Araujo, Melvina; D'Almeida Sabrina - Reconhecimento de Terras e Emergências Étnicas

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1 Reconhecimento de terras e emergências étnicas: o caso da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol e do Quilombo Morro Seco Melvina Araújo – Unifesp/Cebrap – [email protected] Sabrina D’Almeida – Unifesp/Cebrap – [email protected] Resumo: Pretendemos pensar a questão da construção e afirmação de identidades, sublinhando elementos que cruzam este tipo de processo em grupos indígenas e remanescentes de quilombo no Brasil. Isso será feito no intuito de repensar alguns pressupostos presentes em boa parte da literatura sobre o tema, particularmente aqueles que colocam a titulação de terras como objetivo primeiro das populações envolvidas nestes tipos de movimentos identitários. Palavras-chave: quilombolas, indígenas, identidade, missionários. Abstract: We intend to consider the question of the construction and affirmation of identity, highlighting elements that cross this type of process on indigenous groups and remnants of Quilombo in Brazil. This will be done in order to rethink some assumptions present in much of the literature on the subject, particularly those that put the land titling as a primary objective of the populations involved in these types of identity movements. Key-words: Maroons, indigenous, identity, missionaries. Introdução A partir de dois estudos de caso, do Quilombo Morro Seco e da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, pretendemos repensar alguns pressupostos presentes em boa parte da literatura sobre os temas “identidade étnica” e “ressurgimento”, que colocam a titulação de terras como objetivo primeiro das populações envolvidas nestes tipos de movimentos identitários. Isso será feito, sobretudo, a partir de elementos que perpassam processos de construção e afirmação de identidades em grupos indígenas e remanescentes de quilombo no período posterior à promulgação da Constituição de 1988. Tomar os casos do Quilombo Morro Seco e da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol parece interessante, pois, se, por um lado, apresentam situações bem

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artigo antropologico sobre raposa serra do sol

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    Reconhecimento de terras e emergncias tnicas: o caso da Terra Indgena

    Raposa/Serra do Sol e do Quilombo Morro Seco

    Melvina Arajo Unifesp/Cebrap [email protected]

    Sabrina DAlmeida Unifesp/Cebrap [email protected]

    Resumo: Pretendemos pensar a questo da construo e afirmao de identidades,

    sublinhando elementos que cruzam este tipo de processo em grupos indgenas e

    remanescentes de quilombo no Brasil. Isso ser feito no intuito de repensar alguns

    pressupostos presentes em boa parte da literatura sobre o tema, particularmente

    aqueles que colocam a titulao de terras como objetivo primeiro das populaes

    envolvidas nestes tipos de movimentos identitrios.

    Palavras-chave: quilombolas, indgenas, identidade, missionrios.

    Abstract: We intend to consider the question of the construction and affirmation of

    identity, highlighting elements that cross this type of process on indigenous groups and

    remnants of Quilombo in Brazil. This will be done in order to rethink some assumptions

    present in much of the literature on the subject, particularly those that put the land

    titling as a primary objective of the populations involved in these types of identity

    movements.

    Key-words: Maroons, indigenous, identity, missionaries.

    Introduo

    A partir de dois estudos de caso, do Quilombo Morro Seco e da Terra

    Indgena Raposa/Serra do Sol, pretendemos repensar alguns pressupostos presentes

    em boa parte da literatura sobre os temas identidade tnica e ressurgimento, que

    colocam a titulao de terras como objetivo primeiro das populaes envolvidas

    nestes tipos de movimentos identitrios. Isso ser feito, sobretudo, a partir de

    elementos que perpassam processos de construo e afirmao de identidades em

    grupos indgenas e remanescentes de quilombo no perodo posterior promulgao

    da Constituio de 1988.

    Tomar os casos do Quilombo Morro Seco e da Terra Indgena Raposa/Serra

    do Sol parece interessante, pois, se, por um lado, apresentam situaes bem

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    diferentes, por outro, ambos tm como ponto central a questo do seu

    reconhecimento enquanto pertencentes a dois tipos de grupo, indgenas e

    quilombolas.

    No que concerne aos ndios Macuxi e Wapishana, moradores da

    Raposa/Serra do Sol, se o movimento de organizao poltica de indgenas esteve, na

    segunda metade dos anos 1970, ligado quase que exclusivamente reivindicao da

    demarcao de suas terras e retirada dos fazendeiros que ali haviam se instalado, num

    perodo posterior, passou a abranger outros temas como, por exemplo, a prestao de

    servios de sade e educao. A organizao poltica em torno destes temas, no

    entanto, baseava-se em argumentos que tinham como ponto central a identidade

    tnica. Ou seja, os argumentos usados na reivindicao da demarcao da terra em

    rea contnua, de servios de sade e de educao diferenciados que levassem em

    considerao as especificidades culturais da populao a ser atendida pautavam-se

    pela ideia de que apenas poderiam sobreviver se pudessem manter vivas suas

    tradies.

    J a especificidade do Quilombo Morro Seco repousa no fato de seus

    moradores j possurem a titulao das terras antes mesmo de se autoidentificarem

    como comunidade remanescente de quilombo. Essa regularizao fundiria se deu

    entre os anos de 1963 e 1965 quando o governo do estado de So Paulo iniciou uma

    ao discriminatria na rea, dando incio ao processo de titulao das terras das

    famlias que compunham o bairro Morro Seco, dividindo o seu territrio em cinco

    glebas dispostas no 5 permetro de Iguape.

    Embora no decorrer dos anos que se seguiram regularizao fundiria

    tenha se verificado a venda de algumas pores de terras pertencentes a alguns

    herdeiros dos antigos proprietrios, muitas famlias ainda permaneciam em seus locais

    de moradia e trabalho quando se reconheceram como remanescentes de quilombos

    em 2006. importante ressaltar que o processo pelo qual passaram estas famlias se

    diferencia de outros bairros rurais situados no Vale do Ribeira onde alguns grupos

    tambm se autoidentificavam como quilombolas. Estes casos se mostraram distintos,

    pois estes grupos estavam ameaados de serem expulsos de suas terras por no terem

    o ttulo de propriedade das reas que ocupavam. Estas situaes de conflito fundirio

    podem ser representadas pela criao de unidades de conservao da natureza

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    sobrepostas aos seus territrios, pela especulao imobiliria decorrente da

    construo da Rodovia Regis Bittencourt e pela construo de barragens ao longo do

    Rio Ribeira de Iguape.

    Diante deste contexto, o caso do Quilombo Morro Seco constitui um

    exemplo que permite repensar a reivindicao da titulao das terras dos

    remanescentes de quilombos como fator primordial nos processos de auto-

    reconhecimento.

    Alm de repensar pressupostos presentes na literatura sobre identidade,

    interessa-nos analisar os desdobramentos advindos de interpretaes do texto

    constitucional aliados a recomendaes internacionais e movimentos sociais. Interessa

    tambm pensar se e como os debates acerca da implementao de tais polticas

    influenciaram na constituio e/ou fortalecimento de movimentos em torno dos

    direitos das chamadas minorias tnicas, bem como a participao de agentes ligados a

    organizaes no-governamentais e instituies religiosas, entre outras, em sua

    organizao. Passemos, pois descrio de cada um dos casos para depois

    retomarmos a discusso que nos propomos realizar.

    Terra Indgena Raposa/Serra do Sol

    O processo que culminou na demarcao da rea indgena Raposa/Serra do

    Sol, em 2005, tem seus primrdios no final da dcada de 1960, quando alguns jovens

    missionrios da Consolata1 comearam a trabalhar com os indgenas que l habitavam.

    Como j foi descrito alhures (Arajo 2006, 2009), esses jovens missionrios vinham

    informados por uma srie de transformaes pelas quais passava a igreja catlica e,

    especificamente, o Instituto da Consolata para Misses Estrangeiras, como as

    discusses do Conclio Vaticano II (1962-1965) e as advindas do processo de

    descolonizao do Qunia, sede da primeira misso da Consolata, fundada em 1902.

    Tomando como parmetro as questes colocadas no processo de

    descolonizao do Qunia, no qual os problemas fundirios tiveram enorme

    importncia, dado o lugar que tinha, de acordo com autores como Lonsdale, Kershaw e

    Droz, entre outros, a posse da terra e seu cultivo para a concretizao do que os

    1 Trata-se de um perodo no qual foi substituda a maioria dos missionrios que l trabalhavam por

    missionrios recm-ordenados.

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    Kikuyu considerariam um homem completo ou mramati, esses missionrios

    projetaram no contexto roraimense aquilo que ocorrera no Qunia. Ou seja, o

    despojamento dos indgenas de suas terras e sua consequente submisso ao trabalho

    para os brancos.

    Um das primeiras tentativas para romper aquilo que acreditavam ser um

    processo de dominao dos indgenas foi a organizao do projeto das cantinas, uma

    espcie de cooperativa na qual os ndios poderiam adquirir bens de consumo em troca

    de produtos de sua roa a preo de custo. Isso porque, ao trabalhar para os

    fazendeiros, os ndios deixavam de fazer suas roas e, para sobreviver, precisavam

    comprar mantimentos nos barraces dos fazendeiros, cujos preos eram mais altos

    que os praticados em Boa Vista, o que implicava em seu endividamento e consequente

    submisso ao trabalho nas fazendas. A ideia era a de quebrar o ciclo vicioso do

    barraco, dando novamente ao indgena a possibilidade de manter sua prpria roa.

    Esse projeto no contava, na poca, com a simpatia de todos os

    missionrios, particularmente daqueles j habituados a um estilo de misso no qual os

    pontos de apoio para as entradas entre os indgenas eram as fazendas. Estes, de

    acordo com as narrativas de vrios missionrios, no percebiam as relaes entre

    brancos e ndios como pautadas pela explorao dos primeiros sobre os segundos.

    Houve um longo perodo de disputa no seio da misso at que a posio dos jovens

    missionrios se tornasse hegemnica. Quando isso ocorreu, em 1976, a Igreja de

    Roraima, na figura de seu bispo, Dom Aldo Mongiano, adotou a opo pela causa

    indgena, o que operou transformaes no modelo de ao missionria em vigor at

    ento, deslocando o foco do cuidado com os colonos para o cuidado com os nativos2.

    Nesse sentido, os missionrios da Consolata se empenharam em dar

    visibilidade nacional e internacional ao que consideravam ser um processo de

    expropriao das terras indgenas, particularmente as do leste de Roraima3. No

    contexto brasileiro, tiveram como aliados o Cimi Conselho Indigenista Missionrio e

    2 As implicaes dessas transformaes estenderam-se das relaes entre religiosos e brancos ao

    empenho dos missionrios e, particularmente, do bispo, na reivindicao da demarcao da terra indgena Raposa/Serra do Sol, passando pelas relaes entre ndios e missionrios e ndios e brancos. 3 Posteriormente empenharam-se tambm na demarcao da rea Yanomami que, na dcada de 1980,

    foi alvo da invaso de garimpeiros. O processo de demarcao desta foi um dos mais rpidos da nossa histria, o que poderia ser justificado pela presso internacional. Retomaremos este ponto mais adiante.

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    indigenistas de um modo geral. J no contexto internacional, foram realizadas vrias

    campanhas, dentre as quais valeria a pena citar aquelas apoiadas pelos missionrios da

    Consolata da Itlia e pela Caritas. Essas, num primeiro momento, foram quase que

    exclusivamente voltadas questo da posse da terra pelos indgenas, mas,

    posteriormente, foram tambm direcionadas a projetos envolvendo outras reas de

    atuao.

    No que concerne primeira fase, vale lembrar que houve um perodo no

    qual, dada a falta de resposta relativa demarcao da terra indgena Raposa/Serra do

    Sol pelo governo brasileiro e face aos crescentes conflitos entre fazendeiros e

    indgenas, foram organizadas campanhas para arrecadao de fundos para aquisio

    dessas terras, tendo sido adquirida uma fazenda na qual os ndios desenvolvem

    atividades ligadas criao de gado que, por sua vez, relaciona-se a outra empreitada,

    o projeto do gado.

    Tambm concebido como uma forma de marcar espao na disputa pela

    terra, o projeto do gado teve como mote um dito dos fazendeiros, terra sem gado,

    terra sem dono, no sentido de justificar sua instalao em terras indgenas. Ora, se os

    fazendeiros afirmavam que poderiam se apossar da terra na qual viviam os indgenas

    porque estes no possuam gado, eles passariam a t-lo. Alm disso, a implantao

    desse projeto tambm foi considerada exequvel dada a experincia dos ndios no

    manejo do gado em virtude do trabalho prestado aos fazendeiros. Assim, com a ajuda

    financeira da congregao italiana, os consolatinos adquiriram o primeiro lote de gado

    destinado a iniciar o projeto. Este consistia num conjunto de rezes entregue aos ndios

    de uma determinada maloca para que cuidasse delas durante um perodo de tempo

    considerado suficiente para que se reproduzissem. Passado esse tempo, deveriam

    repassar as primeiras rezes para outra maloca, permanecendo com as crias. Isso

    deveria se repetir at que todas as malocas tivessem seu rebanho.

    Concomitantemente ao projeto do gado foi tambm desenvolvido o

    projeto de formao de auxiliares indgenas de sade, precursor do programa de

    formao de agentes indgenas de sade. Esse foi concebido e posto, inicialmente, em

    prtica pela ala feminina do Instituto da Consolata, as Irms Missionrias da Consolata.

    Posteriormente, o projeto recebeu o apoio dos Mdicos sem Fronteiras, que

    trouxeram recursos tcnicos e financeiros para seu desenvolvimento. Esta iniciativa,

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    como j foi dito anteriormente (Arajo, 2006), acabou se transformando num modelo

    para a implantao dos Distritos Sanitrios Especiais Indgenas DSEI, um subsistema

    do Sistema nico de Sade SUS destinado especificamente ao cuidado das

    populaes indgenas.

    Ao lado de todos esses projetos, no se pode deixar de mencionar um dos

    primeiros e mais duradouros, a formao de lideranas indgenas. Inicialmente

    vinculada aos cursos de catecismo para tuxauas, este talvez tenha sido o projeto que

    mais careceu de tempo e envolvimento de missionrios, indgenas e organizaes no-

    governamentais, dentre outros. Isso, por um lado, pelo fato de que tuxauas, vaqueiros,

    catequistas, agentes de sade e professores indgenas so todos considerados

    lideranas e cada um deles demanda um tipo especfico de formao, por outro,

    porque, para formar essas lideranas, fazia-se necessrio trabalhar a auto-estima

    dessas pessoas enquanto indgenas.

    Se at a primeira metade dos anos oitenta os esforos envidados foram

    direcionados a objetivos tais como a conquista da terra e prestao de servios de

    sade, depois disso outro tema comeou a fazer parte da preocupao dos

    missionrios: a recuperao da cultura indgena. Foi nesse sentido que os

    missionrios da Consolata convidaram, em meados dos anos 1980, um antroplogo e

    um linguista italianos para ajudar no projeto de recuperao da lngua e da cultura

    indgenas. O linguista encabeou a organizao de um minidicionrio da lngua Macuxi

    e o antroplogo se encarregou de fazer um levantamento sobre o que j tinha sido

    escrito sobre esse povo, participando tambm da organizao de uma coletnea de

    mitos macuxi, juntamente com professores e catequistas indgenas, quase sempre ex-

    alunos da escola da Misso do Surumu, que coletavam as histrias com os mais velhos,

    na lngua macuxi, as transcreviam e ajudavam na traduo.

    O esforo empreendido na organizao do dicionrio e da coletnea de

    mitos relaciona-se tentativa de minorar um estigma do qual eram vtimas os Macuxi:

    o de que j eram aculturados, no sendo, portanto, ndios e sim caboclos. Alm disso,

    havia uma srie de referncias negativas relacionadas ideia de que os ndios eram

    inferiores aos brancos, de que no tinham uma lngua, mas falavam gria, eram sujos,

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    pobres4 e bbados. Isso resultava, de acordo com os missionrios, num desejo, por

    parte dos Macuxi, de negar sua indianidade. Assim sendo, seria preciso empreender

    todos os esforos para que os Macuxi pudessem recuperar sua lngua e sua cultura e,

    acima de tudo, se orgulhar de ser Macuxi. Restava, no entanto, saber qual era a cultura

    a ser recuperada.

    Vale ressaltar que a concepo de cultura mobilizada nesse contexto

    bastante especfica. Tendo sido buscada na antropologia, locus cannico do saber

    sobre os outros, precisaria dar conta de alguns limites colocados por princpios

    teolgicos que serviam de base para esses missionrios, bem como que pudesse ser

    objeto de um trabalho de recuperao. Nesse sentido, a noo de cultura advinda da

    escola americana de antropologia parece ter sido considerada a mais adequada.

    Esta hiptese ganha fora se tomarmos, por exemplo, um dos textos

    escritos por Emanuele Amodio (1989), o antroplogo convidado pelos missionrios da

    Consolata para ajudar no programa de recuperao da cultura indgena, no qual o

    autor advoga a possibilidade de um movimento anti-sincretismo, no qual os indgenas

    poderiam abandonar traos culturais adquiridos com os brancos e retomar sua

    tradio. Se atentarmos para o contedo deste texto, bem como para as iniciativas

    tomadas pelos missionrios para apoiar a causa indgena, poderemos perceber que

    h alguns elementos aos quais se d particular ateno, como o caso dos rituais, dos

    mitos e da lngua.

    Nesse sentido, os missionrios fizeram um enorme esforo para aprender a

    lngua indgena, alm de incentivar os ndios que no a dominavam a aprend-la e os

    que a sabiam a no se furtar de us-la. A realizao de rituais tradicionais tambm foi

    encorajada, assim como o preparo de comidas e bebidas5 consideradas tradicionais.

    Em suma, uma srie de aes foi realizada com o intuito de valorizar as identidades

    indgenas e lhes dar visibilidade.

    Diante dessa nova configurao as preocupaes em torno da demarcao

    das terras ganham um novo elemento: o argumento de que apenas tendo suas terras

    demarcadas os indgenas poderiam sobreviver fsica e culturalmente. Ou seja, a cultura

    4 Sobre a fora da concepo de pobre e suas implicaes no envolvimento de missionrios na

    prestao de servios aos indgenas ver Arajo (2006). 5 Desde que no fiquem fermentando por muito tempo e venham a ter um teor alcolico mais elevado.

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    concebida aqui enquanto condio de sobrevivncia. Voltaremos a esse ponto aps a

    descrio do caso do Morro Seco.

    Morro Seco

    Localizada a 5 km da Rodovia Regis Bittencourt (BR 116), com acesso por

    estrada de terra, a comunidade Morro Seco pertence ao municpio de Iguape, embora

    esteja mais prxima do municpio de Juqui. De acordo com o Relatrio Tcnico

    Cientfico (ITESP, 2006) que foi elaborado para seu reconhecimento como

    remanescente de quilombos, seu territrio conta com 164,69 ha6, o que representa

    apenas 1/3 do territrio histrico original. Reconhecido como remanescente de

    quilombo no ano de 2006, Morro Seco conta com 44 famlias residentes descendentes

    da unio de dois casais-chave. De acordo com os moradores mais antigos, esta

    localidade no possui um mito de origem, ou um ancestral fundador e suas lembranas

    dizem respeito aos seus avs paternos e maternos, embora no apresentem uma

    histria de como estes chegaram ao local (ITESP, 2006).

    Este quilombo situa-se no Vale do Ribeira, conhecido por abrigar a maior

    parte dos quilombos do Estado de So Paulo.7 Chamou a ateno neste caso o fato de

    seus moradores possurem a titulao de suas terras antes de se autoidentificarem

    como comunidade remanescente de quilombo. A regularizao fundiria desta rea se

    deu entre os anos de 1963 e 1965 quando o governo do estado de So Paulo iniciou

    uma ao discriminatria na rea, iniciando o processo de titulao das terras das

    famlias que compunham o ento chamado bairro Morro Seco, dividindo o seu

    territrio em 5 glebas dispostas no 5 permetro de Iguape, cada qual registrada em

    nome do chefe de famlia. Embora no decorrer dos anos que se seguiram

    regularizao fundiria algumas pores de terras pertencentes a alguns herdeiros dos

    antigos proprietrios tenham sido vendidas, muitas famlias ainda permaneciam em

    seus locais de moradia e trabalho quando se reconheceram como remanescentes de

    quilombos.

    6 o menor territrio se comparado com outras comunidades remanescentes de quilombos do Vale do

    Ribeira. 7 De acordo com dados do Itesp de 2010, o Estado de So Paulo possui 26 comunidades quilombolas

    reconhecidas, 20 delas localizadas no Vale do Ribeira.

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    O quilombo do Morro Seco situa-se numa destas glebas, a 79, que foi

    titulada em nome de Joaquim Soares Alves. Aps sua morte, os herdeiros, seus oito

    filhos, fizeram duas tentativas de inventariar a rea, mas no conseguiram. Assim, ao

    se autoidentificaram como quilombos esta rea estava em esplio no nome do antigo

    proprietrio e o formal de partilha ainda no havia sido feito8.

    Diante deste caso, propomo-nos a pensar em que medida o processo pelo

    qual passaram as famlias do Morro Seco se diferencia de outros quilombos situados

    no Vale do Ribeira. Conforme os Relatrios Tcnico-cientficos de algumas destas

    comunidades, grande parte destes processos de organizao em torno de uma

    reivindicao tnica por parte destes grupos foi motivado basicamente por trs formas

    de conflito: com fazendeiros e grileiros, que passaram a se interessar pelas terras desta

    regio; com o Estado que, a partir do final da dcada de 50, deu incio poltica de

    criao de reas de proteo ambiental e pela ameaa de construo de barragens ao

    longo do Rio Ribeira de Iguape. Estes conflitos representavam o risco de expulso

    desses grupos de suas terras, dada a inexistncia de ttulos de propriedade.

    Estes Relatrios Tcnico-cientficos foram resultado dos trabalhos do

    governo do estado de So Paulo junto s comunidades remanescentes de quilombos e

    teve incio em 1996, quando o ento governador, aps receber as reivindicaes de

    um grupo de moradores do vale do Ribeira, publicou um decreto instituindo um Grupo

    de Trabalho com o objetivo de definir conceitos, diretrizes e medidas para garantir a

    aplicabilidade dos dispositivos constitucionais no Estado de So Paulo (Decreto

    40.723/96). Esse primeiro laudo antropolgico foi realizado por antroplogos do

    Ministrio Pblico Federal, em 1998, para as comunidades de Ivaporunduva, Maria

    Rosa e Piles, So Pedro, Pedro Cubas, Sapatu, Nhunguara e Andr Lopes, todas

    localizadas na cidade de Iporanga. O argumento que justificou a mobilizao em torno

    do reconhecimento tnico destas comunidades como remanescentes de quilombos,

    est intrinsecamente ligado luta pela permanncia na terra, medida que todas as

    comunidades acima citadas tiveram ou ainda tinham algum tipo de conflito fundirio.

    Neste laudo fica explcito que nesta regio houve diversos conflitos fundirios entre

    8 Embora a terra ainda no tivesse sido formalmente inventariada, houve uma partilha informal do entre

    os oito irmos.

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    comunidades negras rurais e pessoas vindas de fora, sejam empresas imobilirias,

    fazendeiros, grileiros e at mesmo o prprio Estado.

    Apesar de situado na mesma regio, os habitantes do Morro Seco no se

    viam ameaados pela construo das barragens no rio Ribeira e tampouco pela criao

    de Unidade de Conservao de Proteo Integral ou Unidade de Conservao de Uso

    Sustentvel9 em sobreposio ao seu territrio. A maioria das comunidades

    quilombolas reconhecidas do vale do Ribeira sofrem com a sobreposio de reas

    protegidas aos seus territrios, muitas delas estando no interior de mais de um tipo de

    rea protegida de carter restritivo, como o caso do quilombo Maria Rosa. Na maior

    parte desses Relatrios Tcnico-cientficos encontra-se a meno questo da

    legislao ambiental, o conflito com reas protegidas e a ameaa de inundao de

    parte desses territrios caso houvesse a construo das barragens.

    A ttulo de exemplo tomo os casos dos Quilombos Nhunguara, Mandira e

    Maria Rosa. No Relatrio Tcnico-cientfico da comunidade de Nhunguara, aps

    discorrer sobre as tentativas de construo de barragens pela CESP e pelo Grupo

    Votorantim e as implicaes deste empreendimento para as comunidades negras

    rurais do Vale do Ribeira como um todo, visto que grande parte de seus territrios

    seriam inundados e que poderiam deixar bairros inteiros submersos, encontra-se a

    seguinte afirmao: Foi neste contexto de mobilizao que estes grupos passaram a

    exigir do Estado de So Paulo a regulamentao e o cumprimento do Artigo 68 do

    ADCT da CF (ITESP, 2000: 4). No mesmo documento, mais adiante, encontra-se a

    seguinte afirmao:

    No mesmo perodo, as comunidades da regio tomaram cincia do Artigo 68 e

    passaram a reivindicar o reconhecimento de sua condio quilombola por parte do

    Estado para que possam recuperar o domnio de seu territrio tradicional, sua

    titulao e o direito de reabilitarem l sua vida em condies dignas de trabalho e

    de vida (Itesp, 2000: 45).

    Mais adiante o autor do relatrio prossegue:

    9 O grupo das Unidades de Proteo Integral composto por: Estao Ecolgica, Reserva Biolgica,

    Parque, Monumento Natural e Refgio de Vida Silvestre. O grupo das unidades de Uso Sustentvel composto por: rea de proteo Ambiental (APA), Reserva Extrativista (RESEX), Reserva de Desenvolvimento Sustentvel (RDS), Floresta Nacional, entre outros.

  • 11

    As alternativas de trabalho para os moradores do Nhunguara, j aqui enunciadas,

    so reconhecidas por todos como sendo muito insatisfatrias. Refere-se venda

    de mo-de-obra para fazendeiros, seja para trabalhar como caseiros ou para

    desmatar reas, tirar ervas venenosas para o gado, etc. A iniciativa de reivindicar

    o reconhecimento da condio quilombola est fundamentada no desejo e na

    necessidade de implementar novas formas de produo no seu territrio, uma vez

    que o trabalho para terceiros inconstante, insuficiente e mal remunerado. Para

    tanto, indispensvel que as grandes reas ocupadas por fazendas sejam re-

    incorporadas ao territrio comunitrio e que o Estado oferea condies materiais

    e assessoria tcnica para a implementao de novas iniciativas econmicas que

    possibilitem melhorar as condies de vida dos quilombolas hoje e para os seus

    descendentes (Itesp, 2000: 50).

    No Relatrio Tcnico-cientfico da comunidade do Mandira, ao relatar a

    atuao de um proco da Igreja de Canania no interior desta comunidade, o autor

    afirma ter sido este padre quem incentivou os mandiranos a se incorporar ao

    movimento de organizao das comunidades negras rurais do vale do Ribeira em torno

    da recuperao de suas terras originais.

    Nota-se nos exemplos citados acima que o conflito fundirio entre

    membros destas comunidades e pessoas de fora assume um lugar proeminente no

    argumento dos autores dos laudos para justificar a organizao poltica e as

    reivindicaes destas comunidades em torno de seu reconhecimento pelo Estado.

    Ora, considerando-se que os moradores do Morro Seco que possuam suas

    terras tituladas pelo Estado o que poderia ter impulsionado sua organizao em torno

    do seu auto-reconhecimento? Parece haver, neste caso, elementos que o distinguem

    dos casos acima apresentados para justificar sua mobilizao em torno do

    reconhecimento tnico e so estes elementos que pretendemos perseguir. Isso nos d

    a possibilidade de olhar para outros fatores alm da questo do conflito fundirio e de

    uma possvel racionalidade utilitria por parte destes agentes, apesar de no ser nossa

    inteno negar ou menosprezar a importncia que esses grupos atribuem terra.

    Interessa, pois, investigar o peso que o fator acesso terra teve no processo de

    construo identitria deste grupo.

  • 12

    Antes de iniciar a anlise do Morro Seco importante salientar que outros

    casos de grupos que j possuam a titularidade de suas terras no momento em que se

    reconheceram como quilombos foram registrados no Rio Grande do Sul e tambm h

    casos de alguns assentamentos do Incra, no Rio de Janeiro e Bahia, que esto se auto-

    reconhecendo como remanescentes de quilombos. No entanto, as reflexes que sero

    desenvolvidas no mbito deste trabalho tero como principais fontes os laudos

    antropolgicos referentes s comunidades de quilombos j reconhecidas oficialmente

    pelo Estado no Vale do Ribeira, assim como os dados coletados durante a realizao de

    trabalho de campo.

    De acordo com informaes advindas de relatos e entrevistas com

    moradores do Morro Seco, bem como da bibliografia consultada at o momento,

    alguns agentes catlicos tiveram e ainda tm um papel fundamental na organizao

    destes grupos, pois foi a partir da atuao de alguns missionrios nesta regio que se

    iniciou o processo de organizao e mobilizao poltica destas comunidades negras

    rurais.

    De acordo com Oliveira (2009), a notcia do assassinato, em 1982, de Carlos

    da Silva (Carlito), morador da comunidade de So Pedro (Iporanga), motivado por

    conflitos por terras com grileiros, considerada o marco da escalada de conflitos

    envolvendo posseiros, pequenos agricultores e grileiros no Vale do Ribeira. Nessa

    ocasio, ainda segundo este autor, o bispo da diocese de Registro, Dom Apparecido

    Dias, teria chamado Luiz Eduardo Greenhalgh para auxiliar os moradores de So Pedro

    no processo de acusao e investigao do assassinato. Posteriormente, em 1986,

    vieram trabalhar na regio duas Irms Pastorinhas, Irm Sueli e Irm ngela.

    Num primeiro momento estas duas irms atuaram organizando grupos de

    mulheres em algumas comunidades dos municpios de Eldorado e Iporanga, com o

    intuito de realizar estudos bblicos regulares, durante os quais se refletia sobre a

    realidade local e sobre a opresso e violncia a que estariam submetidos os moradores

    do Vale do Ribeira. Foi a partir deste trabalho que elas puderam introduzir outras

    temticas, como por exemplo a temtica dos direitos territoriais, nesses encontros.

    Outro elemento que as teria impulsionado na organizao de discusses acerca da

    situao fundiria dos moradores do vale do Ribeira foi a informao, transmitida pela

    Irm Michael Nolam, que tambm era advogada e responsvel pelo acompanhamento

  • 13

    do caso de Carlito, sobre o Artigo 68 da Nova Constituio Federal. Ainda da acordo

    com Oliveira (2009), Michael teria recomendando s irms que trabalhassem esta

    temtica junto s comunidades previamente mobilizadas. A partir de ento a atuao

    das irms no que se refere temtica quilombola foi sendo ampliada com a assessoria

    e incentivo constituio de associaes comunitrias e com a busca de auxlio tcnico

    para a produo de levantamentos antropolgicos sobre as comunidades com as quais

    j atuavam.

    Hoje a atuao destas irms na regio do Vale do Ribeira se d por meio de

    uma entidade civil, sem fins lucrativos, chamada Equipe de Articulao e Assessoria

    das Comunidades Negras do vale do Ribeira, mais conhecida como EEACONE. Esta

    entidade, fundada em 1995, oficializada em 2004, hoje a mais representativa no que

    concerne mobilizao pelos direitos dos remanescentes de quilombos do Estado de

    So Paulo.

    Sueli e Angela afirmam que a EEACONE teria surgido no seio do Movimento

    dos Ameaados por Barragem do Vale do Ribeira (Moab), que seria, por sua vez, o

    lugar de origem da mobilizao poltica recente dos remanescentes de quilombos no

    Vale. O Moab teria surgido como resultado do que elas chamam de um trabalho de

    sensibilizao que consistia na tentativa de levar informaes e conscientizar as

    comunidades rurais sobre os efeitos da construo das barragens na regio, como a

    possvel remoo e deslocamento destas famlias.

    Embora tenha sido gestada no interior do Moab e o fato de todos seus

    integrantes terem participado do nascimento deste, a EEACONE passou a atuar

    especificamente na causa quilombola por acreditarem que esta luta merecia ateno

    especial. Desde o incio seus representantes iniciaram um trabalho de identificao e

    incentivo organizao destas comunidades para a luta pelo direito s terras que

    ocupam, mas com o passar dos anos os trabalhos expandiram-se consideravelmente.

    Hoje a EEACONE vem auxiliando poltica e juridicamente as comunidades dos

    municpios de Eldorado, Iporanga, Canania, Miracatu, Itaca, Barra do Turvo e Iguape

    para que possam se organizar politicamente a fim de reclamar o seu direito terra

    conforme determina o Artigo 68 do ADCT. Este processo inclui a autoidentificao das

    comunidades enquanto quilombolas, a recuperao da histria e dos elementos que

    justificam o auto-reconhecimento junto aos rgos pblicos, o encaminhamento da

  • 14

    documentao necessria para o pedido de titulao das terras coletivas enquanto

    rea remanescente de quilombos e a formao das associaes previstas por lei para

    gesto dos territrios quilombolas (OLIVEIRA, 2009).

    Os moradores mais velhos do Morro Seco tambm afirmam que o anseio

    em serem reconhecidos como remanescentes das comunidades de quilombos teve

    incio a partir de dilogos com representantes da Igreja Catlica. Em 2002 teria

    ocorrido a primeira de uma srie de visitas das irms Sueli e Angela ao bairro. Como

    nos demais casos, estas visitas tinham como objetivo identificar as comunidades

    negras rurais passveis de ser inseridas na categoria remanescentes de quilombos.

    Um dos membros mais velhos da comunidade, Bonifcio Modesto, relatou

    que nas primeiras visitas as irms contavam um pouco da histria do quilombo, mais

    especificamente do Quilombo dos Palmares, e informavam tambm a respeito do

    Artigo 68 do ADCT da Constituio Federal de 1988 que faz referncia aos direitos

    territoriais dos remanescentes de quilombos, bem como as implicaes de se tornar

    uma comunidade quilombola. Essas visitas seriam realizadas para reconhecer e

    identificar elementos da cultura destes moradores pra ver se coincidiam com a vida

    dos remanescentes de quilombos10. Com este objetivo era solicitado aos moradores

    que contassem como se passava o dia a dia na comunidade, quais eram os seus meios

    de subsistncia, as festas que realizavam, de que maneira era organizado o sistema de

    parentesco, como se dava a vida religiosa, etc. Em uma destas visitas, Bonifcio

    informou que os membros da comunidade prepararam uma apresentao de

    fandango para as irms e seminaristas que as acompanhavam naquela ocasio, como

    uma pea cultural tpica da comunidade e teria sido a partir deste levantamento

    que foi possvel ter certeza que eles estavam dentro dos costumes e poderiam se

    reivindicar como quilombolas.

    O fato da gleba 79, atual territrio do quilombo, no ter sido partilhada

    formalmente antes do incio da atuao das irms, transformou-se num elemento

    positivo, pois quando houve a tentativa de inventari-la, estava sendo utilizado de

    maneira comum por todos os irmos. Esta condio foi apresentada aos moradores do

    Morro Seco por esses agentes como favorvel e positiva, visto que a titulao das

    terras de quilombos se d de maneira coletiva, em nome de uma associao. Alm 10

    Entrevista realizada com Bonifcio Modesto em 2010.

  • 15

    disso, a apropriao comum da terra revelaria e expressaria a unio e o sentido de

    comunidade atribudo por esses religiosos a este grupo, alm da ideia de que havia

    naquela comunidade um pensamento orgnico e uma cultura compartilhada por

    todos.

    Um desses religiosos, Irmo Ivo, teve um papel fundamental na construo

    de uma ideia, para os moradores, do que seria o quilombo e de quais seriam os

    elementos caracterizadores de uma verdadeira cultura quilombola: tradio oral,

    sistema de parentesco, trabalho comunitrio e apropriao comum do territrio. Alm

    disso, Irmo Ivo, de acordo com vrios dos entrevistados, trouxe para o Morro Seco

    elementos que teria apresentado como sendo tpicos de uma cultura quilombola,

    como a Missa Afro e o Olorum Nosso.

    At o momento no foi possvel observar a realizao de uma Missa Afro

    nem do Olorun Nosso. No entanto, de acordo com descries de alguns moradores, a

    Missa Afro se diferenciaria das missas comuns, sobretudo, no momento do ofertrio,

    no qual comidas (principalmente frutas) colocadas sobre um pano estendido no cho

    seriam consumidas conjuntamente por todos os participantes do rito. Ainda segundo

    essas fontes, Irmo Ivo teria dito que as missas na frica so celebradas dessa forma.

    J o Olorun Nosso seria o equivalente ao Pai Nosso, segundo Bonifacio

    Modesto. Temos aqui um exemplo da tentativa de traduo ou da busca de

    equivalncia entre o termo Deus (especificamente o Deus pai) e um termo iorub que

    pudesse expressar a mesma ideia, bem como da incluso de rituais considerados

    tradicionais africanos no interior do ritual catlico, prprio de uma vertente catlica, a

    teologia da inculturao. H, nesse sentido, um movimento em torno da

    retradicionalizao desta comunidade em que agentes ligados Igreja Catlica

    assumem um papel ativo, construindo concepes sobre os elementos tradicionais da

    cultura quilombola, at ento desconhecidos enquanto tal pelos habitantes do Morro

    Seco, e empreendendo iniciativas de valorizao de sua cultura.

    Concluso

    Processo semelhante ao ocorrido no Morro Seco aconteceu com os

    Macuxi, tendo os missionrios da Consolata exercido um papel fundamental no que se

    refere busca de elementos tradicionais que estavam caindo em desuso pelos

  • 16

    indgenas e que seriam, de acordo com esses agentes, responsveis pela recuperao

    e/ou manuteno de uma identidade tnica. No entanto, poder-se-ia observar que

    enquanto o processo de valorizao da identidade Macuxi e de suas tradies j estava

    em curso nos anos 1980, aqueles referentes aos quilombolas do Morro Seco apenas

    comearam a ser trabalhados em meados dos anos 2000. Se em ambos os casos est

    em jogo a construo de identidades tnicas no interior de um mesmo Estado-Nao,

    como explicar o lapso de tempo na emergncia de movimentos de cunho identitrios

    entre indgenas e quilombolas? As possibilidades de resposta a este pergunta so

    mltiplas. No entanto, centrar-nos-emos na discusso sobre as diferentes posies

    ocupadas por ndios e negros na construo de um modelo de nao brasileira, a

    participao de agentes religiosos no processo de aproximao de demandas de

    populaes negras e indgenas.

    Se partirmos das discusses em torno da construo de uma identidade

    nacional, que ganharam flego a partir da dcada de 1920, com a ideia de que o que

    caracterizaria o povo brasileiro seria a miscigenao baseada na mistura de brancos,

    negros e indgenas, poder-se-ia dizer que todos ocupariam posies semelhantes na

    conformao dessa identidade. Nesse contexto, os elementos que marcariam a cultura

    brasileira e que nos diferenciariam de quaisquer outras eram o samba, o futebol e a

    feijoada. No entanto, pouco depois da conformao dessa identidade, tendo nas obras

    de Gilberto Freyre, bem como de intelectuais envolvidos no movimento modernista,

    sua base, os estudos sobre os grupos de cuja mistura resultou o brasileiro tomaram

    rumos diversos.

    Esses estudos foram, inicialmente, fruto de uma demanda da UNESCO que,

    tomando o Brasil como exemplo de um pas no qual diferentes raas conviveriam

    harmonicamente, o escolheu para sediar um conjunto de pesquisas sobre relaes

    raciais, no quadro da agenda antirracista, no ps-guerra. Tomava-se, ento, como

    ponto de partida, a imagem da sociedade brasileira como regida pela cooperao

    entre as raas. Vrios foram os intelectuais brasileiros ou que se debruavam sobre o

    Brasil que integraram a equipe responsvel pela realizao das pesquisas sobre as

    relaes raciais, dentre os quais se poderia citar Alfred Mtraux, Roger Bastide, Oracy

    Nogueira, Florestan Fernandes e Thales de Azevedo.

  • 17

    Dentre os trabalhos realizados pelos pesquisadores acima citados interessa

    ressaltar o realizado por Florestan Fernandes (1965), cuja concluso negava o mito da

    democracia racial. Ao fazer uma correlao entre cor e status econmico, Florestan

    Fernandes demonstrou, que a populao negra, no Brasil, ocupava a base da pirmide

    de distribuio de riquezas. Alm disso, o autor chamou a ateno para o fato de que a

    chamada cordialidade11 do brasileiro escondia diferenciaes de classe. Em suma, a

    concluso de Fernandes foi a de que o mito da democracia racial seria uma

    manifestao ideolgica.

    No contexto da realizao das pesquisas sobre relaes raciais no Brasil

    que, num primeiro momento, enfocaram quase que exclusivamente populaes

    negras, formou-se um grupo, composto por Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira

    e Eduardo Galvo, dentre outros, que se debruou sobre as populaes indgenas. Este

    grupo foi coordenado por Darcy Ribeiro que, desde 1947 dirigia, no Servio de

    Proteo ao ndio SPI, a Seo de Estudo12. Em 1952 e em 1954, respectivamente,

    juntaram-se a ele Eduardo Galvo e Roberto Cardoso de Oliveira.

    Diferentemente dos estudos voltados aos negros, os que se debruaram

    sobre populaes indgenas pareciam ter como objeto questes relacionadas cultura,

    seja no sentido de pensar as transformaes advindas do contato com os brancos, seja

    no de registrar especificidades culturais tendo, em alguns momentos, como pano de

    fundo a ideia de que os grupos indgenas enquanto unidades discretas estavam

    fadados ao desaparecimento.

    No iremos aqui fazer um balano da literatura sobre ndios e negros no

    Brasil, mesmo porque isso no caberia na economia do argumento que gostaramos de

    sustentar nem no espao de um artigo. Interessa apenas ressaltar que, apesar de

    calcados num modelo de nao com uma identidade e um povo nicos, o tipo olhar

    sobre o negro e sobre o ndio parece ter sido, desde os primeiros estudos no interior

    das cincias sociais no Brasil aos realizados a partir da dcada de 1990, bastante

    diverso. Num caso, se enfocava a questo racial, no outro, a cultura.

    11

    Sobre a noo de cordialidade do brasileiro, ver, entre outros, Srgio Buarque de Holanda. 12

    Segundo Lima (2002), a criao da Seo de Estudo, no SPI, foi influenciada pelas prticas do indigenismo mexicano, cuja linha de ao pautava-se pela definio de polticas compensatrias para as populaes indgenas.

  • 18

    Esse tipo de orientao parece ter-se estendido s mobilizaes polticas

    que marcaram os debates em torno da constituinte: enquanto ndios e indigenistas

    pleiteavam polticas de reconhecimento e proteo ligadas diversidade cultural dos

    indgenas, os agentes envolvidos no movimento negro reivindicavam polticas de

    compensao no sentido de reparar os danos causados aos negros em virtude da

    escravido. Alguns dos desdobramentos destas discusses podem ser vistos na

    formulao das polticas de cotas para a incluso dos afrodescendentes no ensino

    superior e na criao de servios de sade e educao diferenciados para os indgenas.

    Posteriormente, o sistema de cotas foi estendido aos indgenas, embora a

    maioria das iniciativas de incluso de ndios no ensino superior tenha realizada a partir

    da criao de cursos especialmente voltados para eles, e a incluso de quilombolas ou

    remanescentes de quilombo no rol dos grupos que podem reivindicar direitos

    relacionados s polticas de proteo de patrimnios culturais. Faz-se necessrio

    ressaltar que a incluso de negros dentre os atendidos por estas polticas apenas foi

    possvel por conta da sua caracterizao enquanto membros de grupos que mantm

    certas tradies. Isso, por sua vez, s foi possvel em decorrncia da transformao de

    um modelo de nao pautado na existncia de um povo e de uma cultura para um

    modelo de nao multicultural.

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