AQUISIÇÃO DE ARMAMENTOS NO ÂMBITO DA RELAÇÃO BILATERAL DE ... · a adoção de uma convenção...
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IX ENABED
Forças Armadas e Sociedade Civil: Atores e Agendas da Defesa Nacional no Século XXI
06 a 08 de julho de 2016
AT1 - Ciência, Tecnologia, Indústria e Gestão de Defesa
AQUISIÇÃO DE ARMAMENTOS NO ÂMBITO DA RELAÇÃO BILATERAL DE
ARGENTINA E BRASIL (1970-1989)
Jonathan de Araujo de Assis
(Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas UNESP-UNICAMP-
PUC/SP)
Orientador: Prof. Dr. Héctor Luis Saint-Pierre
São Paulo
1
Resumo
O relacionamento entre Argentina e Brasil desde o século XIX oscilou entre a rivalidade e a cooperação
até o final da década de 1970, quando se estabelece uma maior cooperação com os acordos de Itaipu-
Corpus e na área nuclear. Estes favoreceram avanços, a partir da década de 1990, na direção de uma
estabilidade pela integração. Sobre a questão de armamentos, Argentina e Brasil possuem um histórico
de concorrência desde o início do século XX, quando as relações entre os países se desenvolveram sob
o manto da mútua desconfiança e da “diplomacia dos encouraçados”. Com o presente trabalho buscamos
analisar em que medida a cultura predominante na relação bilateral interferiu nas ações empreendidas
pelos governos de Argentina e Brasil em matéria de aquisição de sistemas de armas convencionais. O
recorte temporal compreende desde o início da década de 1970, com o acirramento da rivalidade entre
ambos, e o final da década de 1980, quando são esboçadas iniciativas de cooperação. Para o
levantamento das trocas de armamentos realizadas pelos países foi utilizado o The Arms Transfers
Database organizado pelo Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), enquanto que os
relatórios do World Military Expenditure and Arms Transfers (WMEAT), publicados pela Agência dos
Estados Unidos para o Controle de Armas e Desarmamento (ACDA), foram utilizados para a análise da
série histórica dos gastos militares dos países.
Palavras chave: Argentina; Brasil; Identidade; Armamentos; Defesa.
2
Quando avaliado em uma perspectiva histórica, o relacionamento entre Argentina e Brasil pode
ser caracterizado como transitório entre a rivalidade e a cooperação. O relacionamento entre os países
tem início no século XIX, com o predomínio da rivalidade, e, após oscilar entre a rivalidade e a
cooperação durante as sete primeiras décadas do século XX, atinge um salto qualitativo no sentido de
uma maior cooperação através dos acordos de Itaipu-Corpus e na área nuclear, favorecendo avanços, a
partir da década de 1990 e início do século XXI, na direção de uma estabilidade estrutural pela integração
(CANDEAS, 2010).
Segundo Candeas (2010), o relacionamento entre os países possui uma lógica própria, pautando-
se, sobretudo, pela assimetria de poder relativo. Nesse sentido,
a relação bilateral não se infere a partir de terceiros porque pertence a uma categoria
autônoma e possui dinâmica própria, que resulta de dois fatores: o desequilíbrio de
poder relativo entre Brasil e Argentina e a utilidade do relacionamento para a
consecução dos objetivos nacionais de política externa (CANDEAS, 2010, p. 147).
Do ponto de vista argentino, a relação bilateral pode ser entendida a partir de três etapas que
correspondem a três modelos de inserção internacional adotados pelo país: 1) relação especial com a
Grã-Bretanha, que se estende desde o final do século XIX até a década de 1930; 2) o paradigma
“globalista”, que tem início na década de 1940 e se estende até o final da Guerra Fria; e 3) a estratégia
de “aquiescência pragmática” iniciada na década de 1990 (RUSSEL; TOKATLIAN, 2002).
A visão do Brasil como rival se intensificou na primeira década do século XX, quando o país
deu início a um processo de reaparelhamento de sua frota naval e desempenhou relações especiais com
os Estados Unidos. O país norte-americano se tornou o principal mercado para as exportações brasileiras,
além de se tornar um ator importante para lidar com eventuais ofensivas argentinas sobre o Brasil.
Segundo Russel e Tokatlian (2002), a lógica de equilíbrio de poder no Cone Sul foi um dos principais
fatores que levaram a diplomacia brasileira a estreitar relações com os Estados Unidos. Contudo,
certamente o Barão do Rio Branco pensava no equilíbrio de poder com a Argentina
quando propôs a aliança com os Estados Unidos, mas seu interesse em aprofundar o
“pacto do ABC” refletiu também seu desejo de consolidar um esquema diplomático
complementar destinado a balancear a relação com Washington (HIRST; RUSSEL,
2001, p. 42 apud RUSSEL; TOKATLIAN, 2002, p. 411).
Em mesma medida, outro fator que caracterizou a relação bilateral durante o período foi a
competição no setor naval. Entre os anos de 1906 e 1914, a relação de Argentina e Brasil deu forma a
um contencioso que marcou o período denominado “diplomacia dos encouraçados”. Estimulada pela
mútua desconfiança, os governos argentino e brasileiro desenvolveram relações sob o manto da “paz
armada”.
Em 1906, durante a chancelaria do Barão do Rio Branco, o governo brasileiro desenvolveu um
programa naval para a aquisição de três encouraçados construídos na Grã-Bretanha. O programa
provocou controvérsias na região, gerando desconfianças e críticas por parte da Argentina, que defendia
o princípio da equivalência naval entre os países sul-americanos. A percepção argentina sobre o Barão
3
do Rio Branco era de que o chanceler brasileiro alterara substancialmente a diplomacia da República,
orientando a política exterior do Brasil no sentido da preeminência na América do Sul, remontando ao
período do Império (CANDEAS, 2010).
Dessa forma, o chanceler argentino Estanislao Zeballos (1906-1908) denunciou o projeto de
reaparelhamento naval do Brasil, considerando o equilíbrio militar regional (ESCUDÉ; CISNEROS,
2000). Cabe destacar que a Argentina estava atada ao Chile pelo acordo de equivalência naval, o que
tornava mais sensível para o país o desenvolvimento dos meios navais por parte do Brasil (CANDEAS,
2010)1.
Nesse sentido, Zeballos e Rio Branco protagonizaram um cenário de disputas e desconfiança no
início do século XX. Segundo Escudé e Cisneros (2000), a concorrência entre os dois países se
manifestava na busca por aliados no Cone Sul e na corrida armamentista, tendo como objetivos a
supremacia regional e o isolamento político do concorrente.
De acordo com Escudé e Cisneros (2000), para melhor compreensão do período da “diplomacia
dos encouraçados”, é necessário vincular a dinâmica bilateral ao contexto mundial, que difundia
perspectivas do darwinismo social e as doutrinas de Mahan sobre a política de expansão naval das
potências europeias. Ademais, outra característica do contexto internacional no período era a forte
concorrência entre os estaleiros de Alemanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Itália pela
obtenção de contratos com países sul-americanos (ESCUDÉ; CISNEROS, 2000).
Por parte do governo argentino, Zeballos estava convencido de que o Brasil pretendia entrar em
guerra contra a Argentina, sobretudo após a aquisição de três encouraçados britânicos do tipo
dreadnought2 pelo governo brasileiro, em 1906. Segundo Escudé e Cisneros (2000), com a decisão pela
compra dos encouraçados, o governo brasileiro desequilibrou em seu favor a distribuição de capacidades
navais na América do Sul e passou a representar uma ameaça à Argentina.
Do ponto de vista da política brasileira de aquisição de armamentos, o início do século XX se
caracterizou pela busca dos mercados europeu e norte-americano para atender às necessidades das
Forças Armadas do país, uma vez que a qualidade dos produtos da indústria nacional era inferior em
comparação com os produtos desenvolvidos a partir do aço processado (LOCK, 1986).
Frente às medidas adotadas pelo Brasil, e partindo do pressuposto de que o vizinho pretendia
uma guerra contra a Argentina, Zeballos defendeu a necessidade de seu país incrementar sua Marinha,
a fim de atingir a superioridade naval. Em dado momento, segundo Escudé e Cisneros (2000), Zeballos
propôs às autoridades brasileiras a partilha dos encouraçados adquiridos pelo Brasil – um para a
Argentina e um para o Brasil –, condição que o governo brasileiro não aceitou.
1 A superioridade naval brasileira era indiscutível até o início dos anos 1890. A partir de então, o Brasil perderia
essa preeminência por causa da destruição de grande parte da esquadra durante a Revolta da Armada, em 1893, e
pelo reaparelhamento da Argentina. O Chanceler de Campos Sales, Olyntho de Magalhães, reconhecia a
necessidade de o Brasil também se rearmar frente ao poderia naval argentino (CANDEAS, 2010, p. 160). 2 À época, o dreadnought era um encouraçado de grandes capacidades operacionais. Além de veloz, possuía
canhões de grande calibre e motores de combustão mista (ESCUDÉ; CISNEROS, 2000).
4
Em virtude da resistência brasileira em repartir os dreadnoughts adquiridos junto à Grã-
Bretanha, as autoridades argentinas decidiram firmar um contrato para a fabricação de dois encouraçados
dreadnoughts, realizado junto a estaleiros norte-americanos, em 1910. Nesse sentido, a Argentina
recuperou sua supremacia naval em 1915, ao incorporar os encouraçados Moreno e Rivadavia
(GARCIA, 2003).
Após a Primeira Guerra Mundial, a pauta de desarmamento ganha destaque na agenda
internacional. Em 1921, os Estados Unidos decidiram convocar uma Conferência em Washington com
o objetivo de discutir o desarmamento naval e a questão do Extremo Oriente. Segundo Garcia (2003), a
iniciativa foi adotada em momento favorável para a política estadunidense que, além de atender às
demandas populares pelo desarmamento, permitiria ao país consolidar seu papel como potência
marítima. A convite do governo norte-americano, apenas as principais potências marítimas – França,
Grã-Bretanha, Itália e Japão – e países com interesses na Ásia – Bélgica, China, Países Baixos e Portugal
– atenderam à Conferência.
Como resultado da reunião, foi aprovado um tratado de fixação de limites máximos de
tonelagem para as esquadras das maiores potências marítimas. Em 1922, os resultados da Conferência
de Washington foram levados para a 3ª Assembleia da Liga das Nações, ocasião onde foi examinada a
possibilidade da adesão aos princípios do Tratado Naval de Washington pelos países não signatários.
Durante os debates sobre os armamentos, Garcia (2003) aponta que, sem nenhum apoio dos países sul-
americanos, o Brasil expôs sua posição contrária à limitação de armamentos3.
No âmbito regional, a V Conferência Internacional Americana, realizada em 1923, por iniciativa
chilena, também contemplou a questão do desarmamento por meio da tese XII, a qual dissertava sobre
a adoção de uma convenção destinada a reduzir em proporção igual os gastos militares e navais. Em
uma das sessões da Comissão, o representante brasileiro, Melo Franco, apresentou uma declaração de
princípios que buscava destacar os objetivos pacíficos do Brasil. Ainda,
a declaração procurava enfatizar as tradições pacíficas do país, a prática do arbitramento
e a “índole idealista” do povo brasileiro, de acordo com o espírito da Constituição de
1891, que estabelecia textualmente em seu artigo 88: “Os Estados Unidos do Brasil, em
caso algum, se empenharão em guerra de conquista, direta ou indiretamente, por si ou
em aliança com outra nação (GARCIA, 2003, p. 190).
A grande questão que se apresentava na América do Sul era a política de equilíbrio de poder
entre Brasil e Argentina, que motivou o governo argentino, em função dos eventos ligados à Conferência
em Santiago, a acelerar seus planos de reaparelhamento naval. Segundo Garcia (2003), em 1923, o
presidente Alvear solicitou ao Congresso argentino a aprovação de um projeto de lei que autorizava
investimentos na modernização da Marinha do país. No mesmo período, o governo brasileiro, com base
3 O diagnóstico corrente no âmbito militar brasileiro era o de inferioridade em relação às forças armadas de
Argentina e Chile. Em 1922, um estudo desenvolvido pelo Estado-Maior do Exército brasileiro sobre a situação
militar na América do Sul mostrou que, em caso de guerra, o Brasil poderia mobilizar duas divisões de artilharia,
enquanto que a Argentina contaria com cinco. Ainda, a Argentina teria orçamento de guerra superior ao brasileiro,
maior número de combatentes e melhor capacidade de mobilização rápida (GARCIA, 2003).
5
em recomendações da Missão Naval estadunidense4, desenvolveu um novo programa de
reaparelhamento naval pelo prazo de dez anos (GARCIA, 2003).
Efetivamente, como aponta Garcia (2003), a partir da análise dos debates sobre o desarmamento
naval na região, verificou-se que o Brasil estava virtualmente isolado no continente. Já a Argentina agiu
com o objetivo de reforçar suas credencias como líder regional, dada a peculiaridade e a forma negativa
como a postura brasileira foi recebida pelos países (GARCIA, 2003).
Uma maior concertação entre Argentina e Brasil ocorreu durante as décadas de 1930 e 1940,
quando os países exerceram papeis de destaque no âmbito regional por meio das posturas ativas em
favor da mediação de conflitos entre países sul-americanos5. Apesar disso, as divergências diplomáticas
dos países, agravadas durante a Primeira Guerra Mundial, com o Brasil apoiando a Tríplice Entente e a
Argentina adotando postura neutra, seriam aprofundadas nos anos seguintes, sobretudo durante a
Segunda Guerra Mundial.
A despeito do estreitamento político proporcionado pelas mediações,
a preocupação com o equilíbrio sub-regional e a competição por influência sobre os
países vizinhos seguiam modelando a visão do outro ao mesmo tempo que a Argentina
acentuava sua neutralidade e o Brasil consolidava seu alinhamento com os Estados
Unidos. Este último deu lugar ao surgimento, na Argentina, de uma nova visão do
Brasil, inscrita na lógica da rivalidade geopolítica, como “país chave” da ação futura
norte-americana no continente (RUSSEL; TOKATLIAN, 2002, p. 413).
No que se refere à política de armamentos, durante as décadas de 1940 e 1950, o governo
argentino promoveu iniciativas que objetivaram a construção de protótipos de caças a jato (Pulqui I e
Pulqui II). Sob esse contexto, ao final da década de 1950, os esforços voltaram-se para o
desenvolvimento de alta tecnologia nos processos da indústria militar, traduzindo-se na criação de
diversas instituições que vislumbravam o fortalecimento da indústria de defesa argentina6. Para o Brasil,
o período da Segunda Guerra Mundial, marcado pelo alinhamento às forças aliadas, rendeu ao país
grande quantidade de equipamentos e armamentos fornecidos pelos Estados Unidos até meados da
década de 1950 (LOCK, 1986).
4 A exemplo do Exército brasileiro, que contratou a Missão Militar francesa, em 1919, a Marinha buscou um
parceiro estrangeiro para a instrução, a modernização e a reorganização da força naval brasileira, assinando em
1922 o acordo com a Missão Naval estadunidense. Todavia, a contratação da Missão Naval dos Estados Unidos
acarretou em impactos negativos no âmbito regional, gerando desconfianças por parte dos países vizinhos.
Segundo Garcia (2003), devido às pressões exercidas pela Argentina, o secretário de Estado estadunidense, Charles
Hughes, esclareceu que a Missão Naval se tratava apenas de cooperação em matéria de organização naval, não
significando um compromisso militar com o Brasil. Para os Estados Unidos, não convinha avançar na cooperação
naval com o Brasil em detrimento das boas relações com a Argentina, entendida como ator necessário para o
equilíbrio militar regional. Dessa forma, o governo norte-americano empreendeu esforços para diminuir a
importância da Missão Naval, com o intuito de reduzir seu custo político junto ao governo argentino (GARCIA,
2003). 5 Bolivia e Paraguai (1932-1935), Peru e Colômbia (1933-1934) e Peru e Equador (1941). 6 Tais como: o Consejo de Investigaciones Científicas y Tecnológicas (Conicet), o Instituto Nacional de Tecnologia
Industrial (INTI), a Comisión Nacional de Energía Atómica (CNEA), a Comisión Nacional de Investigaciones
Espaciales (CNE) e o Instituto Aerotécnico (IAe), além de fábricas sob o controle das Forças Armadas (MILLÁN,
1986).
6
Até o fim da década de 1950, percepções compartilhadas sobre as conjunturas regional e
internacional possibilitaram maior aproximação entre os dois países. Em 1961, os presidentes Arturo
Frondizi, da Argentina, e Jânio Quadros, do Brasil, firmaram os acordos de Uruguayana, que tinham
como principal objetivo coordenar uma ação internacional comum frente aos grandes centros de poder
mundial. Entretanto, até o fim da primeira metade da década de 1960, durante o governo de Arturo Illia
(1963-1966), a aproximação com o Brasil recuou em relação ao governo anterior, dada a tradição política
de Illia contrária à formação de blocos na América Latina.
A política exterior dos regimes militares argentinos (1966-1973) intensificou o distanciamento
do Brasil e intensificou preocupações sobre o país vizinho, motivadas pelo crescimento econômico
brasileiro, que incrementava sua envergadura política na América do Sul. Nesse sentido, a relação da
Argentina com o Brasil fundamentou-se sobre a rivalidade a partir de duas vertentes:
a geopolítica, que acentuava o desequilíbrio de poder entre ambos os países com uma
inveja argentina pelos resultados do “milagre brasileiro”; e a teoria de dependência, que
destacava o perigo do “subimperialismo brasileiro” na Bacia do Prata e o papel do país,
a partir de uma aliança privilegiada com Washington, de “polícia” dos Estados Unidos
na sub-região (RUSSEL; TOKATLIAN, 2002, p. 416).
Em 1979, Argentina, Brasil e Paraguai assinaram o Acordo Tripartite de Corpus-Itaipu, que
resolvia o litígio entre os países sobre o uso dos recursos hídricos da região. No ano seguinte, em 1980,
Argentina e Brasil firmaram um acordo de cooperação para o desenvolvimento e aplicação da energia
nuclear para uso pacífico, o que permitiu perspectivas importantes para o avanço da cooperação entre
os países. Segundo Russel e Tokatlian (2002), o Brasil havia deixado de ser a hipótese de conflito
prioritária para o pensamento estratégico argentino.
A transição para o regime democrático nos dois países marcou um período de maior
estreitamento na relação bilateral Argentina-Brasil. Na Argentina, o governo de Raúl Alfonsín (1983-
1989), orientou o país a um papel ativo na relação com os países da região, dado o pertencimento
argentino ao mundo em desenvolvimento. Nesse sentido, como apontam Russel e Tokatlian (2002), a
política exterior da Argentina durante o governo de Alfonsín voltou-se para a América Latina, em
particular os países vizinhos, a fim de intensificar políticas de cooperação, integração e concertação.
Dessa forma, o estreitamento bilateral iniciado ao final da década de 1970 foi aprofundado,
tornando a cooperação vertente predominante na política externa argentina frente ao Brasil. Portanto,
da concorrência se passa gradualmente à construção de uma sociedade, que é concebida
como um projeto de caráter estratégico para consolidar o processo democrático em
ambos os países, resguardar a soberania nacional, impulsionar o desenvolvimento
argentino em complementaridade com o do Brasil, e reunir massa crítica para ampliar
a capacidade de negociação internacional (RUSSEL; TOKATLIAN, 2002, p. 418-9).
A produção de armamentos é uma atividade industrial que depende, em certa medida, de fatores
e condições associados à economia local. Nesse sentido, o nível de industrialização do país e a existência
de uma infraestrutura adequada cumprem papel importante no desenvolvimento de uma indústria de
armamentos doméstica, assim como fatores relacionados à qualificação da mão de obra. Portanto, o
7
sucesso de uma indústria de armamentos, no longo prazo, depende tanto dos aspectos econômicos quanto
da vontade política que pode ter estimulado o início da produção de armamentos (KRAUSE, 1992).
Todavia, ao mesmo tempo em que uma indústria de armamentos depende das condições de
infraestrutura e desenvolvimento industrial de um país, também pode ser entendida como um catalisador
do processo de industrialização. A indústria de armamentos pode estimular o desenvolvimento
econômico por sua ligação com setores mais amplos e menos restritos à produção de armamentos, tais
como: metalurgia, siderurgia, e engenharia naval.
Em grande medida, a manutenção da indústria de defesa em alguns países produtores, além das
vendas direcionadas ao mercado interno, depende do volume de exportações. De modo geral, os
armamentos adquiridos por Argentina e Brasil derivam de países que desenvolveram suas indústrias de
defesa de acordo com os fatores supracitados, e em um quadro sistêmico de produção e transferência de
armamentos em nível internacional. Portanto, para a melhor compreensão sobre a origem dos
armamentos adquiridos pelos dois países, faz-se necessário avaliar as condições sistêmicas, bem como
suas características, sobre as quais essas aquisições ocorreram.
Para compreender a dinâmica do sistema de produção e transferência de armamentos, é preciso,
em primeiro lugar, identificar as forças que geram a demanda para a produção e transferência de
armamentos e, em segundo lugar, explicar sob quais condições essa demanda pode se alterar em função
do tempo. Não há na bibliografia especializada um consenso sobre qual força identificada é
predominante.
Segundo Krause (1992), as abordagens que privilegiam diferentes questões como fundamentais
podem ser distinguidas da seguinte forma: a “busca pela riqueza”, a “busca pelo poder”, e a “busca pela
vitória na guerra”. Do ponto de vista da busca pelo poder, a principal força motriz por trás da produção
de armamentos em larga escala é a existência de relações entre Estados potencialmente conflituosas,
operadas sob o dilema de segurança de um sistema de autoajuda (KRAUSE, 1992).
A guerra, concretizada ou potencial, estimula a transferência e a produção de armamentos, bem
como a inovação da tecnologia militar. A consequência direta mais clara causada por uma guerra é o
aumento na demanda por armas, o que não necessariamente afeta a estrutura do sistema de transferência
de armamentos. No caso de Estados envolvidos em relações de rivalidade com outros países, a
motivação para desenvolver capacidades domésticas de produção de armamentos é maior, uma vez que
relações de rivalidade “acentuam os potenciais custos de dependência da importação de armamentos”
(KINSELLA, 1998, p. 2).
A capacidade de produção de armamentos em nível doméstico relaciona-se, em certa medida,
ao domínio de tecnologias por parte do Estado. Nesse sentido, a transferência de armamentos seria o
resultado da inabilidade para a produção autônoma por um país. Dessa forma, a transferência de
armamentos pode ser compreendida como uma resposta ao desequilíbrio de capacidades – econômica e
tecnológica – para a produção de armamentos.
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Portanto, ao compreender a transferência de armamentos como alternativa à produção, infere-se
que, mais que a troca de produtos, a transferência de armamentos é um veículo para a transmissão e
difusão de tecnologia militar (KRAUSE, 1992). A obtenção desse tipo de tecnologia manifesta-se nas
tentativas dos Estados em adquirir meios para a reprodução, a adaptação, e, eventualmente, a produção
dos armamentos. O que deve ser enfatizado é “o papel crucial exercido pela inovação tecnológica e sua
subsequente difusão como catalisador e combustível do comércio de armas” (KRAUSE, 1992, p. 25).
Dessa forma, considerando os desequilíbrios entre as capacidades que os Estados têm de
produzir armamentos e inovar, discute-se a existência de uma estrutura que ajuda no entendimento das
desigualdades em termos de capacidade de produção e no fluxo de transferência de armamentos. Nesse
sentido, os Estados são categorizados em três camadas verticais de produtores: a primeira camada,
formada por países capazes de inovar e avançar a fronteira tecnológica; a segunda camada, composta
por países que podem produzir uma relativa variedade de produtos próximos à fronteira tecnológica,
mas, por conta de limitações de capacidades, raramente inovam; e terceira camada, formada por países
que têm sua produção limitada à reprodução dos armamentos (KRAUSE, 1992).
Entendendo que o modelo hierárquico – e rígido – proposto por Krause (1992) possui limitações
em termos de enquadramento dos países, entende-se que Argentina e Brasil aproximam-se da categoria
da “terceira camada”. Contudo, é preciso destacar que ambos os países apresentam históricos de
produção de armamentos com relativo grau de inovação em nichos específicos. A indústria argentina
do setor aeronáutico no período pós-Segunda Guerra Mundial, por exemplo, desenvolveu as primeiras
tentativas na América Latina de construir protótipos de caças a jato (Pulqui I e Pulqui II) sob a direção
de cientistas alemães que participaram de projetos aeronáuticos durante a Segunda Guerra Mundial
(ACUÑA; SMITH, 1994).
Em função da característica hierárquica da estrutura que organiza a dinâmica de transferência
de armamentos, os países da “terceira camada” obtêm produtos dos Estados produtores da primeira e
segunda camadas. A Tabela 1 apresenta o percentual de transferência de armamentos de cada país em
relação ao total mundial, durante o período de 1971 a 1988. De maneira geral, os países que compõem
a tabela podem ser classificados como produtores de primeira e segunda camada.
Tabela 1 – Percentual de transferência de armamentos em relação ao total mundial no período de 1971
a 1988, em %
País 1971-1974 1975-1978 1979-1982 1983-1986 1987-1988
Estados Unidos 41,9 30,4 18,9 22 27,8
URSS 32,4 35,7 45 39,5 42,5
França 5,7 6,9 7,9 9 4,5
Grã-Bretanha 4,2 4,4 5,1 3,2 2,8
Alemanha Ocidental 1,9 3,8 3,2 3,4 2,2
Itália 1,1 2,3 2,4 2 0,7
Fonte: Criação do autor com base em UNITED STATES (vários anos).
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Tendo em vista essas considerações, cabe voltar a análise para o contexto das relações bilaterais
de Argentina e Brasil. Segundo Russel e Tokatlian (2002), desde a constituição do Estado argentino até
a década de 1980, a cultura que prevaleceu sobre a relação bilateral entre Argentina e Brasil foi a de
rivalidade. Contudo, a partir da década de 1980, foram incorporados de forma crescente elementos
característicos de uma cultura kantiana.
Os autores consideram os três tipos de cultura que caracterizam as relações interestatais: a
hobbesiana, que representa a inimizade; a lockeana, que representa a rivalidade; e a kantiana, que traduz
relações de amizade (WENDT, 2000)7. Entende-se por cultura todo conhecimento socialmente
compartilhado que é comum e conectado entre os indivíduos. Ainda, de acordo com Wendt (2000), o
conhecimento consiste nas crenças e desejos de um dado ator, e, sua distribuição caracteriza o aspecto
ideacional da estrutural social.
Cabe resgatar as variáveis que, segundo Wendt (2000), compõem a estrutura social: condições
materiais, interesses e ideias. Cada um desses três elementos exerce papeis distintos e podem ser
compreendidos como “estruturas” particulares, contudo, é importante ter em mente a necessidade de
considerá-las de maneira articulada, dado que “sem ideias não há interesses, sem interesses não há
condição material significativa, sem condições materiais não há realidade” (WENDT, 2000, p. 139).
Nesse sentido, tendo em vista as discussões a respeito das forças estruturais que dinamizam o
fluxo de transferência de armamentos, cabe explorar esses processos nos casos de Argentina e Brasil.
Em mesma medida, considerando os argumentos apresentados, sobretudo os que enfatizam a
intensificação da produção e aquisição de armamentos em contextos de rivalidade e aqueles que
discorrem sobre a relação bilateral de Argentina e Brasil, questiona-se em que medida a cultura
estabelecida entre os dois países influenciou suas dinâmicas de aquisição de armamentos.
Argentina
Durante o período de 1970 a 1989, foram identificados 178 casos de trocas de sistemas de armas
tendo a Argentina como destino. Na maioria dos casos (Gráfico 1), a Argentina desempenhou o papel
de Estado receptor, ou seja, os acordos envolveram apenas a transferência do armamento finalizado.
Somente em 6 oportunidades foi possível identificar acordos de obtenção da licença para a produção dos
armamentos pela Argentina.
Gráfico 1 – Tipos das importações de armamentos realizadas pela Argentina (1970-1989)
7 “A postura de inimigos é a de ameaçar adversários que não observam limites na violência direcionada um ao
outro; a postura de rivais é a de competidores que usam da violência para avançar em seus interesses, mas evitam
destruir um ao outro; a postura de amigos é a de aliados que não usam a violência para solucionar suas disputas e
trabalham como um time contra ameaças à segurança” (WENDT, 2000, p. 258).
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Fonte: Criação do autor com base em The Arms Transfers Database Arms Trade Register (2015).
Esse tipo de acordo ganha relevância quando considerado o aspecto difusor de tecnologia
militar, para além da instrumentalização das forças armadas do país receptor. Os acordos de obtenção
da licença de produção, que preveem a transferência de desenho e do know-how básico, permitem que o
país receptor reproduza a tecnologia adquirida.
Ao avaliarmos a origem dos sistemas de armas obtidos de maneira geral, nota-se que há a
predominância de países do hemisfério Norte, como os Estados Unidos e diversos países europeus.
Considerando a estrutura apresentada por Krause (1992), é possível classificar os países dos quais a
Argentina mais importa armamentos como produtores da primeira e segunda camada, ou seja, produzem
armamentos sofisticados em termos tecnológicos.
Gráfico 2 – Origens das importações argentinas como receptor (1970-1989)
97%
3%
Receptor Licença
11
Fonte: Criação do autor com base em The Arms Transfers Database Arms Trade Register (2015).
O Gráfico 2 apresenta as origens das importações argentinas como receptor, ou seja, que não
envolveram a aquisição da licença para a produção dos armamentos. Nota-se que os principais parceiros
argentinos durante o período estão geograficamente localizados no hemisfério Norte. O percentual de
importações derivadas dos Estados Unidos é substancialmente maior que a participação de todos os
demais parceiros, o que indica a importância dos armamentos estadunidenses para a instrumentalização
das forças armadas argentinas durante o período.
No âmbito da Marinha, as indústrias britânicas, alemãs ocidentais e francesas foram importantes
aliadas para os esforços de aperfeiçoamento da frota naval argentina, além de favorecer processos de
transferência tecnológica. Nesse sentido, Acuña e Smith (1994) apontam as compras de fragatas do tipo
Meko-140, de submarinos classe 1700, ambos de origem alemã, e a aquisição de mísseis Sea-Cats, Sea-
Darts – britânicos – e Exocet – franceses. De maneira análoga, durante as décadas de 1960 e 1970, a
Força Aérea argentina adquiriu aeronaves francesas Mirage, israelenses do tipo Dagger e norte-
americanas do modelo Skyhawk A-4 (ACUÑA; SMITH, 1994).
Ainda, cabe destacar as aquisições de armamentos realizadas junto aos países sul-americanos
que figuram na relação com o Brasil e o Peru. Em relação ao país vizinho, a Argentina adquiriu diferentes
Estados
Unidos
38%
França
19%
Holanda
9%Alemanha
Ocidental
6%
Itália
8%
Reino
Unido
7%
Israel
3%
Brasil
2%
Áustria
2%
Espanha
1%Suiça
1%Peru
1%
Suécia
1%
Bélgica
1%
Bulgária
1%
Canadá
1%
Estados Unidos
França
Holanda
Alemanha Ocidental
Itália
Reino Unido
Israel
Brasil
Áustria
Espanha
Suiça
Peru
Suécia
Bélgica
Bulgária
Canadá
12
aeronaves – de asa fixa e rotativa - para combate, patrulha e treinamento de suas tropas (SIPRI, 2015).
Ainda, segundo os dados disponibilizados pelo SIPRI (2015), o governo do Peru emprestou à Argentina
10 unidades da aeronave de combate Mirage-5 durante a Guerra das Malvinas. Em mesma medida, o
Brasil emprestou para o governo argentino 3 unidades da aeronave de patrulha marítima EMB-111 que
foram empregadas no conflito.
Contudo, segundo Escudé e Cisneros (2000), durante a crise das Malvinas, a diplomacia
brasileira orientou sua ação no sentido de mediar o conflito entre Argentina e Grã-Bretanha, não se
alinhando com a postura argentina, tampouco respaldando as sanções econômicas adotadas contra o
regime militar argentino. Com o fim do conflito, o Brasil exerceu um importante papel de provedor de
armas para as Forças Armadas argentinas no processo de reestruturação militar pós-Malvinas
(ESCUDÉ; CISNEROS, 2000).
Gráfico 3 – Licenças de produção obtidas pela Argentina por país (1970-1989)
Fonte: Criação do autor com base em The Arms Transfers Database Arms Trade Register (2015).
O Gráfico 3 apresenta a origem dos acordos de aquisição de licença firmados pela Argentina.
Para melhor compreensão das forças políticas que alavancaram acordos dessa natureza, é preciso
retomar as medidas adotadas na segunda metade da década de 1960. O regime militar argentino do
governo de Juan Onganía (1966-1970) marcou a intensificação da busca pela diversificação de parcerias
estrangeiras no âmbito da indústria de defesa.
Essa nova postura por parte do governo argentino beneficiou iniciativas como a do “Plan
Europa”, que estava pautada pela formulação de joint ventures privadas e públicas entre empresas
argentinas e europeias. Sob tal contexto, em 1968 o governo argentino adquiriu junto à França a licença
para a produção doméstica do blindado francês AMX-VCI (SIPRI, 2015). Nesse sentido, infere-se que
mais do que cumprir o objetivo de modernizar o instrumento militar das Forças Armadas argentinas, a
16%
17%
17%
50%
França Suiça
Reino Unido Alemanha Ocidental
13
parceria também favorecia a dinamização do setor industrial da Argentina, tendo em vista a produção
nacional do produto.
Durante a década de 1970, a Argentina adquiriu junto aos governos de Reino Unido e República
Federal da Alemanha a licença para a produção interna de produtos militares, ambos esforços inseridos
no escopo do Plan Europa. No acordo com o Reino Unido, foram produzidos dois destroieres Type-42,
armamento que viria a ser empregado durante a Guerra das Malvinas, em 1982 (SIPRI, 2015). No caso
do acordo com a República Federal da Alemanha, a Argentina obteve a licença para a produção interna
de fragatas alemãs do tipo Meko-140 (ACUÑA; SMITH, 1994) e do Tanque Argentino Mediano – TAM
(SIPRI, 2015). Para os fins de fabricação, montagem e venda do TAM, foi criada em 1980 a empresa
estatal Tanque Argentino Mediano Sociedad del Estado (TAMSE), que, até o fim de 1986, havia
produzido e entregue ao Exército argentino 134 unidades do blindado, o qual possuía 80% dos
componentes produzidos nacionalmente (ARZUBI, 2004; SIPRI, 2015).
Brasil
Durante o período de 1970 a 1989, foram identificados 101 casos de trocas de sistemas de armas
tendo o Brasil como destino. Assim como a Argentina, a maioria dos casos (Gráfico 4) foi de
transferência de material. Em 11 oportunidades foi possível identificar acordos de obtenção da licença
para a produção dos armamentos pelo Brasil.
Gráfico 4 – Tipos das importações de armamentos realizadas pelo Brasil (1970-1989)
Fonte: Criação do autor com base em The Arms Transfers Database Arms Trade Register (2015).
O contexto econômico do período favoreceu o processo de reaparelhamento das forças armadas
brasileiras, bem como o fortalecimento da indústria de defesa do país, em virtude dos acordos de
aquisição da licença para produção. Nesse sentido, destacam-se as seguintes iniciativas do governo
brasileiro: a aquisição das fragatas de treinamento da classe Niterói, em 1970, junto ao governo do Reino
89%
11%
Receptor Licença
14
Unido; produção conjunta da aeronave de treinamento e ataque leve EMB-326 Xavante; e o
desenvolvimento da aeronave de ataque ar-terra AMX, realizado em parceria com as empresas italianas
Aeritalia e Aermacchi (SOARES, 2015).
O Gráfico 5 apresenta as origens das importações brasileiras como receptor, ou seja, que não
envolveram a aquisição da licença para a produção dos armamentos. Cabe notar as similaridades com
as características das importações argentinas, as quais também apresentam os Estados Unidos como
principal parceiro. Além de demonstrar a dependência brasileira frente aos armamentos estadunidenses,
e europeus, o destaque do país norte-americano como principal parceiro de Argentina e Brasil durante
um mesmo período evidencia a preocupação dos Estados Unidos com o equilíbrio de poder no Cone
Sul, bem como a relevância do ator para analisar não apenas a dinâmica de aquisição de armamentos de
Argentina e Brasil, mas também a relação bilateral em termos mais amplos.
Gráfico 5 – Origens das importações brasileiras como receptor (1970-1989)
Fonte: Criação do autor com base em The Arms Transfers Database Arms Trade Register (2015).
Em mesma medida, o predomínio estadunidense como principal fornecedor de armamentos de
ambos os países denota a dinâmica da disputa por influência própria do período da Guerra Fria. A Tabela
1 apresenta o percentual de transferência de armamentos de cada país em relação ao total mundial. A
URSS figura no segundo lugar, atrás apenas dos Estados Unidos, contudo, não foi possível identificar
43%
18%
10%
10%
5%
3%3%
3%
2%
1%1%
1%
Estados Unidos
França
Reino Unido
Alemanha Ocidental
Itália
Canadá
Holanda
Suécia
Suiça
Austrália
Israel
Finlândia
15
nenhum caso de transferência de armamentos envolvendo o bloco soviético e um dos países em tela –
Argentina e Brasil.
O Gráfico 6 apresenta a origem dos acordos de aquisição de licença firmados pelo Brasil. Cabe
notar, a despeito da maioria de países europeus, a proporção representada pelos Estados Unidos, país
com o qual o Brasil possui relações importantes em termos de transferência de armamentos desde a
Segunda Guerra Mundial. Os acordos com os Estados Unidos concentram-se na área de aeronaves de
asa fixa, com destaque para a aeronave de transporte leve PA-34 Seneca (SIPRI, 2015).
Gráfico 6 – Licenças de produção obtidas pelo Brasil por país (1970-1989)
Fonte: Criação do autor com base em The Arms Transfers Database Arms Trade Register (2015).
A partir da década de 1970, o regime militar brasileiro deu início à implementação de três
decisões importantes: 1) estabelecer joint ventures com empresas europeias a fim de aprimorar o nível
tecnológico dos armamentos das Forças Armadas; 2) a instituição da proteção estatal para a informática,
que visava diminuir a dependência tecnológica brasileira através da capacitação do país no
desenvolvimento e na fabricação de equipamentos de computação eletrônica; 3) busca de novos
mercados estrangeiros subsidiada pela postura de “pragmatismo responsável” da política externa
brasileira (ACUÑA; SMITH, 1994).
Nesse sentido, as décadas de 1960 e 1970 guardam similaridades no caso de Argentina e Brasil
no que diz respeito à busca por acordos com países europeus para a aquisição de produtos de defesa. Os
acordos de aquisição de armamentos incluíam termos de gradual transferência tecnológica dos processos
de produção, desde o fornecimento direto do produto final até a montagem e produção doméstica
(LOCK, 1986).
Em relação à aquisição dos armamentos que não envolveram a transferência de tecnologia, Ross
(1987) aponta que, desde o início da década de 1970, a Argentina contou com maior dotação de
34%
33%
17%
8%
8%
Estados UnidosFrançaAlemanha OcidentalSuécia
16
armamentos que o Brasil, equivalente a 250 milhões de dólares8, em média. Esta tendência foi
interrompida em 1977, quando o Brasil começou a se equiparar a Argentina devido às aquisições feitas
pela marinha e força aérea brasileiras (MENESES, 1982). Contudo, aquisições por parte da Argentina
em 1979 e 1980 deixaram o país com uma vantagem final de 353 milhões de dólares9 sobre o Brasil em
1980.
Segundo Meneses (1982), considerando o tamanho das forças armadas de terra e de ar do Brasil,
sua distribuição regional e a natureza antisubmarina de suas forças navais, evidencia-se um indicativo
de que o poderio militar argentino não preocupou o país. Ainda, em termos da taxa de crescimento das
existências de armamentos ao longo da década, ambos países apresentam cifras similares. Ademais,
outro aspecto que cabe ser destacado é que durante o período da controvérsia Corpus-Itaipu, ambos os
países aumentaram suas aquisições militares em um ritmo inferior à média da década e à média de cinco
países da região – Argentina, Brasil, Chile, Equador e Peru (MENESES, 1982).
Em relação ao período da década de 1980, marcado por um arrefecimento da rivalidade entre os
dois países, nota-se que houve uma queda no total de gastos dispendidos para a aquisição de armamentos,
sobretudo no caso brasileiro (Gráfico 7). Chama a atenção o aumento acentuado dos gastos argentinos
no ano de 1983, que, por se concentrar no segmento de navios, pode conter alguma relação com o
contexto da Guerra das Malvinas. Em mesma medida, podemos notar que o processo de
redemocratização iniciado durante o governo do presidente Raúl Alfonsín (1983-1989), inserido em um
contexto de crise econômica, coincidiu com a gradual diminuição das aquisições militares.
No entanto, cabe frisar que a política de controle de gastos da administração Alfonsín manteve
formalmente parte dos projetos armamentistas dos militares, apesar de estender os prazos de alguns
deles. Os programas das três forças sofreram influências da nova abordagem econômica do regime
democrático:
a Marinha pode completar a construção de alguns destroieres e submarinos, mas o
Exército teve de diminuir significativamente a produção dos tanques TAM [enquanto
que] apenas dois programas de armas controlados pela Força Aérea receberam apoio
total – o desenvolvimento e a construção do protótipo do míssil Condor II e do avião a
jato de treinamento Pampa IA-63 (ACUÑA; SMITH, 1994, p. 22).
8 Em trabalho desenvolvido por Meneses (1982), os armamentos de Argentina e Brasil foram considerados com
base em uma estimação de preço de mercado, incluindo aqueles obtidos por meio de programas de ajuda militar.
A dotação da marinha foi medida com base no valor da tonelada, de acordo com um padrão valor/tonelada de cada
navio de guerra citado em uma publicação do SIPRI (Yearbook de 1979). Os armamentos de terra foram avaliados
segundo um padrão de preços de 1980, baseados principalmente no índice de preços da Defense and Foreign
Affairs (1981). Os preços do material aéreo foram extraídos basicamente do DMS Market Intelligence Report e do
DMS Military Aircraft (1981). 9 Idem.
17
Gráfico 7 – Valor das aquisições militares de Argentina e Brasil por ano (1980-1989)10
Fonte: Criação do autor com base em The Arms Transfers Database Arms Trade Register (2015).
Ainda, cabe destacar o aumento acentuado no valor das importações realizadas pelo Brasil no
ano de 1989. Nesse caso, o valor total referente ao segmento de navios foi maior que a média de todo o
período analisado (1970-1989). Contudo, em função de limitações dos dados, não foi possível identificar
uma explicação razoável para este aumento.
Conclusão
Considerando os debates sobre as motivações para a aquisição de armamentos, sobretudo a
ênfase dada por alguns autores aos contextos de rivalidade, esperava-se que o embate político derivado
do contencioso de Corpus-Itaipu, inserido em uma conjuntura de predomínio da rivalidade, pudesse
acirrar processos de aquisição de armamentos. Contudo, como notado anteriormente, durante o período
do contencioso, as aquisições militares de ambos os países aumentaram em um ritmo inferior à média
da década.
Em contrapartida, o início da década de 1980, quando foram incorporados alguns elementos
característicos de uma cultura de amizade, marcou práticas na dimensão militar, e especificamente na
aquisição de armamentos, menos associadas a um contexto de rivalidade. Sobretudo na área de
cooperação em defesa, o final da década de 1970 e início da década de 1980 foi promissor. Exemplos
disso foram a submissão em conjunto às exigências da Agência Internacional de Energia Atômica –
10 Os valores estão em unidades do trend-indicator value (TIV), que consiste em uma metodologia empregada pelo
SIPRI para estimar os valores das importações e exportações de armamentos. O TIV é baseado nas conhecidas
custos unitários de produção de um conjunto de armas e pretende representar a transferência de recursos militares
em vez do valor financeiro da transferência.
0
200
400
600
800
1000
1200
1400
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989
Argentina Brasil
18
aceitando que esta inspecionasse projetos e instalações em ambos os países –, e a operação entre as
marinhas argentina e brasileira, sob o nome de operação Fraterno11.
Em relação à década de 1980, período da transição para uma cultura de amizade, notou-se uma
diminuição dos valores dispendidos para a aquisição de armamentos por parte de ambos os países. Cabe
ressaltar, contudo, que o período foi marcado por acentuadas crises econômicas nos dois países. Apesar
disso, como mencionado, alguns projetos militares foram mantidos pelo governo democrático na
Argentina. Ainda, em 1980, foi assinado o Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica, que previa
a execução conjunta de pesquisas para o aperfeiçoamento de tecnologias existentes e/ou
desenvolvimento de novas tecnologias.
Esse acordo deu as bases para o Ajuste Complementar na Área da Tecnologia Militar, de 2005.
Nesse sentido, nota-se que o acordo se insere no escopo das motivações não conflitivas para a aquisição
de armamentos, sobretudo a de diminuição da dependência tecnológica. Frente a essas questões,
questiona-se em que medida a cultura da relação bilateral entre os países afetou a dinâmica das
aquisições de armamentos. Ao mesmo tempo em que não se pode desprezar a relevância de se pensar a
influência da percepção de um ator sobre o outro para o aparelhamento de suas forças armadas, infere-
se que outros fatores podem ajudar a explicar o desenvolvimento desses processos.
Certamente, eventuais limitações em termos de recursos financeiros incidem sobre o volume de
armamentos adquiridos pelos Estados, porém, nota-se que foi promovida a manutenção de alguns
projetos militares em contexto de crise econômica. Em mesma medida, apesar de representar um número
baixo em relação ao total analisado, as importações de armamentos que envolviam acordos de
transferência tecnológica podem complementar a análise sobre a dinâmica das aquisições de
armamentos. Em mesma medida, cabe explorar em que medida as políticas de armamentos das potências
podem afetar a dinâmica de aquisição de armamentos de países do chamado “Terceiro Mundo”,
sobretudo quando entendidos no escopo do modelo proposto por Krause (1992), no qual exercem o papel
de produtores e exportadores de armamentos mais tecnológicos.
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11 A Operação Fraterno ganha maior relevância quando considerado o histórico entre os dois países de corrida
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