AQUISIÇÃO DO SISTEMA DE ESCRITA EMILIA FERREIRO

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A pesquisadora argentina Emília Ferreiro esteve no Brasil para divulgar suas mais recentes pesquisas sobre alfabetização Hoje e na próxima semana, o Diário na Escola reproduz os principais tópicos abordados pela educadora durante a visita Sexta-feira, 25 de abril de 2003 DIÁRIO DO GRANDE ABC 3 Coordenação pedagógica – Luciana Hubner Edição – James Capelli Diagramação – Alexandre Elias Diário na Escola – Santo André é um projeto do Diário em parceria com a Secretaria de Educação e Formação Profissional de Santo André. A educadora argentina Emília Ferreiro esteve em São Paulo no mês passado para participar de dois eventos: um na USP, para um grupo restrito de educadores, e outro, um Seminário Internacional organizado pelo Centro de Estudos da Escola da Vila, de São Paulo. O objetivo de Emília foi apresentar o resultado de suas mais recentes pesquisas – só publicadas em italiano – a respeito da aquisição do sistema de escrita pelas crianças e sobre os problemas no processo de aquisição da língua escrita. O Diário na Escola acompanhou as duas palestras e apresenta, hoje e na próxima semana, os principais pontos abordados. Emília relatou que sua pesquisa trata da diferença entre os sistemas gráfico e ortográfico em qualquer sistema de escrita. Para ela, pensar sobre esta diferença ajuda a entender um dos grandes problemas da alfabetização, que é a aquisição da ortografia. A pesquisadora esclareceu que quando se analisa a produção gráfica de crianças ou adultos em processo de alfabetização com a intenção de reconhecer quais são as alterações ortográficas, geralmente verifica-se algumas características analíticas que todos os professores, e até pais, conhecem: omissões, substituições, agregações ou adição e transposição ou permutação de letras. Essas são categorias tradicionais e freqüentemente neutras, puramente descritivas. Porém, a educadora tomou isso como tema de estudo, pois para pesquisa por trás de coisas supostamente neutras há pressuposições, há um sujeito que pensa. A pesquisa de Emília procurou verificar os motivos que levam isso a acontecer, a razão dessas trocas, olhando para aquilo que o sujeito pode saber sobre o sistema de escrita ao invés de analisar o que ele não sabe e não pode ainda fazer. O princípio do estudo é que todo sujeito é reflexivo e que a construção da aprendizagem, incluindo o sistema de escrita, se dá pela reflexão e não pela transmissão ou memorização. Para Emília, considerar somente os desvios ortográficos é uma maneira de colocar em primeiro plano os desacertos, a coisa mal feita. Isso não permite olhar para os acertos, “entender como o sujeito pensa para poder ajudá-lo a avançar”. A educadora relatou que pediu a professores para, numa produção escrita de cópia de texto de crianças, marcar de vermelho os acertos, ao invés dos desacertos como estão acostumados a fazer. Este foi um exercício inédito e não muito fácil para os educadores que mostrou o quanto os professores têm dificuldade em focar em primeiro plano aquilo que as crianças já sabem. “É preciso olhar de outra maneira para encontrar o que há de positivo, para isso é preciso distinguir o sistema gráfico do ortográfico”, disse. ( Sistema gráfico: meios que a língua dispõe para expressar os sons. Sistema ortográfico: tem relação com as regras que determinam o emprego das letras segundo as circunstâncias). Ela afirmou que essa distinção tem sido discutida por alguns autores, entre eles ela citou um russo, professor de francês, que faz uma reflexão sobre a língua francesa. São pesquisas que apontam resultados interessantes, como o fato de que a distinção entre o gráfico e o ortográfico tem relação com a língua. Segundo o tal pesquisador russo citado, o sistema gráfico tem relação com os meios que uma língua dispõe para expressar os sons. Isso se refere ao conjunto das letras e todos os outros sinais que podem ser colocados acima ou abaixo das letras. Como, por exemplo, o “tracinho” abaixo do “c” para formar o cedilha, letra não existente em espanhol. O ortográfico tem relação com as regras, com o emprego das letras segundo as circunstâncias. “O que é ortográfico deve ter alternativas. Se não há alternativa não há ortografia”, afirmou Emília. Isso quer dizer que se existisse uma língua com correspondência entre fonema e letra, não seria possível se falar de ortografia, porque esta indica alternância possível. O sistema, a língua oral, se modifica muito mais rapidamente que a língua escrita. Entender essa diferença ajuda na compreensão do problema clássico da alfabetização que é a aquisição da ortografia. A pesquisadora argentina disse acreditar que para serem estudados os problemas ortográficos presentes no processo de aquisição do sistema, faz-se necessário analisar um número grande de amostras de escritas, para que seja possível pensar a respeito das trocas e do motivo delas ocorrerem, isso em relação à língua e suas particularidades. A pesquisa de Emília Ferreiro analisou 412 textos produzidos em espanhol por alunos do México, Argentina e Uruguai; 235 textos de crianças brasileiras do Ceará e Paraná e 450 textos em italiano. Foi pedido aos alunos que contassem a história da Chapeuzinho Vermelho, previamente conhecida por eles. No enunciado da proposta de redação não havia nenhuma referência a questões ortográficas, pedia-se apenas que as crianças contassem a história e que podiam rasurar, riscar e desenhar. A única exigência foi que escrevessem com caneta, porque o estudo queria averiguar como os alunos pensavam e o que estava por trás de possíveis rasuras. “É interessante a imposição da escrita ser a caneta, pois ela nos permite ver o que muitas vezes deixamos não percebemos. Analisar o que não aparece no corpo de um texto é tão relevante quanto analisar o que aparece”, afirmou Emília. Para a análise, foi preciso distinguir os componentes que identificam o sistema gráfico, variantes tipográficas, sinais de pontuação, marcas distintas, por exemplo, para identificar quando uma palavra está incompleta ou se há espaços em branco, “pois estes dados são parte fundamental que marcam o início e o final de uma palavra, sem eles teremos a escrita clássica – escrever sem segmentação entre as palavras”, disse. As propriedades gráficas são variáveis de uma língua para outra – espanhol, italiano e português. “Por exemplo, em espanhol não há o “ç” e existem fonemas que são grafados de maneiras diferentes, como é o caso do som “nhan”, escrito com “nh” em português e com “gn” em italiano.” Emília ressaltou que o material gráfico vai muito além das letras que compõem uma língua. “Todos os espaços e marcas presentes numa produção são importantes.” Em uma produção de texto há um material gráfico, um conjunto de marcas gráficas utilizadas para escrever, mas há também uma cadeia combinatória de letras que podem seguir uma a outra formando uma cadeia gráfica. “Ou seja, é importante considerar as letras e em qual cadeia gráfica elas vão estar”, afirmou. Parte da pesquisa analisou como as crianças e adultos que estão em processo de construção do sistema de escrita respeitam ou não as restrições existentes na língua. “Todas as línguas têm restrições gráficas. Isto é, possibilidades combinatórias, letras que podem ou não ser usadas no final de uma cadeia gráfica e que podem ou não ser iniciais.” (Por exemplo, nossa língua não permite iniciar uma palavra com dois “rr” ou terminar uma palavra com “p”). Na análise desse material, verificou-se que havia trocas cometidas que têm relação estreita entre seqüência gráfica e seqüência sonora. As produções analisadas, principalmente as das crianças que já apresentam uma escrita alfabética, demonstraram que uma das poucas regras que os alunos conseguem oralizar e é ensinada pelos professores como regra ortográfica, é o uso obrigatório do “m” antes de “p” e “b”. Mas verficou-se que as crianças utilizaram como restrições gráficas o que, na verdade, lhes é ensinado como regra ortográfica. Emília fez uma colocação bastante provocativa ao dizer que as crianças não sabem regras ortográficas e que a escola e os livros didáticos não ensinam. E isso é bom, “porque é melhor não tomar consciência de certas coisas, pois a tomada de consciência, ao contrário do que muitos pensam, não faz avançar, atrapalha a aquisição do sistema de linguagem”. A pesquisadora disse que precisa ter cuidado com suas palavras, e ressaltou: “sinto a responsabilidade de minhas palavras, pois estou bastante habituada a ver que derivam experiências pedagógicas de qualquer coisa que eu falo.” A palavra construtivismo, segundo a psicolingüista argentina, é muito fácil de ser banalizada, deturpada e repetida, mas é de difícil compreensão, tanto no que diz respeito à pesquisa quanto à prática pedagógica. A educadora disse acreditar que aqueles professores que se dizem construtivistas não são melhores do que outros professores. “A palavra construtivismo tem sido bastante usada aqui no Brasil e alguns educadores confundem o construtivismo como uma intervenção que permite aos alunos fazerem somente aquilo que querem. Há uma confusão de métodos: confundem construtivismo com Laissefariz, algo como se as crianças aprendessem por acaso, por obra divina. Se fosse assim, a escola não seria necessária e ela é”, disse. Emília concluiu sua fala dando um conselho aos educadores a partir da própria experiência: afirmou que a psicogênese tem mais de 20 anos e isso a obriga, como autora, a se rever constantemente. “Eu não nego meu passado histórico, mas como estou viva, tenho obrigação de revê-lo”. Para Emília, essa revisão contínua é a mola propulsora de suas pesquisas, da constante produção de coisas novas e da alteração das antigas. APRESENTAÇÃO Considerada uma das pesquisadoras mais conhecidas dos educadores brasileiros, a psicolingüista e psicóloga argentina Emília Ferreiro, radicada no México, foi doutorada pela Universidade de Genebra, sob a orientação do educador Jean Piaget, e atualmente é professora do Departamento de Investigações Educativas do Centro de Investigações e Estudos avançados do Instituto Politécnico Nacional do México. Nos anos 70, Emília revolucionou a alfabetização ao publicar suas pesquisas que deram origem à Psicogênese do Sistema de Escrita, que veio tornar-se um marco na transformação do conceito de aprendizagem da escrita. Emília passou a defender a idéia do trabalho em contextos de letramento em substituição às cartilhas. A partir de 1985, com o lançamento do livro sobre suas pesquisas, que levou o nome de “Psicogênese da Língua Escrita”, escrito em parceria com Ana Teberosky, ela trouxe aos educadores uma nova preocupação: deslocar a atenção do ato de ensinar para o ato de aprender, por meio da construção de um conhecimento que é realizado pelo aprendiz – que passa a ser visto como um agente e não como um ser passivo que recebe e absorve o que lhe é “ensinado”. Emília questionou verdades que eram consideradas absolutas e contribuiu para que os educadores não pensassem apenas no que ensinar, mas em quem é o sujeito que aprende e como ele aprende. Ao contrário do que muitos pensam, ela não criou um método de alfabetização, mas sim, procurou observar como se realiza a construção da linguagem escrita pela criança. Derrubou alguns mitos da escola, como a idade ideal, ou certa, para se alfabetizar uma criança. Emília defende que as oportunidades que oferecidas aos alunos são mais importantes do que a idade. A esse respeito, ela tem uma frase célebre: “as crianças têm o mau costume de não pedir permissão para começar aprender. A idéia de que eu, adulto, determino a idade com que alguém vai aprender a escrever é parte da onipotência do sistema escolar que decide em que dia e a que horas algo vai começar”. Apesar de ter proporcionado aos educadores uma nova maneira de analisar a aprendizagem da língua escrita, o trabalho da pesquisadora argentina não traz indicações de como produzir o ensino. Ao contrário do que muitos dizem, não existe o “Método Emília Ferreiro”. O que os educadores têm à disposição é uma metodologia de ensino da língua escrita estruturada em torno dos princípios que organizam a prática do professor. O fato de a criança aprender a ler e escrever lendo e escrevendo, mesmo sem saber fazer isso, é um dos princípios defendidos por Emília. Também ao contrário do que muitos pensam, as pesquisas de Emília Ferreiro não se restringem a este único tema. No mais novo livro dela: “Passado e Presente dos Verbos Ler e Escrever”, da Editora Cortez, a educadora revela que o real significado desses verbos vem se modificando; ela avalia as interferências das inovações trazidas pelas novas formas de diálogo, o mundo virtual e o uso do computador na educação. Emília defende que a escola deve deixar de lado a educação homogênea e uniforme do século XIX para dar espaço para uma educação plurilingüe e pluricultural que aproveite as diferenças. Para ela, hoje já não basta saber escrever e ler textos simples, é necessário saber utilizar a internet, saber circular por diferentes tipos de textos com facilidade. Ela tem se dedicado apaixonadamente a pesquisas sobre a importância das escolas converterem as crianças em leitores plenos. Para Emília Ferreiro só é possível conhecer as hipóteses das crianças no processo de construção do sistema de escrita a partir de um novo referencial, uma concepção que reconheça que a elas aprendam algo que não foi ensinado pelo professor, uma concepção que permita ver a ação do aprendiz construindo o seu conhecimento, onde o professor apareça não mais como o que controla a aprendizagem do aluno, e sim, como um mediador entre aquele que aprende e o conteúdo a ser aprendido. Para ajudar os alunos a avançar, o professor precisa compreender a hipótese com que a criança está trabalhando,aí passa a ser possível problematizá- la e acirrar – através de informações adequadas – as contradições que irão gerar os progressos necessários para a compreensão do sistema alfabético. 1. A escola considera evidente que a escrita é “um sistema de signos que expressam sons individuais da fala” e supõe que também para a criança isso é dado a priori. Mas não é. No início do processo, toda criança supõe que a escrita é uma outra forma de desenhar as coisas. O que a criança não compreende, no princípio, é que a escrita representa a fala, o som das palavras, e não o objeto a que o nome se refere. 2. Ao começar a se dar conta das características formais da escrita, a criança constrói, então, duas hipóteses que irão acompanhá-la por algum tempo durante o processo de alfabetização: a) de que é preciso um número mínimo de letras (entre duas e quatro) para que esteja escrito alguma coisa; b) de que é preciso um mínimo de variedade de caracteres para que uma série de letras “sirva para ler”. 3. De início, a criança não faz uma diferenciação clara entre o sistema de representação do desenho (pictográfico) e o da escrita (alfabético). 4. Ainda antes de supor a escrita como representação da fala, a criança faz várias tentativas de construir um sistema que se assemelhe formalmente á escrita adulta buscando registrar as diferenças entre as palavras através de diferenças na quantidade, na posição e na variação dos caracteres empregados para escrevê-las. 5. A descoberta de que a escrita representa a fala leva a criança a formular uma hipótese ao mesmo tempo falsa e necessária, chamada de hipótese silábica. 6. A hipótese silábica é um salto qualitativo tornado possível pelo acirramento das contradições entre as hipóteses anteriores da criança e as informações que a realidade oferece a ela. O que caracteriza esta hipótese é a crença de que cada letra representa uma sílaba – a menor unidade de emissão sonora. Neste período, as letras podem começar a adquirir valores sonoros (silábicos) relativamente estáveis, o que leva a uma correspondência com o eixo qualitativo: as partes sonoras semelhantes entre as palavras começam a se exprimir por letras semelhantes. E isto gera suas formas de conflito. 7. As dificuldades enfrentadas nesse processo de alfabetização são muito mais de natureza conceitual e muito menos perceptíveis, conforme se pensava. Fonte: fragmento do artigo “Como se aprende a ler e escrever ou prontidão, um problema mal colocado”, publicado em Ciclo Básico, cenp/seesp BIBLIOGRAFIA EMÍLIA PARA SABER MAIS Fale com @ gente [email protected] Tel: 4996-1993 Psicogênese da Língua Escrita, Porto Alegra: Artemed, 1986 Chapeuzinho Vermelho Aprende a Escrever: estudos psicolingüísticos comparativos entre línguas, São Paulo: Editora Ática, 1996 Cultura, Escrita e Educação, Porto Alegre: Artemed, 2001 Vivências com Jean Piaget, Porto Alegre: Artemed, 2001 Alfabetização. Teoria e prática Piaget - Vigotsky: contribuições para plantar o debate, São Paulo: Ática, 1997 Reflexões sobre Alfabetização, São Paulo: Cortez Passado e Presente dos Verbos Ler e Escrever, São Paulo: Cortez, 2002 Aquisição do sistema de escrita

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A pesquisadora argentina Emília Ferreiroesteve no Brasil para divulgar suas maisrecentes pesquisas sobre alfabetização

Hoje e na próxima semana, o Diário naEscola reproduz os principais tópicosabordados pela educadora durante a visita

Sexta-feira, 25 de abril de 2003 DIÁRIO DO GRANDE ABC 3

Coordenação pedagógica – Luciana Hubner Edição – James Capelli Diagramação – Alexandre Elias Diário na Escola – Santo André é um projeto do Diário em parceria com a Secretaria de Educação e Formação Profissional de Santo André.

Aeducadora argentina Emília Ferreiro esteve em São Paulo nomês passado para participar de dois eventos: um na USP,para um grupo restrito de educadores, e outro, umSeminário Internacional organizado pelo Centro de Estudosda Escola da Vila, de São Paulo. O objetivo de Emília foiapresentar o resultado de suas mais recentes pesquisas – sópublicadas em italiano – a respeito da aquisição do sistema

de escrita pelas crianças e sobre os problemas no processo de aquisiçãoda língua escrita. O Diário na Escola acompanhou as duas palestras eapresenta, hoje e na próxima semana, os principais pontos abordados.

Emília relatou que sua pesquisa trata da diferença entre os sistemasgráfico e ortográfico em qualquer sistema de escrita. Para ela, pensarsobre esta diferença ajuda a entender um dos grandes problemas daalfabetização, que é a aquisição da ortografia.

A pesquisadora esclareceu que quando se analisa a produção gráficade crianças ou adultos em processo de alfabetização com a intenção dereconhecer quais são as alterações ortográficas, geralmente verifica-sealgumas características analíticas que todos os professores, e até pais,conhecem: omissões, substituições, agregações ou adição etransposição ou permutação de letras.

Essas são categorias tradicionais e freqüentemente neutras,puramente descritivas. Porém, a educadora tomou issocomo tema de estudo, pois para pesquisa por trás decoisas supostamente neutras há pressuposições, há umsujeito que pensa.

A pesquisa de Emília procurou verificar os motivosque levam isso a acontecer, a razão dessas trocas,olhando para aquilo que o sujeito pode saber sobre osistema de escrita ao invés de analisar o que ele não sabe enão pode ainda fazer. O princípio do estudo é que todosujeito é reflexivo e que a construção da aprendizagem,incluindo o sistema de escrita, se dá pela reflexão e nãopela transmissão ou memorização.

Para Emília, considerar somente os desvios ortográficosé uma maneira de colocar em primeiro plano osdesacertos, a coisa mal feita. Isso não permite olhar paraos acertos, “entender como o sujeito pensa para poderajudá-lo a avançar”.

A educadora relatou que pediu a professores para,numa produção escrita de cópia de texto de crianças,marcar de vermelho os acertos, ao invés dos desacertoscomo estão acostumados a fazer. Este foi um exercícioinédito e não muito fácil para os educadores que mostrouo quanto os professores têm dificuldade em focar emprimeiro plano aquilo que as crianças já sabem. “É precisoolhar de outra maneira para encontrar o que há depositivo, para isso é preciso distinguir o sistema gráfico doortográfico”, disse. ( Sistema gráfico: meios que alíngua dispõe para expressar os sons.Sistema ortográfico: tem relação com asregras que determinam o emprego dasletras segundo as circunstâncias).

Ela afirmou que essa distinção tem sidodiscutida por alguns autores, entre eles elacitou um russo, professor de francês, quefaz uma reflexão sobre a língua francesa.São pesquisas que apontam resultadosinteressantes, como o fato de que adistinção entre o gráfico e o ortográficotem relação com a língua.

Segundo o tal pesquisador russo citado, o sistema gráfico temrelação com os meios que uma língua dispõe para expressar os sons.Isso se refere ao conjunto das letras e todos os outros sinais que podemser colocados acima ou abaixo das letras. Como, por exemplo, o“tracinho” abaixo do “c” para formar o cedilha, letra não existente emespanhol.

O ortográfico tem relação com as regras, com o emprego das letrassegundo as circunstâncias. “O que é ortográfico deve ter alternativas.Se não há alternativa não há ortografia”, afirmou Emília.

Isso quer dizer que se existisse uma língua com correspondênciaentre fonema e letra, não seria possível se falar de ortografia, porqueesta indica alternância possível. O sistema, a língua oral, se modificamuito mais rapidamente que a língua escrita. Entender essa diferençaajuda na compreensão do problema clássico da alfabetização que é aaquisição da ortografia.

A pesquisadora argentina disse acreditar que para serem estudadosos problemas ortográficos presentes no processo de aquisição dosistema, faz-se necessário analisar um número grande de amostras deescritas, para que seja possível pensar a respeito das trocas e do motivodelas ocorrerem, isso em relação à língua e suas particularidades.

A pesquisa de Emília Ferreiro analisou 412 textos produzidos emespanhol por alunos do México, Argentina e Uruguai; 235 textos decrianças brasileiras do Ceará e Paraná e 450 textos em italiano. Foipedido aos alunos que contassem a história da ChapeuzinhoVermelho, previamente conhecida por eles. No enunciado da proposta

de redação não havia nenhuma referência a questões ortográficas,pedia-se apenas que as crianças contassem a história e que podiamrasurar, riscar e desenhar. A única exigência foi que escrevessem comcaneta, porque o estudo queria averiguar como os alunos pensavam eo que estava por trás de possíveis rasuras. “É interessante a imposiçãoda escrita ser a caneta, pois ela nos permite ver o que muitas vezesdeixamos não percebemos. Analisar o que não aparece no corpo de umtexto é tão relevante quanto analisar o que aparece”, afirmou Emília.

Para a análise, foi preciso distinguir os componentes queidentificam o sistema gráfico, variantes tipográficas, sinais depontuação, marcas distintas, por exemplo, para identificar quandouma palavra está incompleta ou se há espaços em branco, “pois estesdados são parte fundamental que marcam o início e o final de umapalavra, sem eles teremos a escrita clássica – escrever semsegmentação entre as palavras”, disse.

As propriedades gráficas são variáveis de uma língua para outra –espanhol, italiano e português. “Por exemplo, em espanhol não há o“ç” e existem fonemas que são grafados de maneiras diferentes, como

é o caso do som “nhan”, escrito com “nh” em português e com “gn”em italiano.”

Emília ressaltou que o material gráfico vai muito alémdas letras que compõem uma língua. “Todos os espaços emarcas presentes numa produção são importantes.” Emuma produção de texto há um material gráfico, umconjunto de marcas gráficas utilizadas para escrever,mas há também uma cadeia combinatória de letrasque podem seguir uma a outra formando uma cadeia

gráfica. “Ou seja, é importante considerar as letras eem qual cadeia gráfica elas vão estar”, afirmou.

Parte da pesquisa analisou como as crianças e adultosque estão em processo de construção do sistema deescrita respeitam ou não as restrições existentes na

língua. “Todas as línguas têm restrições gráficas.Isto é, possibilidades combinatórias, letras que

podem ou não ser usadas no final de uma cadeiagráfica e que podem ou não ser iniciais.” (Por

exemplo, nossa língua não permite iniciar umapalavra com dois “rr” ou terminar uma palavra com

“p”).Na análise desse material, verificou-se que havia

trocas cometidas que têm relação estreita entreseqüência gráfica e seqüência sonora. As produções

analisadas, principalmente as das crianças que jáapresentam uma escrita alfabética, demonstraram que

uma das poucas regras que os alunos conseguem oralizar e éensinada pelos professores como regraortográfica, é o uso obrigatório do “m” antes de“p” e “b”. Mas verficou-se que as criançasutilizaram como restrições gráficas o que, naverdade, lhes é ensinado como regraortográfica.

Emília fez uma colocação bastanteprovocativa ao dizer que as crianças não sabemregras ortográficas e que a escola e os livrosdidáticos não ensinam. E isso é bom, “porque émelhor não tomar consciência de certascoisas, pois a tomada de consciência, aocontrário do que muitos pensam, não fazavançar, atrapalha a aquisição do sistema de

linguagem”. A pesquisadora disse que precisa ter cuidado com suas palavras, e

ressaltou: “sinto a responsabilidade de minhas palavras, pois estoubastante habituada a ver que derivam experiências pedagógicas dequalquer coisa que eu falo.”

A palavra construtivismo, segundo a psicolingüista argentina, émuito fácil de ser banalizada, deturpada e repetida, mas é de difícilcompreensão, tanto no que diz respeito à pesquisa quanto à práticapedagógica.

A educadora disse acreditar que aqueles professores que se dizemconstrutivistas não são melhores do que outros professores. “A palavraconstrutivismo tem sido bastante usada aqui no Brasil e algunseducadores confundem o construtivismo como uma intervenção quepermite aos alunos fazerem somente aquilo que querem. Há umaconfusão de métodos: confundem construtivismo com Laissefariz,algo como se as crianças aprendessem por acaso, por obra divina. Sefosse assim, a escola não seria necessária e ela é”, disse.

Emília concluiu sua fala dando um conselho aos educadores a partirda própria experiência: afirmou que a psicogênese tem mais de 20anos e isso a obriga, como autora, a se rever constantemente. “Eu nãonego meu passado histórico, mas como estou viva, tenho obrigação derevê-lo”. Para Emília, essa revisão contínua é a mola propulsora desuas pesquisas, da constante produção de coisas novas e da alteraçãodas antigas.

APRESENTAÇÃOConsiderada uma das pesquisadoras mais

conhecidas dos educadores brasileiros, a psicolingüista e psicóloga argentina Emília

Ferreiro, radicada no México, foi doutorada pelaUniversidade de Genebra, sob a orientação do

educador Jean Piaget, e atualmente é professorado Departamento de Investigações Educativas doCentro de Investigações e Estudos avançados doInstituto Politécnico Nacional do México. Nosanos 70, Emília revolucionou a alfabetização ao

publicar suas pesquisas que deram origem àPsicogênese do Sistema de Escrita, que veio

tornar-se um marco na transformação doconceito de aprendizagem da escrita. Emíliapassou a defender a idéia do trabalho em

contextos de letramento em substituição àscartilhas.

A partir de 1985, com o lançamento do livrosobre suas pesquisas, que levou o nome de“Psicogênese da Língua Escrita”, escrito emparceria com Ana Teberosky, ela trouxe aos

educadores uma nova preocupação: deslocar aatenção do ato de ensinar para o ato deaprender, por meio da construção de um

conhecimento que é realizado pelo aprendiz –que passa a ser visto como um agente e não

como um ser passivo que recebe e absorve o quelhe é “ensinado”.

Emília questionou verdades que eramconsideradas absolutas e contribuiu para que os

educadores não pensassem apenas no queensinar, mas em quem é o sujeito que aprende e

como ele aprende. Ao contrário do que muitos pensam, ela não

criou um método de alfabetização, mas sim,procurou observar como se realiza a construção

da linguagem escrita pela criança. Derrubou alguns mitos da escola, como a

idade ideal, ou certa, para se alfabetizar umacriança. Emília defende que as oportunidades

que oferecidas aos alunos são mais importantesdo que a idade. A esse respeito, ela tem uma

frase célebre: “as crianças têm o mau costumede não pedir permissão para começar aprender.

A idéia de que eu, adulto, determino a idade comque alguém vai aprender a escrever é parte daonipotência do sistema escolar que decide em

que dia e a que horas algo vai começar”. Apesar de ter proporcionado aos educadores

uma nova maneira de analisar a aprendizagemda língua escrita, o trabalho da pesquisadora

argentina não traz indicações de como produzir oensino. Ao contrário do que muitos dizem, não

existe o “Método Emília Ferreiro”. O que os educadores têm à disposição é uma

metodologia de ensino da língua escritaestruturada em torno dos princípios que

organizam a prática do professor. O fato de acriança aprender a ler e escrever lendo e

escrevendo, mesmo sem saber fazer isso, é umdos princípios defendidos por Emília.

Também ao contrário do que muitos pensam,as pesquisas de Emília Ferreiro não se restringem

a este único tema. No mais novo livro dela:“Passado e Presente dos Verbos Ler e Escrever”,da Editora Cortez, a educadora revela que o realsignificado desses verbos vem se modificando;

ela avalia as interferências das inovaçõestrazidas pelas novas formas de diálogo, o mundo

virtual e o uso do computador na educação. Emília defende que a escola deve deixar de

lado a educação homogênea e uniforme doséculo XIX para dar espaço para uma educação

plurilingüe e pluricultural que aproveite asdiferenças.

Para ela, hoje já não basta saber escrever e lertextos simples, é necessário saber utilizar a

internet, saber circular por diferentes tipos detextos com facilidade. Ela tem se dedicado

apaixonadamente a pesquisas sobre aimportância das escolas converterem as crianças

em leitores plenos.

Para Emília Ferreiro só é possível conhecer ashipóteses das crianças no processo de construçãodo sistema de escrita a partir de um novoreferencial, uma concepção que reconheça que aelas aprendam algo que não foi ensinado peloprofessor, uma concepção que permita ver aação do aprendiz construindo o seuconhecimento, onde o professor apareça nãomais como o que controla a aprendizagem doaluno, e sim, como um mediador entre aqueleque aprende e o conteúdo a ser aprendido. Paraajudar os alunos a avançar, o professor precisacompreender a hipótese com que a criança estátrabalhando,aí passa a ser possível problematizá-la e acirrar – através de informações adequadas –as contradições que irão gerar os progressosnecessários para a compreensão do sistemaalfabético. 1. A escola considera evidente que a escrita é“um sistema de signos que expressam sons

individuais da fala” e supõe que também para acriança isso é dado a priori. Mas não é. No iníciodo processo, toda criança supõe que a escrita éuma outra forma de desenhar as coisas. O que acriança não compreende, no princípio, é que aescrita representa a fala, o som das palavras, enão o objeto a que o nome se refere.2. Ao começar a se dar contadas características formaisda escrita, a criança constrói,então, duas hipóteses queirão acompanhá-la poralgum tempo durante oprocesso de alfabetização: a) de que é preciso um número mínimo de letras(entre duas e quatro) para que esteja escritoalguma coisa; b) de que é preciso um mínimo de variedade decaracteres para que uma série de letras “sirvapara ler”.

3. De início, a criança não faz uma diferenciaçãoclara entre o sistema de representação dodesenho (pictográfico) e o da escrita(alfabético).4. Ainda antes de supor a escrita comorepresentação da fala, a criança faz váriastentativas de construir um sistema que se

assemelhe formalmente áescrita adulta buscandoregistrar as diferenças entreas palavras através dediferenças na quantidade, naposição e na variação dos

caracteres empregados para escrevê-las.5. A descoberta de que a escrita representa a falaleva a criança a formular uma hipótese aomesmo tempo falsa e necessária, chamada dehipótese silábica.6. A hipótese silábica é um salto qualitativotornado possível pelo acirramento das

contradições entre as hipóteses anteriores dacriança e as informações que a realidade oferecea ela. O que caracteriza esta hipótese é a crençade que cada letra representa uma sílaba – amenor unidade de emissão sonora. Nesteperíodo, as letras podem começar a adquirirvalores sonoros (silábicos) relativamenteestáveis, o que leva a uma correspondência como eixo qualitativo: as partes sonoras semelhantesentre as palavras começam a se exprimir porletras semelhantes. E isto gera suas formas deconflito.7. As dificuldades enfrentadas nesse processo dealfabetização são muito mais de naturezaconceitual e muito menos perceptíveis,conforme se pensava.

Fonte: fragmento do artigo “Como se aprende aler e escrever ou prontidão, um problema malcolocado”, publicado em Ciclo Básico, cenp/seesp

BIBLIOGRAFIA EMÍLIA

PARA SABER MAIS

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✐ Psicogênese da Língua Escrita, Porto Alegra: Artemed,1986

✐ Chapeuzinho Vermelho Aprende a Escrever: estudospsicolingüísticos comparativos entre línguas, São Paulo:Editora Ática, 1996

✐ Cultura, Escrita e Educação, Porto Alegre: Artemed,2001

✐ Vivências com Jean Piaget, Porto Alegre: Artemed, 2001

✐ Alfabetização. Teoria e prática Piaget - Vigotsky:

contribuições para plantar o debate, São Paulo: Ática, 1997

✐ Reflexões sobre Alfabetização, São Paulo: Cortez

✐ Passado e Presente dos Verbos Ler e Escrever, SãoPaulo: Cortez, 2002

Aquisição do sistema de escrita