Mas se acorda, rompe logo em maus modos para ele; tão desabridamente às vezes que pouco falta para lhe bater.

- Estranho! Estranho - Muitíssimo esquisito. À primeira vista a personagem mais importante

dos dois parece ser o frade. E não. Quem dá leis e risca é o outro. Mas só quem conhece a maranha poderá jurar que o religioso ao pé dele é como cão ao pé do dono.

- Como se tratam? - Um diz: “Senhor; meu senhor, para aqui, meu senhor, para acolá”; o

outro: “Meu padre; Vossa Reverendíssima.” Não tem significação. É da etiqueta.

- Tenho feito tudo para desvendar o mistério e não há forma! - exclamou o renegado. - Mandei mostrar a marca da roupa a quantos cristãos há em Argel; aos frades da Trindade; aos próprios turcos. Apurou-se que se trata duma coroa cerrada de imperador por cima das cinco quinas, insígnia de Portugal. Vá lá entender-se! Portugal é reino e não império. Corri idade conforme, não há ali rei, nem infante, nem príncipe. O actual monarca é um velho jarreta, careca e sem dentes.

O antecessor, sim, era um rapaz na flor da vida, visionário e tresloucado, que foi dar com os ossos em Alcácer Quibir, onde jaz sepultado. Contou-mo um elche, que fazia parte dos esquadrões do Maluco, meu genro, e o viu dar à terra. A dinastia reinante está em vias de extinguir-se. Varão de estirpe real vive apenas um D. António, homem à beira dos cinquenta, louco e fátuo como são de resto todos os portugueses, moreno, barba preta, o perfeito contraste deste. Ficou prisioneiro dos mouros, mas soube-se haver com tal arte que comprou o resgate por uma ridicularia.

- E a roupa marcada com a coroa imperial seria bem do cativo? - observou Lela Bianca.

- Pois de quem havia de ser?! Mal se rendeu o patacho, o nosso arrais mandou despir os prisioneiros e ele próprio passou revista às roupas. É costume. Revistou as roupas, em especial as de baixo, e deu três vezes com a

Page 53: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

coroa cerrada de imperador. Caramba, era sinal de peixe taludo na rede! Mas não tugiu nem mugiu, esperto como é, e ao Galeaço apresentou outras peças de vestuário sem marca nenhuma...

Está explicado como nada se divulgou a tal respeito - comentou ela. - E por enquanto nada se sabe. Agora o que não tinha graça nenhuma

era que, induzido eu por aquela senha, o cativo me custasse os olhos da cara, e em vez de garça real me saísse gavião. Mas ná, aposto dobrado contra singelo em como se trata de figurão de alto bordo. Mas quem? Vê, sobrinha, se consegues fazer luz nesta escuridão, e o prometido prometido. Voltas para Itália, se ainda é essa a tua vontade, e em toda a Venécia poucas raparigas se hão-de gabar de ter um dote como o teu.

- Tomara eu dar-lhe gosto, tio; bem sabe! - disse Lela Bianca, sorrindo. - Comigo pode contar. O franciscano é que já anda o seu tanto desconfiado.

Anda...?! Pois deixa-o andar que entala o rabo emitiu Morato Arrais. - Põe-se a tratos e tira-se de vez o negócio a limpo. O fradalhão e o outro...

- Ah não, ah não! - acudiu ela. - Podia dar brado e chegar aos ouvidos do baxá. Não é o que o tio teme?... Deixe; afigura-se-me que a poder de jeito e vagar hei-de atinar com a pista.

- Começo a perder a paciência... - O tio não diz que a paciência é a mãe de todas as virtudes...?! E se

Hassan o soubesse? Tudo, menos isso. O patife tem-me tal ódio que seria capaz de

arruinar-se para me ver arruinado. Dêslinda, deslinda o caso como puderes; fica-te carta branca. Corra a sorte de feição, em menos de oito dias estou de volta.

E Morato Arrais, o general do mar mais famoso de Argel, vitorioso em cem combates com ingleses, flamengos, esclavónios, tão rico que nem sabia o que tinha de seu, abalou a vigiar os escravos que plantavam uma bacelada no morro sobranceiro à Diúdura, e Lela Bianca a visitar o seu doente.

Com o mês de janeiro acontecia reacender-se a peste em Argel. A fugir-lhe, Morato Arrais mudava para a quinta da Metidja, a pouco mais de meia hora da porta chamada Bab-Azon, com mulheres e escravos. Seguia-o Lela Bianca com sua casa à europeia, escrupulosamente europeia em mobiliário, alas, independência.

Page 54: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Era grande o estadão de Morato Arrais, a ponto de fazer sombra ao próprio baxá, Hassan o Vaidoso, que fardara à tártara umas dezenas de gigantes núbios, pretos como o ébano, para sua guarda pessoal. Tinha além disso música de câmara em palácio, pintores, e um bobo para lhe recrear as horas enfadadas. Morato era mais comedido em espavento, não obstante pôr gala em caracolar o seu andaluz à testa dum punhado de cavaleiros e trazer em grande pompa as raparigas brancas, especiosíssimas, dignas do Grão-Turco, que haviam entrado para o seu serralho pucelas em botão. A vaidade, em competência com a vaidade, certos interesses em conflito tinham convertido em inimigos figadais os dois antigos camaradas das espeluncas de Veneza e de vagabundagem pelos portos do Levante. Espiavam-se com olho invejoso, que é o pior dos tigres em cautela, contida sanha, fereza certa. Aquele que caísse podia contar com o salto à garganta da outra fera. Hassan, mercê das prerrogativas do seu cargo, andava menos exposto; em compensação Morato Arrais era astucioso como o jaguar, não avançando um pé sem haver firmado o outro. Na sua qualidade de general das galés, além da sua minuciosa observância da lei das presas para com a Aduana, a Sublime Porta e o baxá, seu representante, trazia as mãos untadas aos janízaros, em especial ao aga, seu comandante e, do mesmo passo, última instância em Argel da autoridade. Caprichoso em cumprir, cultivava, sobretudo, com inteligência e esmero as boas graças do Divã, a quem não deixava de remeter a nata das tomadias, como fossem rapazinhos cristãos, muito do gosto dos otomanos, e filhas-família, fazenda não menos apreciada. Tinha ainda a premuni-lo do ódio de Hassan o seu prestígio de capitão de corsários. Quem, como ele, levara mais longe o pavilhão da meia-lua e estrelas de prata? Quem metera mais naus cristãs no fundo? Quem carretara mais oiro e mais escravos para Argel? Assim enfeitado de títulos, indigitavam-no à boca cheia para baxá de Argel, mal cessasse o consulado de Hassan o Vaidoso. Sabedor disto o rancor de Hassan fervia. E a todos os diabos do inferno pedia lhe suscitassem a casca de laranja que fizesse dar tombo ao dissimulado rival.

Tinha Morato Arrais mais de quarenta escravos na quinta, na sua maioria sardos e espanhóis, ocupados com o amanho e granjeio. Também era o melhor da Metidja com água abundante de mina e de nora, vergel todo o ano e pomar em que medravam romãs e laranjas que punham o ramo na

Page 55: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

praça, não falando no azeite, que um andaluz conseguia fazer à maneira da sua terra, tão fluído e doirado que luzia no prato como sol. E, por aqui e por ali, viam-se ainda alçados ao alto, chiando, manejados pelos escravos, picanços ou engenhos de tirar água dos poços à força de braço. Deste modo, parte da quinta verdegava através da canícula e Outono fora, a outra rumorejava ao vento, cheia de sombras e de pássaros, coberta de sobreiros e cedros, quando não era palmeiral...

Das bandas da cidade fechava-a um muro alto de argamassa; mas do lado da terra firme, onde se ouviam uivar de noite os chacais e se desdobravam encapeladas as vagas de granito da Djúdura, sempre com o pico mais alto damasquinado de neve, não havia outra vedação além das sebes de aloés e piteira.

Por uma roda de multas léguas se estendiam as fazendas de renegados e mouros principais. Mais vastas, menos vastas, melhor ou pior tratadas, no meio da savana imensa, a trigo, cevada ou vinha, com cedros e moitas de bambus, altos de quinze, vinte metros, a sussurrar à viração, eram como arquipélagos de ilhas verdes, miríades de ilhas verdes banhadas por benigno e tépido mar.

Morato Arrais, não obstante ter adoptado com a abjuração os usos e costumes da terra sarracena, conservava a ralé de europeu, mais trabalhador e buliçoso do que ninguém, o sangue sempre a ferver, os nervos sempre a vibrar, avesso de todo à morrinha islamita. Quando estava na fazenda era ele que todas as manhãs vinha gritar o leva-arriba ao quartel dos escravos, destinava trabalhos, gizava melhoramentos, zeloso como o mais estrito capataz. Não se descuidava tampouco do arranjo e trato do pessoal, velando pela sua saúde, trazendo-o limpo e abundantemente alimentado, pregando moderação aos guardas mouros. Daqui resultava ser preferido pelos cativos a todos os outros senhores, dentre os quais havia alguns como esse Ochali Fartaz, renegado tinhoso, calabrés, que por uma ninharia zurzia e empalava os escravos, cortava-lhes as orelhas ou mandava-os ferrar a fogo. Morato Arrais gozava fama de bom e ele era, sobretudo, esperto compadre e conhecedor dos homens.

Aqueles dois cativos, barbirruivo e frade, tinham-lhe custado caro e, a esse título, os mandou seguir para a Metidja. Traziam corrente de ferro ao

Page 56: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

pescoço, sinal de que eram escravos de resgate e estavam dispensados de qualquer serviço. O mais novo não arribara ainda da enfermidade que o acometera ao entrar em cativeiro. Era sujeito frequentemente a ataques frenéticos, ao fim dos quais ficava como morto horas e horas. O físico, judeu averroísta, depois de o sangrar três vezes, receitou-lhe mil boticadas complexas com que se combatia o mal de S. João. Mas a eficácia de tal medicina era nula.

Nas crises mais violentas levantava-se coberto de suor, olhos alucinados, a boca a espumejar:

- Lá vêm os perros, lá vêm! Jesus valei-me! Depressa, o meu cavalo... não me trazem o meu cavalo?...

O Bardez!... Não, o Pérsio, que é filho do vento, e a espada de D. Afonso Henriques... Quero a espada de D. Afonso Henriques”

O frade sacudia-o com a maior brutalidade: Despertai, senhor, não estamos na batalha; estamos cativos em Argel

para castigo dos nossos pecados. - Lá vêm as duas alas de escopeteiros a cavalo; à volta, aquelas mangas,

de que se não vê fundo, são dragões, armados de lança e adarga. Chegou o meu dia, Senhor! Mas ninguém se mexa! Quero ser eu o primeiro a plantar o estoque no peito dum infiel. Avança, Medelim!

- Senhor, senhor, reparai, estamos em Argel, cativos dos piratas! - e o frade abanava-o, como se abanam as árvores para caírem os frutos.

- Tenham-se! O primeiro a entrar os mouros sou eu. Ouviram? Quem manda sou eu!

- Que pesadelo o vosso, senhor! Estamos em Argel! ... Argel!... - berrava-lhe o frade aos ouvidos, ao mesmo tempo que continuava a sacudi-lo.

- “Pobrezito” - exclamou Lela Bianca, uma vez que vinha com a poção de ervas e assistira ao final daquelas convulsões. - Não há quem o resgate? Parece um senhor tão nobre e não tem ninguém no mundo...?

Não tem ninguém! - respondeu o frade. - Não tem casa, nem eira, nem beira. Guarde segredo, senhorita, mas ninguém lhe fia o resgate. Seu tio iludiu-se...

- Mas então quem é este homem? - Quem é? Um pecador... um grande pecador. Ia a

Page 57: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Cândia comerciar e de lá para os Lugares Santos de peregrino. Mas Deus trouxe-o para aqui e Deus tem razão: em toda a parte se faz penitência. Em Argel ainda melhor do que em Jerusalém. No mar como na terra. Tomara eu vê-lo restabelecido para poder ir com os mais para os bancos das galés, ou de enxada em punho cavar a terra de sol a sol.

Lela Bianca abria grandes e trémulos olhos. Não compreendia a ferocidade do religioso. Via-lhe o ar exaltado e na sua voz havia um tom estranho, tom que é eco doutra voz, superior e imperiosa. Observou-lhe:

- Como se encontra Vossa Reverendíssima com ele? - Contos largos; ando com ele, por vontade de Deus; acaso das vidas

“aventurosas” Quer saber: ando com ele como a voz da consciência anda com o pecador; o remorso com o criminoso. Sou frade franciscano e orar e salvar almas é o fim da minha Ordem.

- Eu posso ajudar-lhes a fugir... Querem? - Para quê? Aqui, em Portugal, na Itália, o mundo é sempre prisão. Os

destinos estão escritos e são insofismáveis. - Não se importam de ir remar para as galés? Santíssima Madona,

nunca tal eu vil... - Não nos importamos. - Está sempre o azorrague por cima do lombo... - Mais sofreu Nosso Senhor Jesus Cristo. - Têm sede, e não lhes dão uma sede de água... - Cristo bebeu fel e vinagre. Andam de mão em mão, hoje dum mouro de Argel, amanhã dum

turco de Tunes, depois de amanhã dum diabo da Rochela ou do Grão-Turco... Qual deles pior.

- E o meu Jesus e Senhor não foi vendido? - Digam-me quem são e eu lhes juro pela Madona, que me tocou na pia

benta de Vicência, que os livros de Argel... - Eu sou um pobre frade de S. Francisco, Frei Salvador da Torre, o meu

companheiro o filho e chefe duma grande família que deitou a perder por seu orgulho e disparatada vontade, Desidério Augusto. Mas, senhorita, só sairemos de Argel quando a Divina Providência o mandar.

Page 58: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Ficou Lela Bianca mais intrigada do que nunca com a confissão do religioso. Tinha grande pena daquele moço na força da vida e sofria com vê-lo sofrer. De dia todos os passos que dava acabavam por levá-la ao quartel em que ele estava; de noite não fazia mais que pensar e sonhar com ele. O mistério e, mais do que o mistério, a singularidade das duas criaturas excitavam-lhe aquele poder de transposição que possuem as mulheres em grau superior aos homens e as leva a entretecer de poesia e sonho as coisas a que se prendeu a sua imaginação alada. A fantasia ao mesmo tempo ia-lhe idealizando a aventura em que ela e os cativos eram figurantes. Tinha vinte anos, vivia num meio que só lhe não era insuportável porque, graças à preponderância do tio, podia dar satisfação a todos os seus caprichos. Mas esta satisfação não ia além de possuir belos colares de pérolas e aljôfares, tão ao gosto particular das mouras; ser nos balneários, pela sua pele branca e rosada, a inveja das argelinas, morenas de tez e com o seu buçoziriho lampeiro ao canto do lábio; turvar não sabia de que parada bruma os olhos dos cologlis, mestiços de turco e mauritano, indolentes e sibaritas; pôr os melhores vestidos; receber profundos salamaleques dos principais da cidade, de ordinário velhos gastos pelo prazer e a molície. Quão longe estava do reinar na Itália querida, com os namorados a levarem-lhe a serenata até debaixo das )anelas; as raparigas da sua igualha a virem-na buscar para os bailes; as flores a exalar perfumes em todos os tempos e lugares; o sol, um sol saudável e civilizado, fratello come Pacqua; as andorinhas e os rouxinóis a virem fazer ninho nos seus beirados e a cantar no loireiro do seu quintal! Não, ali era a terra do exílio, a terra sempre ingrata, o pão sempre amargo, bem embora trouxesse diamantes nos pantufos, gemas no cinto, pérolas por todos os lados. Seu tio fora buscá-la à terra pobrinha e ridente com promessa de realeza. Em despeito, porém, do fausto e da opulência, não pudera sufocar as saudades. De tempos a tempos, em bergantim equipado com marinheiros gregos de Corfu, de Chipre, de Cândia, gente de que ninguém desconfiava, metia Adriático acima até Veneza. Para todos os efeitos, era levantina que chegava de longe, dessas ilhas, terra comum da Senhoria e do Sultão, tão perfeitamente comum que àquela chamavam os espanhóis La mancebada del Turco, e ia ver a família a Vicência. À volta, a frota de Morato Arrais esperava-a, cruzando rotas de antemão estabelecidas, caçando ao desenfado a sua nau

Page 59: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

de comércio. Deste modo se haviam encontrado com o patacho Santo Anjo da Guarda, ao qual deram combate e renderam.

De família pobre, educada pelas freiras de S. Zacarias, Lela Bianca era cristã. Também sua mãe o fora, embora nada em Tirana, país islamizado, de gente que nascia e morria há gerações dentro duma barcaça, sobre o mar. De nova casara com o patrão duma fusta que também fazia veniaga entre Venécia e Albânia e tinha em Vicência alguns bens ao luar. Aí foram surpreendidos pelas insuperável, para a nossa terra. A questão é que Deus queira. Por agora não; não; três vezes não!

Calou-se o frade e ouviram-se os soluços do cativo. - Chorai, chorai - dizia-lhe o frade - que todas as lágrimas são poucas.

Precisais chorar tantas, tantas, que com elas cresça o mar para serdes perdoado. É o que vos digo. Deus investiu-me neste papel de vosso anjo custódio; hei-de exercê-lo enquanto ele for servido. No dia em que os nossos donos nos apartem, ou a morte me leve, então sim, Deus dá por finda a minha missão a vosso lado. Até lá não deixarei de ser a voz inexorável da vossa consciência. Ficai sabendo. Voltar a Portugal, pago o resgate, um resgate que sairia do suor dos cabreiros e cavadores das montanhas; voltar a Portugal, para recairdes, provavelmente, nas abusões do poder e nas vesânias da vaidade, Senhor, não é justo; não tendes esse direito. Sofrei por vossos pecados; sofrei com paciência, que só assim o vosso sofrimento será aceito. Não destes ainda grandes passos na via da expiação para que vos tenhais por quite. Senhor, sempre que eu possa, eu vos ajudarei a levar a cruz; mas não queirais sofismar a vontade do Senhor. Sois um proscrito: não tendes pátria; não tendes casa. Não tendes liberdade, nem vos podeis considerar dono de vós próprio: sois um escravo.

O cativo chorava em fonte e Lela Bianca compadecida correu para eles. Ao frade que tinha ainda a boca torcida num esgar de cólera disse:

O senhor é um homem muito mau, muito mau. Se fosse religioso a valer, se compreendesse a lei do Senhor, tinha

piedade, tinha clemência, e não estava a apoquentar este pobrezito! E a sua voz era tão indignada que Frei Salvador abriu olhos

maravilhados. Ao mesmo tempo que tal dizia, enxugava as lágrimas ao cativo com o seu lenço de fina e branquíssima cambraia. Docemente a afastou ele de

Page 60: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

si, não porque o gesto compadecido lhe não fosse grato, mas porque lhe causava confusão o obséquio. Ela, que lhe compreendeu a delicadeza, tornou:

- Este frade é ruim, mas eu hei-de dizer a meu tio que o ponha daqui para fora. Não, um ministro de Deus não tem direito de assim maltratar as criaturas.

O franciscano não sabia dar resposta e foi o outro que disse: - Se tal fizésseis, senhorita, de tão amável e caridosa pessoa como

pareceis não poderia receber eu maior desgosto. Não, não quero por nada deste mundo apartar-me do meu irmão em Cristo. Hoje, é tudo na minha vida; tudo Deixai, as desavenças que surpreendestes em nada prejudicam o muito bem que nos queremos um ao outro.

E depois de agradecer-lhe os bons sentimentos, o mais discretamente possível procurou que os deixasse a sós. E como Lela Bianca não desse mostras de obtemperar a este desejo, porque a todo o custo quisesse obstar com a sua presença a que a cena lamentável se reanimasse, ou por inadvertência, o que parece menos plausível, saíram com ela a espairecer pelo terrado da casa, que era sumptuoso, cheio de repuxos cantantes, e perfumado de rosas e mais flores da estação. E estavam indecisos do que dizer, afagados da brandura do céu - era em Outubro e corriam dias melancólicos e delicados - quando apareceu um homem com a pele do rosto a escamar-se do tisnado do sol, vestido com pelote de áspero e roto saial, esquálido, o cabelo em grenha, e descalço. Parecia um animal traquejado pelos caçadores e, assim que deu com gente, foi o seu primeiro jeito furtar-se. Mas pareceu reconsiderar, e, suspendendo-se, viu-se abrir muito os olhos, levar as mãos à cabeça a defender-se de vágado, e após o instante de assombro, não mais que um instante, ir a correr deitar-se aos pés do cativo mais novo, abraçando-o pelos joelhos e exclamando:

- Meu senhor, meu rei! Graças a Deus que vos encontro vivo! Eu bem sabia que não tínheis morrido na batalha. Meu senhor, meu rei!

E cada vez se torcia mais em jubiloso arrebatamento às pernas do cativo, com grande demonstração de carinho e desafogo. D. Sebastião erguia-o nos braços, mas já o frade, vencido o primeiro movimento de pasmo, avançava para ele cominatório:

Page 61: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Que dizes, homem? Teu, teu quê...? Estás equivocado, aqui não há disso. Mas repara: podes causar a desgraça deste cativo, apontando-o erradamente à cupidez dos mouros. Quem aí vês é um infeliz, ontem mercante, hoje escravo, que amanhã irá remar nas galés. Faze favor de ter mais propósito na língua!

O homem largou o cativo como se víbora o mordesse. Olhou para o franciscano, olhou para Lela Bianca, que estava à desbanda siderada com o que ouvia, medindo-a dos pés à cabeça em seus atavios mouros, contemplou o

cativo que chamara senhor e rei e, tapando os olhos, desatou a soluçar: - Perdão, perdão, enganei-me, não é aquele que eu julgava. Uma assim!

Parecem-se muito, é o que é... Agora dou conta: o outro era mais moço; mais altivo; também não tinha a fronte tão desnudada; de cãs nem uma. Confesso o meu logro, sou um impulsivo. Perdão, perdão!

E ia voltar costas, despedir, mas Lela Bianca chamou-o e perguntou-lhe em mourisco:

- Como é que te encontras aqui? - Sou remador das galés e está a nossa lá em baixo, espalmada na praia

de Bab-Azon. O comitre deu-nos uma horas de à-vontade para gozar dos ares e ver terra.

Lembrei-me que por estas paragens andariam portugueses e, encontrando a porta da quinta aberta, entrei.

Aqui está como vim dar a esta propriedade e no meu espírito se pôde estabelecer tão infeliz confusão.

Reconheceu Frei Salvador que se tratava de pessoa de qualidade e de arguto entendimento pela instantaneidade com que se capacitou da inconveniência das suas efusões, e disse-lhe:

- E como é que viestes parar às galés de Argel? - A história seria longa e fastidiosa - respondeu ele, afastando-se com o

frade e deixando no terrado ao outro português com Lela Bianca. - Sabei que me chamo Luís Pereira, tomei parte na infeliz jornada de África, e fui feito prisioneiro pelos alarves que me levaram para um aduar, longe de Arzila. Aí me tiveram dia e noite amarrado a uma azinheira à espera que me viessem resgatar. Ninguém podia adivinhar que eu estava ali e padeci muita fome, muitos maus tratos, a ponto que decidi jogar a sorte; numa hora, em pleno dia,

Page 62: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

quando os mouros estavam menos com o olho em mim, arranquei da adaga a um, cortei a corda e pernas para que vos quero! Foram-me na peugada, mas eu torci-lhes as voltas e, em vez de fugir para diante, fugi para trás. Andei a monte não sei quantos dias e noites; estive vai e não vai a ser devorado pelos leões, uma vez que sem reparar entrei para uma caverna onde havia dois leõezinhos de mama; certa manhã enxerguei ao longe o mar; vi luzir as açoteias duma cidade e julguei que tinham acabado os meus trabalhos; ora, não faziam mais que recomeçar! Não era Arzila, mas Larache, onde fui bater e encontrando-se no porto a galé dum alferes elche italiano algemaram-me mais morto do que vivo, a cair de fome, e trouxeram-me para Argel onde ando a remar a soldo daquele ladrão.

O frade pediu-lhe ainda informes da gente que andava nas galés e dos cativos que tinham fugido como ele, a corta-mato, sem olhar a precipícios, reino de Fez em fora, e acabou por lhe dizer:

- Mas, irmão, por Deus vos suplico, não torneis a cair no logro de há pouco; podíeis causar a pior das desgraças àquele homem!

- Esteja Vossa Reverendíssima descansado, eu saberei, para outra vez, moderar a minha exaltação.

Na nossa vida de miséria, com estes bárbaros, todo o entusiasmo é perigoso. Muito mais, enganos tão graves. E olhai, não vades repetir a ninguém o que se passou aqui... que tomaste um pobre cativo por el-rei... Os mouros são desconfiados, não é assim!? O santo anjo da guarda vos acompanhe!

Voltou o religioso para o terrado e foi encontrar Lela Bianca de olhos no chão, lábios levemente franzidos num jeitinho de meiguice e amuo, que dizia:

Não ouvi nada, meu senhor; mas, ainda que ouvisse, juro-vos pela Madona que me tocou com a sua coroa de oiro na basílica de Vicência que podíeis fazer de conta que nasci surda-muda!

Page 63: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

VI Andava mais bonita e arrebicada. Como em sua casa quem dava leis

era ela, vestia à veneziana, robe de brocado de muitos matizes até aos pés, mangas justas levemente tufadas nos ombros, e pela cabeça um mantelete versicolor que lhe descaía para as espáduas em bátega de oiro. Todas as manhãs ensopava os cabelos em mel para se conservarem fulvos e alisados, punha na pele drogas essenciais, cuja fórmula se mantinha hermética desde os tempos de Belquis, embebia-se de perfume de nardo, o seu perfume, transigindo com o gosto mouro apenas em trazer jóias, trancelim de pérolas ao pescoço, cinto com fivelas de oiro guarnecidas de brilhantes e safiras, nos pés chapins de cor semeados de aljôfares e turquesas, e escravas, infinitas escravas de oiro nos braços e nas pernas. Assim adereçada, com um leque de penas de avestruz apertado na mão contra o lencinho bordado a prata, saía de manhã, dava volta aos terrados, discorria pelas alamedas da fazenda, colhendo aqui uma rosa, palpando ali um fruto, lançando bons dias a cristãos e mouros no tom prazenteiro e familiar da boa Europa. As mais das vezes deitava até ao quartel dos dois cativos, com eles trocando cumprimentos e amenidades. Mas era gente de poucas falas. O frade mostrava-se cada vez mais misantropo e intratável, comportando-se para o companheiro como tutor com tutelado. E Lela Bianca tinha medo. Não sabia ao certo porquê, votava-lhe não sentimentos de repulsa, mas vago e medular respeito como para seva e misteriosa divindade. Carantonha sempre fechada, refractária ao riso, impermeável à simpatia, duma tristeza calma, testa mais lavrada que lápide funerária, olhar sempre mais taciturno que cisterna, tal era a sua fisionomia comum, menos que treva, mais que o gris sem fundo dos horizontes no alto mar.

O companheiro devia ter impressão análoga. Recalcando-se, submetendo-se sem vontade, sofrendo-lhe o mandamento como o penitente se resigna ao cilício, pelo que tem de justo e abstersivo, parecia-lhe também intimidado por aquele cariz de má sorte.

Cornélia, a velha andaluza, ao vê-la entrar dos passeios matutinos murcha e melancólica, quando pouco antes abalara fresca e jucunda, perguntava inalteravelmente:

Page 64: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Não olhou...? - Nada - e arqueava os ombros em sinal de despeito e desesperança. - Não se rala com quem o não merece! - volvia a aia. - Aquilo velo por

lá de Roma e era cantor na Capela Sistina! Bianca corava até à raiz dos cabelos com o despautério da ala, e duvidosa da sua formosura ia consultar o espelho. Aqueles olhos verdes, dos tais que “em poucas os vedes”, lábios carnudinhos e cheios de viço, pescoço erecto como não tinham as gazelas da Metidja, porte senhoril, eram dignos dum príncipe bem dotado. Não, por mais que conjurasse o espelho, o espelho garantia-lhe que era bonita. Não lho diziam ainda os turcos que vinham para a cidade ao serviço do Divã, os cologlis lânguidos e galanteadores, os próprios mouros de cabelos brancos, galos velhos incorrigíveis? E consolava-se à ideia de que na alma do cativo se operasse o degelo e, algum dia, a sua pessoa amanhecesse nos olhos dele toucada das graças soberanas.

Dias após dias passou nesta endoença, os arroubos de ternura entremeados de desânimo, tudo à roda se ressentindo de sua alma transfigurada. Por sua intercessão os escravos tinham cativeiro menos duro, sem azorrague a dançar-lhes no lombo e parasitas a devorarem-nos vivos. já podiam receber abertamente um padre que os confortava em nome do seu Deus, e dispunham dumas horas para catar-se e remendar os andrajos através dos quais a carne espreitava como estrelas através da noite negra. E os dois cativos, se bem que dados a todos os ascetismos, receberam roupas invejáveis.

Morato Arrais, retido na cidade pelos negócios, a política, a sua noite de tavolagem, ou em corso pelo Mediterrâneo, deixava-a ao bel-prazer, confiado em seu bom senso, supondo-a, como a aranha, a urdir a teia astuciosa em que os dois cativos acabariam por se enredar. A grande aspiração dela não era regressar a Vicência, ser querida e requestada por seus agrados e dotes, pegar de amores com rapaz limpo e atilado, e constituir família, como eram as famílias burguesas, que tinham filhos loiros e engraçados, bule de prata para o chá das visitas, colarinhos muito gomados e vara do pálio para o papá aos domingos terceiros? Se era. Tanto assim que não saía desta cegarrega maviosa e lamuriada:

- Quando é que o tio me deixa ir embora...?! Quando é...?

Page 65: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Para o renegado, Bianca era o vínculo que o prendia ao que perdurava de substancial e digno no passado, a penugem do berço, a iluminura que reveste cada passo, cada lance da vida familiar decorrida, olhando para dentro da alma, o sino da aldeia com a sua voz amiga diferente das vozes dos outros campanários, o sol que o alumiara, as ondas que lhe embalaram os primeiros anseios. Esse vínculo tinha, mais que existência espiritual, uma viva realidade física, e não era sem angústia que pensava na inelutável fatalidade de quebrá-lo. Mas porque assim estava integrado na sua humanidade, tá adiando o dia crítico, com acalentar-lhe os naturais anelos de rapariga e acenar-lhe com risonhas e lisonjeiras fadas. Não estava um bergantim com uma tripulação fiel de levantinos, batendo pavilhão de Cândia, às suas ordens? A jornada até o alto Adriático não se fazia, porém, sem inconvenientes e perigos, como tinham a prova. E Morato diferia semelhante extravagância sempre para mais tarde, para quando tomasse o governo de Argel, o que estava iminente a avaliar pelos informes particulares que por via confidencial lhe chegavam do Grão-Turco. Este nomeava e demitia os baxás, na qualidade de soberano da cidade e sua província. Aquele Hassan o Vaidoso tais atropelos vinha cometendo que seria escândalo sustentá-lo no cargo. E ele esperava ser o sucessor.

A partir de certa altura, notou o renegado que a sobrinha arrefecia na tineta de regressar a Itália. já o não quezilava a dolente súplica da exilada. Mas Morato não tinha tempo de lançar-se no terreno das suspeições. Sabia-a empenhada em decifrar o enigma do cativo, mais cerrado que a coroa imperial que lhe marcava a roupa, como sempre, deixava-a à lei do seu bom querer. Tinha a religião de leite e na terra infiel continuava a praticá-la com regularidade. Em seu fervor cristão, não só distribuía avultadas esmolas como chegava a auxiliar a evasão de cativos. O padre que lhe vinha a casa, Frei Plácido dos Altos Céus, era o subtil agente destas aventurosas empresas. Morato Arrais sabia-o pelos seus espias, mas tais delitos, além de terem sua sobrinha como comparsa, eram pecadilhos comparados com as enormidades cometidas à sombra do pavilhão da meia-lua e fechava os olhos. Que era esse grão de dano para os negócios duma república que em menos de século apresara um milhão de homens aos diferentes povos da cristandade? Mas em despeito das suas afinidades de religião, não hesitava em confiar-lhe o papel de escutadeira - instituição meritória nos conventos e no grémio da pirataria -

Page 66: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

junto do frade de cara torta e do moço de mãos fidalgas. E, à força de perguntas, haviam-se tornado proverbiais na sua boca estas palavras:

- E príncipe ou aventureiro? - Não sei, tio. Ando a aprender a língua com a Cornélia e com uma

donzela que viveu três anos em Lisboa a ver se consigo desenredar a meada. E de facto estudava o português com uma rapariga nobre, que os

piratas tinham capturado num navio da carreira de África, e aparentada nas duas cortes. E neste ritmo de coisas se passaram os dias, as semanas, ao Inverno sucedeu a Primavera, e da casa de campo tornaram à cidade; do quartel dos subúrbios, igualmente os cativos regressaram ao Banho de El-rei. A velha andaluza não cessava de perguntar:

- Então? - Nada. - Nada é pouco para uma flor como a menina. Mande-me passear o

homem. - Tu não sabes quem ele é, Cornélia, não sabes! Se soubesses, não

falavas assim. - Quê? É filho do Papa? Lela Bianca, afeita aos disparates da ala,

desatava às gargalhadas porque de seu génio era faceta e jovial. Ao desfastio sentava-se diante do espelho a arrancar com uma pinça os cabelos que desmanchavam a linha das sobrancelhas, que estava de moda o crescente acima da pupila, dilatada esta como a das gazelas pela noz de galha, os supercílios ligados na raiz do nariz, ou a pintar as unhas de vermelho-tijolo com folhas de alfena.

Frade e companheiro não davam sinais de que reparassem nos requebros da moça. Aparentemente pareciam demonstrar que se não admiravam daquelas finezas com atribuí-las ao espírito de caridade cristã que a animava para com os cativos. E, em verdade, todos os obséquios lhe agradeciam em nome de Deus. E ela em nome de Deus, à falta de coragem na invocação, os ia praticando. Mas um belo dia, desenganada e resoluta, disse ao frade:

- Não sei para que andam com imposturas. jurei guardar segredo... - Segredo de quê...? - De que ele é quem é...

Page 67: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

O frade quedou um instante a meditar na frase anfigúrica da veneziana e tornou:

- Não compreendo. Ele quem? - El-rei... ! O frade soltou uma gargalhada que a encheu de frio mortal. Aquele

homem nunca ria e era sinistro de lábios arregaçados, boca hiante, os dentes amarelos à espreita. Mas ainda mais que a física do gesto, gelara-a o seu sentido próprio.

- Ah, ah, mas que maluquice é essa? - proferiu ele em tom sarcástico. - Rei, rei de quê? O rei de Portugal, que Deus conserve por muitos anos, é D. Henrique, cardeal da nossa Santa Igreja, e inquisidor-mor do reino.

- Sim, mas este também é. O frade tornou a rir, agora em tom mais bonacheirão e desenfadado: - O quê, há dois? - Há dois - redarguiu ela, aparentando uma firmeza que não tinha. -

Um que reina, outro que reinou... - Um que vive e outro que viveu! Ah, ah! Olha a noivada. Ela ficou encavacada, com ar de choro, e o frade deu ares de ter

remorso de a haver penalizado. E aplicou o ferro quente na chaga: - Quê, diga lá. ..Supunha que este homem que aí está era rei? Que

fantasia a sua. - Então quem é? - Que ganha a menina em o saber? Assente para si e para com Deus

que é um dos maiores criminosos, dos mais abomináveis criminosos que tem criado a Terra!

- Que diz? - Digo que o crime dele não tem perdão. Ela reagia: Cale-se, cale-se! A mim não me iludem os senhores. Mas estejam

descansados; pela Santa Madona de Vicência jurei que não dizia nada a ninguém, não digo. Nem que me esfolem!

E abalara após aquelas palavras, não querendo confessar-se possuída de dúvidas, mais acentuadas ainda com o ricto de desdém e piedade que lia nos lábios do brutamontes. O frade era um homem temível que granjeara a sua aversão, e ela tratou de apartá-lo do companheiro com o propósito de

Page 68: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

esclarecer-se em tão perturbante incerteza. Um dia o frade foi chamado a acompanhar ao trabalho os mais escravos, e Bianca, abonecando-se como nunca, lábios - que já eram rubros - avivados a carmim, mais olorosa que magnólia em flor, tão bela como a Primavera de Botticelli, foi ter com o cativo. Com sete olhos a espreitar a impressão que lhe causaria, teve o desgosto de notar que era recebida, se não com desagrado, com evidente reserva.

- Não gosta de me ver? - pronunciou ela com voz quebrada, mas repreensiva.

- Porque não havia de gostar...? - redarguiu ele. - Sabe-se lá! Tenho a impressão de que me anda a fugir... que desconfia

de mim. E até certo ponto tem razão. Sou sobrinha do renegado que os fez cativos e os tem aqui como escravos. Ah, se o senhor soubesse a distância que vai em pensamento e obras de mim a meu tio, olhava-me com melhores olhos! Mas para que estou eu com isto?! Para quê? Não é comigo que o senhor se ocupa... Responda-me só uma coisa: porque arranja um ar tão carrancudo quando chego ao pé de s 1? Tem noiva, amante na sua terra; descanse que eu não o roubo a essa feliz mulher.

- Não tenho ninguém no mundo. - Não tem ninguém no mundo?... Verdade? Não tem? Eu também não

tenho. Sou só e livre como um pássaro. Meu tio não conta. Meu tio, não obstante o carinho que me tem, é odioso; a sua sombra seca-me. Quando estou ao seu lado, não há modo de desviar os olhos das mãos dele. É como se estivesse diante de mil sicários. Mas sicários, género feras do mato, que dum momento para o outro, quando a gente está menos precatada, nos saltam à garganta e nos esganam. Que horror! E só no mundo? Melhor! A apurar-se que é um homem como outro qualquer, melhor ainda! Meu tio queria-me casar com um tal Abdner-Efendi, mas eu não quis. É filho dum antigo aga e duma moura muito rica que havia na província de Tremecém. Todas as mulheres com quem tenho falado acham-no bonito moço, embora o seu tanto fátuo. A mim não me tenta. Se visse os olhos de carneiro mal morto que me deita quando me vê! - dizia ela arrastando a voz, infantil e admirativamente.

Ele não proferiu palavra, de olhos baixos, e Lela Bianca tornou: - Muitas vezes acontece que a gente gosta de quem de nós não gosta.

Paciência! Que se lhe há-de fazer, quando se não é mais do que uma pobre

Page 69: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

rapariga, sem avós famosos, com parentes infamados, pelo contrário, e a pessoa para quem se olhou nos sai um grande senhor? É bem triste, não é?

- Triste o quê? - Que se tenha deitado olhos para tão alto. Pois então?! Ele não respondeu e Lela Bianca em voz baixa, neste tom que suborna

e seduz, quer para o amor quer para o crime, voz velada da fascinação, irresistível filtro de ebriedade, disse-lhe:

- Sabe, sou cristã... quero tirá-lo daqui. O frade ainda lho não disse? Que homem! Porque traz consigo este dragão? Confie em mim e eu hei-de tirá-lo do cativeiro... Sabe, sou rica... muito rica. E tudo o que possuo ponho-o ao seu dispor. Mas, por Deus lhe peço, não finja do que não é... Eu já descobri tudo... tudo! Quer que lhe diga? Ouça...

A palavra, )à a borboletear-lhe nos lábios, estacou. O frade, a inexorável jibóia, caminhava para eles de chofre, tendo

atravessado a nesga de terra a céu aberto sem ela reparar. Era como se saísse duma floresta, a dois passos. E, sem pinga de sangue, trémula de todo, percebeu que o frade lhe dizia:

- A menina com as suas manias e os cegos impulsos da sua alma, boa mas desvairada de todo, ainda há-de causar a nossa perda. Digo perda porque há graus em tudo até nesta situação hedionda. Se seu tio nos mandar deitar ao monturo, ou ao gancho, ou nos ferrar no rosto, ou nos “cortar” por alto preço, a menina é a culpada. Porque teima promover-nos a excelsas personagens, quando nós não passamos de pobres de Cristo? Creia, somos gente humilde, pecadora, e andamos a expiar as nossas grandes faltas, pois que tudo neste mundo acontece segundo os desígnios da Divina Providência.

- Pois se assim é, pela minha mão lhes oferece a Divina Providência maneira de se resgatarem. Era isso que eu vinha

dizer ao seu companheiro - pronunciou com certo ardil e um desembaraço que não escapou ao religioso.

- A menina está profundamente iludida, julgando que somos diversos do que a nossa miséria inculca. Pois está bem, em nome de Deus, na devida altura, aceitaremos as suas ofertas. Quando chegar o momento, bater à sua porta. Por agora seria perigoso, muito perigos. E sabe o que lhe peço por enquanto? É que nos não distinga com a sua bondade e deixe este homem

Page 70: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

entregue à sua reforma moral e remorso. Fique sabendo que é essa a nossa grande obra; fique-o sabendo, pois se o não soubesse, não descansava, enfreneziada contra um segredo que só existe na sua imaginação, a querer desvendá-lo por todas as formas, inclusive a de me apartar dele, dando-me a honra de me fazer capataz de trabalhos em que sou leigo chapado. E tanto assim é que decidi desamparar o serviço e vir rogar-lhe que me faça cavador ou remador, mas não capataz. A menina ouça ainda: este homem matou... matou as Pessoas Mais chegadas e ilustres da família. Matou a sangue-frio... insanamente. .. por isso aqui está. Ia a fugir... quando os corsários deram caça ao navio que o levava. Sabe agora...? Duvida? Ouça...

E voltando-se para o companheiro em voz imperativa e religiosa, voz de juiz que inquire em nome da consciência universal, de sacerdote que adjura em nome de Deus, interrogou:

- E verdade ou não é verdade que assassinastes uma parte da vossa família?

- É verdade! - respondeu o cativo com voz cava. Bianca ficou um momento interdita e rompeu a clamar:

- Não acredito, não acredito! Mas está bem, eu não voltarei a importuná-los com os desatinos do meu bom coração. Mesmo assim, ficam de pé os prometimentos. Adeus!

Voltou a casa nervosa, nos olhos uma chama de desespero, e disse-lhe Cornélia:

- Por amor de Deus, menina, vamos para Itália! Lá não lhe faltam príncipes verdadeiros quando souberem que junto com uma beleza, que não deve nada às mais formosas, há dote de arregalar o olho. Deixe lá o português que não vale as solas dos seus sapatos. Não pense mais nele!

E ela não ficou a pensar noutra coisa. Noite e dia, a qualquer hora, a imagem do cativo constituía como que a atmosfera vibrátil e envolvedora de tudo o que para ela era mundo. Pensava nele sem cuidar de saber se um tal rapaz, decerto mais distinto que simpático, representava para si um anelo do coração ou apenas um engodo da fantasia. Noutros termos, se os sentimentos, que a deliciavam e pungiam por igual, tinham nascido por se tratar de pessoa para lá da sua plana, ou por ser aquele que certa harmonia preestabelecida ou

Page 71: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

o divino acaso lhe destinavam em virtude de mil circunstâncias misteriosas de natureza, tempo e lugar.

Não tardou, no entrementes, como a peste amainasse e Morato descresse da intervenção da sobrinha, que os dois cativos fossem transferidos para o Banho de el-rei. Ali estiveram, sob o olho dum cativo subornado pelo pirata, o tempo que bastou para convencerem a toda a gente que o mistério de suas pessoas era impenetrável. Em tais auges, Morato Arrais perdeu a pachorra. O frade foi posto a tormentos, a começar pela bastonada. Despiram-no e, atando-lhe uma corda ao artelho, içaram-no até o ponto das pernas ficarem a formar ângulo com o busto, que assentava em terra. Dois carrascos, então, armados de varas, um dum lado, outro doutro, desataram a golpear-lhe nas plantas dos pés, rápido, de rijo e alternativamente, contando: um, dois, três... Depois, quando o sangue espirrou pelas unhas, passaram à barriga das pernas que martelaram com soberbo e inalterável ritmo; por último, tantas lhe deram nas ancas e nas vazias que se formou à roda da cinta uma faixa roxa, de roxo vivo macerado.

Enquanto durou a operação, o frade fartou-se de bufar; bufava e o suor escorria-lhe em bagadas pelo rosto. Os olhos parece que dum instante para o outro iam ser ejectados das órbitas, túmidos de sangue, e aos cantos da boca rorejava pegajosa e sanguinolenta espuma. Via-se que retalhara a língua às dentadas, mas não lhe arrancaram uma palavra. Quando o largaram, tão congestionado que dava a impressão de que ia estoirar, ainda mal refeito do atordoamento, gritou para os verdugos que olhavam para ele como para bicho raro:

- Cachorros, ides ver de que raça eu sou... E, arrancando o latagã a um deles, espetou-o na coxa, mansa, friamente, até varar do outro lado. Com ele ali cravado, tornou em ar de desafio para os mouros, atónitos com a imprevista e crua cena:

- Vistes bem...? Então se vistes, ide dizer a vosso imundo amo quem é um português! - e com a mesma demorada e segura sanha desembainhou o punhal da carne.

Romperam os mouros em grande alarido, correndo a dizer a Morato Arrais que o marabuto cristão era santo.

Page 72: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

O renegado, europeu céptico e experiente, torceu a beiça num esgar mau e proferiu:

- Santo...? Da pele do diabo é que o ladrão me saiu. Remo com os dois! Foi Lela Bianca informada do que acontecera aos dois cativos pelo

capelão do Banho, Frei Plácido dos Altos Céus, e as lágrimas soltaram-se-lhe dos olhos.

Muito bem sabia ela o que era remar nas galés. Quantas vezes não ouvira a mouros e cristãos: não diga que foi cativo

quem não andou nas galés! Estreita, baixa, quase à tona de água, latinas nos dois mastros,

duzentos e cinquenta remadores em dezassete bancos por banda, cento a cento e meio de soldados, três ou quatro peças de pelouro, eis a galé subtil. Com vento de feição, à vela; mas, basta que se enxergue terra ou navio, colhem-se as velas, arreiam-se os mastros, e começa a faina capital da chusma. Os remadores metem na boca o pedaço de cortiça, que lhes dança ao pescoço como escapulário, e flectem-se sobre os cabos dos remos, atentos à voz do arrais, de pé, contra a estanteirola:

- Voga! Voga! Respondem os anélitos surdos, estertorizados, dos galeotes: anh! anh! - e o chape-chape de noventa pares de remos, percutindo a água em cadência, sob o olhar dos comitres. Entretanto a nau de mercancia, levada em sua rota, apercebe-se de que o corsário lhe dá caça e larga o pano todo. Chega o minuto culminante da manobra. Por cima dos remadores, de pau em punho, os comitres ladram; ao mais pequeno indício de cansaço ou frouxidão caem sobre o triste como milhafres sobre o estorninho; dão, dão até lhe partirem o arrocho nas costas ou lhe espirrar o sangue das velas. Outras vezes arrastam o mísero para a coxia e com um balso breado moem-no. Um a mais, um a menos não tem importância. A questão é que o galeote vá buscar ao fundo do ser raiva, medo, desespero, que, mercê de reacção química, sobrenatural, operada no organismo, se transformem em energia. Ou os vá buscar onde quiser, céu, inferno; para o pirata são perfeitamente indiferentes a origem e razão das coisas.

A voga-arrancada o corsário atira-se para o navio fugitivo. Larga-lhe um tiraço a advertir que o melhor é parar. Ai, não? As várias bocas de fogo desfecham a um tempo, e a manobra da abordagem, facilitada pela faina a

Page 73: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

braço, sucede-se com vertiginosa celeridade. Arreiam os baixéis enquanto o diabo esfrega um olho e as alcateias de janízaros, alfange em punho e mosquete, acometem a presa por todos os lados. Se não topam resistência, o que é frequente, limitam-se a roubar; fazem mão baixa de tudo, desde pessoas à carregação. Mas se a briga chega a atear-se, é uma açougada!

Perante nau de guerra espanhola, florentina, maiorquina, a galé de Argel foge mais lesta do que se tivesse as asas das gaivotas. O combate a armas iguais não interessa esta casta de flibusteiros. E saber fugir, a tempo e a coberto, é virtude só inferior à de vencer. A táctica com a chusma, em tal emergência, muda de feição: onde antes trabalhara o azorrague, tudo agora são afagos e blandícias. Os comitres transformam-se a ponto de puxar dos lenços e enxugar o suor da fronte dos remadores. Dirigem-lhes as mais untuosas palavras: “Tenham paciência e façam o que puderem; ao que Alá ou o Deus dos cristãos tem escrito não há que fugir. As usanças da guerra são assim, que se lhes há-de fazer? Hoje andam cristãos algemados aos remos, amanhã pode virar-se a sorte e inverterem-se os papéis.” Na hora do perigo, a linguagem é esta. Basta que a galé consiga iludir a perseguição e, uma vez conjurado o risco, recomeça o império da besta-fera.

O comitre, em verdade, não é ser humano, nato de mulher, mas demónio acabado. Ao pé tem um feixe de varas, varas vergulas de que se fazem arcos de cesta e de tonel, para castigar ralaços e calaceiros. Mas calaceiros e ralaços, pelo estalão deles, são-no todos. Ao fim duma hora, não resta vara inteira; estroncaram-nas na suã dos galeotes. E venha depressa outro molho!

Exerceu o oficio de comitre um filho de Barba-Ruiva, Alexandre Magno da pirataria. Exercia-o como digno rebento de tal cepa, de ânimo ferino, inexorável. Certo dia, apercebendo-se os galeotes que iam ser abordados, desampararam os remos a um tempo e, arrancando o seu carrasco da estanteirola, foram-no baldeando de mão em mão, de banco em banco, dentada aqui, dentada acolá, tantas e tais, que ao chegar à proa ia cadáver.

Os galeotes andam chumbados à nave por uma cambalheira de ferro; soltarem-se dali só quando o comitre vier com a chave do cadeado. E tal disposição apenas é tomada com o regresso ao antro ou que forçoso se torne espalmar a embarcação em terra para limpeza ou conserto de avaria. De resto,

Page 74: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

para tudo o que a natureza requer do galeote, não há outra medida de liberdade além do palmo da corrente e do metro de ar para que respira. Por isso andam enterrados em imundície até às orelhas. A disenteria dizima-os; em certas galés a peste é endémica. Lutar, reagir, impossível; pensar em salvação, se a galé vira ou algum canhonaço lhe abre vela, inútil. O pelouro vem e varre uma bancada; é como foice metida por um trolho de trigo fora; não há modo de esquivar-se. O acaso é o único escudo do galeote. Também morrer não lhe importa. Em geral não desejam outra coisa; mas não lhes deixam sequer esse direito; empregam até os melhores ardis para que eles não usem de tão desaforada jurisprudência. E os mais, quando a galé se torna esquife, erguem as mãos em coro a agradecer o suspirado resgate.

Comer, dois punhados de biscoito negro, molhado em água, uma das mãos leva à boca, a outra move o remo. E dormir, como dormir com cinco companheiros nos quatro palmos da prancha, os comitres a cada passo a vozeirar por cima deles: “Pica a voga, perros..”

Atacar embarcação de carga, fugir a uma nau de linha, varar em terra estranha por causa de rombo ou limpeza urgente, tudo tem de se fazer em velocidade, arma soberana, demoníaca, do corsário. O remador, que beba alento onde lhe apetecer, tem de superar a fadiga; valer por sete; ir mais além a cada instante, e ninguém dirá, senão vendo, que a máquina humana é capaz de tais milagres. Que lhe aconteça rebentar, vai logo de cabeça para o fundo servir de cibo aos esqualos, sem a pedra aos pés da sepultura cristã em mar alto. Muitos, de facto, estoiram; a mercadoria humana, relativamente barata, não escasseia; a cristandade é inesgotável como os bancos de bacalhau.

Argel, a branca metrópole do Islame em África, quando as equipagens tornam de suas expedições a remo lasso, alveja ao longe como paraíso. A galé deita ao vento os galhardetes; arvora o pavilhão verde, recamado de estrelas em volta da meia-lua de prata, no mastro da mezena; dispara a artilharia de bordo; tangem as trombetas bastardas e respondem à salva festiva e promissora os canhões das fortalezas e baluartes. Das ruas estreitas, a subir para a alcáçova por sucessivos planos a modo de escalões, desce de trambolhão o poviléu, com a farrapagem branca dos albornozes e dos fezes vermelhos e verdes a luzir. E em frente da galé gloriosa, mouros, mozabitas e cabilas, apinhados no molhe, vão coçando o piolho e admirando. Agora é o

Page 75: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

arrais que desembarca a dar conta ao baxá do êxito da sortida; logo os cativos em bicha a caminho dos Banhos; depois a descarga da tomada - e o muezirri vezes sucessivas lançou do alto da torre quadrangular da velha mesquita o seu grito de mocho: Alá! Alá!

Tudo isto, estes cruéis passos, esta mísera sorte repassava Lela Bianca em sua imaginação, depois que Frei Plácido dos Altos Céus lhe deu a notícia infanda.

- E agora que fazer, que fazer? - interrogava ela, torcendo as mãos em seu desespero.

Ao fim da primeira expedição os dois cativos tiveram que recolher ao hospital. Vinham esfalfados de todo, a dar a alma ao Criador. O hospital era como um pedaço de Europa na terra maldita. Sustentado pela esmola dos cristãos e os legados pios dos que tinham algumas posses, ali encontrava o infeliz, com os socorros sumários da medicina, um pouco de paz, o conforto da religião, e um passadio próprio às naturezas debilitadas. Os enfermeiros eram dois pobres cativos que pagavam a seus senhores uma soldada mensal para terem a liberdade de exercer aquele múnus. Frei Plácido era, além de capelão e ecónomo, enfermeiro-mor porquanto não faltava ali barbeiro e sangrador.

Deu o santo homem parte a Lela Bianca do regresso dos seus protegidos. Mandou-lhes ela alimentos, algum dinheiro e recado de que as suas promessas estavam de pé.

- Frei Plácido, essa criatura é sobrinha dum renegado - observou-lhe o franciscano. - Fazei-me o obséquio de não nos trazer mais dessas mensagens. E dizer-lhe que morremos.

- Preferem, de facto, morrer no cativeiro? - Há-de ser o que Deus quiser. - Têm quem lhes pague o resgate...? - Talvez. - Se talvez, porque não se “cortam”? Escusavam de andar nas galés... O frade não respondeu. Ao cabo de três semanas, que tanto levaram

enfermidade e convalescença, de novo foram mandados remar. E, expedições após expedições, mas de seis meses andaram à de cima de água. Da última

Page 76: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

vez que regressaram ao Banho de El-rei, Frei Plácido disse ao arrábido, com ver-lhe as mãos cheias de calos e as costas cobertas de pústulas:

- Frei Salvador, meu irmão, não é legítimo submeterde-vos a tão dura prova e cilício quando a Divina Providência vos oferece meios de evitá-los. Não sei quem este vosso companheiro seja, nem quem vós sois, além de ministro de Deus, o que salta à vista. Mas fôsseis bem embora os maiores criminosos, Deus Senhor já se amerceou das vossas culpas. É tempo de suspender tão negra penitência. Continuar com ela por teimosia, receio bem, Frei Salvador, que se lhe possa chamar, quanto a vós, suicídio, quanto ao vosso companheiro, pela sujeição em que o trazeis, assassinato.

O frade reflectiu e disse com voz soturna: - Amanhã vos darei a resposta. Passou Frei Salvador a noite em

meditação, de joelhos, diante do altar de Nossa Senhora. De manhã, os cativos que iam para o trabalho, tocados pelos guardas como reses, viram-no ainda na posição da véspera, cabeça dobrada, mãos cruzadas no peito, dormente. Frei Plácido dos Altos Céus deu com ele naquela mesma contractura do corpo e do espírito e, pois que não reparava em ninguém e semelhante imobilidade tinha bastante de maravilhoso, tocou-lhe no ombro e proferiu:

- Hoje, fazeis-me também mercê de me ajudar à missa? - Estou ao vosso dispor - respondeu, erguendo-se. Ao fim do santo

sacrifício disse o acólito: - Frei Plácido, a Virgem Mãe fez a fineza de me inspirar. Ide e dizei à

criaturinha que aceitamos a oferta.

Page 77: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

VII Velo ordem do baxá para que os cativos dos quatro Banhos se

apresentassem aquele domingo, à volta do meio-dia, na Porta da Marinha. Como era muita gente, não contando os que andavam ao corso, de remo em punho, e os que trabalhavam nas quintas e aduares, os guardas começaram logo de manhã cedo a picá-los das enxergas e tarimbas e a deitar-lhes algemas aos pulsos e cadelas. Aos mais rebeldes e alevantados prendiam-nos uns aos outros, privando-os de franquia de movimentos como nas récuas. Sempre que saíam do Banho, de ordinário, deixavam-nos ir à solta. Ferros, punham-lhos apenas em revistas e paradas, quando os levavam ao Badistam ou eram obrigados a passar pela rua de Bab-Azon, sempre coalhada de povo, não lhes desse o diabo na cabeça para praticar desmandos ou fugir.

Alarmado com tão insólita barafunda, Frei Salvador veio perguntar ao capelão de que é que se tratava.

- É hoje justiçado o padre Jerónimo de Zabaleta, juntamente com o valenciano que estava no Banho da Bastarda e o renegado português, natural de Alfama, que maquinou a fuga. Pouca sorte! Segundo se diz, o português andou tão estouvadamente que foi meter a barca, em que iam a fugir, no meio da flotilha que levanta todas as manhãs para a pesca ao largo. Estava fiado que não dessem conta, ora, não tinham andado grandes braças, os pescadores suspeitaram e caíram-lhe em cima. O mal não seria de morte se o infeliz padre Zabaleta se não tem esquecido de destruir uma planta que tirou da cidade com o registo das ruas, portas, baluartes, castelos, tudo na devida escala, bem como a memória: Da maneira como S. M. Católica se deve haver para entrar a metrópole dos corsários. Foram ontem de manhã presos e, como era sábado, dia de conselho, ontem mesmo julgados, e já hoje é aplicada a pena. A justiça de Argel é expedita. Ninguém lhes pode valer. Queira Deus que a morte infamante e horrorosa lhes abra as portas do Céu...

Uma prece passou brandamente sibilada nos lábios dos dois religiosos. - E que vamos nós fazer à Porta da Marinha, tornou Frei Salvador. - Assistir à execução. É preciso que o castigo sirva de espelho. - As almas cobardes. Às outras só lhes inspira repulsa e maior revolta.

Page 78: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- É também uma forma do baxá armar às graças de Argel. Vê-se sem respeitos, sem autoridade, ameaçado pelo Grão-Turco com a destituição e recorre a todos os meios para manter-se. A populaça argelina, que é do mais reles que há no mundo em matéria de animal humano, pior que atravessada de hiena e lobo, pela-se por estes espectáculos e não deixará de bater palmas. Noto que para o vosso caso não tira nem põe...?

- O baxá podia acenar-nos com todos os suplícios do inferno que não nos faria mudar de resolução. Estamos prontos.

A pedido de Frei Plácido dos Altos Céus os padres redentoristas tinham andado a negociar o resgate dos dois cativos com Morato Arrais, seu amo e senhor. Havia esperança de que o pirata fosse moderado a pedir, embora tivesse sido puxada a quantia que desembolsara, pois em contrário das primeiras presunções nada abonava que se tratasse de pessoas de grande categoria, nem eles, fosse por ardil, fosse por falta de teres e de patrocínio, se haviam cortado. Cortar-se era comprometer-se o cativo ao pagamento da quantia que se estipulasse pelo resgate, dentro de certo prazo, beneficiando, com o ajuste, dum regime de relativa liberdade. Ora Morato Arrais, raposa velha, trabalhado ainda provavelmente pelo sonho de ter nas mãos um príncipe de carne e osso, pediu vinte mil ducados por eles.

Cáspite! - exclamou o padre encarregado das negociações. - Mais vale declarar que não quer desfazer-se destes escravos.

- Comprei-os caro para os vender caríssimo. É o meu jogo. - Arrisca-se a não encontrar quem lhes pegue retorquiu um dos padres,

veterano em tratar com flibusteiros. - Quem muito abarca pouco abraça. De resto, o cativo mais novo dá a toda a gente a impressão de que não bota o Inverno fora. Se não está héctico na última extremidade, para lá caminha...

- E que lhe hei-de fazer?! - proferiu abrindo os braços e franzindo o rosto na expressão maliciosa de quem se conforma com o destino. - Mais tenho aventurado pela vida fora. Umas vezes perdi, outras ganhei; é o que a roda da fortuna manda.

- Passa as marcas... - Disse, está dito. Se o escravo morrer, reza-se-lhe por alma. Inteirada por Frei Plácido dos Altos Céus do pé em que estavam as

negociações, com mágoa verificou Lela Bianca não possuir semelhante

Page 79: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

quantia. Podia vender as jóias, mas ainda que tivesse a sorte de se lhe deparar comprador idóneo, não era ponto de fé que apurasse tal soma. Cismou Frei Salvador na situação e, embora não sentisse escrúpulo em aproveitar-se da burra do bandoleiro para satisfazer ao bandoleiro, pareceu-lhe que o problema, assim posto, dependia de factores quiméricos ou extremamente precários. Era preciso achar outra coisa. Lela Bianca não devia estar longe daquele pensar, pois não decorreram muitos dias que não viesse com novo alvitre:

“Como era sabido, uns anos por outros, fazia a sua viagem a Itália, enquanto não voltava de vez. Para isso dispunha do bergantim, tripulado por cipriotas e cretenses, gente de quem se não desconfiava em terra cristã. Dado que o tio consentisse que fizesse viagem naquela altura, não haveria modo de levar os cativos com ela? Imaginava que sim, com um poucochinho de sorte e outro poucochinho de manha. A questão era que o embarque se efectuasse com Morato Arrais no corso e que, ele fora, não causasse estranheza o bergantim meter imprevistamente rumo ao mar. Como consegui-lo? Adiando e tornando a adiar a partida, hoje a pretexto de ter acordado indisposta, amanhã porque era dia aziago, depois porque a aia torcera um pé. O tio acabaria por desistir de tomar parte no seu bota-fora, e vizinhos, curiosos, a própria marinhagem, cansados com a negaça, por não estranhar a partida nas condições mais insólitas. Embarcariam com o lusco-fusco da alba. A única dificuldade para os cativos estava em sair do Banho à hora oportuna; esse óbice vencido, trajados de mouros, aguardariam na sombra duma casa, ou esquina, que ela passasse para, com a maior naturalidade, se juntarem à sua pequena comitiva. E velas ao vento! A aventura podia ter consequências funestas para ela...? Não se importassem saberia safar-se da embrulhada.”

Examinou Frei Salvador o plano e, pesando prós e contras, pareceu-lhe aceitável. Compenetrado disso, fez saber a Lela Bianca que se entregava nas suas mãos.

Em resposta, mandou-lhes ela roupas, limas surdas, dinheiro para subornar os guardas e peitar os cristãos que houvessem de ajudá-los, e duas palavras: que fossem palpando o terreno enquanto não chegava o sinal.

Passaram-se dias e, como não houvesse novas nem mandados de Bianca, Frei Plácido dos Altos Céus foi ter com ela. Era uma faculdade do seu

Page 80: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

sacerdócio ir a toda a parte, visitando os enfermos cristãos, aventurando-se a confessá-los e a levar-lhes o viático em casa dos próprios turcos, encomendando os finados, ninguém fazendo reparo que batesse a esta porta mais do que àquela. Lela Bianca era-lhe muito afeiçoada e tinha por ele esta ternura que se torna de novos para velhos verdadeiramente filial. Ele correspondia-lhe com carinhosa bondade, não obstante ser sobrinha do mais desalmado negador de Cristo que havia em Argel. Certa queda que lhe via para a garridice, incompatível com a noção de severidade com que encarava este Vale de Lágrimas, lançava-a à conta da juventude, do senão a absolvendo como boa a fada dos cativos.

Contou-lhe ele da impaciência em que estavam Frei Salvador e seu companheiro e Lela Bianca explicou a causa de tais delongas. Questões de política. Estava a expirar o período durante o qual Hassan o Vaidoso fora provido baxá pelo Divã, e soubera-se que pedira a prorrogação do cargo apoiando o pedido com o mais soberbo convite que até então fora aparelhado em terras de Berberia. Tinha, porém, mau ambiente na Sublime Porta. Eram multas e de tomo as queixas contra a sua rapacidade sem freio nem medida e a sua discricionária e tirânica vontade. Dentre os agravos taludos de que mais se sentia a população, que administrava, era ter ele açambarcado o comércio dos cereais, provocando uma tal escassez que só os ricos podiam ter mesa farta de pão, o alvo e gostosinho pão que a Metidja nunca deixara de produzir em abundância para consumo da cidade e seu termo. Além desta onzenice, todas as alicantinas lhe serviam desde que pudesse comprar os escravos do Badistam por dez réis de mel coado para revendê-los a armadores e proprietários rurais a peso de oiro. Dizia-se dele que, incluindo calondros e cebolas, tudo o que passava as portas de Argel pingava para o seu bolsinho. Cádis e cacizes não havia um, por todo o território a que se estendia a soberania, que fizesse cumprir a lei como mandava o Alcorão, mas sim consoante o arbítrio do baxá. Com ele tal complacência acabara por se tornar inerente ao exercício de quejandos cargos. Há muito que os janízaros, soldadesca turbulenta e atrevida, murmuravam contra os atropelos e cupidez do primeiro magistrado. Mas ele soubera adoçar-lhes a boca e ligar-se com o aga em estreito e solidário compadrio. O que é, não contara que tudo tem os seus limites e certo dia estalara nos quartéis uma verdadeira insubordinação

Page 81: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

contra o comandante da milícia que interesseiramente protegia o déspota. O resultado imediato fora destituírem-no, elegendo aga um homem que parecia reunir condições não só de justiceiro e recto nos juízos mas de humano com o povo. Dizia-se, embora à boca pequena, que o motim fora provocado pelos agentes de Morato Arrais que se tinham farto de semear patacas pelos pretorianos.

O certo era este general das galés cobiçar o cargo de baxá e, se se atendesse aos serviços prestados à comunidade e à sua carreira brilhante de corsário, ninguém apresentaria melhores títulos a semelhante posto. Fora ele o primeiro que se arrolara a levar o pavilhão de Argel até às Canárias, ensinando aos piratas esta frutuosa e nova estrada marítima. Das suas presas as primícias tomavam o caminho da Porta, como a providente suserana de que emanavam todos os bens, aqueles que tornavam Argel temida e próspera e o general das galés opulento e respeitado. Em Constantinopla entregavam-se ele e Hassan a um terrível duelo de influência com aquela destreza e afinco que estava em seu ânimo de italiotas. Pois que ali como em Roma tudo se obtinha a poder de dinheiro, desbaratavam verdadeiras fortunas por emires e euriucos, um a suplantar o outro.

Em Argel, os negócios tomavam rumo favorável a Morato Arrais. A

judiaria, que era poderosa e influente, estava-lhe ganha depois que ele lhe acenara com a revogação de certas posturas da Aduana, tão celeradas que faziam do Israel argelino o rebotalho da humanidade.

O novo aga parecia hesitar. Embora caserneiro das unhas dos pés à coroa da cabeça, não era destituído de certo entendimento, e, se via em Hassan as mãos sujas da usura, não menos reparava no olhar frio e dentes brancos do tigre Morato Arrais. No seu embaraço dir-se-ia estar a martelar-lhe a consciência este adágio das pessoas cépticas e escarmentadas: entre os dois, venha o Diabo e escolha.

A crise estava iminente e os partidários dum e doutro a cada passo esperavam a galé que trouxesse os novos poderes, persuadidos uns que Hassan levara a melhor, outros que Morato Arrais conseguira, afinal, desbancar junto do Grão-Turco o negregado e somítico déspota. E no molhe,

Page 82: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

de olhos na ponta de Matifu, já os alvissareiros se postavam noite e dia à espera do tiro de bombarda que anunciasse a terra e mar: baxá novo à vista!

Entregue de todo à campanha, escusou-se Morato Arrais a atender os desejos de Bianca que requeriam, para serem satisfeitos, certos cuidados e recatos. E como à mocinha parecesse impertinência inútil insistir, limitava-se a devolver aos cativos a resposta que recebera do tio.

Deste assunto estiveram os dois religiosos praticando demoradamente, em voz baixa, receosos dalgum cristã o que andasse como espia a soldo dos mouros. Em volta deles crescia o burburinho através dos lôbregos corredores lajeados de tijolo. À luz da clarabóia, verrumada nas abóbadas de morraça, acabavam de erguer-se de seus grabatos e fachas de palha, sob a ameaça do látego, os cativos enfermos e convalescentes. Uns gemiam como crianças martirizadas, outros soltavam lamentosos impropérios. Sentados nas caixas de pinho, em que recolhiam os andrajos, vários esgravatavam as úlceras. À volta, em despeito das algemas ou de já estarem ligados em récuas, rapavam o cuscus das marmitas. Dirigiam-se aos pátios, com os covilhetes a buscar a ração da caldeira comum, os que andavam arranchados. A este e àquele, mais recalcitrante ou malvisto, o baxi mandava apertar os anjinhos para que perdessem a veleidade de “se fazerem finos”. A muitos, de mistura, dóceis e indóceis, aplicavam os guardas o seu cachação e até a vergalhada.

Correram afinal os ferrolhos e a legião dos párias começou a golfar pelas portas estreitas em chusmas de cinco e mais, conforme a cadela que os ligava. Burjaca ou simples camisola de grumete, deitadas fora por mouro ou judeu; descalços, com duas palmetas de coiro ou de esparto a arremedar alpargatas; todas as idades, desde o adolescente ao homem de cãs; todas as raças, desde os escandinavos aos japões - enchiam as ruas e largos das mesquitas. Mal os Banhos acabaram de vomitar sua entranhada miséria, o formigueiro tocou para o molhe. E, através das ruelas fétidas, era como se passassem torrentes mais fétidas ainda de surro e bicharia. Da cidade alta, entretanto, desde a Alcáçova, becos íngremes fora, formados de planos sotopostos; do dédalo viscoso de Bab-el-Uad, com suas casas e casotas, mais envolvidas que cortiços, escorreu uma população grulhenta e vermicular. Albornozes de mouros e romeiras de israelitas rivalizavam em sordidez e farrapada. A negrura era o timbre de Argel, a branca.

Page 83: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Ao grito de arreda! dos chauzes, o baxá no meio da escolta de núbios, os renegados e generais das galés a cavalo com seus pelotões, o aga na coorte de janízaros, mosquete ao ombro, cabeção à ninivita e caldeirinha de cobre à cinta, tomaram posição diante da Porta da Marinha. Precedidos por uma bateria de tambores e trombetas bastardas, apareceram os condenados no meio de escolta, com o mizuar à frente. À voz do seu odebasi os janízaros formaram em quadrado, face para o interior. Nesse quadrado um esbirro colocou um fogareiro aceso, a crepitar. Empurraram o valenciano para dentro, não sem ter recebido à passagem alguns murros patrióticos. Um chauze pegou do ferro espalmado, aquecido ao rubro em cima das brasas: uma fulguração no ar; um grito agudo e rápido como uivo de cão e voo de milhafre.

O cativo estava ferrado. Tocaram caixas de rufo e bastardas: segundo ao castigo, o padre

Jerónimo de Zabaleta. Era um homem alto, magro, ascético em tudo, boca fina como o rebordo das hóstias, nos olhos duas chamas de claridade sobrenatural. Vinha de sotaina e volta e, como o vento lhe enfunasse as vestes, eram embaraçados os seus movimentos. Aproveitando-se disso, certo mouro descarregou-lhe um soco na nuca; outro deu-lhe uma bofetada; aquele ali chuçou-o; viu-se o braço esquelético dum velho marabuto a rasgar-lhe a roupeta, e logo o malandrim dum negrinho de Argel, da casta mozabita, lhe saltou às costas e ferrou os dentes muito alvos no cachaço. As duas braças que lhe faltava percorrer, desde a escolta até ao espaço vazio limitado pelas filas dos janízaros, não os andou sem que um renegado lhe jogasse a naifa de ponta e mola à orelha e lha cortasse cerce. Essa orelha ergueu-a depois ao ar, triunfante e dando pulos, como se houvesse conquistado o mais difícil e facecioso dos troféus. Mas não ficou aqui. Como o exemplo é contagioso, um beduíno, vendedor de tâmaras, deu-lhe tal bordoada na boca que lhe fez saltar meia fiada de dentes.

Quanto transpôs a linha dos soldados ia mais morto que vivo. O meirinho cravou duas estacas no solo inclinadas em cruz de Santo André, e às aspas de baixo amarrou as pernas do padre. À roda, outros beleguins puseram lenha e chegaram-lhe lume, tendo o cuidado que a chama não fosse muito alta que asfixiasse o homem. Tudo era regulado de modo a que assasse a fogo lento e, estorricando, as carnes escorressem o aromático e precioso pingo. Mal

Page 84: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

porém os guardas se afastaram para dar campo à labareda, a garotada impaciente, especialmente os baxagas lânguidos e afeminados, brinquinho dos turcos, despediu-lhe tal chuveiro de pedras que não tardou a expirar, em altas vozes depondo a alma nas mãos do seu Deus.

Negro como um tição, meio assado e triturado, de rastos por uma corda atada ao pé, o foram os chauzes deitar ao monturo, formado pelo fosso que fica rente à muralha, da parte de fora, a todo o correr. Burro morto, cão tinhoso, imundícies e detritos ali tinham vazadoiro. Da esterqueira, em activa fermentação, exalava-se até longe um quente e nauseabundo rescaldo.

O terceiro sentenciado era português de nação, homem na força da vida, largo de peito e de encontros, sem outras vestes além do albornoz, tão alvo que ao pé dos mouros luzia como a neve. O infeliz renegara a sua lei para casar com uma mourisca, que afinal, a poucos meses de casada, lhe fugira com um cologli. Era preciso que o miserável purgasse o crime com todas as fibras vivas do seu corpo e os janízaros protegiam-no dos insultos da populaça de maneira a chegar são e incólume ao patíbulo. Ao alcançar a Porta da Marinha, quatro cabilas e outros tantos chauzes travaram dele. E, aos empurrões e picando-o com as lanças, fizeram-no trepar pela escada até o terrado, em forma de cortina por sobre a porta, no qual as troneiras de bronze estendiam para o mar suas bocarras limosas. Abaixo das amelas havia chumbada na parede uma estrepe de ganchos, aguçadíssimos como as escápulas dos açougues, mas de muito maior tamanho. Era para essa panóplia de ferros em quincôncio que mouros e cristãos erguiam olhos dilatados e bocas hiantes, na expectativa. De súbito, quatro chauzes dos mais valentes lançaram-se ao homem e pegaram dele, dois pelas pernas e outros dois pelos braços. E sopesando-o no espaço, com um pequeno movimento de balouço, quando o corpo depois de voltar da elipse atingia a sua linha de gravidade, deixaram-no cair com brusquidão. Da multidão desprendeu-se um Ib! imenso, uivo glacial, espasmo nervoso, cristalização de horror. A queda com a sua vertigem roubara a voz ao justiçado. Mas já os ganchos recurvos o retinham no voo descendente, um pela bandouga, outro pela cava da axila, e ainda um terceiro pela coxa. Ficara de boca obliquada para o porto. Não demorou que rompesse aos urros e guinchos, entremeando tons vibrantes com roncos. Da gritaria horríssona destacavam-se as ternas palavras que aprendera de menino:

Page 85: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Minha mãezinha do Céu, valei-me! Continuados, em crescendo, os clamores eram tão ferinos que pareciam abalar - mar e terra. Os cristãos tinham os olhos rasos de lágrimas. Nos raros instantes em que emudecia, lembrava de boca escancarada e cabelos ao vento as gorgonas na ilharga das velhas igrejas. Outras vezes rompia a esbracejar, a querer agarrar os espetos e, em seu desespero ou devido às contracções, as pernas punham-se-lhe a vibrar, a vibrar, como de gigantesco escaravelho pregado contra a superfície lisa da muralha. O sangue borrifava o terreiro, estrelando de vermelho-escuro o saibro claro. E não despegavam os brados tétricos, ingentíssimos:

- Minha mãezinha do Céu. Ai!... ai!... ai... Acabara-se. Os generais das galés, o baxá, o aga, retiravam a meio das guardas de janízaros e cabilas. Os baxis deram voz aos cativos de recolher; e, dobrados sob o peso da cruz, com lentidão e amargura, eram pobres manadas de reses tangidas para o curral. Marche que marche, sempre por cima deles retinia lancinante e implacável a voz do martirizado:

- Mãezinha, ó minha mãezinha do Céu, valei-me! Ao começo a mourisma quedara atarantada a ver acima do dintel da porta principal os espasmos do infeliz. Por fim as mandíbulas chocalharam folgazonas e satisfeitas; contra as vozes incompreensíveis atiraram chufas e palavrões obscenos; era o espectáculo gratuito do fantoche com repique de gargalhadas.

Frei Salvador e o companheiro regressaram à camarata transidos e de alma mais negra que a noite. Frei Plácido veio ter com eles:

- Não mudastes de tenção? - Mais do que nunca estamos decididos. Tereis vós medo? - Um velho - respondeu sorrindo Frei Plácido se tem a alma no seu

lugar teme apenas as contas que há-de dar a Deus. Durante a noite a voz patibular tornara-se menos aguda, embora- mais

profunda e pastosa. Tinha-se a impressão que vinha de longe. Era infinitamente molesta, como se atravessasse o negrume da eternidade. Soava a não sei quê de mar irado. E, de crepúsculo a crepúsculo, levou a gemer, a bradar pela sua mãezinha, a bradar pelos homens, ora pedindo a morte, ora uma gota de água, chamando a maldição sobre a cidade infernal e o mundo. Com o dilúculo da aurora a voz foi-se adelgaçando: aulido, ai, soluço flébil de menino.

Page 86: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Era a agonia. A Natureza operava o milagre da clemência com a sua obra de consumpção. Trespasse: a voz pareceu aos árabes que paravam por baixo uma fonte em oásis a correr.

Page 87: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

VIII Voltou de Constantinopla a tartana que Morato Arrais aviara com rica

e singular peita: para o sultão cinco donzelas, três de Espanha e duas de França, de rara formosura, apresadas em corso, caixotes de marfim esculpido, retábulos de mestres flamengos e armas dos alfagemes alemães, da maior estimação; para o grão-vizir dois mocinhos napolitanos, muito brancos de tez, ainda com a penugem de maracotão no lábio.

Gedeão Jekarim, o esperto troquilha, emissário de Morato Arrais, tão azougado que lhe perdoavam ser judeu e da casta rabuda, sefardina, fora encontrar o caso mal parado. Euriucos, emires, conselheiros, tinham acabado por se render à causa de Hassan. Para onde quer que se virasse, descobria pendurado o escudo do Vaidoso. Poucos dias atrás haviam chegado à Sublime Porta os presentes dele, magníficos em tudo, no rol dos quais davam na vista certos trabalhos ao cinzel da joalharia florentina, dois punhais de Toledo com brasão dos Bívares, um relicário de Limoges de esmaltes chai7zplevés, ainda com a cana do braço de Santa Aldegundes, e tapeçarias de Aubusson, Arras, Gobelinos, do mais precioso que se fazia. Sensibilizado, o Grão-Turco punha, quanto ao governo de Argel, pedra no assunto. Mas chegou Gedeão Jekarim com a sua embaixada, desembarcou e fez entrega das dádivas esplêndidas, que igualmente o Grão-Turco recebeu com prazenteiro rosto e agradecimentos largos. E, quanto ao governo de Argel, perplexidade. Por nada deste mundo queria escandalizar os seus muníficos amigos, e o negócio em última análise não podia arrumar-se por menos. Maomet seria capaz de achar saída satisfatória para o transcendentíssimo dilema da burra de Balaão; para aquele, impossível. Atender um seria agravar o outro. Diferir implicava moer a paciência ao que estava de fora, se não a ambos.

Tal foi a situação que se ofereceu à consciência de Jekarim no balanço que lhe deitou, uns dias depois de chegar a Constantinopla. Para todos os efeitos quem estava em melhor postura era Hassan. Pois que continuava a exercer o cargo apetecido, o problema cifrava-se para ele em defender um reduto, tarefa incomparavelmente mais fácil que a de Morato Arrais: expugná-lo.

Page 88: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Outro qualquer teria desistido, Jekarim não. Piano, piano, a poder de engenho e tacto pôs-se a bater a fortaleza inimiga. Onde o estendal dos destemperos e torpezas cometidos por Hassan e o painel de Argel esfomeado e trabalhado pela cólera surtiam efeito, servia tal récipe; onde inoperante, jogava sequins, os voadores sequins turcos, e as resistências iam caindo. Gastou rios de dinheiro, mas desculpava-se em sua alma atávica de forra-gaitas com lembrar-se que ao pirata não lhe custava a ganhar. E, tendo encontrado o pior dos ambientes para a consecução dos seus fins, saiu-se com meia vitória: Hassan em terra. Iria desempenhar o cargo Diafar-Efendi, renegado húngaro, antigo preceptor do príncipe, homem de meia-idade e eunuco, com fama de sério e direito, tanto quanto se podia ser nas margens do Bósforo. Ninguém estava melhor indicado - justificava a Sublime Porta - para reger uma província que os corriqueiros davam como relaxada à vassalagem, empobrecida pelas extorsões e pábulo de peste e fome.

Jekarim, depois de levar os parabéns ao novo baxá e, com a oferta de serviços e outras cortesanias, armar às suas boas graças, ainda no meio silêncio da investidura, deu por finda a missão em Constantinopla. Tinha a tartana aparelhada e sem perda dum instante largou velas. Chegar depressa, quando nada transpirava da nomeação do novo baxá, podia valer uma fortuna.

Morato Arrais, com efeito, deu-se por bem pago da meia derrota que sofrera com conhecer antecipadamente a decisão do Divã. Muito fizera o seu embaixador. De sobra sabia que há em Constantinopla hasta pública de dignidades. E para quem mais dá. Reconhecia agora que, se gastara uma fortuna para enxotar Hassan do poder, precisava de ter gasto outra para se sentar no seu lugar. Mais mercenária que a capital dos califas só a Roma dos papas. Ah, tivesse ele na mão os janízaros e a resposta a dar ao Grão-Turco bem sabia qual era. Mas temia-se da milícia, menos da aquartelada em Argel que em burgos e feitorias, entre Tremecém e Bógia, e que de ordinário não acatava outra voz que não fosse a do aga. Quanto à índole do homem recentemente eleito e à sua peçonha de bicho, estava pouco adiantado. Seria o soldado incorruptível, como muitos pareciam crer, ou esperava matreiramente que o seu prestígio encarecesse até atingir estimação que lhe permitisse, pondo a espada na balança, sacar a grande vaza? Por agora a atitude mais

Page 89: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

acertada era somar-se ao coro daqueles que por manha ou singeleza celebravam as virtudes do chefe, deixando tempo ao tempo quanto a responder com suficiência a estas e outras perguntas indiscretas. E, como Hassan estava no chão, não era difícil esperar.

Enquanto esperava, foi fazendo o seu jogo. Logo no dia seguinte ao da chegada de Jekarim, os seus feitores abriram ao público os celeiros da Metidja, o alqueire a menos dez aspras do que regulava no mercado. Havia escassez, o preço era convidativo, caiu ali este mundo e o outro. De sol-nado a sol-posto, fartaram-se de medir sacos e mais sacos com que lavradores e azeméis carregaram carros e jumentos.

Quando Hassan o soube deu salto de corça. Que queria aquilo dizer? Felizmente, para tranquilidade do seu espírito, começaram a correr e a adensar-se certos zunzuns, mais agradáveis que ventos alisados. Segundo eles, Morato Arrais tinha em mente transferir a residência para Tunes. Sendo notório, para mais, que Gedeão tornara de Constantinopla de má caradura, julgou adivinhar. Era o rival vencido que desamparava o campo. Não podia ser outra coisa. E o seu júbilo não conheceu limites. Um pouco na ebriedade do triunfo, bastante como jogador que acode à parada, despachou agentes a adquirir o trigo que Morato Arrais punha à venda e devia orçar pelos seus quatro mil molos. Era o único processo de aguentar a alta dum produto de que fizera grandes e imprudentes reservas. A operação, embora dispendiosa, absorvendo-lhe todas as disponibilidades, tinha de bom ficar a coberto de surpresas, pois que na qualidade de baxá, cuja recondução tinha por segura, pertencia-lhe o direito de fechar a barra ao trigo de fora. Monopólio descarado, bradariam os inimigos. E que tinha? Não era pelo crime de açambarcamento que a Sublime Porta o ia processar e destituir de funções. À exactidão otomana o que interessava era o tributo, dizímos avantajados nas tomadias, frequentes e óptimas dádivas. E tudo isso ele executava com liberal rasgo. A arruaça, por conseguinte, do mouro, do alarve e mais cainçalha da Berberia era-lhe tão indiferente como o xaroco no deserto. Corpo de Baco, a sorte continuava a bafejá-lo!

Passou à porta de Morato Arrais, arrogante e de ar dominioso, a meio da guarda núbia de alfange em punho. Não viu o seu inimigo. Ocorreu-lhe que mais duma vez o tinha surpreendido a observá-lo das rexas, com aqueles

Page 90: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

olhinhos de turquesa, risonhos e canalhas, a mão a anediar a barba fluvial de azeviche no jeito que lhe era próprio de astúcia e mangação, e riu-se para dentro. Agora era outra história.

Morato Arrais, que todos tinham por homem dos diabos, não repousava. Duma actividade corria para outra actividade; dum negócio para outro negócio. Vendeu o trigo e empregou o capital em escravos. Quantos cativos apareceram no Badistam comprou-os. Desta vez o baxá, exausto de recursos, não saiu a picar-lhe os lanços e fez negócios da China. Por outro lado, na hasta que houve dos barcos de Arab-Ahmed, penúltimo baxá, cujo património os herdeiros haviam malbaratado a ponto de resvalarem na ruína, foi também ele o grande arrematante. Ficava, desta arte, com quatro galés, três galeotas, três serias e um bergantim, o armador mais poderoso de Argel. Não contente com tal poder, Pietro Maffieri, renegado genovês, mestre em arquitectura naval, a quem por sua multa arte a Aduana denegava o resgate, deste modo tornando-se-lhe o engenho causa de dissabor, começara-lhe com a construção duma nau de alto bordo, como poucas haviam saído dos estaleiros argelinos. Mas porque é que punha tanta febre em arrebanhar escravos e aumentar a frota? Um dos informes preciosos que Gedeão trouxera de Constantinopla era que Amurate III, na previsão de guerra com os estados cristãos, passara palavra a províncias e protectorados para que a todo o preço lhe arranjassem remadores e navios. Deste modo, jogando rijo e certo, contava desforrar-se dos prejuízos sofridos com a embaixada a Constantinopla e abria com insuperável ardil e segurança o fojo em que não deixaria de tombar Hassan o Vaidoso.

Orientadas as suas conveniências na melhor direcção, reparou que a sobrinha estava morta por fazer viagem, e deu ordem que aprestassem o bergantim. Como a tripulação se achava em quartéis, com dois dias para espalmar, outros dois para a matalotagem, podia pôr-se de largada. Aconselhável era que o embarque se fizesse com o maior recato, não fosse o ódio de Hassan aproveitar-se do ensejo para qualquer das mil e uma patifarias em que era mestre consumado. Tal recomendação vinha ao encontro dos desígnios de Lela Bianca que viu nisso o dedo da Madona.

Frei Plácido dos Altos Céus levou aos cativos relação do que se passava. E pela segunda vez lhes foi recomendado que fossem amadurando o

Page 91: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

plano da fuga de modo a estarem prontos à primeira voz. Ora essa voz chegou mais cedo do que supunham. Morato Arrais recebera aviso de que num dos portos da Dalmácia tinham surgido para receber carga duas urcas normandas. Àquela data, segundo cálculos minuciosos, estariam de passo por Messina, de forma que mais dois dias e não seria errado contar com elas por alturas das Baleares. Segundo o informador, tratava-se de duas naves de grande porte, mal artilhadas, com escassa soldadesca a bordo, e um recheio que devia valer para cima de cem mil ducados.

Morato Arrais deitou balanço à empresa e, desconfiado sempre que se tratava de caça grossa, mas muito amigo da ganância, foi-se desafiar Bajaet-Arrais para de parceria cometerem o lance, perdas e lucros por igual. Acedeu aquele corsário, e logo romperam em aprestos, metendo lastro e provisão de água e biscoito, sortindo os paióis de munições, e assegurando-se do bom porte e espírito das chusmas. E vinte e quatro horas depois, com os remadores nos bancos, os comitres na estanteirola, os janízaros para a abordagem em forma, pelouros de pedra e coados quanto basta para um bom quarto de hora de refrega, era só gritar, às seis galés subtis: voga! Antes de embarcar disse à sobrinha:

- Seria para admirar que estivéssemos de volta antes duma semana. Oito dias são muitos dias para quem está impaciente, de modo que a menina está autorizada a partir quando muito bem lhe parecer. Estão dadas instruções nesse sentido. Novamente lhe recomendo: quando romper o Sol devem ir ao largo. Umas vinte milhas para lá da costa atiram ao mar com tudo, mas tudo, que cheire a turco e mouro, arvoram a bandeira de Cândia e rumo sempre a nordeste! O arrais leva escondidos certos papéis para o caso, pouco provável, que lhe saiam a caminho as galés de Tunes ou Bizerta. Só ele sabe para onde é a jornada. Podes confiar nele que me é dedicado como um cão. Abraços a todos, à tia Micaela, ao tio Rosso, à pequenina da Gasparina, ao bom do senhor prior, e a este dirá a menina que sempre trago ao peito as nóminas santas que me deu. E que estou a juntar mais um peculiozito para voltar de vez. Adeus, sobrinha, boa viagem e que a Madona de Vicência vos acompanhe!

Lela Bianca foi à fresta que dava para a rua Bab-el-Uad vê-lo ir, naquela sua marcha dançada, peculiar à gente do mar, latagã no talim, dois

Page 92: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

chumaços por baixo da capa que eram duas pistolas de roda, último invento da armaria, usadas já em Alemanha pelos reitres. E, mal desapareceu detrás da mesquita, mandou um escravo ao Banho de el-rei, que era perto dali, chamar Frei Plácido dos Altos Céus. Como as galés levavam a equipação toda, podia ter acontecido que os seus dois protegidos houvessem sido destacados, e a sua inquietude não era pequena. Não, as chusmas haviam sido formadas com os homens mais robustos e destros dos Banhos, e o frade, em despeito da bordoada de criar bicho e do corpanzil de latagão, nunca passara de reles remador e, quanto ao companheiro, esse estava tão fraco que de sorte aguentava o remo. Tinham-nos deixado no refugo, com travessa aos pés, como por cautela ou represália costumavam fazer, desde que os Trinitários apareceram a negociar um resgate que esbarrou às primeiras palavras com o preço inacessível fixado por Morato Arrais. Pois que assim era, mandou-lhes dizer Lela Bianca que fugissem aquela noite e esperassem com o crepúsculo da alba à esquina da Mesquita Grande. Ali passaria, sem falta, por essa hora, a caminho do porto, onde o bergantim estava pronto para largar. E, com inteirá-los da feição propícia que as coisas iam tomando, conjurou-os a não desperdiçarem aquela ocasião que era única e decerto abençoada pela Senhora do Livramento para readquirirem liberdade.

Entregou-se Lela Bianca aos últimos preparativos e, se bem que aventureira e arvéloa, com os tremores do lance o coração se lhe tornava pequenino. Tentou ainda conciliar o sono, mas debalde. A ala velo com água de flor de laranjeira e ela desatou a rir. já que não podia pregar olho, a pé. Foi espreitar o tempo; pareceu-lhe o céu de chumbo, ouviu rugir o mar, e apoquentou-se à ideia de que estalasse tempestade que tolhesse o bergantim de sair a barra. Na cidade, à parte um ou outro grito de ébrio para as alfurias do porto e o martelado da ronda, mais raro ainda, o silêncio era inalterável. Não obstante, de quando em vez, figurava-se-lhe ouvir a chuva cair, mão leve bater à porta - escuta, Cornélia, não ouves ao longe, para os Banhos, romper rebuliço estrondoso de briga. E neste vão sobressalto levou a noite.

Ainda a luz da aurora era frouxa, tão frouxa como hálito de menino, já ela estava arrelada à europeia, com o cofrezinho debaixo do braço, disposta a abalar. Observou-lhe a ala que era cedo de mais, não tendo ainda dado o quarto da madorra. Desceu para o pátio, onde a criadagem esperava a postos.

Page 93: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

E mais uns passos à direita, outros à esquerda, dois bocejos aqui, duas palavras além, e ao abrir a porta, ante o céu estanhado pelo alvorecer, pareceu-lhe que via sair uma açucena do seu invólucro de sépalas. Primavera em cheio, a aurora clareava com lânguida e fagueira demora. Não cantavam pássaros, que não havia árvores em Argel para poisarem; não rescendiam perfumes, que tão-pouco medravam flores no covil dos piratas. Mas o ar vinha tocado duma doçura nova, mais ébrio de luz, mais mordido do fogo solar, em suspensão a musicalidade que têm um bosque com rouxinóis e um balcão com namorados.

Puseram-se a descer a rua lôbrega, de manso, como se não quisessem acordar os mendigos e gente sem beira que dormia nas soleiras das portas. Em certas casas enxergava-se luz e percebiam-se vozes de agonia e de mágoa: era a peste que andava ceifando. Cheirava insuportavelmente a cadáver. O largo duma mesquita lembrava pelos montículos negros de gente - alarves dos arredores e vendilhões - que ali dormia ao sereno, enrodilhada urna na outra, campo acabado de vessar. Do mar lufava o odor ácido da maresia, trazido pelo vento norte, sinal de bom tempo.

Iam a dois de frente, que a rua não tinha amplidão para mais, descendo os planos com que a sua inclinação exagerada se vai disfarçando para o molhe. Não se avistava vivalma. Nas esquinas, sim, pareciam fosforejar vultos fátuos e devia ser o reflexo das nuvens que, passando no céu baixo, tocadas por um ventinho vivaz, escureciam ou branqueavam a terra.

De repente, ao desembocarem na Mesquita Grande, com as paredes de séculos, toscas e negras, impenetráveis à luz, imagens da própria mourisma, o muezim soltou, lento, lentíssimo, o seu pio agoireiro, encomendando a Alá a família muçulmana. E logo, como palavra de passe, a invocatória repetiu-se nos cem minaretes que sobrepujavam o mar alteroso de açoteias e eirados. Cerca dali, na mesquita de Sidi-Abd-el-Rahman-e-Taalebi a voz era plena, baritonante, de marabuto bem comido e bebido, pois se tratava da paróquia mais rica de Argel. Nas outras, o timbre denotava goelas perras, esganiçadas, pulmões roídos pela héctica e a bronquite de pobres fabriqueiros e sacristães lazarentos, que o culto chegara ao último abandono, a irreligiosidade lavrando fundo na terra em que o roubo à mão armada era virtude e davam cartas os renegados, escumalha do género humano.

Page 94: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Atravessaram o largo a passo mais vagaroso. Ninguém lhes saía ao encontro e começou a angústia de Leia Bianca. Porque não estavam ali os dois cativos? Olhou para trás, espreitou para as travessas, pôs-se à escuta. Viriam ainda? E todas as sombras que pareciam mexer no desvão das escadas: todos os vultos de bufarinheiros que, de cabaz no braço, caminhavam trôpegos para o mercado, julgou serem eles. Não, não eram aquelas sandálias que vinham varrendo o empedrado; nem estoutros albornozes, que eram judeus farrapeiros; nem a voz rouca daqueles berberes; não era nenhum; nem este; nem aquele; nem tão-pouco as silhuetas oscilantes que desciam a rua como aves pernaltas desasadas. A manhã entretanto foi desabrochando; de pérola tornou-se rubi; de rubi, topázio. Ela no cais tiritava. Viriam, não viriam?

Dois albornozes, afinal, vieram atirar-se para a comitiva de Leia Biarica com movimento precipitado. As criadas desataram a gritar, mas a ama bateu-lhes o pé:

- Calem-se! - Depressa! - disse a meia voz Frei Salvador da Torre. - Vem sobre nós

o misuar. - Que houve? - Houve que o guardião-baxi se lembrou à última hora de se atravessar

no caminho e foi preciso calar-lhe a caixa. - Mataram-no? Adiante; mais moiro, menos moiro, não se acaba Argel. - Não o matei, mas levou um apertão que lhe há-de ficar de memória.

O pior é que, se gastamos mais de dois credos a embarcar, temos aí os quadrilheiros e prendem-nos.

O bergantim estava encostado ao molhe, a tripulação a postos, era só meterem-se dentro. Mas embarca, não embarca, mais bagagem, mais palamenta, decorreram minutos. Acomodou-se Lela Bianca na pequena câmara da popa e com uma careta, meia a rir, meia séria, disse para os cativos:

- Parece que mereço um prémio... Nenhum dos dois respondeu e ela tornou para o frade:

- Voltai a cara... E sem tir-te nem guar-te chegou a face aos lábios de D. Sebastião. Ele

hesitou um nada, um nada tão breve que mais foi fracção do pensamento que fracção do tempo, e beijou-a.

Page 95: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

O arrais deu voz de larga! Percebeu-se o barco despegar do molhe, pôr-se de proa ao norte. Logo a seguir soou novo comando: aprontem remos! e o barco balouçou-se nas ondas.

- Rema! - e romperam, ferindo a água com certeira cadência. Fazia dia claro. Caíques de pescadores largavam do fundeadoiro, latina ao vento, com moleza. As gaivotas já andavam a sarabandear muito baixas e crocitantes, com volteios curtos, saltos à maresia, balance na crista duma onda. A cidade recuava e empinando-se no mesmo passo, crescendo para a colina, era como vela da gávea quando se iça.

Subitamente ouviu-se um tiro de peça, tão perto que se lhes afigurou detonar por cima deles. Lela Bianca e os cativos olharam-se em silêncio. O frade ergueu as mãos ao céu, e ela desatou a rir, a rir um riso ao mesmo tempo nervoso e galhofeiro. O arrais velo à câmara:

- O tiro de peça é sinal de porto fechado. Temos de voltar... Olharam para a cidade; o casario era bonito e branco como um campo

de lírios, mas no baluarte, por cima da Porta da Marinha, enxergaram-se artilheiros de morrão aceso, apostados a fazer cumprir a ordem da capitania. No cais flutuavam albornozes ao vento ponteiro do largo e entre eles, apoiados às maças, cintos de anta à roda da túnica, viam-se os chauzes. Pressentia-se que o bergantim era o alvo dos seus olhares.

- Cia! Cia! - bradou o arrais e, toda a voga incidindo a um bordo e parando ao outro, a embarcação rodou sobre a popa e descreveu meia volta.

Foram varar ao sítio donde tinham partido. E logo o flasar, saltando dentro do bergantim com os seus homens, se foi direito aos cativos, que filou pelo gasnete, e dispôs-se a prender o arrais e comitre. Mas estes alegaram que eram de todo estranhos à qualidade e número das pessoas embarcadas; se havia responsabilidades a apurar, dirigissem-se à sobrinha de Morato Arrais que ali estava. O misuar deitou os olhos a Lela Bianca e vendo-a pálida, mas com a sua petulância inata, sabendo quem era, perguntou-lhe em mourisco, com acatamento, porque é que tinha dado guarida àqueles escravos.

- Não são cativos de Morato Arrais, meu tio, e senhor deste barco, mouro nojento? Não me pertence levar quem eu queira de tripulação? - respondeu ela, replicando ao oficial da ronda com aprumo e certo tom de ameaça.

Page 96: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

O misuar quedou perplexo um instante; depois, reparando na voz irada da moça e no ar fino, submisso dum dos cativos, compreendeu. E à invectiva respondeu com um olhar, olhar intraduzível, um só, ao ventre de Lela Bianca, no seu entender causa de todas aquelas estranhas e desvairadas gesta. Ali estava a culpa do mundo existir e do mundo ser mau. Era a história de sempre, em Argel e mais santas terrinhas fiéis a Maforna. Que tinha, afinal, com isso? Ah, havia um guardião-baxi meio esganado, uma porta em estilhas, fechaduras num feixe.

O caide que julgasse... Levaram-nos para o aljube e a nova, correndo aos quatro pontos,

chegou aos ouvidos do baxá. Podia lá ser, tripas de Iscariotes Pois podia que, indo tirar-se de dúvidas pelos próprios olhos, encontrou a veneziana a rir com a desfaçatez toda, sem medir o precipício em que havia tombado, e os cativos com cara de quem encomenda a alma ao Criador. E largou a esfregar as mãos. A rapariga seria a ovelha da fábula. .. culpada de turvar a água que o lobo bebia. Com Morato Arrais no mar, ninguém a salvava do monturo. Mal empregada carne de garça! Vira-a de pequenina às amoras dos silvados, pelos caminhos de Vicência, quando ele e Morato Arrais eram camaradas e descansavam da cabotagem no Adriático. Vira-a ao sair do convento de S. Zacarias, fechadinha de carnes, loura, loura, como botão de rosa-chá. Encontrara-a depois em Argel, tentada pelo demónio da aventura, mulher feita, tão voluptuosa que certo tempo os seus sentidos andaram entroviscados e ela ocupara-o noite e dia, acordado e sonhando. Acabou-se; passara a idade canicular, extinto o próprio rescaldo daquele fogo secreto. No entanto, sentia prazer maligno em aniquilar a planta perfumada que um dia o entontecera, para que não fosse doutro, do grande cachorro doutro.

Mandou chamar o alcaide mouro que havia de julgar a acção, pois houvera agravo contra mouro na pessoa de Yussef-Abu, guardião-baxi. Era aquele um mudéjar velho e rico, muito lido no Alcorão, que, tendo fama de virtuoso e íntegro, não passava de medroso e amigo da sua comodidade. Ouviu a exposição que lhe fez o baxá e, não compreendendo bem como a @@renegada” cometera crime de traição contra a República pelo facto de receber a bordo de bergantim seu ou do tio, que era o mesmo, escravos que seus eram, para não dizer do mesmo tio, embora esses escravos se tivessem

Page 97: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

tornado réus de rebelião pelo desacato que perpetraram no Banho, estando para mais autorizada a viajar, com os papéis de bordo em regra, pediu que lhe fosse dado tempo para estudar o processo. O baxá cresceu para ele furioso, a mão o procurar-lhe as farripas brancas da barba:

- Perro, tinhoso, filho de sapa, vais julgar e já! Vais julgar e condenas a larribisgóia ao monturo ou ao gancho e os dois cativos a serem esfolados vivos e as peles a serem penduradas às portas cheias de palha. Ouviste bem, perro tinhoso, filho de sapa? Ou quererás tu ser empalado?

O velho mourisco desfez-se em desculpas por não ter compreendido a vontade daquele excelente e magnanimo baxá, que Alá guardasse por muitos anos e bons. Seriam satisfeitos os seus desejos.

Levados os cativos imediatamente a julgamento, Lela Bianca não percebeu nada do que ocorria e o seu ar era de zomba e de desenfado. Mas quando viu a testa de Frei Salvador da Torre franzir-se, calculou que o juiz cometera vilania de tomo, tanto mais que afectava um ar sublime de compunção e doloroso dever cumprido.

- O quê? - exclamou ela sem mostrar sobressalto, mas antes nojo, depois que o frade a pôs ao corrente da extremidade em que se achavam. - Condenados à morte por esse velho fedorento? Esta carcaça de chacal morto com peçonha de rato?! ... Deixa-me rir!

E desatou a rir, a rir, com estremecimentos nervosos do corpo todo, a face amparada ao braço, um riso que não tinha fim. Quando acabou de rir, deu de cara com Gedeão Jekarim, plantado muito sério diante dela.

- A menina não sabe o perigo que corre - disse-lhe ele. - Este velho julgou pelo coração de Hassan, que não pensa noutra coisa senão em perdê-la para se vingar de seu tio. Recorram para o calde turco.

Apelaram para a justiça turca e Gedeão Jekarim foi-se pela calada da noite ter com o guardião-baxi e pregou-lhe este sermão, embora o visse mal refeito do costelado e queixoso:

- Yussef-Abu, leão do deserto, fiel ministro das cadeias, tu tens uma alma. Tens uma alma branca como o crescente em Março e a algibeira varrida como o chão da mesquita de Sidi-Abd-el-Rahman-e-Taalebi, antes do grande Bayram. Para que a tua alma fique mais ranca ainda, clara como o sol ao meio-dia, falta que te escorreguem no bolso cinquenta patacas, das que luzem, das

Page 98: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

que cantam e bailam, quando se despegam dos dedos. E para que elas te escorreguem na algibeira, basta que a tua boca diga uma palavra, duas palavras que não custam mais a proferir que beber uma sede de água.

Gedeão Jekarim, encantador de serpentes, pincha-no-crivo sem par, dize lá as palavras que eu hei-de proferir, que se não forem contra a grandeza de Ala, a veneração que se deve aos velhos, a ternura a que tem direito uma donzela, por Statira, minha mulher, juro que serão proferidas.

- São estas, Yussef-Abu, leão das cadelas: “Em nome de Alá declaro que os dois cativos portugueses se cortaram diante de mim com o seu amo e senhor, o general das galés, Morato Arrais. Mas passou-se-me do entendimento e não lhes deixei o uso da liberdade a que tinham direito. E vai, sua alma devia ter-se enchido de fel e decisão, porque, mal me viram abrir a porta do Banho, precipitaram-se para sair. Lutei, lutámos, e Alá quis que levassem a melhor, visto que eu os tinha presos injustamente.” Aqui está o que tens a dizer diante do caide turco, que é homem íntegro e consciencioso, ó valente Yussef-Abu, leão das cadelas!

- E se pela mentira escarrada que vou dizer, ó insigne trampolineiro de Israel, o baxá me mandar aplicar cem palos, quem mos tira do rico corpinho?

- Se por essas palavras caridosas receberes cem palos, Yussef-Abu, e mostrares que tens uma só cara, escorregam-te mais cem patacas no bolso. Valeu?

No dia seguinte foi chamado o calde turco a pronunciar-se acerca do crime. Ouvidas as testemunhas e a declaração do guardião-baxi, que causou espanto, o juiz sentenciou que o desacato público que houvera, reduzido às suas verdadeiras proporções, não era de natureza a privar Morato Arrais da jurisdição que tinha sobre os réus. Que o julgamento fosse, por conseguinte, suspenso até o general das galés estar presente.

Ficou o baxá muito contrariado com o veredicto, e, ao passo que mandava bastonar o guardião-baxi, como ele muito bem previra, recorria para o aga, em apelação pública e rasa, segundo estava nos seus atributos. E pela porta escusa, mercê de promessas e presentes, procurou assegurar-se de tal foro.

Na sala da Alcáçova, reservada às audiências, diante da bandeira de Argel despregada na parede do fundo, a junta Suprema reuniu em última

Page 99: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

instância. Nas esteiras recobertas de ricos tapetes, lado a lado, estavam o aga e o baxá; de pé, em duas filas que vinham tocar o estrado presidencial, rostos baixos, a mão direita na munheca da esquerda para que se tolhessem de fazer o mais pequeno gesto ao proferirem seu parecer ou votar, caso a isso fossem convidados, formavam os membros do jurado, todos eles turcos, e os chauzes. Em face, a três côvados de distância, no meio dos esbirros e meirinhos, os réus tinham o ar de quem ali não era chamado. Lela Bianca alargara os olhos, que já eram grandes, com fumos de antimónio, colorira a boca e a face com carmim, doirara os cabelos, e mais que mulher lembrava uma esplêndida deusa branca. Nos lábios esvoaçava-lhe o mais encantador e soberano sorriso e na mão tinha um buliçoso leque de penas.

Tudo aquilo não passava de arremedo de judicatura, sabia-o de sobra Frei Salvador da Torre. A bem dizer, só havia um juízo, o do aga. Este representava o voto plural da comunidade. O que ele riscava não tinha mais apelo nem agravo e cumpria-se à risca sem perda dum minuto.

Depuseram as partes. O guardião-baxi . tornou com a sua confissão, a troco de mais patacas. Advogou o baxá a necessidade de prestigiar a autoridade e de se defender a República pelo exercício da recta e severa justiça.

O aga, feito silêncio, recolheu-se para proferir a sentença irremediável. Começava repetindo os argumentos condenatórios de Hassan o Vaidoso, reforçando-os porventura, numa evidente estruturação de crime, quando para as bandas do cabo Matifu se ouviu um forte tiro de bombarda, sinal de novo baxá à vista. Hassan fez-se de mil cores. O aga quedou um momento interdito e, erguendo-se, pronunciou com solene salamaleque:

- Sua Majestade o sultão Amurate III manda-nos outro braço. Antes que se alce o meu, está o dele. Chauzes, levem os presos. Que Alá seja com o novo baxá!

Page 100: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

IX - Que terra é esta? - perguntou Frei Salvador, erguendo a fronte, aos

fantasmas que se debruçavam para ele. Não entendiam a pergunta e foi-a repetindo nos idiomas que conhecia.

Finalmente, com timbre igual e intimativo de sineta, uma voz pusera-se a badalar:

- Hagion-Oros! Hagion-Oros!. Recolhendo-se um minuto, desceu o frade no poço dos seus

conhecimentos. Hagion-Oros não era Aios, o monte sagrado, coberto de colmeias de montes de S. Basílio? Tornou a erguer a cabeça e já a praia, à sua volta, se povoava de vultos negros, todos mais negros do que a noite, com as suas cogulas de mangas em tulipa e barretes altos, telescópicos. E das bandas da terra acudiam mais e mais, silenciosos e despachados, os cabelos e as barbas de prata dando-lhes à luz do quarto minguante um ar ao mesmo tempo burlesco e venerável. E iam, sombras enoveladas, orla do mar fora pesquisando.

Sim, ali, onde a galé, batida pela borrasca, acabara de se fazer em estilhaços com perda quase total de vidas, era decerto o promontório da Calcídica. Os livores do crepúsculo tinham-se apagado de todo, e terra e mar soçobravam na penumbra. Apenas a baça claridade lunar acendia nas cristas das ondas, ao arremeter para a borda, fosforescências de poalha mais ténues que as zodiacais.

Dois monges, cada um de sua banda, amparavam D. Sebastião. Iam a fazer o mesmo a Frei Salvador, mas recusou. Erguendo-se por esforço próprio, esticou os tendões a experimentá-los; os tendões aguentaram bem a arquitectura pesada do corpo. Esboçou, em seguida, dois passos; e, vacilantes de começo, os passos encontraram o ritmo locomotor. Sentia-se contuso como se tivesse sido apaleado, porém a máquina obedecia à vontade do maquinista.

Não longe, D. Sebastião esperava por ele, encostado a um rochedo. E ambos, no enxame dos vultos negros, puseram-se a subir uma escada íngreme, levemente inflexa, talhada na rocha viva, que nunca mais tinha fim. Diante deles acabaram por avultar na opacidade do céu perfis torvos de torreões e revelins com suas cortinas e suas amelas à volta, tal um burgo da

Page 101: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Idade Média. E na muralha maciça, de grossos silhares, abriu-se uma porta baixa, como de poterna, para eles entrarem. Seguiram um corredor de abóbada e de laje, cortado por sucessivas portas de ferro, e foram dar a um claustro com cedros altíssimos no meio, repuxos melopaicos e pequenas construções cobertas de coruchéus bizantinos lembrando uma colónia de cogumelos. E, após claustro corredor, após corredor claustro, quer em linha recta, quer em torcicolo, a primeira impressão, ante dédalo tão confuso como fantástico, é de que se achavam em outro mundo.

Ah, sim, estariam na cidade celeste do monte Aros polin ouranion - indiferente ao gume do tempo e à paixão dos homens. Só ali fazia sentido aquele velho, alto, magro, e diáfano, que lhes saía ao caminho, precedido de dois monges com velas acesas a alumiar. Desciam-lhe pelos ombros, ossudos e erectos como se neles estivessem a crescer asas, fartos cabelos de neve. Cobria-lhe o peito, semelhante a corselete de aço, uma barba fluvial, também alvíssima. E da sua pessoa exalava-se tal sobrenaturalidade que Frei Salvador um instante se supôs na presença do Padre Eterno, ao desfastio a peregrinar pela Terra.

Era o higómeno, devia ser o hogómeno da comunidade, o ancião solene que em voz branca e baixa, todavia cheia de império, interrogava os monges. E, depois de os interrogar, voltando-se para Frei Salvador, dirigiu-lhe a palavra em grego. E ele lhe respondeu em grego vulgar, aprendido com a malta das galés, matizado aqui e além, para manifesta surpresa sua, do oiro puro de Homero e Xenofonte. Contou então Frei Salvador quem eram, ele religioso franciscano, seu companheiro mercador de oficio e homem limpo, ambos de nação portuguesa, apresados pelos corsários argelinos, em cujas galé s remavam de cadela no tornozelo, ia fazer dois anos. Para que avaliasse dos seus grandes trabalhos, referiu que naquele transcurso de tempo haviam participado na tomada de trinta navios de toda a espécie, desde naus de carga a polacras; assaltando e rendido mais de vinte lugares, fortalezas e vigias; cativado cerca de duas mil almas de quantas raças há no planeta; ao todo feito mão baixa em fazenda que valeria os seus trezentos mil cruzados a olhos fechados. Contou ainda como haviam planeado evadir-se de conivência com a sobrinha do general das galés, senhorita cristã que albergava por baixo do seu exterior casquilho e descuidoso uma alma fixa e clara como o cristal.

Page 102: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

O monge era todo ouvidos; e à medida que os episódios se iam desenrolando, mais e mais as mãos se enclavinhavam no peito, com semelhante mímica querendo traduzir o seu pasmo crescente.

- Mas a Divina Providência não consentiu que fôssemos esfolados vivos e a boa criaturinha lançada ao monturo - prosseguiu Frei Salvador. - Chegou o novo baxá e deu este despacho: “Espere-se Morato Arrais em nome da inauferível jurisdição que exerce sobre a pessoa dos réus e em nome ainda dos altos serviços prestados à República.” Presente o corsário, para mais com uma presa fabulosa adquirida sem gastar um pelouro, de dois sopros arrumou o caso: a sobrinha para Itália, ao que constou, nós para o Grão-Turco, o mesmo era que para as galés à perpetuidade. Hassan perdera a vaza e o golpe de misericórdia deu-lho o novo baxá com pôr livre o comércio dos cereais. Como Deus não dorme, os piolhos de Argel, que são taludos como carraças, hão-de comer o miserável ao canto duma porta. Era o génio da celeradez!

- Coitados de vós, meus irmãos! Coitados! - murmurava o velho, cheio de dó.

- Ouvi o resto, meritíssimo abade, da nossa miseranda odisseia de filhos de Adão pecador. íamos no mar do Arquipélago, de rumo para Constantinopla, começou o vento a soprar tão furiosamente e as vagas a altear-se a ponto que todos deram por chegado o seu último dia. A galé desconjuntava-se por muitas partes e os comitres não tiveram remédio senão desamarrar-nos da cadeia e lançar fora os baixéis. Pouco valeu. O mar engoliu a gente quase toda. Ouvimos grande grita. Depois pouco a pouco fez-se silêncio, até que à flor das águas deixou de beilir rumor de criatura humana. A mim, indigno filho do patriarca de Assis, e ao moço que ali está, meu companheiro de desventura desde que embarquei em Portugal, quis poupar a vida, porventura tendo em conta a dor que nos afligia de morrermos sem confissão. Agarrados a uma tábua, andámos mais de duas horas sacudidos pelas ondas. Vaga mais forte, mandada pela misericórdia de Nosso Senhor, cuspiu-nos para esta praia. Eu aqui estou, sem outro agravo além do cansaço a que são atreitos os meus já provectos anos. Ah, mas aquele pobre homem foi de golpe contra os cachopos e muito deve ter-se molestado não obstante a sua constituição que é robusta. Não me admira que se não queixe.

Page 103: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

O ânimo estóico com que tem suportado os baldões só tem igual a resignação dos santos.

O superior acabou de ouvir de rosto compungido a narrativa de Frei Salvador. E, como a verdade verdadeira transluzia nas suas palavras, deu instruções para que, além do socorro devido a pobres náufragos, fossem tratados como irmãos, dos mais dilectos, da família cristã.

Conduziram-nos para uma cela, pedra por baixo, pedra por cima, pedra por todos os lados, como poderia ser alvéolo cavado por bolha de ar no cerne dum penedo. Mas pelo balcão vinha-lhe luz do Nascente, luz, ao que estavam de alto, que as nuvens iam peneirando ao mesmo tempo que deixavam por ameias e guaritas uma fímbria preguiçosa. E, em despeito da culminância em que se achavam, ouvia-se o mar bramir em baixo, em seu fundão, como fera numa jaula.

Os caloiros, que assim se chamam os religiosos destas comunidades, prepararam-lhes o xenodon para dormir e trouxeram-lhes roupas para se mudar. Um deles, prático em medicinas, lavou a ferida que D. Sebastião recebera ao dar à costa e aplicou-lhe um unguento de virtude universal. Havia de lhe doer, que gemia e se chamava baixinho a Nossa Senhora. E que tinha febre viu-se na sofreguidão com que engoliu a tisana que lhe apresentaram.

Os monges retiraram-se, dando as santas noites, chamados a matinas pelas matracas. Frei Salvador correu a palpar o cós das calças em que cosera os brilhantes que Lela Bianca lhe dera. Lá estavam, e sentiu grande refrigério, pois significava permitir-lhes Deus que em sua altura regressassem a Sião do cativeiro de Babilónia. E, de joelhos no catre, deu graças.

D. Sebastião caiu logo no sono, prostrado pela fadiga e o abalo que sofrera. E, um instante decorrido, pareceu a Frei Salvador, ainda enlevado na oração, ouvir-lhe a voz. Prestou a orelha... Emudecera. Mas breve recomeçava:

- Portugal e Santiago! ... Portugal! Era ele que proferia em sonho as palavras que mais gratas lhe tinham sido: senha de guerra, invocação. E o arrábido foi ajoelhar-se-lhe à beira da cama, nem ele sabia se movido pela curiosidade, se interessado em perscrutar para lá da parede craniana a marcha errática e caprichosa do pensamento. Como sempre, divagava com a lucidez hipnótica que lhe era peculiar, acentuada pelo estado febril:

Page 104: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

“Oh meu Deus, que trágico destino fazer chorar! Choraram por mim antes de eu nascer; choraram depois; nunca mais houve olhos enxutos em Portugal! ... Não chorem mais que me retalham o coração, não chorem mais! ... Porque choram...? Por eu ser o flagelo de Deus... Ah, e porque é que eu sou o flagelo de Deus?... Quero-o saber! Quero-o saber! Lá porque os navegantes e os soldados da índia e da África, desde o vizo-rei ao grumete, pecaram nas Cinco Chagas e atolaram as mãos na rapina e no sangue, não e razão. Não, senhor, não é razão! Disse ou não disse o Deus dos Exércitos: Cúfao, cúfal no inimigo à foice larga, mulheres, velhos e meninos, e não deixeis pedra sobre pedra!?... Ou é porque a nação, como diz Frei Salvador, se converteu numa casa de malta, uma reles casa de malta, atulhada de ladrões, de devassos, de soberbos e arrogantes...? Ah, mas se é essa a causa por que o Senhor me arvorou em flagelo do meu povo, destes lábios não ouvirá ele: seja feita a vossa vontade! Ah, não! Não!... Voga e proa.” Lá vai, comitre, lá vai! Eu mais alento não posso dar. Se me bates, as mãos te seguem, vilão! Bates no ungido do Senhor... Lá vai, comitre, lá vai!... Virgem Santa Maria, as lágrimas dos portugueses têm sido tantas, tantas, que se corressem para o Tejo, o Tejo sairia da madre! E não hão-de conjurar a má sorte?!... Hem, não a hão-de conjurar...?1 Frade, explicai-me lá: como é que Deus é a infinita bondade?”

- Senhor, por quem sois... gritou-lhe o arrábido, sacudindo-o pelo braço.

- O quê? É o comitre? É o comitre.. .? - regougou ele, abrindo os olhos crispados de angústia.

- Não é o comitre, sou eu, Frei Salvador da Torre, indigno filho de S. Francisco. Mas que horror de pesadelo! Vossa Alteza até blasfemava...

- Pode lá ser! Eu sou rei ortodoxo... fidelíssimo Fidelíssimo... Um instante e reatava o sono irregular e agitado. Outro instante e os

lábios moviam-se e balbuciavam; primeiro, sons ininteligíveis; depois, palavras, embora inteiras, desconexas. E começavam a agrupar-se e a modelar o pensamento:

“Carrasco... carrasco do meu povo... sinistro papel! Rema enxuto? Não sou eu que chapinho, comitre, não sou eu. Olha bem, o meu remo corta na água como andorinha no céu. Malvado, não trouxesse eu à perna este peso de quarenta libras e não vias mais terra! Oxalá que a azorragada que me deste

Page 105: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

cala em teus filhos até à sétima geração! Perro, raça de cão e lobo ... Sou então bode expiatório!? Ah, deixar-me imolar às sete dores da mãe preta, da mãe asiática, vá ainda! Mas se não sou mais que o látego com que são punidos os netos dos conquistadores, flibusteiros nas horas vagas, maldito seja o dia em que nasci! Maldito seja, e já que esse dia não pode ser riscado do tempo - se é certo que segundo a teologia nem Deus o poderia fazer - que fique pelos séculos a vir data negra, data cadavérica; diga-se: nasceu D. Sebastião, com horror e cuspindo para o lado.”

E tão convulsivamente se debatia debaixo da garra do pesadelo que Frei Salvador, condoído, despertou-o de novo. D. Sebastião sentou-se na cama e, depois de limpar o suor que lhe escorria pela testa, respirou. E permaneceu quieto, o olhar em alvo. Mas não tardou que escorregasse para a enxerga; e voltava a melopeia:

“Safa cabos, não é comigo, eu sou apenas vogavante... Também ando a expiar os pecados de meu pai...? Estúpido fadário! E culpa minha que morresse a ranger os dentes, abrasado em sede e desejo, a pedir água e amor, seco como as palhas?! Sim, a árvore combalida só maus frutos pode dar. Mas de quem é a culpa?... Guardião-baxi, as ratazanas?... Sinto uma a trepar por mim acima e outra a roer-me um dedo do pé. Ui que quantidade! A espreitar dos buracos parecem freiras do Mocambo nos mirantes! Guardião-baxi”

Tinha dado um salto na cama e, depois de atirar a roupa fora, bracejava com impetuosa fúria. O frade agarrou-o:

- Senhor, senhor, reparai que já não estamos em Argel... Estamos no monte Aros e somos hóspedes dos religiosos de S. Basílio. Reze Vossa Alteza comigo para que a Virgem Mãe lhe abrande a aflição... Ave-Maria...

- Pois sim, Frei Salvador, rezemos: Ave-Maria, cheia de graça... Não foi até fim. A cabeça pendeu-lhe... esteve cabeceando, e tombou

para o travesseiro. Assim quedou um bom pedaço, inerte, tão espapaçado que Frei Salvador julgou ter a pobre alma inquieta encontrado finalmente a misericordiosíssima serenidade. O seu anélito era tão brando que mal se ouvia. De súbito, porém, tornou a opressão. E mais uma vez a voz dolente encheu a cela:

“O Senhor não teria meio menos cruel de fazer chorar os portugueses sem ser por minha mão?! Ser eu o algoz Que falta cometi eu, Frei Salvador?!

Page 106: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Ah, sim, faltei ao meu voto, ao meu grande voto, tão secreto que só o soube o padre Luís Gonçalves da Câmara, meu confessor. É verdade, andei cismático com a Joaninha de Castro - olhos lânguidos os dela! - e com a prima Isabel Clara - mais mona e salerosa não havia! - e com certa mulher dum galeote, picante malagueta! Ninguém percebeu o meu drama. Mas está bem, sob este aspecto, faltei ao meu voto, sim, faltei! Mas em que mais prevariquei contra vós, Senhor? Em mais nada, em mais nada”! Como o donato que me meteu medo em pequenino, posso gritar: pureza, tibi soli peccavi! Força de remos?! Estou derreado! Abre-se-me o peito; desprende-se-me a alma. Socorro”!”

A sua voz era como o trovão. O frade abanou-o com pressurosa ternura, exclamando:

- Jesus Senhor, como Vossa Alteza anda reloucado do entendimento! Desperte! Estamos muito longe de Argel... As galés acabou-se!....

- Acabou-se? Melhor; *)a tinha sola nas mãos. Com mar picado, a pirataria não deixa de ter a sua graça... Mas não é para todos. Salto às gáveas! - Será com outrem. Pica a voga! - isso sim. Mas cuidado, comitre, quando jogares o azorrague a alguém... Fugiu-te o golpe e fizeste-me um vergão no ombro. Outra vez, mato-te à dentada, já que não tenho outro meio de te matar. Mas tu açoutas-me...? Excomungado!....

De novo o sacudiu Frei Salvador. Tinha os olhos fora das órbitas e cada cabelo lhe suava como fonte. Ardia em febre. Frei Salvador acalmou-o, acariciou-o e, compondo-lhe a roupa, só lhe faltou cantar por cima dele uma cantiga de embalar. E com alma atribulada velou e rezou por ele. Sobre a alba viu-o sossegado a dormir um sono reparador. Fechou então as janelas e também ele dormiu. Quando acordou, chegaram-lhe aos ouvidos cânticos vagos, quase esmorecentes, filtrados pela distância e o labirinto arquitectural. Deviam ser os monges a rezar as laudes diante da Panaghia, no cathoficon, e as vozes acompanhadas de órgão reboavam plangentes e tão silêncio parecia impregnar-se de respeito a escutar. Depois, quando a toada cessou, esse mesmo silêncio pareceu ficar em levitação, mais substancial que o próprio ar, com mística personalidade. E Frei Salvador na paz que se sucedeu adivinhou, mais do que sentiu, o rumor da colmeia monacal a distribuir-se pelos diferentes alvéolos. Entretanto, o tempo foi discorrendo mais imponderável do que asas de alclão. O frade ouviu o mar, o seu próprio pulso, a consciência.

Page 107: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Com mão de veludo um caloiro abriu a porta da cela, espreitou... e ante a quietude imperturbável desapareceu com a mesma discreta cortesia.

D. Sebastião mexeu-se, afinal, na enxerga, bocejou, e após um suspiro proferiu a medo:

- Frei Salvador!... - Meu senhor... - e, em simultaneidade, o frade correu a abrir as portas

da varanda. O sol irrompeu bulhento e ruidoso como fanfarra e o rei disse, depois

de vencer a ofuscação que lhe causava a luz: - Estamos então no monte Aros...! Fartei-me de sonhar, de andar em

bolandas por perigos e maus lugares... Sim, Vossa Alteza passou grande parte da noite em agitação, mas a

manhãzinha já a dormiu dum sopro. Um pouco de febre... a eterna luta, dentro de nós, de Jacob e do anjo. E olha!, meu senhor, à parte o que de molesto há nos pesadelos, consolei-me de assistir à luta. A consciência de Vossa Alteza trabalhava a descoberto como um relógio. E notei que Vossa Alteza acutila tão bem nos inimigos da alma como nos mouriscos. Grande reformação se está operando nela!

Ele dobrou a cabeça para o chão em jeito de modéstia ou de enfado e, erguendo os olhos repentinamente, proferiu: quando acabarão as provas? E a Divina Providência que no-lo há-de dizer, senhor. Por agora, afasta-nos da nossa querida pátria.

Acabou Frei Salvador de escancarar a porta que deitava para o balcão, suspenso como um ninho centenas de metros acima do mar. A sua imensa planura cintilava na mais irisada e branda das tremulinas. Nem uma vela a quebrar o verde glauco imaculado. Ao longe, como nenúfares à flor duma laguna, lobrigavam-se Lerrinos, a ilha voluptuosa de Afrodite, e Samotrácia, berço de Arsinoé. E eram tão pacificadores os longes, tão encantados os silêncios, tão fraterno aquele vago bulício da colmeia monástica, que lágrimas agradecidas borbulharam nos olhos dos desterrados.

Depois de lhes trazerem almoço, veio o higómeno e praticou com eles detidamente acerca de que desejavam e se propunham fazer. E mandando dar-lhes escudelas, uma panelinha de barro vermelho, que lembrava pelo bojo

Page 108: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

e envasamento as olarias de Micenas, enxadas, um ancinho e serpe, disse deitando-lhes a bênção:

- Sigam pelo carreiro que fica à mão direita, sempre em frente. É único, não têm que errar. Três quartos de hora daqui, a subir, porque a descer o trajecto não leva mais do que dez minutos, topam um hortozinho desamparado com uma casota ao fundo. É lá. Pertencia a um solitário que viveu até avançada idade, sempre alegre como pássaro a bendizer o nome de Deus. A barba cobria-o até à cinta; da cinta para baixo trazia uma pele de cabra. Não tinha outra roupa. Do convento mandávamos-lhe todos os dias a pitançazinha em que só bulia depois do sol-pôr. Foi enterrado no nosso cemitério e na terra da campa nunca acabam os lírios da brancura da neve. A lapa não tem outra luz além da que recebe pela porta, mas está cheia de Espírito. Adeus, irmãos, e que a Panaghia seja convosco

E os dois puseram-se a caminho, escarpa acima, pela senda de cabras, devassando a sombra diáfana e dormida que baixava do arvoredo, apopléctico de seiva com os lumes da Primavera. Os carvalhos, os ciprestes, as faias, os bordos, os castanheiros medravam em república, tão altos e grossos que demonstravam galharda e provecta juventude. E duns para os outros, as clematites, a hera, a vinha virgem e outras trepadeiras iam saltando, arriscando voos fantásticos, estendendo aqui os seus festões, pendurando além, sobre os abismos, as grinaldas mimosas. E o passaredo cantava, rola, cuco, melro, maranteu, e era um arraial pegado.

Subindo e admirando, encontraram, afinal, uma pequena clareira, estribada no flanco da colina, com vestígios de horto, e a choça, ao fundo, de boca a labreguejar. Cardos, malvas e outras plantas maninhas ali tinham crescido em liberal promiscuidade e com mais alterosa soberbia umas que as outras, não obstante o pedregoso da terra. A água, porém, era farta e pura e caía da rocha cantando ao Senhor uma ladainha magnífica. Com um pouco de trabalho seria possível entreter ali dois pés de Couve e meia dúzia de rábanos para um caldo de pobres. Em resvaladoiro, por cima da ondulosa grenha do arvoredo, picado aqui e ali de corutas lanceoladas, por cima, a todo o fundo, dos Pináculos, zimbórios e agulhas do convento, a vista dilatava-se até as ilhas do Arquipélago, sombras a esvair-se nos fumos marinhos do horizonte. E a

Page 109: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

luz era tão fina, o azul tão imareado, que mar e céu pareciam deslumbrados um do Outro.

Entraram para o horto e na gruta foram encontrar o leito de folhas secas em que o monge centenar repousara das agruras da oração. Numa copeirinha, aberta na parede, estava Nossa Senhora, em madeira pintada, excelsa de talhe e longimana, vestida com peplum, ao colo o menino pernaltudo e de saio. Os exilados ajoelharam na terra fria e agradeceram ao Lírio de Jericó e de todas as serras e vales ter-lhes conservado a vida através de tão calamitosos e arriscados lances. Ao cabo, Frei Salvador proferiu:

- Agora ir-nos-emos quando ela for servida... - E o sinal...? - Tenha fé, meu senhor. A própria Virgem, que está diante de nós e nos

ouve, pode desprender um dos braços e ensinar-nos o caminho. Imagine que aponta para Oriente: será a indicar-nos que a nossa penitência tem de prosseguir na Terra Santa, reino do Preste João, porventura mais longe, onde há empresas a cometer pelo acréscimo da cristandade. Ou então que aponta para Ocidente: este sinal quererá significar que bateu a hora de voltarmos a Portugal. É só ela querer!

Tomaram posse do ermitério, e esse dia consumiram-no a limpar a gruta, varrendo o chão muito bem varrido, e, pois que o Senhor ama o asseio e o resguardo, a queimar as argalhas e folhas, que o monge empregava para cama, substituindo-as por outras que foram buscar à mata. Estava uma noite morna de Primavera, com todos os astros a alumiar, os insectos e aves nocturnas, lançados em amoroso despique, canoro ou estridulante. Sentaram-se à boca da caverna, e breve, tomados do langor da Natureza, a cabeça descaiu-lhes sobre o peito, e nem se moveram dali. Acordaram com o nascer do Sol, chamados pelos pássaros, havendo dormido ao sereno uma noite sem par.

Desde o primeiro dia obrigaram-se à observância duma regra, severa e fielmente, como se pertencessem à comunidade. A manhã, depois de dar graças a Deus e elevar-lhe os hinos próprios dessa hora, passavam-na com o amanho do quintal. Todo o frade arrábido é consumado hortelão. Ao cabo dalgumas semanas cresceu ali hortaliça, tão viçosa e pujante que puderam enviar o seu cabaz à Santa Laura e aos conventos de S. Paulo e Dionísios, nas

Page 110: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

vizinhanças. Ao meio-dia faziam a reza em voz alta e tomavam a refeição que lhes vinha do convento. E pela tarde voltavam ao trabalho, que uma boa couve troncha exige tantos cuidados como a alma dum pecador. E à noite, depois de cearem dos legumes que eles próprios cozinhavam, entregavam-se novamente à prece no limiar da choupana, acabando em êxtase perante o universo, aberto por cima deles como uma rosa perfeita, melhor que a página dum hinário de coro consagrado a cantar a Deus e a enaltecer-lhe glórias e grandezas. E destes transportes regressavam à sua condição humana, cheios de lágrimas e deliciados.

Outros monges moravam pelos arredores, solitários uns, em pequenos contubérnios outros, entregues à prece e à contemplação na mais estranha das imobilidades. E certos iam de laura em laura por atalhos cavados na aresta dos precipícios e através de fragosidades que ninguém diria acessíveis. À força de treino, haviam acabado por adquirir jarrete elástico e seguro, capaz de desafiar as andanças do pé de cabra. Traziam bornal a tiracolo para as esmolas, camândulas ao pescoço, e professavam o maior desprezo pelo próprio físico. Assim, em qualquer altura do ano se aventuravam a atravessar a montanha santa, fosse em que sentido fosse, não lhes metendo medo as intempéries, a escalada a pique ou a ribanceira vertiginosa. Chamavam-se giróvagos tais vagabundos do Senhor. Foi um destes que lhes apareceu certa manhã, andavam eles em sua lide, um a regar as alfaces, o outro a capar o meloal. Dando de cara com aqueles dois homens, o giróvago, que tinha cabeça aleonada, juba branca, barba em cascata, venta esparramada, lábios grossos, e olhos lunares numa testa pequenina, ficou muito admirado, sem saber o que dizer, Frei Salvador deu-lhe a salvação e disse:

Entra, irmão. Temos uma tigela de caldo se vens com apetite... - Esta choça - proferiu ele com voz desconfiada era de Joharinides que

faleceu o ano passado com perto de cem anos. O corpo estava mirradinho, mas rescendia melhor que um campo de goivos. Quando era vivo, vinha aqui muitas vezes passar aos dois e aos três dias com ele. Depois que morreu, continuei a vir porque a sombra e o aroma que deixou nestes sítios me chamam ainda. Agora que estais cá vós, só quero que me deixeis beijar a Panaghia da copeirinha e vou-me já embora...

Page 111: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Não, irmão, não te vais embora. Este refúgio continua teu como dantes. Não encontras já a companhia, que te era grata, de Joharinides, mas estão aqui dois homens que te recebem com o maior gosto e boa vontade.

O vagabundo do Senhor, depois de tão cordiais palavras, decidiu-se a atravessar a sebe; e metendo pelo carreirinho fora, que separava um quartel de feijões dum quartel de cebolo, foi até a entrada da gruta onde alijou o alforge. Um instante se mostrou em Sua estatura atarracada, dentro da túnica que fora negra e não tinha agora cor possível, apertada por um cinto de coiro, a desfazer-se em franjas contra o pé descalço, muito espalmado, de unhas grossas, roídas, e de solas cascudas como de solípede. E sem mais vénia nem intróito enfiou para a gruta. Frei Salvador foi atrás, curioso de saber o que o mendicante tinha ali que cheirar. Ele, ora pegava da Virgem e apertava-a contra o peito, entregue aos mais efusivos arroubos de amor; ora a beijava e afagava o menino; ora, afastando-a a toda a distância do braço, se punha a contemplá-la com o mais requebrado enlevo. Durou esta cena minutos, e Frei Salvador encheu-se de ternura pelo pobre vagabundo que tão entranhadamente adorava a Virgem Santíssima. E quando o homenzinho voltou a céu descoberto a limpar os olhos de emoção, Frei Salvador disse-lhe:

- Como te chamas, irmão? - Kalpaicas, monge giróvago, de Xtropótamos, para te amar e servir. - Pois hás-de passar connosco alguns dias, Kaipakas. Verás que te não

dás mal. - Pois se é o vosso coração que fala, está dito. - E o caloiro atirou-se

para cima da pedra, que fazia de banco, com a satisfação de quem resolveu o seu problema.

Frei Salvador e o companheiro prosseguiram na rega, encaminhando a água que ia cantando e serigaitando, muito atarefada pelos regos fora, a matar a sede a feijões que arvoravam ainda ao alto da tige pálida as cotilédones descarnadas. Kalpakas estacara muito interessado a observá-los naquele manejo, as bugalhas dos olhos a luzir, cabeça projectada à frente em atitude de pasmo. Finalmente abriu a boca:

- Não há dúvida, irmãos, que o mundo está bem mudado. Quem havia de dizer que neste mesmo lugar em que viveu quarenta anos. Ira Joharinides, meu colaço, sem fazer qualquer outro movimento que não fosse erguer as

Page 112: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

mãos para o céu, havia de encontrar dois anacoretas, tão empenhados em cultivar a terra que avisto melancias e cebolas como só se encontram em Hiérisso ou para os lados da Pravilca. Sois sarabaítas e praticais a regra de S. Basílio?

- Adoramos Cristo, a Panaghia, o Pantocrator, como tu, Kalpakas, mas pertencemos à Igreja Romana. Latinos ou gregos, tanto monta, somos igualmente adeptos do verdadeiro Deus.

- Lá me queria parecer. O trabalho distrai o homem do Senhor, e é por isso que a nossa santa regra não deixa ao anacoreta em vida mais palmos de terra do que lhe são precisos na morte. Ao mesmo tempo, não há cuidado terrestre de que o não liberte, incluindo o do sustento, tendo por mal empregado o minuto que furte ao gozo de Deus. E assim deve ser, irmãos, porque até hoje não se encontrou nada melhor do que a imobilidade para introduzir a criatura no selo do Criador.

- Sabemos quanto essa doutrina é elevada e celestial, Kalpakas. Nós, no Ocidente, não nos esquecemos que Deus disse: Regarás a terra com o suor da cara e quase todas as constituições monacais regimentam a disciplina do corpo pelo trabalho e o estudo.

O giróvago sorriu, como se aceitasse de boamente aquela doutrina, e, arregaçando a túnica, pegou numa sachola e pôs-se a cavar a terra às três pancadas. A breve trecho deitava água por todos os cabelos da trunfa leonina, mas vários feijoeiros e pés de melancia tinham ido à degola. E propunha-se continuar quando Frei Salvador atalhou:

- Irmãozinho, já mostraste que és capaz de cavar a terra tão bem como nós, embora a agricultura seja arte que exige destreza e paciência, muito diferente de rezar a Deus. Enquanto não acabamos a rega, ao fim da qual nos propomos restaurar as forças com uns legumezinhos que temos ao lume e duas melancias, que são creme e hidromel, canta-nos um daqueles hinos que sabem os monges andantes como tu...

Kalpakas largou a enxada, ajeitou a túnica, e procurando a melhor posição como actor no proscénio, em voz de barítono, cheia e modulada, tão alta e patética que se devia ouvir no Céu, rompeu num cântico ao Senhor. Os dois ficaram assombrados perante as volatas lançadas com brio admirável aos ecos da manhã. A floresta e o mar pareciam extáticos a ouvir. E quando lançou

Page 113: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

a última frase e o silêncio se fechou sobre ela, mostrava um focinho tão sorridente, duma jovialidade tão comunicativa, que tiveram a sensação de ser visitados por um génio bom da Natureza.

Juntos deram graças e juntos comeram, puxando Kalpakas do alforge, muito lá do fundo, dentre tâmaras, figos secos e alfarroba, a grávida borrachinha. E eles para não desgostarem o bom do homem, embora tal acto representasse infracção grave à regra cenobítica mais benigna, sorveram dois tragos dum vinhinho que, pelo palhete e aromático, vagamente lembrava as escarpas de Portugal.

Levantando-se Kalpakas para ir beber água ao manancial, notou Frei Salvador que o lugar que acabara de deixar estava literalmente coalhado de parasitas. Chamando a atenção de D. Sebastião para o dilúvio disse:

- É mais uma provação que Deus nos manda, meu senhor. Felizmente que a noite está mansa e poderemos dormir ao sereno. Este bom vagabundo, meio bárbaro, menestrel da Panaghia, vai dormir lá dentro, mas nós, assim que ele volte costas, procederemos ao auto-de-fé purificador. Como é de futurar, este bicho de ar livre, que atravessa o monte Aros de cabo a rabo, não tem medo de sóis nem de invernos, como todos os belos animais selvagens não pode passar sem uma toca para ferrar o galho. Não há outro remédio, senhor, senão deixar-lhe a nossa cama.

E assim foi. Dormiram ao sereno, alegando que tinham esse hábito do seu país, e Kalpakas aceitou, sem o menor rebuço, dormir no interior. De manhã, quando a toutinegra começou a dar os bons dias, em grego, pareceu à fantasia prazenteira de Frei Salvador: ora o vagabundo ergueu-se e foi abraçar-se à Panaghia com os transportes da véspera. Eles correram ao jorro da água, que atiraram gozosamente para os olhos, a cabeça, o peito, como dealbação salutar contra os maus pensamentos subterrâneos e as potências das sombras.

Ao cabo de três dias, o giróvago foi-se, tendo começado a cantar à saída do horto um dos seus hinos grandiosos e desaparecendo por entre as frondes do arvoredo sempre a cantar. Corno a vida, como o Sol no ciclo diurno, como tudo, a voz pacificadora foi-se extinguindo, até que só ficaram em suspensão as notas altas, das notas altas não sobressaiu mais que um soluço, e do soluço o sopro flébil que se esvai ao vento.

Page 114: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

X Nos curtos intervalos da sua ascese, mormente ao entardecer, quando

os horizontes se cobrem de melancolia, acontecia-lhes, seguindo o discurso do Sol, considerar que para aqueles lados ficava a casa lusitana. Em imaginação entravam nela, outrora tão ditosa, modesta e aconchegada, hoje entregue sabe Deus a que baldões. Mas a adversidade teria seu fim, se era certo o fadário: Portugal sempre combatido, mas nunca vencido. E, palavra puxa palavra, eram levados a debater aqueles temas vários que tinham relação próxima ou distante com a infausta jornada de África. Faziam-no com humildade e o entendimento limpo de paixões. O rei despia o manto de púrpura e a cota de guerreiro que imaginara intrespassável ao ferro. E ficava apenas o confidente de alma sincera e vista lúcida, repeso e desenganado. E naqueles exercícios que traduziam ainda o esforço da consciência para a clarificação, o frade supunha-se a ver um homem, cheio de dor, mas de ânimo resoluto, arrancar da carne numerosos e acerados espinhos.

- Eu pasmo... pasmo! - ouviu-lhe dizer uma vez Frei Salvador, ao mesmo tempo que apertava a cabeça às mãos ambas.

Pasma de quê, meu senhor, se não queda mal perguntar...? - Como foi possível chegar-se a Alcácer Quibir através duma tal cadela

de erros e vesânias, sem que um só elo tenha desatado?” Como foi possível que eu tenha sido tão louco ou os meus vassalos, de modo geral, tão servis?”

- Realmente, senhor, esse passo é bem singular! - Monstruoso, Frei Salvador. Senão reparai:... Que propósitos eram os

meus ao passar a África? A bem dizer eu não o sabia. Conquistar terras seria absurdo, uma vez que meu avô abandonou Ceuta, Arzila e o cabo de Guer, por tal domínio ser mais luxo que utilidade, não falando nos rios de dinheiro que custava a ocupação. O Maluco, de resto, não me oferecia todos os lugares marítimos que eu apetecesse, com terra à volta, para pastagem dos gados e pomar? Restituir o reino ao Xerife...? Sim, eu invoquei esse pretexto, mas no fundo os negócios do homem interessavam-me menos do que a água que vai para o mar. Sabeis o que eu queria? O que eu queria era a aventura. A aventura em si; para me bater; fazer brilhar uma espada que toda a gente celebrava como portentosa em justas e torneios; ganhar glória como

Page 115: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Alexandre, Carlos Magno, Afonso Henriques; vagamente, em último plano, ser sagrado imperador de Marrocos e de Tremecém. Ah, Frei Salvador, que sede eu tinha de exibir-me com o elmo de Carlos V na cabeça, e a boa lâmina de Toledo em punho! julgava-me invulnerável, desconhecendo de todo o que era medo. Era a minha mania, não temer. Mas se eu vos disser apenas, Frei Salvador, que desconhecia de todo o que era medo, não traduzo com propriedade o sentimento que experimentava a respeito daquilo que aos outros se afigurava temeroso. Uma vez, aborrecido com o duque de Alba! perguntei-lhe que cor tinha o medo. Respondeu-me o velho macacão que a cor da prudência. É possível, mas não era não ter medo de nada, não ter medo de ninguém o que caracterizava o estado de espírito como rei e homem de armas. Era, sim, de que não havia nada no mundo que eu não vencesse. Mais que bravura, coragem a toda a prova, confiança pessoal, animava-me o sentimento da omnipotência. E isso! Supunha-me capaz de tudo. Era essa a minha grande doença secreta; uma elefantíase. Quanto a deveres e responsabilidades, consequentemente, não me importava de saber. Só eu existia; só tinha direitos a minha vontade. A nação era eu e eu contava apenas comigo mesmo.

Ao proferir tais palavras, D. Sebastião ficara congestionado, de espuma aos cantos dos lábios, o corpo flectido na postura de quem investe. Terrível instante esse em que, de olhos em alvo, parecia arcabuzar ao longe o louco que ele fora. Conquanto a recriminatória, à força de repetida, se tornasse lugar-comum na sua boca, Frei Salvador atalhava com dizer do mais brando modo:

Meu senhor, três anos passaram por cima da batalha. Os mortos já apodreceram debaixo da terra e os feridos )à se curaram das lançadas. O desespero, a esta altura, nada resolve e peço licença a Vossa Alteza para lhe dizer que a Deus decerto agrada mais o remorso na dor muda e resignação do que no frenesi. Sossegue e venha comigo dar uma borrifadela às alfaces que as tem muito agravadas o sol de Agosto.

Outras vezes, nos umbrais da cela, de olhos absortos no mar dormido, esquecia-se do tempo e do lugar, de si e do arrábido; e lançava-se num solilóquio, magoado eco do pensamento:

Aquela joaninha de Castro bem jogava à péla mas perdeu a ela. joaninha a porfiar, eu a fingir que não percebia, quem tinha de vencer?!

Page 116: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Quando passávamos um pelo outro, ela não olhava para mim, a ver se eu fazia reparo, e eu não olhava para ela, precisamente, para me vingar do seu brio. Tantas lhe fiz que ninguém no mundo lhe foi mais odioso e detestado. joaninha, tudo ia na promessa que só Deus sabe...

“Faceira e descarada como nunca vi outra foi a mulher do galeote. Com que atrevimento, no caminho da Madre de Deus, me meteu o memorial na mão:

“- Solte-me Vossa Alteza o meu homem que anda nas galés... “- Não anda lá por bom...”- Sou moça e corre perigo a minha honra.

“Mostrava os belos dentes e, de cabelinho ruivo a doidejar, nariz arrebitado, sardas no rosto, os selos duas tigelas emborcadas, que pena eu tive de não ser marujo, de não ser um birbante da Ribeira, e puxá-la para a Rua da Mancebial?

“Lela Bianca, meia anjo, meia pirata, onde estareis? Por minha causa, vossas mãos, que de pequeninas e alvas lembravam a flor-de-lis, iam ficando entaladas nos ferros infames. Ah! o meu bafo estiola tudo a que chega, até os sonhos das raparigas”

Frei Salvador não o perturbava nestes devaneios, mais leves na fantasia que a chama do sol no verde sobrecéu do bosque. De si próprio recaía na condição humilde de proscrito e penitente. E certo que bastava uma bagatela para o desviar do voo alado: trilo de pássaro, borboleta levada em farândola, escaravelho tocando zanguizarra; Kalpakas desfraldando no céu silencioso uma das salmódicas de S. João Damasceno.

O giróvago, saboreado do agasalho dos dois solitários, às duas por três estava ali metido. Trazia, como sempre, a sua imarcessível jovialidade de joculator, a sua singeleza de bom-serás e a borrachinha à cinta com um vinho quase sempre tão aromático e roborativo que só por graça da Panaghia. Onde ele o ia desencantar, não falava. Porventura houvesse à mão a chave dalguma adega conventual em que, à semelhança dos palimpsestos e crisóbulos, religiosamente envelhecesse a garrafeira dum dos Césares bizantinos, visitadores da montanha, tão refinados na devoção como na voluptuosidade. Kalpalcas chegava cantando desde longe, e a sua voz pela floresta fora, enquanto a pessoa se não mostrava, tinha o encanto alvissareiro das vésperas dum jubileu. Abraçava-se a eles efusivamente, primeiro ao peito, em seguida

Page 117: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

aos joelhos, e corria à lapa a render vassalagem à Panaghia da copeirinha. E todo ele se desfazia diante da imagem em desafogo e lágrimas de alegria. Ao voltar ao horto via-se ainda a esbater-se-lhe nos olhos a leda paixão. Para que ela não aparecesse imodesta, tinha o cuidado de a disfarçar, cantando de novo. E era um salutar que se espraiava pelos bosques, em que havia uma saudação entusiasta aos anfitriões e reconhecimento ao Senhor que permitia aqueles encontros fraternais.

Tanto Frei Salvador da Torre como D. Sebastião gostavam muito dele, embora o caloiro continuasse no melhor entendimento com os parasitas. A sua cabeça, em que cresciam em matagal gordurentos e emaranhados cabelos ruços, era um prodigioso viveiro de bicharia. Mas não andava menos povoada a pelúcia do peito, semelhante ao musgo branco dos carvalhos, que espirrava pelos bofes da túnica. E tanto as mãos de unhas aduncas e orladas de preto, como a focinheira jucunda não sabiam há muito o que era água. Do pé cascudo e luzidio não se fala. E de todo o seu corpo se exalava um fartum quintessenciado, igual ao dum rebanho de carneiros antes da tosquia ou duma casa da malta à hora do leva-arriba. Mas, à parte o odor nauseabundo, era bem-vindo porque o sorriso dele lembrava tudo o que há de simples e dado na Natureza, um cão a olhar para o dono e a bater o rabo de jubiloso; uma abóbora-menina madura e rósea à espera no campo que a levem para cima dum telhado; Sileno no lagar; S. Pedro pelas portas.

Como no primeiro dia, faziam as rezas em coro. Comiam da mesma panela. E à noite, depois de dar graças a Deus e entoar as jaculatórias de S. Cosme de Jerusalém, espantando as corujas e mochos que desciam da serra para a Santa Laura à caça dos musaranhos, giravam à deita, o caloiro dentro da cela, eles ao sereno, embrulhados na esclavina que providencialmente lhes enviara o higómeno. Tomado de nojo por si, de piedade pelo vagabundo, vencendo o acanhamento, o arrábido dirigiu-se-lhe um dia nestes termos:

- Irmão Kalpakas, noto com desgosto que trazes contigo uma das sete pragas do Egipto...

- Ora essa! Que pragas notas...? - Noto pela raiva e desespero com que te esgadanhas que trazes uma

carga de bichos no pêlo que acabam por te comer vivo...

Page 118: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- De facto, o meu corpo é atreito aos bichos. Mas, deixá-lo, enquanto me coço, não penso em maldades.

- Enquanto te coças, Kalpakas, não cantas ao Senhor e à Panaghia, que é mais importante. Se queres, preparo-te um unguento que, da noite para a manhãzinha, te livra dessa peste...

- Bem hajas, mas sempre ouvi dizer que os bichos sugam do corpo o sangue alterado.

- Tu não tens o sangue alterado, Kalpakas, e não mereces ao Senhor trazer no corpo essa imundície. Não te digo para aparares a cabeleira façanhuda nem a barba, que Noé te invejaria, pois são atributos dum bom caloiro grego. Mas podes chacinar nos bichos, que Deus perdoa.

- Nada, nada, irmão. O que Deus fez está bem feito. E, ouve, frade mendicante sem piolhos é como árvore florida sem abelhas.

Não houve processo de induzir o fradinho ao acto social do asseio e, como se anunciava o Inverno, e a co-habitação com o seu visitador lhes repugnasse, conceberam edificar segunda cela. E puseram mãos à obra, com porfia, para aproveitar o bom tempo. Minaram no morro, ergueram dois paredões, da mata carretaram madeira e folhas, e a fábrica surgiu confortável e babilónica aos olhos espantadiços de Kalpakas a primeira vez que voltou ao ermitério.

- Tantos luxos, tantos regalos ao corpo para os vermes comerem - murmurou com ar despiciente e o seu tanto enfadado.

- Estamos a ver o dia, Kaipakas, em que a gota te não deixe dar passo e tenhas de te acolher a este ermo para viveres connosco em regime sarabaita - disse-lhe Frei Salvador. - Ora a nossa regra não nos autoriza a morar debaixo da mesma telha com religiosos doutra Ordem. Além disso, irmão, a todos nós das partes ou pessoas de qualidade, já se deixa ver não se nos dá com o ânimo deixar em paz a piolhada. Piolhos, mouros e judeus, sus a eles!

O caloiro sorriu, tornou a menear a cabeça leonina com faceto jeito, e rompeu a gargantear um hino, que era como que acto de conformidade e renúncia terrena no seio de Deus, pai de todas as criaturas desde o elefante ao piolho.

Muitos meses eram decorridos depois que o mar os lançara à costa, e ali levavam vida de oração e contemplação, entremeada com o trabalho da

Page 119: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

terra. Na Arrábida, Frei Salvador da Torre aprendera horticultura, desde cultivar o melãozinho apimentado à cepa moscatel, desde o tomate gordo ao rabanete adstringente, nunca lhe ocorrendo que a sua arte lhe seria tão útil como as línguas que estudara na província de Espanha. Pelo que, graças às sementes que Kalpakas fora buscar a Fliérisso, medrava ali toda a casta de leguminosas, tão frescas e balofas que na Santa Laura as tinham por demonstração eloquente da virtude dos dois solitários. Contra a raçãozinha regulamentar, que dali recebiam pontualmente, de ordinário peixe salgado, polvo ou rainha, mandavam os primores da horta, e os monges só tinham a ganhar com a permuta.

Ora naquele remanso, sem cuidados nem solavancos, aconteceu-lhes certa manhã, ao descerrar pálpebras, ouvir grande bulha e celeuma para as bandas do mosteiro. Correram a observar, mas se o tumulto parecia recrudescer, a seus olhos nada se deparou de estranho. E estavam espreitando os horizontes quando viram, encosta acima, a deitar os bofes pela boca, gaforina ao vento, desmanchado e trágico, extenuado e heróico, a Kalpakas. Correram ao seu encontro, mas ele não pôde proferir palavra. Deu baque em terra, arquejante, a destilar água por dez alambiques, nos gorgomilos as vascas da mais insuportável sufocação. Com pena de lhe não poder acudir o viam aos pés, de coração aos saltos, enovelado e tão mísero de aspecto que recordava o leão depois de passar um ribeiro e chafurdar no lodo. Afinal, foi ganhando fôlego daquela corrida de mais de setecentos metros, escarpa acima, e a primeira palavra que pronunciou foi:

- Os piratas! - Os piratas!? - exclamou D. Sebastião. Estendendo o braço, Kalpalcas

apontou os zimbórios vermelhos da Santa Laura, humedecidos do primeiro sol, donde subia montuosa algazarra. E de salto compreenderam. Deixando-se de caminho e atalho, lançaram-se logo D. Sebastião e Frei Salvador encosta abaixo, o mais rapidamente que permitia o declive, firmando-se nos rebentos e troncos de árvore, valendo-se das asperezas do terreno para não ir de escantilhão ao fundo dos abismos. Mas Kalpakas recobrara os espíritos; e, passando-lhes à frente, com agilidade e instinto de caprípede, guiou-os pela rampa mais fácil e praticável. E em menos dum credo estavam diante da Santa Laura, ao longo de cujas ameias se via acesa luta, os caloiros de cima, armados

Page 120: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

de partazanas e de tudo o que pode servir de disparo, os corsários de baixo, encostando escadas às muralhas, trepando por elas com alfanges nos dentes, e com fogo de mosquetes protegendo a escalada. D. Sebastião e Frei Salvador avaliaram da situação ao simples lance de olhos. E como a ala ocidental do mosteiro ficasse, graças ao contraforte, revés do alcantil, por ali passaram sem dificuldade.

O inimigo havia conseguido lançar pé na archontaria, daí ameaçando a igreja, por detrás de cujo iconostasion se abrigava o tesoiro com as suas riquezas sem igual. Mas os monges, contra-atacando com denodo, tinham-nos ali encurralados, exasperando-se uns e outros em levar a sua avante. Noutros pontos, escadaria e eirados sobretudo, a peleja ia renhida, com grande inferneira de gritos, tiros de arcabuz e estridor dos objectos arremessados contra os assaltantes que se estilhaçavam em terra.

Quando o higómeno descobriu os dois solitários, caminhou para eles a abraçá-los e a deitar-lhes a bênção. Não tinha perdido a calma e a sua figura esguia, exangue, quase fantástica com as barbas que lhe desciam até à cinta e os cabelos que se lhe esfiocavam nos ombros como neve, irradiava um tal sentimento de intemporalidade que vida e morte pareciam, à volta dele, perder a significação. E até onde se projectava a sombra transcendente, os monges opunham aos janízaros invencível barreira. Kalpalcas subiu ao torreão virado para o mar e içou o estandarte turco a proclamar que Hagion-Oros fazia parte do património de Amurate III, sultão reinante. Depois tocou as “simandras” com alarmante tangido, de modo a ouvirem-se pelo menos nos mosteiros de S. Paulo, Dionísios, Karakalo, Gregórios, Simão Petra, se não nos quarenta mosteiros do Atos. Dali correu à biblioteca e arvorando uma suave Panaghía, de Panselinos de Tessalónica, com seu caixilho de oiro esculpido, oferta de João Cantacuzeno, fez dela triunfante balsão de guerra.

Os monges idosos apressavam-se a retirar de escrínios e armários as preciosidades mais singulares, cruzes de esmalte e relicários, âmbulas e cálices com resplendente pedraria, livros de iluminuras e painéis da escola de Bizâncio, e em pô-las a recato. Com intuito de os cometer para aquela tarefa dirigiu o abade os dois solitários para o cathoficon. E logo D. Sebastião lançou mão duma bela espada, maciça de copos, gumes paralelos, com sigla em arábigo e campos a oiro. A folha estava tão luzente que nem acabada de

Page 121: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

corrigir e tão dura se afigurava de têmpera que poderia topar outra, arnês ou adarga, sem perder o fio. Frei Salvador da Torre armou-se com o espadão do século XIII, de lâmina repartida em dois trinchantes, com goteira ao meio, guarda em padane, ponta em ogiva, tão boa para acutilar como para expedir uma estocada. E os dois, ante os olhos atónitos do higómeno, atiraram-se para o vestíbulo, onde o inimigo forcejava por consolidar a posição. D. Sebastião despediu o primeiro golpe com tão furioso ímpeto que fendeu de meio a meio a cabeça dum pirata; aproveitando-se da desordem, Frei Salvador entrou a jogar a bastarda às mãos ambas e a chusma inimiga foi de roldão diante dele. Os caloiros secundaram-nos e com uma estocada que deitou as tripas de fora ao subasi, mais dois ou três golpes em cheio, parte dos corsários fugiu, ()Urra parte depôs as armas. Dali acudiram aos eirados, atrás da Panaghia, estandarte e tutela inquebrantável. Com alancão imprevisto, umas escadas foram empurradas dos muros, indo estatelar-se com a carga de inimigos nas profundas da ravina; outras, os piratas desampararam-nas e, largando, em sua espavorida carreira tanto se atropelavam entre si, como iam cegos de todo despenhar-se no abismo. Restavam firmes na acometida aqueles dos assaltantes que se empenhavam no patamar, servindo-se duma trave à Ia !a de aríete, em meter a porta dentro, a qual embora de grossa chapa dava sinais pavorosos de pouco mais resistir. D. Sebastião mandou destrancar as várias portas que gradualmente interceptavam o corredor abobadado; e posto que a manobra fosse temerária, tão grande ascendente adquirira sobre os monges pelo valor das suas investidas que prontamente obedeceram. Num ápice se precipitou D. Sebastião, seguido do frade e dos caloiros mais decididos, contra os Janízaros. E, apesar de armados de escopetas e trabucos e da maneira com que se defenderam, foram desalojados e obrigados a fugir. Só depois de batidos os piratas, D. Sebastião deu fé que um mosquetaço lhe acertara no ombro, do qual sangrava abundantemente. E porque o corpo, desvanecida a exaltação nervosa, recuperasse a verdadeira sensibilidade, ou porque a hemorragia fosse excessiva, ou ainda que a pressurosa solicitude dos monges favorecesse a disposição mórbida, D. Sebastião perdeu os sentidos. Quando voltou a si, achou-se numa cela virada ao mar, com os agioritas de mais categoria silenciosos e compungidos à sua beira. E todos eles, ao verem-lhe

Page 122: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

abrir os olhos, como se obedecessem a comando, ergueram as mãos ao céu e deram graças.

- Os piratas? - perguntou ele. - Embarcaram e vêem-se daqui as galés andar ao pairo - respondeu Frei

Salvador, apontando pela janela. - Imagine o meu senhor que ficaram tão escarmentados que se puseram de largo a mais dum tiro de bombarda. Como deixaram prisioneiros, estão a reflectir no que lhes convém fazer, pela certa.

- Estamos tranquilos - proferiu o higómeno. Desta feita não voltam a atacar.

Não sabiam que destino dar aos feridos e mais prisioneiros, já que aos mortos ocupavam-se os coveiros da Aghia Lavra, ajudados dos caloiros, a abrir-lhes a fossa. Acabar uns e carregar outros de algemas para em momento oportuno serem vendidos, como permitiam as leis da guerra, não se coadunava com a índole daquela casa. E como D. Sebastião quedasse perplexo, parecendo-lhe barbaridade pura o expediente comum, e sem direito à bizarria uma canalha daquelas, assentou-se em prevenir o sultão do desacato cometido pelos argelinos, pois que de tais corsários se tratava.

Propunha-se o barbeiro sanar-lhe a ferida para melhor limpeza, mas não foi preciso dada a sua pouca profundidade. Com a tarde, todavia, velo-lhe febre e com a noite, delírio. Primeiro em voz branda e confusa, depois, em voz bem articulada e tomando voo, entregou-se a solilóquios intermináveis, consoante a balda antiga do seu temperamento no estado de crise ou de exaltação.

- Não é então possível voltar mais cedo para Portugal, Frei Salvador...? Falta acabar a penitência... dizeis vós. Quantos anos ainda...? Terra Santa, Preste João... chego a Lisboa velhinho e caduco e ninguém me reconhece. Mas que fado o meu! ... O Senhor que tem na mão o leme do mundo podia ter compaixão do pobre Portugal e a mim não me ter elegido para seu algoz... Os portugueses cometeram as maiores enormidades no frenesi da fúria e da cobiça; se cometeram... Mas que fera não é o homem por causa do pão que há-de comer e da mulher de que se quer gozar!? Feras, feras que tenham sido, os portugueses não trocaram por outro o nome de Cristo... E, ah, o pranto derramado antes de eu nascer foi tanto que só o dos olhos puros e das almas cândidas devia bastar para trazer ao redor do meu berço os anjos do céu. E à

Page 123: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

roda do meu berço o que houve foi demónios... Dizei-me lá, Frei Salvador, porque é que o Deus poderoso é bom e justo?... Porque é?... Que sina, dizer que antes de eu vir ao que triste sina a minha. Ouvi mundo se mostraram no céu sinais de multas formas. Todos de mau presságio... Mas tanto montou como nada, visto que se perdeu a lição! Um deles foi o ataúde de fogo que se plantou por cima da Sé de Lisboa, quando meu pai se recebeu com minha mãe em Almeirim. Ora ataúde que poderia dizer senão morte?!... Outro foram os cavaleiros mouros, vistos repetidas vezes pelas damas da rainha, muitos, em barda, a assaltar o Paço. Que ficar senão extermínio...? E o mais quera sto signi eloquente de todos, inegavelmente, foi a mulher, que apareceu a minha mãe, coberta de luto, com mangas de pontas e sombrio bloco. Por modos chegou, deu um estalido com os dedos, um assopro com os lábios e evaporou-se... Minha mãe desde então nunca mais perdeu o medo. Digam-me cá se semelhante fantasma podia anunciar outra coisa que não fosse calamidade geral?!... Também contam que, estando minha mãe grávida, no telhado eram tantos os ais e os gemidos que se punham em pé os cabelos à gente. Terrível! Terrível!... Mas sendo assim, porque me não torceram o pescoço ou não me deitaram ao mar!?... Cobardes, faltou-lhes coragem! Tiveram medo das contas que haviam de dar a Deus... Tiveram medo do povo... da justiça... Sabe-se lá de que espantalhos tiveram medo...

Calou-se, mas ao cabo de breves instantes gemeu, tornou a gemer, e pediu água. Frei Salvador matou-lhe a sede e, em menos tempo do que se reza o credo, a voz atrida recomeçou:

- Pois vamos lá de romagem a essas belas alcovas da Morte, jazida de reis. Estou com vontade de conhecer os meus avós, se Porventura os vermes lhes deixaram até hoje cara que se veja... Aí em Alcobaça abram-me a sepultura de Afonso III... Cáspite, que tamanhão de homem! Era bruto com as mulheres, mas tinha pulso. Salve, arredondou Portugal até o mar. Sem Algarve isto era casa com janelas só para um lado. Para se abafar cá dentro. Salve! Salve! ... Além, deitado debaixo de filigranas de pedra, está D. Pedro... Mal empregados luxos do canteiro! A esse Afonso IV também o não quero ver.

Fraca figura fizeram!... Um, doido pelo mulherio, o outro, seu perseguidor, não acrescentaram um palmo ao património. Não, não é a estes

Page 124: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

que eu tiro o chapéu!... Alto, deixem falar o padre; padre Francisco Machado, doutor pela Sorbona, não é? Que tendes a dizer com voz trémula e baba ao canto dos lábios...? Mais nada...? Boca-rota, a vossa sentença não me fica a pesar na consciência e mesmo assim merecíeis que vos mandasse arrancar a língua e deitá-la a um cão!... Que se não deixaram exemplo de conquistadores, posso aprender com eles a conservar o que tenho; e que oxalá me reserve Deus sepultura tão honrada como a deles! Hem, e vós apoiais, Frei Salvador da Torre?... Por outro tanto, vos mandei para o degredo! ... Mas tenha que não tenha razão o doutor da Sorbona, maior que tudo é o desacato que cometeu para com a realeza. Ainda há disto em Portugal? julguei os portugueses submissos como cordeiros, incapazes de arreganhar o dente ao seu rei. Felizmente, do barro orgulhoso daquele D. Jerónimo Osório, bispo de Sives, lia poucos... Mas vamo-nos deste mosteiro onde sempre cheirou a perdizes em molho de vilão e vaca assada. Se o refeitório trescaia a iguarias e petiscos, a igreja parece-me cheia de larvas... Que sombra informe, bocados de noite eterna, é a face dos reis! ... A cavalo! ... Santa Maria da Batalha, minha divina Santa Maria da Batalha, cofre de rendas, nau preciosa sem mastros, quem tendes...? O Príncipe da Boa Memória. Mostrai-mo... lho Está no caixão como andou na vida, direito e caradura de poucos amigos... Parece de bronze! Esperem: quero vê-lo erguido; erguido e com a espada na mão... Olhem como lhe vai bem o chifarote!... Mas, ala, que rebento de inveja... De Coimbra quero que me tragam a durindana de D. Afonso Henriques... É essa que eu hei-de cruzar contra o alfange do Miramolim. Onde ficou ela?... Na nau capitânia...? Pois tragam-ma: quero-a cá. Dêem-ma, e os janízaros de Argel que venham todos. Todos! Tu, também, Hassan tinhoso, e tu, Morato Arrais, tigre real! Todos, todos!... Senão, tragam o estoque que me ofereceu Pio IV. É arma de luxo, mas corta como fiame. Que arma!... Lavrada por Cellini; abrolhada de gemas; mais preciosa que esta espada da Aghia Lavra, embora tenha a marca do Cachorrinho. do melhor que há em cutelaria mudelar. Mais, muito mais preciosa. Esse estoque figurou... Eu lhes digo... Figurou no auto-de-fé que se celebrou em Évora. Teve-o em punho o alferes-mor Luís de Meneses, adiante de mim, a indicar que eu era o defensor da fé. Defensor da fé em Portugal e no mundo. Rija festa das almas...

Page 125: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Tenho-a nas meninas-dos-olhos, tão real e perfeitamente como se fosse ontem... Estava-se nos dias pequenos, naqueles dias de Inverno, com sol entre nuvens, terra molhada, vento a soprar às guinadas do temporal. Dezoito penitentes subiram ao cadafalso e custou-lhes bem morrer” O vento parecia ter-se incumbido do papel de carrasco... Só queria que vissem! Sopra que sopra, rijo e certo, varria a chama e a chama, com ficar rasteira, assava os membros inferiores dos condenados. Mas se atirava a sua lufada, a chama erguia-se e lambia-os todos, dos pés à cabeça, com uma cupidez pasmosa. Sucedia ainda levantar-se e, curvando-se, beijar-lhes apenas a boca. Horrenda crueldade a da natureza, nem de propósito ao serviço de Deus! ... Os urros e lamentos dos pobres diabos eram tremendos! ... O que mais me impressionou, quereis saber, Frei Salvador, foram as convulsões duma rapariga nova, vinte a vinte e cinco anos, alva como a neve, e que ficou nua, nua das três vezes que os familiares do Santo Ofício lhe deitaram um pano de estamenha por cima... O fogo poupava-a. Atiçavam-lhe lenha para as pernas e o fogo devorava a estamenha, deixando-a nua e sem beliscadura, como se fosse uma ala que a despisse. Depois, enquanto estava nua, a chama virava para o lado. Nunca se tinha visto um prodígio daqueles! ... Os inquisidores e altos dignitários da Igreja, em seu pudor, torciam a cara para a banda; em sua alma estavam perturbados a mais não poder. O povo já gritava: É santa, o lume não entra com ela.!.! Que mar temível é o povo!... Se alguma coisa no mundo me causava respeito, abaixo de Deus, era o povo!

O meu povo... às vezes rosnava. Eu dizia ao Câmara: Vede lá o que o mastim quer... Outras vezes chorava... Fartou-se de chorar pelo reizinho que não nascia!... Ah, mas dizia para comigo: O lume não entra com a judia. E agora?... Devia ser o Diabo a brincar com ela, que era bonita. Não podia ser outra coisa, porque, senão quando, um esbirro alto, negro e magro como o pecado, velo e ajeitou-lhe um grande feixe de acendalhas e achas secas rente aos pés. Ajeitou-lhas com uma arte particular, como só têm os pastores e os nómadas. O lume crepitou... e contra a estaca a carne da rapariga começou a rechinar... Assim branca e mimosa lembrava um cisne no espeto! Dava vontade de comer dela... Uma labareda subiu-lhe como esquilo pelas pernas acima, contornou-lhe a cinta e, trepando sempre, vestiu-a duma cor tão linda que nunca assim eu vi em brocados e grãs! Ah, que túnica, Frei Salvador, que

Page 126: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

túnica... e o cheirinho delicioso das banhas a derreter!... Mas a cabra era valente; não soltou um gemido; muito encarnada, apenas, tornou-se duma beleza sobrenatural que confundia. Figurou-se-me que tinha os olhos pousados nos meus, uns olhos esbugalhados, não sei se a jurarem-me mal, se a chorar por mim. Quando o lume começou a enegrecer e a deformar a estátua, vim-me embora... Ainda agora estou para saber porque me vim embora ...

Suspendeu-se para pedir de novo água e, satisfeita a sede, regressou à melopeia. Recordava os passos famosos do seu reinado e alguns lances particulares da sua vida. Frei Salvador, embora estivesse afeito àqueles delírios lúcidos, ouvia atentamente como mestre que recebe a lição do discípulo. E levou a noite à sua beira, foi o higómeno deitar-se, os monges rezaram as horas canónicas, e o silêncio, mal perturbado pela chocalhada do mar contra a praia, estendeu-se pela Sarira Laura e por toda a Santa Montanha como um grande cobertor de feltro. Ao nascer do Sol apareceu Kalpakas a gesticular e com um grito mal estrangulado nos lábios:

- Que há? Que há? - perguntou-lhe Frei Salvador dando um salto. - Os piratas deitaram os baixéis ao mar e navegam para terra de

bandeira branca...

Page 127: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

XI De pé, a meio do grande locutório, com as paredes animadas pelos

frescos de Panselinos, ouviu o abade os emissários. De pé, para que soubessem a consideração em que eram tidos e a brevidade que deviam pôr no recado. Ao lado do abade estava, além dos epítropos ou ecónomos e doutros dignitários do mosteiro, Frei Salvador da Torre, por mercê especial.

Eram três e vinham vestidos à mourisca, com albornozes e turbantes de pessoas de qualidade. Um deles, pequeno, colcante, nas pupilas um azul tão ágil que parecia entornar-se das capelas dos olhos - Gedeão jekarim em carne e osso -, adiantou-se meio passo aos colegas, sorridente e mesureiro. E após o salamaleque da etiqueta dirigiu-se ao higómeno, a quem tudo, mormente a barba, mais longa, mais branca, mais importante que as demais, verdadeira barba de paracleto, inculcava suprema jerarquia.

- Reverendíssimo Prior: E com o coração a sangrar, depois dos desastrados sucessos de ontem, que venho à vossa resença como delegado especial de Djafar-Efendi, baxá de Argel, que Alá conserve por muitos anos. A sangrar e queixoso, indignadamente queixoso. Como pôde esta comunidade, que todos supunham mansão de ovelhas, converter-se imprevistamente em covil de lobos, massacrando gente que velo bater-lhe à porta desprevenida e na melhor das intenções? Em verdade, Reverendíssimo Prior, os nossos homens, ao virem ontem aqui, cerca do nascer do Sol, não tinham outro fim que não fosse advertir da minha chegada e preparar este encontro. Ao seu apelo responderam guardião e porteiros puxando do ferro, matando uns e ferindo outros. Pelo que, irados e ardendo no desejo de vingar os companheiros, persuadidos ainda que este claustro se convertera em praça de guerra, em rebeldia com Sua Majestade o soldão, tocaram arma e se lançaram ao assalto das muralhas. E aqui está como pela maneira mais estranha a missão que eu vinha desempenhar, toda de concórdia e amizade, degenerou, antes de mais nada, em missão dolorosa de protesto. Não deixo de reconhecer, pelo muito amor que voto à lisura e à verdade, que os homens procederam imprudentemente chamando às portas desta casa fora de horas, em número despropositado, sem se fazerem anunciar regularmente, quiçá tendo usado duma brusquidão bem explicável pelo seu carácter de homens afeitos à guerra

Page 128: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

e de todo avessos à cortesia diplomática. Mas quanto mais censurável não é a atitude inamical, para não dizer de aberta hostilidade, com que foram recebidos? Depois, se andaram mal em querer penetrar no mosteiro pela força, só para que lhes ouvissem as razões, não menos é de lamentar que Vossas Paternidades lhes não franqueassem a entrada, que seria o meio seguro de cessar todo o equívoco de parte a parte. Donde se conclui que, na excessiva desconfiança duns e nos costumes por demais simplistas doutros, se deve buscar a causa dum conflito, de que temos a chorar a perda de vidas preciosas, ceifadas à milícia de Sua Majestade o soldão Amurate III, sem falar nos feridos e no desgosto de ver em briga pessoas que, pelo facto de estarem debaixo da mesma bandeira, só respeito, ajuda e estima se deviam reciprocamente. Lamentável, profundamente lamentável, Reverendíssimo Prior!

Gedeão jekarim, troquilha máximo e rábula de grande sagacidade, foi apresentando a sua reclamação de afogadilho, como alguém que atravessa a correr, na ponta dos pés, ponte de que não está seguro, de quando em vez o rabo do olho em Frei Salvador da Torre, que logo identificara debaixo da cogula de frade agiorita. E como o higómeno oferecesse a mesma imperturbável serenidade, não menos augusta que a de Deus Pantocrator, perfilado na pintura de Panselinos com manto de sinopla recamado de estrelas, não sendo jekarim homem para rendições, um ápice, apenas um ápice do instante pareceu desconcertado. E prosseguiu com redobrado brio:

- Toda a noite levei em consulta interior se me competia procurar arrumar este incidente com Vossa Paternidade ou levá-lo à alçada da Sublime Porta. Não sou homem de intrigas e professo a mais imoderada vénia pela obra de elevação espiritual que se exerce nesta santa montanha. São estes os fanais que iluminam o mundo com a luz ideal, rutilante, e todo o preito da gente de boa vontade é pouco para obra tão preclara. Por isso mesmo eu pergunto: quer Vossa Reverendíssima entender-se comigo à boa maneira e liquidar a pendência sem contumélia nem desaire, rendendo-nos à inexorável realidade dos factos sem remédio? Mais não peço, da minha parte, que a restituição dos prisioneiros e reparação, uma reparaçãozinha honesta, à família das vítimas...

Page 129: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Suspendeu-se um instante, dir-se-ia ele próprio Comovido com o seu desinteresse, e, como a pausa se dilatasse, perguntou o higómeno quebrando a rigidez hierática:

- Não tem mais nada a acrescentar o enviado dos corsários? - Perdão, enviado de Diafar-Efendi, baxá de Argel corrigiu Jekarim

com voz de contrariado. - já expus a Vossa Reverendíssima que só por um mal-entendido deplorável não me desempenhei ontem da missão de que vim encarregado. A culpa foi terem neste mosteiro recebido a ferro e fogo os homens que me vinham anunciar...

- Antes da alba, com escadas às costas...? - emitiu o higómeno com incisiva singeleza.

Para mais fácil entendimento - tornou Jekarim, não se dando por achado com o sarcasmo - podíamos dispor os assuntos a ventilar em dois capítulos: um que diria respeito aos sucessos de ontem; outro à minha embaixada.

Em resumo: por um lado, restituição de prisioneiros e estudo duma compensação a Argel pelo estrago de vidas; por outro, e eis o caso pensado que me trouxe, entrega a Morato Arrais de dois escravos seus que vieram dar à costa da Aghia Lavra no naufrágio duma galé que lhe pertencia e estão nesta casa em comunidade.

Nesta casa vos digo já que não estão. O Picon não consente que vivam sob a nossa telha membros de Ordem diferente. Mas que homens são esses que procurais e que religião é a deles?

- São portugueses de nação e nas galés têm o número 7647 e 7648. Dão como sendo de baptismo estes nomes: Desidério Augusto, feitor, e Salvador da Torre, frade de S. Francisco. Mas o primeiro não se chama assim... De religião são católicos.

- Católicos não se regem pela regra de S. Basílio. Não os poderíamos admitir...

- Não estão cá!? - Nesta casa, repito, não estão. - Ver-me-ei forçado a desmentir-vos ....

Page 130: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Podeis fazê-lo, tanto mais que o desmentido, recaindo, não vos deslustra a honorabilidade, que é coisa, pela certa, de que carece um emissário de piratas.

- Um dos escravos ei-lo! É esse homem com a sotaina dos monges atonitas - e Jekarim, afuzilando com o dedo, indicava Frei Salvador da Torre.

- Este bom homem não pertence à nossa comunidade nem mora connosco - respondeu o abade em voz firme e sofrida. - Se aqui o vedes é que acudiu ao alarme, como tantas criaturas num redondo de mais de cinquenta milhas e que enchem agora os pátios do convento.

- Mas está, ao menos, sob o vosso patrocínio, bem como o companheiro, e podeis muito bem entregá-los...

- Não exercemos nenhuma espécie de jurisdição Sobre eles. - Quem a exerce? - Em Karlé está o poder executivo dos mosteiros do Aros, presidido

pelo protos. Esse, sim, poderá responder-vos. Aqui não; vindes errados! O embaixador quedou segundos em luta manifesta com o imprevisto e

redarguiu: - Aros não faz parte integrante do Império Muçulmano...? - Aros é feudatário do Grão-Turco, mas autónomo. Sua Alteza o soldão

Amurate III tem um representante em Karié e Aros um representante em Constantinopla.

- Mas a soberania otomana é incontestável; a autoridade, comum a Argel, a Aros ou a outro qualquer membro do império; legítima, por conseguinte, a interferência de poderes entre eles.

- Que quereis dizer...? - Que a força pública de Argel tem direito de livre alçada em Aros e

vice-versa. - Sim, é uma jurisprudência para uso de piratas, como já destes a saber. - E, pois que vos repugna entregar-nos os dois escravos, não levanteis

embargos a que a polícia de Argel venha a terra prendê-los... O higómeno considerou e respondeu: - O poder está em Karié, como !)a disse. A título particular posso

informar-vos que Aros apenas reconheceria os direitos de Argel através de Constantinopla. Supondo agora que estes homens estavam sob a minha

Page 131: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

jurisdição, tão-pouco eu os entregaria. Hóspedes para os religiosos de Aros, deste Teodósio o Grande, são sagrados. Acresce que esta comunidade, em virtude de princípios que são, mais que a sua base, a sua razão de ser, não reconhece nenhuma espécie de escravatura, muito menos a de cristãos da Europa.

O embaixador ficou perplexo com resposta tão categórica, quase inesperada em pessoa de manifesta eteridade e, reflectindo, acabou por dizer:

- E se eu vos pedir os dois escravos em nome de Sua Majestade o soldão Amurate III?...

- Não nos pertence decidir acerca daquilo que está fora da nossa esfera, já vo-lo declarei.

- Se vos demonstrar que a entrega dos dois escravos é da mais alta conveniência para a Sublime Porta...?

- Seria o mesmo. - Pois bem, em nome de Sua Majestade o soldão Amurate III, intimo-

vos a que nos entregueis ou deixeis vir prender os escravos aqui lançados à costa, um dos quais não é outro senão o seu inimigo jurado, D. Sebastião, rei de Portugal!

O assombro pintou-se em todos os rostos. A cara de Gedeão era patética e solene a mais não poder. Igualmente a sua voz, que retumbara imperativa e soberba como se tivesse ao alcance uma frota de combate com os morrões acesos e forças de desembarque capazes de derrubar as muralhas altas e robustas de Tróia. Por despautério da sorte não dispunha mais que de duas galés, com uma guarnição tão provada que não seria ela que arriscaria pé em terra, em som de guerra. Porém, alguma coisa decerto parecia latejar nos dizeres do flibusteiro, e o higómeno sentiu pairar vaga mas instante ameaça sobre a comunidade. Mas é próprio dos velhos, à beira do outro mundo, temerem menos os obstáculos que a sombra da sua sombra, e respondeu com desenfado, o que em última análise era já recuar do seu desdém magnífico:

- Provai-nos que é verdade o que dizeis... Gedeão Jelcarim não trazia provas e, valendo-se da sua audácia, exclamou voltando-se para o frade arrábido:

- Frei Salvador da Torre, religioso de S. Francisco, sereis capaz de negar que o homem que tendes acompanhado como um cão, como um aio, como o

Page 132: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

mais ferrenho guarda do corpo, não é D. Sebastião de Portugal, falsamente dado por morto na batalha de Alcácer Quibir?

- Gedeão Jekarim, judeu infecto, judeu de rabo pelado, filho de leproso e duma mulher de Gomorra; judeu na insídia e descaro com que tentais colorir de verdade a mentira rotunda e reduzir o acto de puro bandoleirismo a desatino da imprudência; Judeu na contumácia com que perseguis os fiéis de Nosso Senhor Jesus Cristo, sim, este homem é o verdadeiro e legítimo rei de Portugal! É ele e não Filipe II, que lhe usurpou o trono, como acabam de me anunciar neste cenóbio, e que Deus há-de castigar com todos os flagelos da Terra por sua inqualificável torpidade. É ele, tão certo ser ele, como vós víreies assaltar esta santa casa pela traição e à má cara, na esperança de lhe deitardes a garra. Mas D. Sebastião que é, eu vos !juro que não cai em vosso poder, nem há forças humanas que o arranquem vivo daqui para fora. Porque antes disso, judeu imundo, traficante de carne cristã, ratazana dos esgotos argelinos, matá-lo-ia por minhas mãos - e acabou de proferir tais palavras congestionado pela cólera e com borbotões de espuma aos cantos da boca.

Os monges ficaram estáticos com o que ouviam e o higómeno, trémulo como paveia ao vento, apressou-se a despedir o embaixador, lívido esse, duma lividez que lhe turvava os olhos azul-celestes:

- Em Karlé está o governo da grande comunidade atónita. Ide lá com a requesta. Quanto à entrega dos prisioneiros vamos considerar vosso pedido...

O higómeno, mal jekarim retirou, ergueu as mãos ao céu, e apertou-as na cabeça, gemendo:

- E agora, santo Deus, e agora? - Não há nada perdido - murmurou Frei Salvador. - Saímos de Hagion-

Oros e está o caso arrumado. - É bem D. Sebastião o anacoreta que vivia convosco? O nosso salvador

é verdadeiramente um ungido de Deus? - É, Reverendíssimo Padre. - Aqui não está seguro. Corre grande risco. Ele... e nós. Senhor, Senhor,

que provação nos tendes reservada? Quando se recobrou do primeiro pânico, e a sua pessoa hierática - tão

bizantina que parecia arrancada da parede, dentre Santo Eutímio e S. Sabas - se sobrepôs à pessoa efémera de superior de comunidade ortodoxa sob regime

Page 133: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

turco, correu a beijar a mão de D. Sebastião, e após ele todos os monges do mosteiro, como a monarca pela graça de Deus.

- Aí está como eu tinha razão - disse Frei Salvador para el-rei. - A Divina Providência é que havia de nos dar sinal de regresso. Logo que possa andar, meu senhor, vamo-nos embora. Assim o exige Deus, o bem da nação e até a vossa segurança pessoal.

De acordo com D. Sebastião e os epítropos, assentou o abade na resposta a dar ao judeu. Os prisioneiros ser-lhe-iam entregues depois que se redigisse uma acta, que ele assinaria, com o relato fiel do assalto à Santa Laura. Quanto à devolução dos dois pretendidos escravos, tal assunto não era com eles, nem lhes era lícito pronunciar-se em matéria que excedia a sua competência. Jekarim insurgiu-se contra a deliberação tomada, pleiteou, trapaceou, ameaçou e, perante a inabalável atitude do higómeno, decidiu-se subscrever o instrumento que lhe apresentaram.

Estava dobrado o cabo. Restava que D. Sebastião e o frade desaparecessem do monte Aros, pois era convicção geral que o judeu se deitaria a Karté, se não a Constantinopla, requerer a prisão do rei. D. Sebastião, como os paladinos que beberam os bálsamos, sentiu-se pela tarde adiante aliviado das dores e quase sem febre. No dia seguinte pôde )à levantar-se e ver do balcão a partida das galés. Era meia manhã, destas manhas de sol e doçura em que o tempo parece escoar-se a ritmo debilitado e as nuvens andar, como papagaios brancos, presas à terra por um fio. Adivinhavam-se ao longe, mais do que se distinguiam, sombras diluindo-se no azul irisado do mar, as ilhas voluptuosas de Lemnos, Imbros e Samotrácia. As gaivotas lá andavam, como sempre, em sarabanda acima dos cachopos, deixados a descoberto pela maré, e os seus gritos eram o único agravo à paz imensa e imponderável.

Nas galés, às cem braças, não mais, descobriram-se a postos tripulação e equipagem de guerra: nos bancos, os remadores; no castelo, os janízaros. A súbitas soou a voz seca do arrais:

- Apronta remos! Sucedeu-lhe curto bulício e outra vez o comando se fez ouvir:

- Rema!

Page 134: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

As duas galés começaram a mover-se, virando de bordo, Dentro das suas elipses, gestos vigorosos e manobras rápidas descreveram as mais emaranhadas linhas. A capitania meteu proa ao sul e logo na sua esteira largou a segunda galé. Depois, a obra de meia légua de voga arrancada, içaram as velas. Velejando, viram-se diminuir no horizonte; de belas e garbosas garças declinaram para abetardas à caça; de abetardas para pontos movediços, sem expressão. E, breve, céu e mar recaíram em sua vazia e admirável imensidade.

Horas depois dos corsários terem despedido, apresentou-se à portaria um desertor das galés a pedir pelas Cinco Chagas de Cristo que lhe deixassem remeter um escririnho ao cativo de Argel, que meses atrás ali viera naufragar. Era um escravo maiorquino de Morato Arrais, remador de bancada, e vinha meio nu e descalço. Frei Salvador foi-lhe falar, ouviu-o, tenazou-o, virou-o e revirou-o na grelha da sua desconfiança, e acabou por convencer-se ter diante de si um infeliz e sincero homem. E levado à presença de D. Sebastião, ao entregar-lhe o bilhete que trazia entre o coiro e a camisola, amarrotado e com a obreia desfeira, disse:

- Prometi a Lela Bianca fazer chegar este papel ao seu destino ou riscar o nome de homem. Eu, senhor, devo a vida a Lela Bianca. Um dia, dois turcos avançavam de cimitarra feita para me chacinar e, se não é ela abrir-me a porta da sua casa, não comia mais pão. Também, quando me vi livre do perigo, disse-lhe: “Mandai-me meter as mãos no lume, beber veneno e eu faço-o.” Aqui está, porque sabendo que eu vinha nas galés, me mandou chamar e deu o recado: “Entregas esta carta àquele cristão de tal e tal e pões-te ao seu dispor para o que ele quiser. Mas para tudo, percebes?” Pronto! Não pude vir mais cedo e mortal foi a minha raiva. Agora aqui estou para vos obedecer.

D. Sebastião fez-lhe sinal para esperar e leu: “Senhor: o meu coração, ao escrever-vos estas breves linhas, exulta e magnifica a Deus, por um lado, e está coberto de treva por outro. Depois que vos embarcaram em Constantinopla, a primeira notícia chegada acerca da vossa pessoa foi que a galé tinha naufragado no mar do Arquipélago com prejuízo total de bens e vidas. Soltou-se-me o pranto dos olhos, abriu-se-me o peito em ais, e meu tio acorreu alvoroçado. “Ah, infeliz de mil!”, gritava eu. Tive de explicar-lhe o imprudente desabafo e, quando foi ciente da verdade toda, não sei como não

Page 135: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

me matou. O seu desespero ainda era superior à minha angústia! Mas ele chorava a magnífica presa que lhe escapara das mãos, enquanto eu... Bateu-me, tirou-me mas; desse dia em diante tratou-me de suas escravas negras. Deixá-lo! Tomara eu que a morte me levasse! Passado bastante tempo, começou a correr que nem todos os remadores e tripulantes das galés despachados ao Grão-Turco haviam desaparecido no naufrágio. Meu tio expediu logo uma seria a bater as costas da Grécia e ilhas do Levante e foi este navio que trouxe a informação, colhida por interposta pessoa da boca dum monge grego, vagabundo e pobre de espírito, que dois portugueses tinham sido arremessados às costas da Calcídica e recolhidos pelos religiosos da Santa Laura. Meu tio Morato Arrais não dormiu mais um instante. Mandaria ou não mandaria uma grande frota para vos aprisionar? Foi este o seu problema de consciência. Resolveu finalmente, modo de não dar nas vistas nem de chamar a atenção da Sublime Porta para caça de tanta altanaria, enviar esse infernal Gedeão jekarim, mestre em malas-artes, capaz de inventar todos os dolos e enredar e desenredar todas as intrigas, com duas galés subtis bem apetrechadas e guarnecidas por gente de feição, resolutas a tudo para vos prender. E aqui tendes, meu senhor, porque o coração se me encheu de treva, os meus dias são opacos, sem sol nem luz, e as minhas noites carregadas de pesadelos! Quanto eu gostaria de vos ver, senhor, só os meus olhos vo-lo diriam. Mas entre ver-vos outra vez a ferros e saber-vos livre, que Deus vos leve, seja embora para mais longe! já não tenho rosas no meu jardim; murcharam; murcharam como as esperanças. Em Vicência, senhor, há um convento entre glicínias e loureiros, onde se algum dia passardes como incógnito peregrino me podereis encontrar. Aí rezarei à Madona por vós, meu senhor. Bianca.”

- E agora que pensas fazer? - perguntou D. Sebastião ao trânsfuga. O que fordes servido ordenar. D. Sebastião pediu ao higómeno que

dispensasse agasalho àquele homem enquanto se não decidia do seu destino. Nesse mesmo dia se cantou na Santa Laura o Acátistos-Hymnos em acção de graças pela vitória alcançada sobre o inimigo. Quantos monges e anacoretas havia nos arredores, e eram miríade, ali estavam.

O catholicon - acesos todos os lampadários ornados de águias bifrontes, coruscantes os mosaicos de fundo de oiro e os mármores

Page 136: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

versicolores, batidas pela luz as figuras erectas dos apóstolos e santos gregos, S. Jorge, o taxiarca, S. Mercúrio, armado de cota e lança, S. Procópio, belo como Apolo, o Pantocrator, colossal na grande cúpula, tirados dos arcazes os paramentos de gala, mais cintilantes que catadupas as costas dos diáconos cobertas pelas dalmáticas - ressurgia na antiga pompa bizantina. Haviam reservado a D. Sebastião o setial de coiro de Córdova em que se sentara o imperador João Paleólogo, nisso o honrando como a rei. E como a rei lhe vieram oferecer o incenso. A Panaghia tinha coroa de oiro na cabeça, anéis rútilos nos dedos e manto recamado de pedrarias. E ele, esquecido do lugar, quando os celebrantes romperam em hinos gratulatórios, julgou-se na sua capela de Lisboa, com a virgem vestida ao estilo da terra, o arzinho modesto e humano de Maria, mãe de Jesus, e mais nada.

Page 137: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

XII Decidiram fazer jornada no dia seguinte, guiados por Kalpakas que

conhecia a montanha melhor que as suas mãos. Para absoluta segurança atravessariam a península direito a Salónica e daí, pelo Danúbio ou pela via que mais jeito lhes oferecesse, procurariam alcançar a Flandres, de cujos portos a cada passo saíam galeões com destino a Espanha e Portugal. À noite o higómeno, durante a celazinha que ofereceu aos hóspedes, para princepesca pouco mais avançando do frugal passadio dos caloiros além de duas garrafinhas dum letificante e clarete Chipre, mostrou interesse em saber como se pudera dar o lamentável e infausto sucesso .da batalha de Alcácer Quibir. E o rei, posto lhe pesasse fazer o relato de acontecimentos de que era protagonista, como penitente que na confissão alivia a consciência, tão isento de amor-próprio que parecia despersonalizar-se, descreveu por que vias a sua fogosa e temerária mocidade se lançara na aventura da Mauritânia. E maus presságios, pareceres em contrário dos homens maduros, desatinos e contratempos tudo ele foi contando com franqueza e verdade como velha história que se tivesse passado nos tempos revolutos dum Leovigildo ou Recáredo. O frade arrábido guardava silêncio, um silêncio muito discreto de director espiritual, olhos baixos, apenas a cabeça de quando em vez balouçando-se confirmativa ou concorde. Chegado à passagem que dizia respeito ao recrutamento da infantaria, a voz do rei velou-se como enleada:

- Nas comarcas sertanejas, ao ouvir rufar caixa, os homens válidos largavam a monte. Bosques, minas velhas, furnas, tudo servia para se esconderem. Só defumando-os e armando-lhes cilada, como se fazia na costa dos Escravos ao gentio, se lhes punha a mão em cima. Pior de tudo foi que os capitães e cabos, encarregados de “fazer gente”, entrassem a negociar com eles, passando-lhes ressalva por preço que orçava entre dez cruzados e seis tostões. Para o fim, aceitavam já quanto lhes ofereciam, desde mantas da cama a gozarem-se das pobres mulheres, se tinham alguns agrados, os miseráveis. Quem possuía alguma coisinha de seu livrava-se da mochila. O jornaleiro sem amo, o mecânico sem oficio, o amarelo das maleitas sem ceitil, o triste lavradorzinho perseguido da má sorte, que não tinham onde cair mortos, toca para a frente! A peonagem saíra deste rebotalho. Admirava que em África, ao

Page 138: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

ouvir troar a artilharia do Maluco, os infelizes se deitassem ao chão varados de medo?! E que, tanto tempo quanto durou a batalha, ali ficassem apertados uns contra os outros como carneiros no bardo, e dali os tangesse o mouro, pasmados, estúpidos, de todo insensíveis ao destino?! A campanha não fora simpática, justiça era confessá-lo; o camponês não percebera por que bulas o tinham ido arrancar à sua portela. Mas vencer, com gente assim, só dignando-se o deus dos exércitos obrar milagres iguais aos de Jericó!

- Era só Ele querer! - exclamou Frei Salvador com o entono do púlpito. - Que outro rei na cristandade tinha mais direitos que Vossa Alteza aos milagres do Todo-Poderoso...? Quereis ouvir, Reverendíssimo Higómeno... O meu senhor rei D. Sebastião era tão devoto nas coisas de Deus que ouvia missa todos os dias; aos sábados ouvia duas; se tocasse a Senhor fora, largava tudo, até embaixadores, e seguia o nosso Pai, de cabeça descoberta, a casa do enfermo; topando na rua com o Viático, apeava do cavalo e dobrava o joelho em terra até o acompanhamento passar. Em Alcácer Quibir a insígnia que trazia pintada no estandarte sabeis qual era? A efígie de Jesus Salvador. Ergueu santuários e basílicas; queimou todos aqueles hereges a que pôde chegar o seu braço. Parece, depois de tudo isto, que Deus não lhe fazia obséquio incompatível com os seus méritos de monarca piedoso dando-lhe a vitória, munificamente, de mão beijada, como fez com Clóvis, com Afonso Henriques, mais em especial com Josué ao encontrar o ímpio e temível Adonisedeque. E porque é que Ele, na sua imensurável ciência e equanimidade, não deu a vitória ao meu senhor? Não lhe deu a vitória, perdoe-me Sua Alteza dizê-lo mais uma vez, porque lhe faltou a humildade - humildade de rei, bem entendido, que é diferente da humildade do religioso e do sapateiro - com as suas virtudes anexas. Zelo pela causa da Igreja não lhe faltava; mas Deus não é de contentar apenas com zelo. Sua Santidade propunha-se até conferir-lhe, a título de galardão, o cognome de “Propugnador da fé católica”. Infelizmente isto de vitórias ou derrotas entre povos não se resolve com breves papais. Mas, em suma, nem tudo está perdido. O ceptro dos reis de Portugal foi parar, ao que pensa o meu senhor, a mãos honradas... que lho restituirão à primeira voz...

- Não quero imaginar outra coisa do neto do santo rei D. Fernando - disse D. Sebastião em tom de aparte na língua portuguesa. - Meu tio Filipe lá

Page 139: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

raposa sempre me pareceu, mas é incontestavelmente homem de carácter. O mesmo não diria do meu tio cardeal, que Deus haja. O tio Filipe era destes: Vede lá, sobrinho, não vades tropeçar... mas não me emprestava o seu lampião.

O cardeal: Deus vos guie, sobrinho da minha alma, fico a rezar por vos... mas, ah, a mão que pegava do rosário às escondidas fazia a figa! Quereis saber, Frei Salvador, que bicho me lembrava o tio Henrique, além de cardeal, arcebispo de Évora, legado apostólico, abade de Alcobaça, inquisidor-geral, regente do reino e por fim monarca - teve dois anos de monarca, não foi? Lembrava-me o besouro. O besouro que vai a toda a parte, poisa nas flores mas também nas imundícies, negro por fora e por dentro, zumbidor, toda a sua minúscula máquina feita para zumbir, e que mal sente alguém deita-se de costas e finge-se morto... Fartou-se de zumbir à minha espalda contra a passagem em África. De cara, não teve coragem de erguer o dedo.

- Eram todos assim, meu senhor - murmurou Frei Salvador. - A posição mais cómoda dos cortesãos é de cócoras. D. Aleixo de Meneses e vossa augusta avó, a rainha senhora D. Catarina, ainda se atreviam a resmungar contra os vossos arremessos de rapaz. Depois que faleceram, no Paço apenas se ouvia tasquinhado de ratos e ámen para aqui, ámen para acolá, como disse uma vez na minha presença o bispo de Silves.

- Com os labregos - tornou el-rei, voltando-se para o higómeno -, os mercenários e os aventureiros, era o meu exército compósito a mais não poder ser; barro e bronze. A parte bisonha não tinha ralé; a mercenária, sobrecarregada de mulheres e de trinta por uma linha, carecia naturalmente de brio. Com febra havia o terço dos aventureiros e dos soldados de África, e nesse me estribava. O Xerife, meu aliado, mal desembarcámos em Arzila, passou-lhe revista, e devia ter-lhe parecido fraco porque me matou o bicho do ouvido com advertências e conselhos quanto aos perigos que íamos correr.

O diabo do negro não tinha confiança, e causou-me isso um certo desconcerto. Mas considerando que o interesse dele era que se não derramasse uma só gota de sangue, nem eu chegasse a assentar a espada, sequer, no espinhaço dum infiel, sosseguei. Sosseguei e fiz semblante de lhe dar ouvidos. Coitado, não sei ao certo se se iludia comigo ou queria apenas deixar-me a

Page 140: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

impressão de que estava iludido. Ides compreendendo a minha aravia, Reverendíssimo Abade?

- Falais já o grego como se fosse a vossa língua de berço - respondeu lisonjeiro o higómeno. - Decerto não foi o irmão Kalpalcas o vosso mestre?

- Não. Kalpakas ensinou-me apenas os belos hinos à Panaghia. O meu mestre foi aqui Frei Salvador que já sabia o grego de Péricles e nas galés aprendeu o grego do tempo de Amurate III. Sendo eu discípulo rebelde, imaginai que professor admirável não é! Mas, como eu ia dizendo, o Xerife, meu aliado, ficou a dizer mal da sua sorte ao conhecer a composição e qualidade das minhas tropas. Eu tranquilo. Vieram-me dizer que o exército do Maluco era basto como as areias do mar.” Pois melhor”, respondi eu com expressa filáucia, “que se não perdem as espadeiradas no chão.” Mas todos à uma, em especial D,. João da Silva, o embaixador prudentíssimo de meu tio Filipe, e a caterva dos renegados, e mais uns frades que pareciam espirrar de debaixo da terra e uns mercadores das dúzias, a buzinarem-me que as forças portugueses, sofríveis para a conquista duma praça, arrastadas a rasa campina, se para alguma coisa tinham ar de aparelhadas era para a derrota. Derrota organizada lhe chamou um fronteiro. E, “porque corria para a perdição, porque era loucura estreme adiantarmo-nos pela terra dentro”, perdi a paciência, e mais grave do que isso, perdi o sangue-frio. Estive vai e não vai a fazer dançar na corda os noveleiros da má morte, que só me apareciam àquela altura, e se o não fiz, fiquei nervoso e, a falar franco, nunca mais recuperei a serenidade...

Recordo-me, meu senhor, dum passo que se deu às portas de Arzila, estava o exército acampado da banda de fora - disse Frei Salvador. - Esse facto deixou-me realmente a impressão de quanto o vosso espírito andava perturbado. Vossa Alteza acabava de mandar enforcar um espanhol que )arretara um boi, embora alguns fidalgos houvessem intercedido por ele. Vossa Alteza estava tão indignado que as palavras lhe saíam em catadupa e em tom de monólogo, como se ninguém fosse presente. “Hás-de morrer, vilão! Quem te mandou )arretar o boi? Quê? era para comer...? Fosse lá para o que fosse. No campo não tolero indisciplina. Não me peçam por ele, não peçam! Duque de Barcelos, tenho multa pena em voz dizer que não, mas forca com ele. É um valente...? Vem sem cobrar soldo...? Tanto melhor; mais

Page 141: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

impressionante é o espelho. Quero-o a pernear na corda!” Ah, meu senhor, nem sei como teve alma para resistir a tantos rogos e, depois, para assistir à execução!

- É verdade, Frei Salvador, fui assistir à execução; estou bem lembrado. O homem era realmente uma bela estampa de animal, jovem, forte, bonito, alegre devia sê-lo, destes por quem as mulheres se matam. Talvez por isso mesmo, lhe não perdoei. Morreu a amaldiçoar-me. O último espicho da voz era ainda a repetir: “Maldito sejais” Valia mais que um boi, que mil bois, e o seu fantasma perseguiu-me durante muito tempo. Diante de mim, a cada momento, até mesmo num dos lances da batalha, eu lhe via os olhos cheios de eternidade a odiar-me. Quanto eu me arrependi de o mandar matar pelo tirânico regalo de me ver obedecido, vós o sabeis, Frei Salvador!

- Nos vossos pesadelos era uma palavra que vos andava sempre nos lábios: “Soldado de Arzila, não me amaldiçoes; preciso de vencer; preciso da boa vontade de todos; perdoa-me, voluntário dos meus terços”

- Que Deus o tenha em sua santa guarda. Padre-nosso, que estais no Céu... - E depois de rezar por ele em voz baixa, levemente múrmura, reatou: - Pareciam-me todos urna data de cobardes, e a melhor atitude figurou-se-me ser a de não dar trela a prudentes. Virgem Santa, acaso os portugueses haviam de retirar diante daqueles paus de campeche do deserto?! Avante Os capitães apareceram a dizer-me que não havia mantimentos para mais de seis dias e decretei a meia ração. Voltaram no dia seguinte a dar-me parte que o gado da carriagem caía de fraqueza, os homens largavam as armas, a água com o sol abrasador secara nas borrachas... Adeus minhas encomendas, para diante é que é o caminho! Aos seis dias de marcha, avistaram-se os ginetes da vanguarda inimiga, um belo prado de lanças, e senti um arrepio de medo na minha gente. A todo o custo queriam os veteranos do exército que Inflectíssemos para Larache, onde a nossa frota, que cruzava defronte, nos acolheria como uma galinha faz aos pintos quando dá sobre eles o gavião. Seria preciso, todavia, enterrar a artilharia, entreter os mouros largando-lhes a carriagem, e romper escoteiros pela calada da noite a corta-mato. Tomava-se Larache e quanto a honra militar salvavam-se as aparências. Na minha carta de cavaleiro, porém, não era manobra digna voltar atrás. Preocupava-me o que pensariam de mim... o duque de Alba... o papa Gregório XIII... Henrique

Page 142: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

III de França. Que não iriam escrever de mim os cronistas quando se soubesse da retirada!? Que conceito ficavam a fazer de mim no futuro? Era ainda duvidar da minha estrela, e dei por paus e por pedras. Não, três vezes não!

- E volvendo olhos às obras feitas por minhas mãos e aos trabalhos que tanto suor me custaram - recitou o abade pondo na voz o enlevo místico que se comunicava à sua alma do treno de David, rei filósofo, desenganado - reparei! que deles não retirava mais que vaidade e inquietação, sem falar na sua inconsistência debaixo da rosa do Sol!

- Sim, Reverendíssimo Prior, tudo é vaidade. O mal é ser próprio da nossa condição reconhecer-se a vaidade das

coisas apenas na velhice, como David, ou depois do insucesso e no fundo do cálice, como eu. Era tarde para voltar atrás, todas as veras do meu ser o diziam, e mais por instinto do que por cálculo fui arrogante, temerário, da mais agressiva descortesia para os que me rodeavam. Jorge da Silva, um velho chocho, desatou a bravatear que havia de comer as orelhas do Maluco em molho de vilão, e deram-me ganas de beijá-lo. Queriam os práticos em milícia que esperássemos o inimigo a pé quedo entre os dois rios, a título de que a posição era excelente. Eram desta opinião o duque de Aveiro, o conde de Vimioso e o bispo de Coimbra. “Safa”, disse-lhes, “de semelhante cobardia não hei-de dar contas a Deus.” Bem se me rojou o Xerife aos pés a pedir-me por alma de quem lá tinha que nos conservássemos naquele lugar; mandei-o sair da minha presença. Fincar ali o pé, aguardar a coberto com os dois cursos de água, bastante alcantilados, a marrada do toiro, de facto não se me compadecia com o génio. Roldão punha as costas no seguro quando terçava as armas?! Tivessem confiança na minha estrela! Em rasa campanha é que se havia de ver quem era valente. - Foi pena que Vossa Alteza se tivesse esquecido do conselho escrito que lhe deu sua excelente avó, a rainha senhora D. Catarina - disse Frei Salvador da Torre:

O que pude alcançar por paz nunca o tomei com guerra. - Era boa táctica esperar ali, sem dúvida. Bem sabia eu que não há

combatente mais traiçoeiro e astucioso do que o mouro. Mas além de que estava imbuído das leis de cavalaria, que reprovam o ardil e a manha, tinham apertado de forma tão insólita comigo que, para não dar o braço a torcer nem sentir o desaire de me confessar vencido, me entrincheirei à má cara, contra

Page 143: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

ventos e marés, dentro da minha obstinação. O Xerife não me compreendeu e, aproximando a cara da minha, olhos nos olhos, em voz baixa, sibilada, voz de criminoso, disse-me que o Maluco tinha a morte na garganta; era questão de horas. Em despeito da boa dose de incredulidade, saltei como se víbora me mordesse. Se já esperar o inimigo ao amparo dos dois rios me parecia poltronaria, dar tempo a que o destroçasse a morte do chefe considerei-o a última das vilezas. Comigo vivo, semelhante ignomínia não havia de recair sobre o pendão das cinco quinas, e dei ordem de avançar. Saíram-me a caminho dois peneireiros, um espanhol, outro português renegado, antigo frade de S. Francisco, a garantirem-me que o Maluco estava a dar as últimas. Então sempre era verdade: a peçonha produzia o seu efeito 5 Vêm-me suplicar que esteja quieto, não se mexa no entrementes, e não só a batalha, mas muito provavelmente a coroa de Marrocos estão ganhas. Semelhante proposta, aqui o confesso, não me encantou. O que me interessava era a batalha pelejada, com as suas fúrias e encarniçamentos, em que eu passasse, igual ao Arcanjo, de espada flamejante através dos esquadrões, a batalha com mortos e feridos, ais e blasfémias. Queria uma batalha, em suma, com todos os requisitos, lágrimas e luto no dia seguinte, versos heróicos a celebrar as minhas proezas, e as mãos dos bispos, lambuzadas de sangue, a pôr-me na cabeça a coroa cerrada de imperador. E mandei tocar arma.

- Era o demónio da vanglória a chamar-vos ao engano, meu senhor - gemeu Frei Salvador da Torre.

- Sim, era esse demónio e outros mais. Lá porque o meu exército tinha apenas dois mil ginetes e o inimigo, ao que me anunciavam com tendencioso exagero os circunspectos cavaleiros bem armados; o meu apenas quinze mil infantes e ele mais de vinte e cinco mil atiradores de pé e de cavalo; lá porque os meus homens estavam cheios de fome, de sede e de cansaço, e eles folgados, bem comidos e bebidos; eles na sua terra e nós na estranha - não me resignei que fosse a peçonha a decidir da contenda. Uma vitória indigna repugnava-me; vinha de longe sonhando com ela à maneira das da Távola Redonda; quanto mais as forças fossem desproporcionadas, um contra dez ou contra cem, maior era a galhardia de vencer. Mas de novo se me deitam aos pés o maldito negro e o português renegado: “O Maluco tem já na garganta o roncadoiro da morte; um poucochinho mais de paciência e o exército

Page 144: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

formidável está derrotado por sua natureza.” Ai, ele é assim?! “Venham as minhas armas ligeiras azul-escuras e o cavalo Pérsio! Os pajens que me tragam a lança!...” Digo isto em voz mais gritada que falada, e vejo todos suspensos a olhar para mim, como se olha para domador ou doido furioso, aspectos humanos por igual cheios de mistério e de assombro. E vão-se como cães batidos, de rabo entre as pernas, focinho no chão... os dois agoireiros, os capitães de Ceuta e de Arzila, o próprio Duarte de Meneses, não menos brioso do amor-próprio que da espada. Faltou-lhes rasgo para se oporem à minha vontade e não me compreenderam. Não compreenderam os meus escrúpulos de paladino, as minhas perrices de menino mimalho, o aferro que eu punha nos sonhos de glória. Não compreenderam nada de nada, nem o principal: que a admiração do Maluco em vivo me era preciosa. Eu podia lá resignar-me de modo algum a que aquele homem, tão celebrado, não soubesse antes de morrer quanto pesava o meu braço! - Jesus Senhor! - murmurou o higómeno.

- “Infinita Mourarria vem para nós”, diz-me num dado momento Jorge Telo, pajem do guião, com certo tremor na garganta, embora fosse moço de coragem. “Deve ser menos do que vos parece”, respondo-lhe. Procuro com os olhos o poeta Diogo Bernardes, que tinha ido contratado como aedo, com missão especial de cantar a jornada, e não o avisto. Vão-no chamar e, entretanto, a artilharia do inimigo disparou. Tomados de terror, os nossos da retaguarda deram em terra. Podia lá ser?! Troou outra vez a artilharia moura... Caíram dos nossos... quantos? Ponho-me a contar, um, dois, quatro... seis... Mas porque não dava eu a Ave-Maria...? Porquê? Aldana, que era o sargento-mor, dizia-me: Fuja Vossa Alteza enquanto é tempo! Fico espantado; confiança muito diversa tinha eu na misericórdia de Deus! Os mouros avançavam em formatura de crescente, por filas cerradas, tentando envolver-nos com os dois cornos. De verdade era um mar em procela; mas que mar e que fragor? Falavam-me, não se ouvia nada. Além, era um antigo soldado de África, cujas mandíbulas se abriam e fechavam, enormes como dum caimão, viradas para mim. Pergunto que tem de esporteirar lá de longe esse cara fanada de Bernardim Ribeiro... Que mandasse arremeter, para não acabarmos ali como reses de açougue. “á iríamos, lá iríamos” E aquele Jorge Coelho, sempre mais hirsuto que um javardo...? Se eu julgava estar no Jogo da pela e os petardos serem alcanzias... “Já veria o ferrabrás.” Santo Anjo da Guarda, as vagas

Page 145: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

inimigas sucediam-se umas atrás das outras, umas atrás das outras, sempre de topete para nós, e os horizontes pareciam incansáveis a vomitar africanos. O tropel agora lembrava um engenho a triturar: trrá-trrá, trrá-trrá. A gente portuguesa mostrava o parecer demudado e em minha alma escureceu. Lembrei-me de Roncesvales, longe fosse o agoiro! Mais rápida nas pontas, marcando quase o passo ao centro, sentia-se que a linha moura avançava, menos pelo espaço que desaparecia entre os dois exércitos que pelo esvoaçar dos albornozes. Toda a testa era de gineta, salvo um pequeno troço ao meio formado pela infantaria. À nossa direita, dragões e lanceiros: cavalos de remonta, estalão certo, aguerridos, aptos à manobra; à esquerda, atiradores a cavalo e lanceiros: potros pequenos, mas nervosos e sentidos ao acicate; atrás dos piqueiros, para lá da guarda de Abde Almélique, reconhecível pelos estandartes de rabo de cavalo à turquesca, os alarves, em montadas de toda a ordem, desde o mulo da recova à égua parideira; e elches, andaluzes, azuagos, gazulas, a escumalha da Mauritânia, a todos os panos do horizonte, como gafanhotos. Ouço barafustar, mesmo na minha cara, um antigo capitão de Tânger, Alexandre Moreira, coxo danado. Repete a fala e sinto como que uma bofetada:

“- Sejam todos testemunhas que me apeio para morrer! Morrer, sim, que é hoje a sina dos portugueses!

“- Eu vos farei engolir o ultraje, perneta de má morte! - lanço-lhe através da balbúrdia.

“Mas os aventureiros arremetiam; arremetiam sem eu lhes ter dado ordem. A seguir os tudescos. Seria tempo e

disse comigo: “Vamos então a eles!” Em voz alta, mas que me saiu estrangulada, bradei: - Portugal e Santiago!, e cravei espora nos ilhais do corcel ...”

Nesta altura da narração, como sempre que condescendia em versar a jornada de África, el-rei estava fora de si, olhos incendiados dum fulgor estranho e o gesto exaltado. já a frase lhe vinha por golfadas, descosida, incapaz o verbo de traduzir o pensamento em sua vertigem dolorosa. E era-lhe preciso, em semelhante transe, espairecer, correr ao vento, como se apenas o céu aberto tivesse cubagem bastante para desafogo da sua opressão. E com

Page 146: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

vénia do prior abalou, escada abaixo, para a praia, respirar da angústia que o sufocava. Frei Salvador concluiu desta forma o relato lutuoso:

- O desenrolar da batalha, depois do que Sua Alteza acabara de referir, estava bem de prever. Só o milagre, como aqueles de que beneficiou Moisés, podia salvar da derrota ao exército europeu. Deus estava de mal com os portugueses e não quis saber. E foi o desastre completo, letal, sem apelo nem glória. Em verdade não se poderia chamar peleja às sarrafuscas que se seguiram, mas antes montaria do mouro ao cristão. O rei tinha dado ordens expressas aos capitães: Daqui só arrancam à minha voz! Assim, tendo de esperar o assalto da vaga em vez de sair de repelão a cortá-la em seu desdobramento, os terços portugueses, assoberbados pelo número, precisavam de oferecer a resistência dum molhe e não passavam de frágil estacaria. Foi imediata a desarticulação do exército. Salvo pequenos núcleos em que certa coesão permitiu ainda assomos de combatividade, toda a vis se desvaneceu de chofre. De ordinário - ainda mais com tropas semibárbaras - o desbarato do vencido arrasta o vencedor à desordem, criando-se o ambiente propício à gesta heróica. No desarmar da feira se entremostraram com épico alento a arcabuzaria de Tânger, o terço dos aventureiros, e de modo assinalado a pequena hoste que se formou à volta de el-rei com os destroços das diferentes unidades. Esta hoste cruzava o arraial colmo uma tromba, acutilando, derrubando, esmagando. A testa ia o príncipe e ninguém o igualava a mandar o estoque ou a lança, temível e invulnerável graças aos ginetes que o protegiam de flanco. Um punhado de cavaleiros mouros topava com ela...? Baralhavam-se os cavalos; feriam lume as espadas; e eram mais bastos que o granizo os golpes; e os contendores acabavam, às vezes, batendo-se a unha e dente, abraçados de cima dos selins. Tinham mordido o chão dois, três, quatro cavaleiros portugueses... Mas o pelotão terrível desarvorava, sempre em frente, semeando a morte. Troços de cavalaria inimiga caíam de salto sobre ele; e a peleja de há pouco repetia-se, cada vez mais desesperada de parte dos portugueses. Três quartos de hora, uma hora andou aquele furacão pelo campo. El-rei parecia ter um papel: foiçar mouros; os cavaleiros outro: proteger o ceifeiro. Mas com tanto acometer e esquivar o ataque, cruzar o ferro e sofrer o fogo disperso dos mosquetes, romper o inimigo e ladear o inimigo, a rasteira que foi deixando de mortos subiu a ponto que se podiam

Page 147: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

contar pelos dedos da mão os que lhe restavam de pé. Derradeira vez se fez parapeito contra uma coluna de elches. Cristóvão de Távora e Jorge Telo entram nela como coriscos na terra e não se viram mais. Ele, Frei Salvador da Torre, picara raivosamente no encalço do seu soberano... Atrás ficará já o Uad-Elmjázen; adiante estendia-se a perder de vista a campina atónita. Longe, lá longe volveram olhos à retaguarda: no campo, de muitos quilómetros de roda, não haveria dois homens em forma, capazes de responder simultaneamente a uma mesma voz. Não era senão mar desfeito com bichas de cativos, cavalos sem dono a vaguear, o pululante formigueiro dos berberes, mais coalhado aqui, ralo além, esfarrapado na periferia, vultos dobrados e jacentes de mortos e feridos, albornozes, confusão, barulho. À meia-noite, com el-rei e dois fugitivos, batia às portas de Arzila. Tum-tum-tum... Abram... É el-rei!

Calou-se com lágrimas nos olhos. O higómeno proferiu em tom compadecido:

- Foi a vontade do Senhor. Conformem-se e tenham esperança que há-de restituir o reino ao temerário e inexperiente mancebo. Pela narrativa que fez reparei quanto está contrito e repeso. Deus não falta aos seus!

Vinte com a Abalaram no dia seguinte à alba, vestidos de caloiros, a corta-mato, serra acima. O homem de Maiorca lançara-se aos pés de D. Sebastião a pedir-lhe pelos tormentos que Nosso Senhor padeceu que o levasse até Salonica donde lhe seria fácil encontrar passagem para a sua terra. Porque não? Kalpakas protestou:

- Metemos o licranço no selo. Este homem é espia. Voltaram a trilhar aquele carreiro de cabras, empecilhado por clematites e outras trepadeiras, rebentos das moitas e barrocas cavadas pelas chuvas, com as caretas dos nozilhões nos velhos troncos, sempre à banda, a vê-los ir. Diante do quintalinho, no qual reluziam à flor da terra, níveas e taludas, com seu rabicho chinês, as cabeças dos nabos, e verdegavam orelhudíssimas couves, testemunhando assim a bondade de Deus e o saber hortícola do frade arrábido, fizeram alto. Refrescaram a goela na fonte farta e adoraram a Panaghia na copeirinha da furna. E ao compasso das estrofes de Kalpakas, rapsodo encartado da Virgem, continuaram a trepar a árdua encosta. À medida que avançavam, o cume do Aros, erecto como úbere, revestia proporções mais imponentes. O seixo das cristas rebrilhava ao sol e era como

Page 148: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

neve muito esfiocada que acabasse de pousar. Rareava o arvoredo gigante; o solo revestia-se duma rabugem de mato, picado de urzes e tojos, o tolo alvarinho eternamente primaveril, com as flores, luzentes lágrimas de oiro, protegidas por espinhos acerados. E a semelhante paisagem não faltavam a perdiz cinzenta a corricar muito cosida ao solo, o gaio que não teme as alturas, e a sombra da asa desembainhada e rompente da ave de rapina. Se volviam olhos à retaguarda, Lemnos, Tasos, Imbros, mais longe Ténedos, pareciam altear-se dentro do cristal da redoma celeste, crescer no veludo azul do mar como grandes e soberbas aras. Anacoretas mostravam-se de légua em légua à boca das suas lapas, sem outra vestidura além das barbas, cabelos intonsos ou palhoça no fio, hirtos e diáfanos, em adoração a Deus. Kalpakas salvava; eles mal mexiam com os lábios:

Deus seja convosco! Corvos crocitavam voando por cima deles; porventura os corvos que lhes traziam de comer.

Dormiram dentro da capelinha da Transfiguração no topo da serra. Era a dois mil metros de altitude e pela manhã tiritavam. Batendo o pé entanguido, começaram a descer o monte. A senda era um sulco arrepiado entre arnelas de rocha e rochas a esboroar-se. Em sítios tiveram de ir de gatas; dar-se as mãos; tactear e socorrer-se das mais insignificantes asperezas como apoio. Não fora Kalpakas ter por obrigação bem guiar o rei e o frade, dir-se-ia escolher de propósito o piso mais inacessível e diabólico. A certa altura o maiorquino tropeçou e, desequilibrando-se, escorregou para o abismo. Sentiu-se o seu corpo ir rocegando pelo matiço até dar em baixo o baque final.

Tem a conta - murmurou Kalpakas, e começou com a sua agilidade de esquilo a descer o despenhadeiro.

O homem lá estava no fundo da ravina coberto de sangue, lacerado das arestas dos rochedos, a túnica em tiras como se lha houvessem esfaqueado. Porém não tinha ar de quem vê chegada a sua última hora e, gemendo, chamava-se um perseguido da fortuna. Kalpakas ia-se deixando invadir pelo dó; mas que papel era aquele que lhe espirrava da aba da veste? E deitou-lhe mão sorrateira. Ora, que papel havia de ser? Uma credencial do baxá de Argel, com os devidos selos, em que se requisitava em prol do portador mão forte ou qualquer outro auxílio das autoridades em país sob jurisdição de Sua Alteza o sultão Amurate III.

Page 149: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Kalpakas mostrou-o a Frei Salvador dizendo: - E agora? - Acaba-se - murmurou o frade. - Não é a minha opinião - contestou o giróvago. - Se Deus quiser, aqui

morre à míngua que ninguém lhe acode. Se Deus lhe perdoa, manda um lenhador ou vagabundo igual a mim e salva-se. Tem a perna partida e por si não dá passo.

Entregaram o miserável aos desígnios secretos da Providência, satisfeitos com a sorte, pois que, munidos daquela credencial, não tinham razão para não entrar de pé afoito em Salonica. Servindo-se dela, D. Sebastião poderia agradecer a missiva de Lela Bianca, açucena de Itália. E, depois de reflectirem acerca das vantagens que lhes proporcionava tão mágico papel, deram graças ao Senhor que por meio dum Judas lhes trazia segurança.

A passo repousado percorreram a corda de conventos da costa ocidental da Calcídica. Em Simão Petra, se quiseram dormir debaixo de telha, tiveram que deixar-se içar por um cesto para a cela dos monges. Em Fliérisso, pela primeira vez depois duma viagem de cem quilómetros, encontraram vacas, mansíssimas e nédias vacas que façanhudíssimos touros cobriam em suas luas, e outros animais defesos em Hagion-Oros por sua feminilidade.

Dois dias depois avistaram num horizonte de ciprestes uma floresta de altos e esguios minaretes. Era Salonica, cidade me! a turca, meia judaica. D. Sebastião disse ao bom caloiro.- Vem a Portugal, Kalpakas, que Nossa Senhora lá é mais bonita do que no resto do mundo.

- E do palhetinho não se fala - acrescentou Frei Salvador da Torre. O excelente Kalpakas esmagou a primeira lágrima com a grossa polpa

do dedo e para estancar outras rompeu num dos seus hinos à Panaghia. ó gloriosa dona, mais alta e engraçada que a Lua, coroada de mil estrelas: dona a cujos bicos dos selos se prendeu o Deus feito menino; Imperatriz que nos tornastes o que deixou perder a triste mãe Eva: palácio esplêndido do Rei dos reis;

Page 150: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

passadiço de cristal do céu para a terra, a luz bendita dos vossos olhos nos guie ora e sempre na via do eterno bem, ámen, Jesus. E tão excelso e imprevisto foi o seu cantar que em volta dele se

começaram a juntar, curiosos e deleitados, os basbaques de Salonica.

Page 151: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

XIII Acabavam de fazer-lhe curativo. O lacaio retirava com as compressas

de fio ensanguentadas e as duas escudelas de porcelana da China cheias do pus que lhe espremiam das fistulas, quotidianamente, de manhã e à noite. Durava aquilo há três semanas e o homem, de natural anojadiço, habituara-se à podridão. Atrás dele foi o protomédico, Zamudio de Alfaro, e pelas pálpebras, mal cerradas ou tão diáfanas que se deixavam penetrar da luz, ele próprio não saberia dizer, descortinou uma sombra que se deslocava para a direita e devia ser o seu confessor padre Garcia de Loaisa, arcebispo de Toledo mal chegasse o breve de Roma. Fez-se silêncio e, embora silêncio artificial, com as úlceras aliviadas da sânie e os fogos do corpo apagados pela lavagem, gozou dum infinito e incomparável refrigério. Que bom permanecer assim até resto, transpor em tão brando aniquilamento os umbrais da eternidade! Mas uma chinela chapejou e não foi preciso mais para resvalar do delicioso nirvana em que se encontrava. Sentiu zumbir as moscas na atmosfera e o ligeiro frémito da mão do padre, armada dum lenço, a enxotar-lhas do rosto. A dor no joelho acordou; acordaram em seguida as dores nas articulações e a sede que trazia arcada nas entranhas como um incêndio; acordaram todas as feras enjauladas na sua carne e eram furiosas a mordê-lo e a dilacerá-lo. Aspirou o fedor que exalava a cloaca rota do seu corpo; experimentou o contacto do esterquilínio, suor de tísico, fezes, humores, piolhos e vermes em miríade, e caiu em si, na vera noção de quem era: Filipe II, rei de Castela e Aragão; rei de Portugal, de Nápoles e da Sicília; soberano dos Países Baixos; duque de Milão; senhor do Franco Condado; imperador do Novo Mundo...

Esteve assim um instante balouçado entre esta estúpida imensidade e a sensação acabrunhante da sua miséria, e a amargura que lhe reflectiu o rosto foi tão nítida que o segundo médico, Gomez de Sanábria, se debruçou para ele, inquirindo a medo:

- Que tem, meu senhor...? Ficou um momento sem responder, possuído de asco por si, por aquele homem impotente ante os seus males, pelo mundo todo, e quebrando com fitar o Cristo que pendia da cortina, timbrada com a águia de Áustria, proferiu:

Page 152: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Que tenho?!... Dói-me o corpo todo; mas não sei onde me dói mais, se no joelho, se nos dedos, se na alma.. .

- Vossa Majestade está melhorzinho - obtemperou o médico. - As feridas cicatrizam... os humores são menos derrancados...

Filipe não disse palavra, suspenso acima do eu sensível pelas próprias dores, dir-se-ia realidades extrínsecas que o mantivessem naquela absurda levitação. E ao cabo de segundos, como se no ritmo a que a sua natureza física era levada houvesse um hiato, tão breve que escapava ao cômputo do espírito, tão fundo que nem uma linha tirada até o centro da Terra, velo-lhe o sentimento de posição, ali na cela de monge, engastada no Escurial, este por sua vez ancorado na planície castelhana como navio no alto mar, e Castela e a Ibéria toda como um grão de poeira no oceano celeste. Subindo a escala que vai do homem para Deus, o entendimento cada vez ia dobrando o salto de gamo até não poder mais, à beira do inultrapassável abismo. Para o lado de lá estava Ele, a sublime Majestade!

Numa breve pausa das suas cogitações, novamente ouviu zumbir as moscas. Era no mês de Agosto e, embora não passasse de meia manhã, fazia um calor tão desmedido que a cigarra, lá fora nos jardins, se calara extenuada. As moscas bailavam no ar e através das suas volatas ia-se desenvolvendo urna ária cetinosa. Mas a noção do tempo não fez mais do que acentuar-lhe a sensação da sede, sede ardente, insaciável, que lhe vinha das entranhas hidrópicas e do pulmão héctico, e pediu água. O médico deu-lhe água, levemente quebrada da friúra, que bebeu avidamente e o deixou a arfar pelo esforço que fizera dobrando a cabeça para o peito, pois que só tinha uma postura há semanas, de costas, sem se poder mexer, com o corpo todo em chaga, desde as unhas dos pés à coroa da cabeça, mais abjecto que Lázaro ao terceiro dia. E imóvel se quedou a saborear o consolo que lhe trouxera o líquido. Seguiu as moscas na sarabanda e, sentindo uma leve comichão na face, ergueu do lençol a mão espatulada, exangue e suja, em que cresciam unhas violáceas, a sacudir qualquer imundo parasita da aluvião que lhe andava no corpo e lhe descera do cabelo raro. E, depois de varrer o quer que era, teve o sentimento da sua desgraça: uma redeza, a primeira da Terra, deitada em leito de excrementos e de bicharia, mais fétida que um monturo, em decomposição visível, enquanto a alma, a sua alma de ferro, luzia com

Page 153: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

toda a claridade, embora batida pelos ventos de além-campa. Ainda que mergulhado há tanto tempo em miasmas, cheirou o rescendor mefitico de esgoto que era aquela alcova real. E no horror de si próprio, ergueu olhos ao Rei dos reis, tementes e suplicativos. E no seu horizonte encontrou Cristóvão de Moura, hirto e solene à porta, com a pasta debaixo do braço. Chamou-o:

- D. Cristóvão! O valido acercou-se, nas feições aquele ar grave, mas distinto, que

exprime o pesar que penhora e não a pena que deprime. Os seus movimentos eram tão rápidos e subtis que se não reparava que tivesse dado passada e ao mesmo tempo a sua pessoa sabia tão bem ocupar o seu lugar que dir-se-ia não encher espaço. O médico fez uma vénia e saiu; o confessor esboçou uma vénia pró-forma, mas como Filipe não lhe fizesse nenhum sinal, saiu também. El-rei disse então:

- Que há...? - Nada de ponderoso, meu senhor. Chegaram as provisões para o

reverendo Garcia de Loaisa. Quando Vossa Majestade for servido, poderá ser sagrado arcebispo.

- O mais depressa possível. Avisai-me o núncio e os prelados que hão-de oficiar.

- Quais, meu senhor? - Os que estejam à mão... de Segóvia e Osmia, por exemplo. E dos

Países Baixos? - Sua Alteza o arquiduque Alberto continua a ser recebido

triunfalmente pelas populações. Está resolvido o problema da pacificação. Uf, custou lágrimas de sangue! Mas seja. O que é preciso é apressar o

casamento de Sua Alteza a infanta com o regente. E como está ela de espírito? Menos arisca?

Muito menos, meu senhor. Vai-se conformando com a vontade de Vossa Majestade. Depois, na corte a voz geral é que Sua Alteza o senhor arquiduque Alberto é o espelho dos gentis-homens e será o mais invejável dos maridos.

Filipe embrenhou-se por segundos no próprio pensamento, lábio caído, a vista em alvo, sob o olhar do conselheiro que lhe perscrutava a fisionomia, preocupado em casar a filha Isabel Clara Eugénia, trinta e dois anos, ex-noiva

Page 154: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

de D. Sebastião, com seu sobrinho, que fora cardeal e arcebispo de Toledo, e o papa desligara dos votos eclesiásticos, e a quem ele agora destinava o governo da Bélgica.

- E de Portugal? - perguntou emergindo das cogitações. - Não houve malas, meu senhor. À parte o espalhafato dos holandeses

no Brasil, não bole folha para este lado. Está aqui o despacho que diz respeito ao novo inquisidor-geral...

Filipe sacou a mão de fora para rabiscar a firma do decreto que lhe apresentava o valido e, com o movimento que fez, levantou da cama uma lufada de ar quente e cadaveroso, rescaldo da putrefacção em que o corpo se lhe consumia. Rubricou outros papéis com aquela sua mão nervuda, flácida, de ossos a espreitar por debaixo da pele membranosa, e recolheu-a com precipitação, Ia o ministro a fazer menção de beijá-la,

Nos umbrais da alcova, Cristóvão de Moura voltou-se e encontrando o olhar de Filipe disse:

- É verdade, meu senhor, ia-me embora sem vos dar parte da rixa que ontem se travou à porta das armas. Foi com dois portugueses que desde há tempos pediam audiência a Vossa Majestade. Observou-se-lhes que, estando Vossa Majestade de cama, não era oportunidade de se apresentar semelhante requesta. “Pois fique para quando puder ser”, tornaram. A petição feita em nome dum vago fidalgo e dum tal Frei Salvador da Torre, religioso de S. Francisco e canonista, não era de resto de tomar em consideração. De manhã ou à noite frade ou leigo eram restos à portada:” Há alguma resposta?” Da última vez, com surpresa de todos, o frade rompeu em grande alarido:” Um dia repete-se aqui Aljubarrota e já Sua Majestade fica sabendo que estão no Escurial duas pessoas de bem para lhe falar!” Era uma ameaça, e o porteiro, porventura intempestivamente, chamou a força. O pior foi que os soldados, deixando-se lograr pelas vestiduras religiosas, prenderam o outro em vez dele. O frade, então, desvairado, arrancou duma partazana e dando sobre os archeiros deitou um a terra e feriu gravemente outros dois. Acudiu a guarda em peso... ora, nem um leão! Despachou ainda dois para o outro mundo e três para o hospital. Ninguém havia de dizer que no corpo daquele velho, para mais seráfico, se escondia um hércules e hércules adestrado no jogo das armas!

Page 155: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- E que lhe fizeram? - perguntou Filipe. - O frade, meu senhor, foi hoje a enterrar... - Era português... murmurou Filipe meditabundo. - E o outro? - O outro foi levado sob algemas para a casa da guarda. Palpou-se:

trazia um rosário e meia dúzia de ducados na algibeira. Manifestamente um inofensivo. Nega-se a dizer quem é e razões não dá outras além desta:” Que Vossa Majestade havia de ter gosto de ouvi-lo.” Vamos pô-lo a tormentos.

- Mas pelos vistos essa gente há muito que rondava pelo Escurial... Compreende-se lá...!?

- Meu senhor, os maníacos que pretendem falar a Vossa Majestade são às centenas. Vossa Majestade deu ordens

terminantes para que não fossem escorraçados. Estes aboletaram-se para o povo e nunca deram margem à mínima suspeição. Para cúmulo, um trazia hábito de S. Francisco e dizia missa; os ares do outro são tudo o que há de mais tranquilizador. Este, sempre que se apresentava a saber da requesta, escusava-se da importunidade dizendo:

- Não, quero enfadar... Esperarei que Sua Majestade esteja restabelecido...”

- Restabelecido! - ciciou Filipe, em tom entre céptico e zombeteiro. O diabo do homem teria que me ir procurar ao outro mundo. Mas, D. Cristóvão, deixai-o entrar. O tipo dele...?

- Vê-se que é pessoa de qualidade... na decadência. - Pois trazei-mo. Que venha para aqui Ruiz de Velasco. Voltou ao quarto o reverendo Garcia de Loaisa a quem Filipe, em voz

velada mas em que palpitava estima, deu os emboras pelo rescrito acabado de chegar de Roma que o confirmava bispo de Toledo, com trezentos mil ducados de renda, por certo a diocese mais rica do orbe católico. E, depois de assentarem na cerimónia da investidura, Filipe recaiu em suas cismas, de quando em vez soltando um gemido tão breve que parecia colcheia fugida ao compasso da própria respiração e era o inferno das dores a cruciá-lo. Para se distrair, obrigava o espirito a girar de coisa em coisa, como se montasse cavalo lançado à rédea solta. Dos negócios do Estado derivou para os negócios da família, do Escurial para Madrid, de Madrid para Lisboa. Que estupenda esta cidade para cabeça da monarquia! Sob o ponto de vista urbano, estragada

Page 156: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

para todo o sempre. Os reis tinham sido uns labrostes sem gosto, entregues à guerra, à caça e à ganhuça, pouco namorados do espiritual tanto religioso como profano. Seu sogro era o perfeito imbecil coroado, um papa-açorda que apenas se achava bem sentado na cadeira a ouvir as loas dos bobos. Devoto, sim, mas as rezas atufadas com feijão e orelha de cerdo. O neto não pensara noutra coisa senão em meter lança em África. Abençoada loucura que lhe valera a ele, já senhor de tantas terras, a herança do reino vizinho, como parente varão mais chegado. Vinha escrito de longa data. A Providência reservara-lhe aquela compensação ao sonho desfeito de monarquia universal. Verdade que esgotara os cofres de Castela a comprar fidalgos, dos tais de pendão e caldeira, a peitar alcaldes de vilas e de castelos, a distribuir conezias, mas, graças, estava assente a unidade ibérica para todo o sempre. Agora, desfazer o que estava feito só pela mais torpe e desastrosa imperícia. Havia que derrogar leis absurdas, irmanar, fazer a interpenetração de usos, costumes e interesses, mas isso viria com o tempo. Paulatim. Era esta uma palavra que exprimia o recurso do seu entendimento em política e na diplomacia. Paulatim se faria a soldagem entre Portugal e o resto da península. Com as Américas conquistadas ao espírito e idiomas ibéricos, o mar por todos os lados, salvo a cordilheira a leste, grande futuro estava reservado a Hispânia. Por aqui a sua obra oferecia sólidas promessas de eternidade. O resto, senhorio dos Países Baixos, das Duas Sicílias e do Norte de África, não passava de construção especiosa, edificada sobre areia movediça. Fazia parte do seu sonho religioso-romanesco de dominação universal, sonho dissipado pelo vento álgido da velhice, Não tinha pena. Títulos brilhantes para o seu nome ficar escrito em tábuas de bronze chegavam os que lhe vinham da posse de Portugal, o estremecido e ambicionado recanto sem o qual a pele de boi que figurava a geografia da península era um escantoado e absurdo grimoire. E na plana da vida real, este corpo bífido, a manter-se tal qual, não perdia o grande sentido de que o Senhor o dotara na história do género humano? E porque assim pensava, toda a sua solicitude era pouca pelo país anexado, mas solicitude disfarçada e suspeitosa, não viessem os seus inimigos Henrique IV, Isabel de Inglaterra, os Oranges, a saber qual era o ponto por onde mais facilmente podiam vulnerar o seu coração. A assimilação caminhava à maravilha; já Lisboa era a cidade da península onde se editavam mais livros

Page 157: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

em castelhano; já não havia escritor ou letrado português que não fosse bilingue; os fidalgos portugueses apenas se julgavam engrandecidos frequentando a corte de Santo Isidro; a moda para Portugal ia de Madrid; não tardaria que houvesse circulação única sanguínea. As ordens religiosas contribuíam sobremaneira para esta obra, cruzando os seus pregadores e titulares, impondo cá e lá a mesma regra. Ah, se não fora a gota como teria prazer em habitar Lisboa, transferir possivelmente para lá a capital, terminando assim com a obra de captação! Por baixo da conformidade lusitana restavam ainda brasas, e já eram decorridos dezoito anos depois que as cortes de Tomar o haviam jurado rei. A prova estava naqueles três impostores que haviam envergado a túnica dum pretenso D. Sebastião, penitente e ressurgido do silêncio a que se votara, Fogachos apagados com sangue; não era para admirar que de tempos a tempos crepitassem outros da mesma índole. Mas não importava; em Espanha a benemérita corporação dos verdugos com algo se havia de ocupar.

Ao sabor das suas cogitações esqueceu-se por instantes das dores e do esterqueiro em que o corpo lhe apodrecia. Mas o abcesso acima do joelho direito deu guinada; foi como se ouvisse um sino a chamá-lo, e todas as fístulas, todas as queixas interiores, todos os achaques deram sinal de si. E tendo caído tão inumanamente dos seus devaneios olhou para o crucifixo, murmurando:

- Pois que a vossa vontade seja feita e não a minha! Em seguida sentiu sede, sede agónica, de jardim das Oliveiras. Olhou em roda e não avistando ninguém reprimiu-se. Mas de novo a sede foi tão pungente que rompeu a gemer como uma criança e no seu gemido sentiu certo bálsamo:

- Dêem-me água! ... água...!. O padre que estava à desbanda da cabeceira, e ele não via, apresentou-

lhe o cálice, grande segundo o seu desejo, autêntico cálice de comungantes. E bebeu, chafurdou de lábios ressequidos e sujos na água pura, ficou a gozar aquele contacto, delicioso como a pele macia da sua mais divina amante. E, depois de tornar a beber, ficou, testa perlada de suor, olhos fechados, a gozar a beatitude da desalteração. Mas Ruiz Velasco entrou na ponta dos pés e ele, fitando-o com indolência, perguntou:

- As árvores no pomar, Ruiz?

Page 158: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

- Não é ano de fruta, meu senhor - respondeu o criado. - As pereiras calabacis têm ainda uma ou outra pêra; as espécies novas nem para desougar uma prenhada.

- E as minhas macieiras? - A mesma coisa. Para mais entrou com elas o bicho... - disse Velasco e,

ocorrendo-lhe que falar em bichos a Filipe, alagado deles, era o mesmo que falar de corda em casa de enforcado, fez-se de todas as cores.

A confusão do criado não escapou a el-rei que, à maneira de Ezequias, virou a cabeça para a parede, Mas esteve assim pouco tempo, pois a posição lhe era molesta e difícil. E, tornando a voltar-se, olhou ao longe para os confins do planalto, cuja linde era formada pela aresta do Guadarrama, violeta e macerada. As frondes das fruteiras, todas elas da melhor casta, que mandara vir dos vergéis famosos do Douro e da Andaluzia, enegreciam o plano próximo, e outra vez chamado ao sentimento da sua miséria ciciou:

- Entraram com elas os vermes...? Os vermes são os executores de tudo o que é vivo à flor da terra. Pulvis é a sua missão, e não há que fugir - proferiu em voz mais lenta, quase abstracta e, de súbito, Como se virasse de página, não saberia ele próprio por que extraordinária associação de ideias, perguntou:

- Já chegariam os manuscritos árabes que mandei trazer para aqui?... São mais de trezentos e carregam bem duas mulas. Hão-de-me dizer ao padre Siguenza que gostava de ver as Cantigas de Santa Maria, de D. Afonso o Sábio. Põem-se os olhos nas iluminuras e tem-se a impressão de viajar por terras diferentes da nossa, a Abissínia, o Tibete, que sei eu... Que me traga também o Codex Vigitanus. Vem lá uma estampa do Toledo do século X, que é toda a Espanha visigótica.

Cristóvão de Moura apareceu neste momento à porta, de mansinho, sempre discreto, mas de modo que Filipe reparasse nele. E à pergunta muda que leu nos olhos do amo disse:

- O estrangeiro está na antecâmara, meu senhor. - Mandai entrar. Entrou um homem mediano de corpo, mediano de

idade, vestido corri um gibão de veludo em que seria impossível identificar a cor primitiva, botas velhas de cordovão, capa de mescla, no chapéu duas penas esfiapadas de garça. A calvície precoce escantoava-lhe a cabeça até o

Page 159: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

encontro dos temporais com o occipital, a barba era ruiva e rala, os olhos azuis e polvilhados de estrelas, a boca pequena, mas beliscada por um azedume que lhe repuxava as comissuras de modo a formar com o lábio inferior o arco de círculo dos hipocondríacos e aflitos. E por todo o rosto a melancolia derramava sua serguilha lúgubre. Filipe não fazia nenhuma ideia de quem poderia ser um tal homem, e ele, à porta, parecia professar estranheza análoga, a avaliar pelo ar surpreso, ar de pessoa que não está certa de ter seguido o bom caminho. Não, o forasteiro não reconhecia naquele saco de podridão, exalando mais fedor que uma carreta de peixe podre, o monarca que fazia tremer o mundo e começavam a chamar Demónio do Meio-Dia. Com olhos esgazeados estacara nos umbrais da alcova. Filipe imaginou que a atmosfera infecta dos aposentos lhe causasse náuseas invencíveis, e cheio de cobardia, com vergonha da sua lástima, a meia voz recomendou ao padre que espertasse as caçoulas em que ardiam raízes aromáticas. E pôs-se a estudar o homem, cujo garbo e linhas de raça sobreviviam ao desastre dos anos e dos trabalhos, a julgar pela roupa coçada e as rugas da face. Emperrado à porta, no cito lembrava cão malhadiço, fisionomia suspicaz, vou não vou. E, em despeito do muito que lhe custava qualquer movimento, acenou-lhe com a mão para que se acercasse.

Deu o homem uns passos em frente, saindo aos olhos de Filipe da contraluz para a exposição de perfil. E a fidalguia de sangue acentuou-se, ressaltando particularmente na rede vascular que lhe sulcava com nervação tenuíssima a cútis de loiro e na barba senhoril, que se compunha à guise nada mais que ao simples afago dos dedos. Mas Filipe não se lembrava onde tinha visto aquela cara e disse-lhe com secura:

- Que pretendeis? - Noto que Vossa Majestade me não reconhece como me não

reconheceu também D. Cristóvão de Moura - proferiu com mansidão e leve melancolia. Não admira; já lá vão mais de vinte anos e venho doutros climas. Vossa Majestade é que está o mesmo... um poucochinho mais pálido, mas Nossa Senhora há-de fazer o obséquio de restituir-lhe a saúde e ninguém dirá que mudou,

A Filipe era agradável sentir-se embalado por vozes que lhe falassem de vida e saúde e observou com semblante afável ao misterioso cortesão:

Page 160: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Há vinte anos que nos perdemos de vista, pareceis dizer. Por mais que procure, não sei onde vos vi...

- Em Nossa Senhora de Guadalupe; não vos lembrais? E isto dizendo debruçava-se sobre a cama, O rosto banhado dum claro

sorriso, a íris dos olhos a brilhar em suas chispas doiradas como pederneira tocada pelo fuzil. No homem que vai estrada da vida fora, o sorriso é o menos transitivo. A própria fugacidade é a condição da sua fixidez. Vem de menino com certa cor, com certo aço como os espelhos, e não se altera. Pelo contrário, nele vê o ancião ou o enfermo ressuscitada a sua imagem dos verdes anos. Filipe teve a impressão de que um fantasma se erguia ante ele, mas recusou-se a crer. E em VOZ sumida, molhada desta feita de rancor, tanto mais que o esforço que fora obrigado a fazer lhe açulara as infernais pontadas, pronunciou:

- Dizei depressa ao que vindes; estão-me proibidas as visitas... Mas o intruso pespegara-se diante, fisionomia aberta como se

mostrasse cédula pessoal, e hesitava dizer o que supunha estampado à flor dos olhos. E Filipe impacientou-se:

- Hombre!... - Sou o sobrinho de Vossa Majestade... D. Sebastião. Posto que tivesse aquele nome em mente, uma revelação daquelas

aturdiu-o. E baixando as pálpebras com medo de trair algum sentimento intemperante, discreto e vagaroso de palavras e actos, ficou a considerar um mundo de probabilidades, sem que a dúvida, no entanto, levantasse do seu espírito. Não era a comédia do rei da Ericeira, do D. Sebastião de Penamacor, de Gabriel de Espinosa que se repetia correcta e aumentada?! Erguendo, porém, os olhos para aquele homem descobriu-lhe no rosto oblongo, a puxar para balofo e salpicado de sardas, no lábio inferior refarto, em certas assimetrias nasais e no cabelo ralo e riço, sua irmã D. Joana e, mais à espalda, o imperador Carlos V, seu pai. Mas podia lá ser?! Não tinha o sultão de Marrocos, em consideração dos seus desejos, mandado os despojos fúnebres do malfadado príncipe, encontrados e reconhecidos pelos fidalgos portugueses no campo de Alcácer Quibir, e não jaziam agora recolhidos em mausoléu no mosteiro de Santa Maria de Belém? Mas o intruso, aproveitando-

Page 161: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

se da perplexidade, fazia o relato da sua aventura maravilhosa. E ele repartia-se, ouvido a ouvir, consciência a ruminar a hipótese inopinada.

Em voz modesta e singela, doutro que não o presumido e vanglorioso príncipe, contou como arrebatado nos lances da batalha para fora do campo, movido, talvez, mais pelo sentimento da inutilidade em que redundaria o seu sacrifício do que pelo instinto da conservação, metera ao caminho de Arzila; de Arzila como viera parar ao convento dos piedosos no cabo de S. Vicente, e daí, sob anonimato, às mãos dos corsários. Estes haviam-no despachado ao Grão-Turco, para castigo duma tentativa de evasão, mas quisera a Divina Providência que a borrasca arrojasse a galé às costas da Calcídica, onde fora agasalhado pelos monges agioritas da regra de S. Basílio. Na montanha santa do Aros tivera ensejo de chorar os seus desvarios e penitenciar-se, até que por via indirecta a mão de Deus o conduziu mais além. Tendo subido o Danúbio, de rumo à Flandres, encontrara-se certo dia com as tropas alemãs que se dirigiam em marcha forçada a socorrer uma praça forte da Romélia, assediada pelos turcos. O seu génio de paladino não lhe permitiu ficar indiferente ao aparato bélico e alistou-se no exército imperial. Caiu prisioneiro dos otomanos que o remeteram para Constantinopla onde novamente levou vida de galeote. Tendo conseguido evadir-se para a Pérsia, comandou a cavalaria do xá em mais dum recontro vitorioso com os Janízaros de Amurate III. Da Pérsia, assinada uma trégua com a Sublime Porta, passou à Abissínia, onde se bateu contra as tropas dum rãs cismático e parricida, e foi galardoado pelo imperador com honras reais. Pelo Soldão, de leva com urna caravana, alcançou a Palestina. Palmilhou a Terra Santa desde Sídon à terra de Moab, desde Jope a Galaad, e pode dizer-se que contou uma a uma as pedras da Rua da Amargura e os sargaços do monte das Oliveiras. Esteve no mosteiro de Nossa Senhora do Vale de Josafat, dos frades menores, até que a inspiração do Senhor, forte como rajada, lhe mandara retomar a posse dos seus estados. Em todas estas peregrinações e infinitos trabalhos Frei Salvador da Torre fora o seu guia e, mais que amparo, a sua advertida consciência. Adivinhasse ele que o companheiro de quase vinte anos ali vinha perder a vida numa pendência inglória, apenas explicável pelo estado de exaltação, porquanto seu génio rebentio amaciara com os anos e sua impaciência perante a afronta tinha a refreá-la aquela prudência do sábio, de que fala a Escritura, e não teria vindo

Page 162: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

bater ao Escurial. Não, não teria vindo, sob pena !de voltar a correr mundo, arrastando um fadário mais acabado que o do judeu errante. Mas fora a causa, se bem que indirecta, do infausto acontecimento, e dele pedia perdão ao augusto tio, pelo que revestia de desacato para com a sua pessoa. No foro íntimo, dele ficaria a chorar-se, pela vida fora, corno duma das maiores calamidades com que Deus o punia dos seus pecados.

O peregrino suspendeu-se um minuto, mergulhado em constrangimento, e ouviram-se as moscas sarabandear ágeis e loucas por cima do muladar, que era o leito do rei, e lá fora os pavões, pressentindo trovoada, soltar horríssonos miados. Filipe continuava de olhos fechados, junto dele Ruiz de Velasco mudo e distante, com o lenço na mão a sacudir-lhe as moscas da cara; à porta, depois do primeiro movimento de curiosidade e alarme, o privado, mais imperturbável que uma cariátide. As dores tornavam a apoquentá-lo, diziam-no as linhas da face desfazendo-se e refazendo-se como ondas de sombra, e outra vez com acento estranho e miserando pediu água. Pedia água sempre assim, num tom de mendicante e imperador ao mesmo tempo. Os médicos, de começo, tinham interdito o uso da água para a febre hidrópica que o consumia; depois, assente o diagnóstico de mal sem remédio, decretaram a franquia para tudo o que apetecesse. Mas, ignorante de tal deliberação, supunha que cada gole de água que lhe davam representava uma infracção aos preceitos da medicina.

Saciou-se e, levantando repentinamente os olhos, surpreendeu o pasmo e nojo que a sua imundície causava naquele homem, animal de ar livre. Era natural, e depois de se virar para o Cristo colgado do reposteiro a dizer-lhe como de costume: “Seja em desconto dos meus pecados”, proferiu:

- Encontrámo-nos em Guadalupe, sim. Há quanto tempo isso foi! Estais lembrado dum despique de palavras que tivestes com não sei quem da minha corte que deu muito que falar?

O interpelado ergueu os olhos, como a concentrar as recordações e respondeu:

- Não me lembro... Só se fosse com o duque de Alba. Sim, o duque de Alba fartou-se de me moer o juízo. Mais conselhos para aqui, mais conselhos para acolá, a certa altura perguntei-lhe de mau modo: Duque, de que cor é o

Page 163: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

medo? E ele retorquiu-me: Da cor da província, senhor. Não tive troca de palavras mais altas com outra pessoa...

- Lembrais-vos, também, do duque de Pastrana? tornou ele, sem se deter com as reservas de D. Sebastião.

- Era rapazinho e dei-lhe uma adaga; só o punho valia uma fortuna. Mas ele não fez reparo e desembainhando-a disse, mutatis mutandis, a Vossa Majestade: Esta é que é boa para espichar os huguenotes.

Filipe ficou obra de nada em silêncio e, no tom da maior cordura, interrogou:

- Que propósitos trazem a Vossa Maiescade? - Que Vossa Majestade me restitua o reino. - Com muito gosto - respondeu em voz serena, aquela voz lenta e

medida que traduzia o império que exercia sobre si, depois de breve pausa, uma destas pausas de princípio do mundo, cheia de germinações monstruosas. - Estou nos umbrais da vida eterna e a coroa de rei cai-me da cabeça. Ah, se não fosse ousadia incomportável com a minha pequenez, sabeis com que coroa eu me queria ver coroado? A coroa de espinhos que picou a sagrada fronte de Nosso Senhor Jesus Cristo até as meninges. Vós vindes pela outra...!?

- Deus o quer - murmurou D. Sebastião. - Pois se Deus o quer, vós com uma mão e eu com duas. Estou cansado

de realezas; cansado de ser incompreendido, Com esta união de Espanha e de Portugal sofri a maior das decepções do meu reinado. julguei que não fazia mais que Juntar as metades natas dum todo. Qual? Portugueses e castelhanos parecem-se como a noite com o dia. São o bronze e o barro. Não há liga possível entre eles. Castela é povo duma só peça e, semelhante a corraniar, ficou indiferente ao material humano que jorrou sobre a Ibéria tanto do Norte como das plagas mediterrâneas. Por outras palavras, é povo com carácter, o que não sucede no resto da península: enxurrada, mestiçagem. Por isso mesmo eu adoro a minha Castela e não me importava nada de ficar só rei de Castela. As outras províncias distinguem-se desta, sabeis como? Pela carência de qualidades que em ela abundam. Em Portugal raça, consciência, personalidade, não existe; existe ali uma horda feita com os resíduos de multas hordas, deixai que vos diga. Quereis sentir a sua imaginação larvar e

Page 164: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

infantilidade bárbara? Ouvi: Segundo os testemunhos mais fidedignos vós tínheis caído na batalha. A boa lógica não autorizava outra versão. Sem o socorro do Divino, e louvada seja a Providência que é infinitamente misericordiosa, estaríeis voltado ao pó de que todos nós emanamos. Pois, não senhor! Na opinião de quase todo o Portugal, escapastes à batalha e fostes para o mar dos Sargaços aprestar a frota que havia de derrotar o turco, o inglês, e, claro, fazer morder o pó ao detestado leão de Cistela, representado na minha pessoa, herdeiro do trono de Portugal conforme as leis divinas e humanas, desde que Vossa Majestade não deixara sucessores directos. Mas vedes o desconchavo duma crendice que tomou foros de lenda e, se nos não deu água pela barba, não deixou de causar os seus engulhos, suscitando-nos uns impostores que se fizeram passar por Vossa Majestade e criando nas turbas um estado de espírito lunático, sombrio e avesso às realidades, sobre que poderão enxertar-se dum momento Para o outro as mais imoderadas rebeldias. Vossa Majestade de sangue é austríaco, predominantemente austríaco, e não lhe soará a doesto que eu diga não haver para o português nada verdadeiramente sagrado, e o espiritual não passar para ele duma atitude sem grandeza. É um bicho como há poucos, o português. Em seu fundo o que faz lastro é a sensualidade e a preguiça, e o melhor da sua história cifra-se numa aventura de piratas e candongueiros. Vossa Majestade vem-me requerer os seus estados...? Tome-os, tome-os e bendita seja a hora em que Deus o trouxe.

Voltou-lhe a sede e pediu água. Depois de beber, encontrando suspensos por cima dele, como a bolar em contida cólera, os olhos de D. Sebastião, volveu:

- Arrependi-me mil vezes de pleitear a sucessão de Portugal. Militarmente foi um passeio. Na ilha Terceira, sim, ainda houve sarrabulho. Aos sucessos do continente chamou D. Cristóvão de Moura “alterações”. Foi o que foi: alterações. O filho da Pelicana reuniu uma gentalha, da qual o maior grosso eram negros forros, e saiu-se a arruaçar diante dos terços do duque de Alba na ribeira de Alcântara. Mal se dispararam os mosquetes. Duas catanadas e cada um foi para seu beco. O prior tinha asas nos pés, ao que depois me disseram. Fugir foi sempre o seu forte. Em Alcântara, em Vila Franca do Campo, em Angra, em casa de Deus verdadeiro, até do degredo foi

Page 165: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

o primeiro a pôr-se ao fresco; por malas-artes. Queria-me vender os direitos ao trono... Que direitos...? Uma esmola podia dar-lha; direitos não havia que lhe reconhecer. Mas encanzinou-se e prestou a cerviz a todos os fretes que França e Inglaterra quiseram. Enquanto lhe duraram, as jóias da coroa que rapinou em Lisboa levou vida folgada. Foi com brilhantes e gemas que presenteou os inignons de Henrique IV quando o foram esperar a Mantes. A um judeu, Harlay Sancy, empenhou por 40.000 libras o diamante azul que passa por ser em valor o imediato ao Regente e faz parte do tesouro real de França. Por fim teve que estender a mão à caridade. Um pródigo e aventureiro sem escrúpulos, Correu que eu assoldadara sicários para o matar... Valia a pena...? Morreu, que a terra lhe seja leve. Mas Vossa Majestade pode dar-se por feliz em ver-se livre de semelhante musaranho

Ao acabar de proferir estas palavras, teve um ataque de tosse terrível, convulsivo, que lhe fez revirar a bugalha dos olhos e lhe coloriu de roxo a tez saturnina. Com a tosse, a roupa da cama ondeou e todos os vapores miasmáticos do leito de podridão, fezes, vermes, suores, parasitas, pus da chaga viva que era o corpo todo se evolaram e encheram o aposento de relentos nauseabundos. Zamudio de Alfaro acudiu com uma poção opiada e papas de linhaça quentes, com o que ao fim de alguns minutos se calmou el-rei. Em voz sumida, não lhe passando despercebido o dó e nojo que o seu estado causava a todos, particularmente ao sobrinho, em despeito da revolta que sentia a cachoar-lhe no peito contra os seus juízos, porventura pouco generosos uns, deliberadamente injustos outros, disse:

- No que dá a realeza... no que dá! Não obstante o médico principal prescrever a maior tranquilidade, teimou em levar por diante assunto de tanta magnitude. Com voz lenta, já porque lhe custava a falar, já porque ia medindo e pesando como ourives as palavras, tornou:

- A nação está depauperada. Abateram-se sobre ela os três flagelos, peste, fome e guerra, e todas as suas fontes de energia e actividade secaram. Daí lavo as mãos. Não cobrei mais um ceitil de impostos, não buli numa lei, não me sobrepus a nenhum uso estabelecido. Portugal está Portugal e Vossa Majestade há-de ter a impressão de que velo de lá ontem. Quando muito, encontrará a casa lusitana mais velha, mais triste... e arruinada. Mas tem muitos anos diante para a reerguer. E se volta mais assente, quebrado de

Page 166: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

ardores, se meteu a mão na consciência e apartou o grão do joio, bueno! Dou-lhe um conselho: deixe lá a mourisma para sempre! Foi a mourisma a causa da sua perda. Quantas vezes lhe disse: a África é um vespeiro! A expedição estava de antemão votada ao mais estrondoso insucesso. Tanto Vossa Majestade como os seus lugares-tenentes engenharam-se em montar uma empresa de derrota. Nisso não lhes faltou génio. Até Francisco Aldana errou quando lhe inculcou como melhor táctica a que consistia em opor tropas firmes, infantaria de arcabuz e cosselete, apoiada em mangas de cavalos à estardiota, à aluvião berbere de corcéis, fugazes e volteiros como o vento. Quem tinha razão eram os adaís de Tânger quando vos diziam: “Senhor, para os cavalicoques árabes não há como os nossos ginetes de Espanha; têm menos pé, mas sobeja-lhes a fúria e o ímpeto. Dez contra cem e não há que temer.” Vossa Majestade era moço, deu ouvidos à novidade. já lá vai, mas sempre lhe digo que para vencer um exército organizado em tais moldes bastavam a areia e o sol da Zica”

Teve novo acesso de tosse e Zamudio de Alfaro velo implorar a Sua Majestade que repousasse um instantinho. Cristóvão de Moura descolou-se da ombreira, igualmente suplicante e consternado. Em volta dele calaram-se todos; fechou os olhos; ouviu a moscaria alvoroçada com o calor comburente do meio-dia; tornou a abrir as pálpebras e surpreendeu entre Zamudio de Alfaro e o reverendo Loaisa um olhar de inteligência que não agourava nada de bom do seu estado. E, depois de matutar um instante, pediu o espelho. Ruiz de Velasco pôs-lhe ante os olhos um espelho de cristal rútilo e adormecido como água num copo. E quedou-se a mirar o rosto, tão macilento que ninguém veria nele o modelo de Sanchez Coelho, parecer regular, tez clara, nariz bem lançado, cabelos de loiro mate, a boca sensual e ávida; nem ainda o de Pantoia da Cruz, já entrado nos anos, pele da face pergaminhada, boca de quem deu muitos beijos, olhos de quem já não tem ilusões, na testa ainda a luz dos obstinados e dos idealistas. Não, o que ali estava era o antecadáver, corri olhos vítreos, tão descoloridos que mal se via neles diluída a gota azul, boca tão mirrada que )à perdera a noção dos apetites, a barbicha rala e reles como erva trilhada e seca pela estiagem. E, fazendo sinal para levarem o espelho, tornou a gemer condoído de si próprio:

- No que dá a realeza!

Page 167: Aquilino Ribeiro - Aventura Maravilhosa - Revisado

Outra vez fechou os olhos, outra vez os abriu. Desta feita esboçou um gesto, um tenuíssimo gesto que apenas os familiares compreendiam, e médicos, confessor e Iacalo retiraram-se. D. Sebastião, um instante perplexo, saiu também. Por uma fresta das pálpebras, tão apertada que nem de felino no pino do dia, viu desaparecer o fantasma que voltava inesperadamente do outro mundo. Era legítimo?

Cristóvão de Moura estava à sua beira, imóvel e atento como rei de armas.

- Sua Majestade é meu hóspede - disse-lhe Filipe. - Não tem que dar mais um passo fora do Escurial...

E fitou o valido de olhos nos olhos, como só muito de raro em raro fazia, com fixidez tão imperativa que, acima da sua humanidade, se sentia erguer uma razão mais alta - aquela razão de Estado a que foram imolados o príncipe de Orange, Escovedo, o senhor de Montigny, o infante D. Carlos, dizem que a rainha Isabel de Valois e o Papa Gregório XIII, forte e cega por sua origem divina, situada para lá do bem e do mal. Recebeu Cristóvão de Moura, sem pestanejar, o mandato sinistro, limitando-se a responder:

Serão executadas as ordens de Vossa Majestade. E Filipe II, rei de Castela e de Portugal, das Duas Sicílias, soberano dos Países Baixos, de Tunes e de Orão, imperador daquém e dalém-mar, que já mandara fazer o caixão em que havia de ser enterrado, cerrou as pálpebras e, pela primeira vez há muitos dias, adormeceu placidamente.

Cruz Quebrada, 1936.