ARBITRAGEMINSTITUCIONAL.pdf

299
A ARBITRAGEM INSTITUCIONAL: UM NOVO MODELO DE ADMINISTRAÇÃO DE JUSTIÇA — O CASO DOS CONFLITOS DE CONSUMO João Pedroso Cristina Cruz CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS FACULDADE DE ECONOMIA UNIVERSIDADE DE COIMBRA Outubro de 2000

Transcript of ARBITRAGEMINSTITUCIONAL.pdf

  • A ARBITRAGEM INSTITUCIONAL: UM NOVO

    MODELO DE ADMINISTRAO DE JUSTIA O CASO DOS CONFLITOS DE CONSUMO

    Joo Pedroso Cristina Cruz

    CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS FACULDADE DE ECONOMIA

    UNIVERSIDADE DE COIMBRA

    Outubro de 2000

  • NDICE

    Agradecimentos Introduo Geral

    Captulo I

    O direito e a resoluo de conflitos de consumo: a construo de um campo de anlise

    1. O ponto de partida a sociologia do direito contempornea ....................................1 2. A produo do direito: o Estado-Nao e a pluralidade das ordens jurdicas.........7

    2.1. O direito na crise do Estado-Providncia e na superao do paradigma da modernidade: entre a regulao e a emancipao ......................................................7 2.2. O Direito do consumo enquanto direito social: a regulao e a emancipao ..11

    2.2.1. A propsito de um conceito de direito social...............................................11 2.2.2. Os direitos dos consumidores direito social e a mudana social normal ..14

    3. A globalizao, o Estado e a resoluo de litgios: as reformas judiciais e o movimento de resoluo alternativa de litgios (RAL/ADR)...................................17

    4. Alargar os caminhos estreitos dos consumidores no acesso ao direito e justia .21 5. Um roteiro para a investigao: as hipteses e a metodologia ................................28

    Captulo II

    ADR (RAL): a nova vaga da resoluo de litgios

    1. A pirmide da resoluo de litgios: a arbitragem institucional um meio, entre outros ............................................................................................................................31

    2. O movimento ADR (RAL): origem, pluralidade e assimetria .................................36 3. Breve estudo comparado de experincias ADR (RAL) em diversos pases ............39

    3.1. As relaes comerciais: a arbitragem como modo de resoluo de conflitos ..40 3.1.1. A lex mercatoria: o direito e a arbitragem transnacional o caso do

    Tribunal Arbitral da C.C.I. ........................................................................42 3.2. Os conflitos de vizinhana: a mediao comunitria ou social.........................50

    3.2.1. A mediao comunitria nos EUA ............................................................50 3.2.2. A mediao social nos bairros em Frana .................................................54 3.2.3. Os conflitos comunitrios na Gr-Bretanha ..............................................57

    3.3. A mediao familiar: uma resposta para a crise da famlia () e da justia ....59 3.3.1. A mediao familiar nos EUA...................................................................60 3.3.2. A mediao familiar em Frana.................................................................61 3.3.3. O desenvolvimento da conciliao familiar na Inglaterra

  • e no Pas de Gales.......................................................................................63 3.4. A resoluo alternativa de litgios laborais....................................................64

    3.4.1. Os EUA: a arbitragem e a mediao nas relaes de trabalho ..................65 3.4.2. A resoluo alternativa dos conflitos laborais em Frana: da arbitragem aos

    Prud' hommes .............................................................................................68 3.4.3. A experincia na Gr-Bretanha .................................................................70

    3.5. A relao entre os particulares e os servios pblicos: a reclamao ...............72 3.5.1. A resoluo de conflitos com o sector pblico norte-americano...............73 3.5.2. A experincia francesa na resoluo de conflitos com a Administrao

    Pblica........................................................................................................76 3.5.3. O desenvolvimento do sistema de ombudsman na Gr-Bretanha .............77

    4. ADR (RAL): uma matriz e um caminho pleno de diferenas..................................79

    Captulo III

    As relaes sociais de consumo, os conflitos de consumo e os meios de defesa do consumidor e de resoluo de litgios uma breve anlise comparada

    1. As relaes sociais de consumo e o caminho pela proteco dos consumidores ....81 2. Os conflitos de consumo: os consumidores e os seus meios de defesa .....................86

    2.1. Conflitos de consumo e direito(s) do(s) consumidor(es) ..................................86 2.2. Modelos de proteco e meios de defesa dos consumidores.............................88

    3. Os meios de resoluo de litgios de consumo: breve anlise comparada ..............91 3.1. A resoluo de conflitos de consumo nos EUA ................................................93

    3.1.1. Os processos judiciais: os small claims courts ..........................................93 3.1.2. Os meios extrajudiciais: os projectos estaduais e locais ...........................93

    3.2. A resoluo de litgios de consumo no Reino Unido ........................................95 3.2.1. Os meios judiciais: os county courts e o processo de pequenos litgios....95 3.2.2. Os meios extrajudiciais: a arbitragem e os provedores de clientes ...........96

    3.3. A resoluo de litgios de consumo na Alemanha ............................................98 3.3.1. Os meios judiciais: processo simplificado.................................................98 3.3.2. Os meios extrajudiciais: conciliao, arbitragem

    e provedor de clientes ...............................................................................98 3.4. A resoluo de litgios de consumo em Frana...............................................100

    3.4.1. Os meios judiciais: a injuno ou intimao para agir ............................100 3.4.2. Os meios extrajudiciais: informao, conciliao e mediao ................100

    3.5. A resoluo de litgios de consumo em Espanha ............................................103 3.5.1. Os meios judiciais: os juizes de paz ........................................................103 3.5.2. Os meios extrajudiciais: as juntas arbitrais..............................................104

  • 3.5.3. caracterizao da arbitragem de conflitos de consumo em Espanha.......105 3.5.2. Os meios extrajudiciais: as juntas arbitrais..............................................107

    4. ADR (RAL) de consumo: um balano da anlise comparada ...............................109

    Captulo IV

    A proteco dos consumidores entre a Unio Europeia e a sociedade portuguesa: o direito e a resoluo de litgios de consumo

    1. O direito do consumo no espao da Unio Europeia: pluralidade de ordens jurdicas e interlegalidade ........................................................................................111

    1.1. A poltica de proteco de consumidores e a produo do direito de consumo na Unio Europeia................................................................................................111

    1.2. Os tratados comunitrios fundacionais: a poltica indirecta de produo dos consumidores, a harmonizao e a soft law (dos primrdios a 1986).............112

    1.2.1. Os tratados fundacionais: a integrao do mercado e a proteco dos consumidores............................................................................................112

    1.2.2. A soft law em aco: da Cimeira de Paris ao programa preliminar .............114 1.2.3. A harmonizao negativa: o acrdo Cassis de Dijon .................................116 1.2.4. O segundo programa e o novo impulso: a continuao da soft law .............118

    1.3. Do Acto nico Europeu ao Tratado de Maastricht (1987-1993): a "constitucionalizao" e a "subidiariedade" de uma poltica europeia de proteco dos consumidores.................................................................................................119

    1.3.1. O Acto nico: o mercado interno para 340 milhes de consumidores........119 1.3.2. A continuao da soft law: o primeiro plano trienal ....................................121

    1.4. O Tratado da Unio Europeia: "constitucionalizao" e a "subidiariedade" da proteco dos consumidores no espao da UE ....................................................122

    1.4.1. A soft law ps- Maastricht : a continuao dos planos trienais....................123 1.5. Trinta anos de proteco de consumidores (e de regulao do mercado)

    no espao da Unio Europeia...............................................................................124 2. O direito do consumo em Portugal: a Constituio, a UE e a defesa dos

    consumidores .............................................................................................................128 3. A Unio Europeia e o impacto em Portugal das iniciativas comunitrias sobre o

    acesso dos consumidores justia e resoluo de litgios de consumo ..............134 3.1. As primeiras iniciativas (1972-1992)...................................................................135 3.2. O Livro Verde sobre o Acesso dos Consumidores Justia e a Resoluo dos

    Litgios de consumo no Mercado nico (1993-1994) .........................................138 3.3. Algumas iniciativas posteriores publicao do livro Verde (desde 1994) ........140

    3.3.1. A proposta de Directiva respeitante s Aces Inibitrias...........................140 3.3.2. O Plano de Aco relativo ao acesso dos consumidores justia

    e resoluo dos litgios de consumo no mercado interno...........................142 3.3.3. A Comunicao relativa resoluo extrajudicial dos conflitos de

  • consumo e a Recomendao relativa aos princpios aplicveis aos organismos responsveis pela resoluo extrajudicial de litgios de consumo ...................................................................................................143

    4. O papel do Estado, do poder local e das organizaes de consumidores na constituio dos centros de informao autrquico ao consumidores e centros de arbitragem de conflitos de consumo...................................................148

    4.1. O Estado: O papel motor Instituto do Consumidor.........................................148 4.2. O poder local: a proximidade ao consumidor .................................................152

    4.2.1. Os Centro de Informao Autrquicos ao Consumidor (CIAC) ...........154 4.3. As autarquias: o acolhimento e a dinamizao dos tribunais /centros de arbitragem.......................................................................159 4.4. As associaes de consumidores: um movimento em constituio ................160

    5. O direito e a resoluo de litgios de consumo em Portugal: a interpenetrao do transnacional, do estadual e do local .......................................................................165

    Captulo V

    A arbitragem institucional em Portugal

    1. A institucionalizao da arbitragem voluntria de litgios em Portugal ..............168 1.1. Os fundamentos da institucionalizao da arbitragem em geral .....................168 1.2. Os fundamentos da institucionalizao da arbitragem

    de conflitos de consumo..................................................................................175 1.3. Os fundamentos da institucionalizao da arbitragem laboral ........................177 1.4. Os fundamentos da institucionalizao da arbitragem no futebol...................187

    2. A arbitragem institucional e os mecanismos formais de resoluo de litgios no mbito do direito privado .........................................................................................191

    2.1. O sistema judicial ............................................................................................192 2.2. Os centros de arbitragem existentes em Portugal............................................193 2.3. A arbitragem no contexto dos mecanismos formais de resoluo de litgios .196 2.4. A arbitragem e o acesso ao direito e justia .................................................202

    3. Caracterizao da actividade dos centros de arbitragem em Portugal ................204 3.1. Da informao reclamao at ao tribunal arbitral.......................................204 3.2. A informao e o aconselhamento dos cidados.............................................207 3.3. A arbitragem institucional em razo de matria..............................................210

    3.3.1. A predominncia da arbitragem de litgios de consumo .......................210 3.3.2. A arbitragem institucional de litgios laborais ......................................219 3.3.3. A arbitragem de litgios desportivos .....................................................221 3.3.4. A arbitragem institucional e as novas reas de interveno..................223

  • 3.4. A arbitragem institucional no territrio...........................................................225 3.5. O processo arbitral...........................................................................................227 3.6. O termo dos litgios nos centros de arbitragem...............................................233 3.7. Os custos da arbitragem ..................................................................................238

    4. A arbitragem institucional de litgios (em especial do consumo): a emergncia de um "novo" meio de resoluo de conflitos.........................................................240

    Captulo VI

    Dois estudos de caso: os Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo da Cidade de Lisboa e de Coimbra e Figueira da Foz

    Introduo ........................................................................................................................243

    1. O Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo da Cidade de Lisboa ...........244 1.1. O nascimento (1978-1992) ..............................................................................244 1.2. A autonomia: desde 1993 ................................................................................247

    1.2.1. O mbito de competncia do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo da Cidade de Lisboa.................................................................249

    1.2.2. O funcionamento do Centro.....................................................................249 2. O Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Coimbra

    e Figueira da Foz .......................................................................................................269 2.1. A institucionalizao da arbitragem de conflitos de consumo em Coimbra......269

    2.1.1. A criao do Centro de Informao Autrquico ao Consumidor .................269 2.1.2. A criao a ttulo experimental do Tribunal Arbitral de Coimbra ...............270 2.1.3. A criao da Associao de Arbitragem de Conflitos de Consumo

    do Distrito de Coimbra ....................................................................................276 2.1.4. O alargamento da competncia do Centro de Arbitragem de Conflitos de

    Consumo de Coimbra e Figueira da Foz ao distrito de Coimbra 279 2.2. O Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Coimbra

    e Figueira da Foz (1996 a 1998) ...............................................................................281 2.2.1. O mbito de competncia do Centro de Arbitragem....................................282 2.2.2. O funcionamento do Centro .........................................................................283

    Captulo VII

    Concluses ......................................................................................................................303

    Bibliografia .....................................................................................................................317

  • Introduo Geral

    Nos ltimos quarenta anos desenvolveu-se, de um modo autnomo, nas sociedades contemporneas dois fenmenos novos e aparentemente independentes: a resoluo alternativa de litgios (alternative dispute resolution ADR/RAL) e o consumo.

    O movimento ADR/RAL surge nos anos sessenta no mbito da denominada terceira vaga das medidas facilitadoras do acesso ao direito e justia, assente no renascimento do interesse pela vida em comunidade e pela respectiva justia comunitria e, em simultneo, reconhecimento da insuficincia dos mecanismos tradicionais tribunais judiciais para resolver os velhos e os novos conflitos das sociedades contemporneas, designadamente os conflitos de consumo.

    Estes litgios so um novo fenmeno complexo e multidimensional, nas suas dimenses econmica, jurdica e cultural, que emergiram e se consolidaram numa sociedade dita de consumo (ou de consumo de massas). O consumo torna-se numa manifestao de conflito social moderno, no qual se destacam alguns actores: os produtores e fornecedores de bens e servios e os consumidores, bem como as suas organizaes a nvel local, do estado-nao ou transnacional. Em simultneo, o estado e as instncias interestaduais e/ou supra-nacionais assumem as funes de regulao ou (re)regulao do mercado e tambm das relaes sociais de consumo.Estas relaes sociais so desequilibradas. Os consumidores so a parte mais frgil, sujeitos a mltiplos riscos, razo pela qual se apelou constituio, nos ltimos anos, de um novo direito de proteco dos consumidores, que atenue a referida desigualdade e os compense dos danos de que sejam vtimas.

    O direito de consumo ou de proteco dos consumidores, num sentido sociolgico, no qual se inclui a resoluo de litgios de consumo, constitui o principal objecto de estudo deste trabalho. O nosso primeiro campo de anlise , assim, a produo do direito de consumo e a resoluo de conflitos de consumo na sociedade portuguesa no contexto transnacional do espao da Unio Europeia (UE). Analisaremos a evoluo do direito de proteco dos consumidores ao nvel da UE, e a relao com a emergncia e o seu desenvolvimento na sociedade portuguesa, e deter-nos-emos depois, com mais detalhe, sobre o estudo da arbitragem institucional de resoluo de litgios de consumo em Portugal. Em termos complementares e contextuais, analisaremos, ainda, o desempenho dos dezanove centros de arbitragem institucional existentes em Portugal, nos quais assume, ainda, especial destaque a resoluo alternativa de litgios laborais e desportivos.

  • Para levar a bom termo o nosso objectivo, dedicamo-nos, no primeiro captulo, a construir e a desenhar o campo de anlise, que se privilegia neste estudo. O nosso primeiro ponto de partida ancora-se nas perspectivas tericas e metodolgicas da sociologia do direito contempornea e desenvolve-se atravs de dois dos seus plos de anlise: o primeiro, a relao entre o Direito e o Estado, e o segundo, de que embora o direito estadual seja o modo de juridicidade dominante, ele coexiste na sociedade com outros modos de juridicidade, ou seja, existe no contexto de uma pluralidade de ordens jurdicas (Sousa Santos, 1994:153).

    Opta-se, assim, por estudar, por um prisma crtico, os mecanismos de produo de direito e de resoluo de litgios de consumo ao nvel local na sociedade portuguesa, ao nvel do Estado e ao nvel transnacional na UE e do seu impacto em Portugal.

    Um segundo ponto de referncia tem em considerao a evoluo do direito em especial durante a crise de Estado-Providncia, e regista a quase vitria da regulao sobre a emancipao, ou seja, dentro dos princpios constitutivos do direito, do princpio do mercado sobre os princpios da comunidade e do Estado. O direito de consumo ao assumir a natureza de um direito social, hbrido, entre o direito pblico e o direito privado, balana entre a regulao e a emancipao e permite ao Estado compensar as desigualdades sociais resultantes do normal funcionamento do mercado, que se desenvolve simultaneamente nas dimenses transnacionais, estaduais e locais.

    Um terceiro e ltimo tpico na construo do campo de anlise assenta num breve recenseamento das concluses resultantes da investigao sobre o acesso ao direito, de modo a alargar os caminhos estreitos dos consumidores para que venam as barreiras econmicas, sociais e culturais, que lhes obstaculizam o acesso ao direito e justia, e possam garantir a efectividade dos seus direitos.

    No segundo captulo, atravs da metfora da pirmide de resoluo de litgios numa sociedade (Sousa Santos et al., 1996), ensaia-se a determinao da importncia que nela deve ocupar a denominada resoluo alternativa de litgios e, designadamente, a arbitragem institucional de resoluo de litgios de consumo. Prossegue-se com uma caracterizao exemplificativa do movimento ADR (RAL), Alternative Dispute Resolution (Resoluo Alternativa de Litgios) nas suas origens, pluralidade e assimetria no mbito da resoluo de litgios comerciais transnacionais, de vizinhana, familiares, laborais e com a administrao pblica. Os diversos meios analisados tm como caracterstica comum a sua extra-judicialidade. Mas, variam da negociao assistida (conciliao e mediao) heterocomposio no judicial (arbitragem ad-hoc ou institucional); do espao de interveno transnacional ao estadual e ao local; de um grande a um pequeno espao de

  • retrica, em funo do menor ou maior grau de institucionalizao burocrtica; entre respostas geradas a nvel nacional a efeitos do processo de globalizao.

    No terceiro captulo, a partir da construo social das relaes de consumo, da verificao da debilidade da posio dos consumidores e das suas organizaes, procura-se, por um lado, precisar a noo de conflito de consumo e percorrem-se os caminhos por onde evolui a proteco dos consumidores (os modelos de proteco de autotutela ou auto composio, de controle partilhado entre o Estado central, local e as organizaes de consumidores e produtores/comerciantes, o modelo de proteco administrativa e o de controle judicial); por outro lado, analisam-se os meios de defesa dos consumidores, sejam judiciais (colectivos e individuais) ou no judiciais (informao jurdica, conciliao, mediao e arbitragem). De seguida, opta-se por recensear, numa perspectiva comparada, em cinco pases, os meios de defesa individuais dos consumidores, com enfoque na diversidade e pluralidade dos ADR (RAL) quanto sua natureza, promotores e finalidade.

    No quarto captulo, analisa-se a evoluo da poltica de proteco de consumidores da UE, como efeito indirecto da poltica de integrao do mercado europeu, da hard law (harmonizao positiva e negativa) e da soft law (planos, linhas-guias, comunicaes da comisso, etc.), antes e depois da constitucionalizao ao nvel da UE da proteco dos consumidores no Tratado de Maastricht (1992). A proteco dos consumidores foi e um campo privilegiado da tenso entre soberania estadual e da UE e entre a regulao do mercado e a emancipao dos consumidores. Atende-se, ainda construo do sistema de arbitragem de conflitos de consumo em Portugal, como resultado de uma parceria entre a UE que o promove e financia parcialmente , o Estado central e local que financia, dinamiza e suporta logisticamente , as associaes de consumidores e de produtores/comerciantes que so parceiros activos na constituio e manuteno dos centros de arbitragem de conflitos de consumo.

    No captulo quinto, aps uma breve descrio da institucionalizao da arbitragem, em geral, e em especial da de conflitos de consumo, laborais e desportivos, procede-se a uma anlise da arbitragem institucional de litgios em Portugal, comparando-a com o desempenho do sistema judicial e constatando que, passados catorze anos sobre o seu nascimento, representa j uma parcela significativa dos conflitos resolvidos atravs dos meios formais de resoluo de litgios. Neste contexto, apresenta-se com especial sucesso a arbitragem institucional de conflitos de consumo, que oferece aos cidados nos seis centros de arbitragem de conflitos de consumo um sistema integrado de justia, propiciando-lhes informao jurdica, conciliao, mediao e, se necessrio, arbitragem. Esta nova justia no assume uma natureza alternativa ao sistema judicial, mas sim complementar, dado que

  • a litigiosidade a encontrada quase ausente dos tribunais judiciais, pelo que, sem a possibilidade de recurso aos centros de arbitragem, estes litgios seriam suprimidos ou reprimidos pelos consumidores.

    No captulo sexto diminu a escala da minha anlise e procedi a dois estudos de caso: os centros de arbitragem de conflitos de consumo da cidade de Lisboa e de Coimbra e Figueira da Foz, que nos confirmam as virtualidades da parceria constitutiva entre a Unio Europeia, o Estado central e local e as organizaes dos actores da relao social de consumo. O primeiro centro vive um processo de desenvolvimento consolidado e o segundo os primeiros passos da autonomizao. Aps a caracterizao da litigao e dos seus mobilizadores podemos concluir que esta nova justia clere, eficaz, prxima, simples, gratuita, mas embrionria e tem, ainda, um alcance territorial e material reduzido.

    Captulo I O direito e a resoluo de conflitos de consumo: a construo de

    um campo de anlise

    1. O ponto de partida a sociologia do direito contempornea

    A sociologia do direito, embora herdeira dos paradigmas fundadores provenientes quer do campo sociolgico, quer jurdico "s se constitui em cincia social, na acepo contempornea do termo, isto , em ramo especializado da sociologia geral, depois da Segunda Grande Guerra Mundial" (Sousa Santos, 1994:141)1. O desenvolvimento da rea de estudos sociais dedicados investigao sociolgica do direito tambm foi naturalmente afectado, por um lado, pelas condies sociais, econmicas, culturais e polticas que afectaram as sociedades e, consequentemente, o desenvolvimento das outras cincias sociais.

    Em finais da dcada de 50 e incios da dcada de 60, as lutas, os movimentos sociais e a "crise da administrao da justia" orientaram o interesse sociolgico para as dimenses processuais, institucionais e organizacionais do direito (Sousa Santos, 1994: 144-145). J na dcada de 70, a crise dos Estados-Providncia, a crescente inefectividade dos direitos entretanto generalizados e o acentuar da crise da justia levaram a anlises

    1 Para uma anlise histrica das tradies fundadoras da sociologia do direito, remetemos, entre outros, para os seguintes trabalhos: Hunt (1978), Diaz (1984), Sousa Santos (1985), Treves (1988), Arnaud e Dulce (1996) e Andrini e Arnaud (1995). Este ponto 1 do Captulo I segue de perto o que escrevemos em Ferreira e Pedroso (1999).

  • sobre temas tais como: a administrao da justia, a organizao dos tribunais, a formao e o recrutamento dos magistrados, as motivaes das sentenas, as ideologias polticas e profissionais dos vrios sectores da administrao da justia, o acesso e o custo da justia, o bloqueio do sistema judicial e o ritmo, andamento e morosidade dos processos (Sousa Santos, 1994:145). Mais recentemente, a ateno tem-se congregado em torno de aspectos como sejam as consequncias da globalizao do campo jurdico, a progressiva visibilidade e protagonismo dos tribunais, a relao entre os media e os tribunais, a tenso entre o poder poltico e o poder judicial, ou a questo dos direitos humanos, sendo igualmente de referir temas da actualidade de que so exemplo a imigrao, o racismo, o feminismo, a criminalidade, a insegurana dos cidados, o crime organizado, a corrupo, a biotica, o meio ambiente ou a informtica (Sousa Santos et al., 1996; Arnaud e Dulce, 1996; Sousa Santos, 1999).

    A sociologia do direito tem estado, ainda, sujeita a grandes transformaes tericas e metodolgicas. Durante o perodo que vai, grosso modo, at final dos anos sessenta, sob a influncia norte-americana, a sociologia do direito caracterizou-se como uma disciplina preocupada, essencialmente, com pesquisas empricas. Contudo, nos anos 70, o ressurgimento do interesse por problemas tericos radicalizou-se, defendendo-se mesmo nalguns casos extremos, como sucede com Luhmann, a eliminao de pesquisa emprica dos estudos de sociologia do direito. No entanto, o presente trabalho filia-se na rea de estudos que defende a necessidade de um certo equilbrio entre as pesquisas empricas, acerca de problemas especficos, e os estudos tericos, designadamente sobre temas gerais. Os anos noventa so marcados por uma intensificao da reestruturao, ao nvel internacional, bem como pelo reconhecimento do desenvolvimento da disciplina (Arnaud e Treves, 1993)2.

    No quadro destes processos de reestruturao e desenvolvimento, e perante a grande diversidade de abordagens existentes, salientamos quatro tpicos, relacionados entre si, fundamentais para o entendimento da estrutura terico-metodolgica da sociologia do direito, que constituem o nosso ponto de partida neste trabalho: as relaes entre o Direito e as Cincias Sociais; a identificao das dimenses analticas consideradas prioritrias na conduo da investigao; a dimenso crtica da sociologia do direito; e a relevncia de aspectos "locais" que determinam as condies de formao do prprio conhecimento.

    2 Merece especial referncia o trabalho desenvolvido pelo Research Committee on Sociology of Law, da Associao Internacional de Sociologia, e a criao do Instituto Internacional de Sociologia (Oati), sob a gide do referido Research Committee on Sociology of Law e com o apoio do Governo do Pas Basco, em Espanha.

  • Em primeiro lugar, refira-se a existncia e a necessidade de superao de uma relao difcil e ambivalente entre o Direito e as Cincias Sociais (Hunt, 1997:103), designada na sociologia do direito como o gap problem (Nelken, 1981). A tenso a que este problema deu origem esteve (e, para alguns continuar a estar) na base de um conjunto de dicotomias, designadamente: o confronto entre perspectivas internas e externas do direito; o confronto entre uma sociologia jurdica dos juristas e uma sociologia jurdica dos socilogos; e a auto-definio do socilogo do direito como observador acrtico e objectivo que s descreve os factos do direito3.

    As discusses surgidas a propsito dos temas levantados so muito interessantes quando analisadas do ponto de vista da "arqueologia da disciplina". Contudo, quando o que est em causa levar por diante um trabalho sociolgico concreto sobre o direito, elas constituem-se como obstculos e revelam a "exausto" dos paradigmas tradicionais dos estudos scio-jurdicos4. O aprofundamento da problemtica em causa remete-nos para o estudo e anlise das concepes de direito, de sociedade e das relaes que entre eles se estabelecem5. No entanto, no sendo nosso propsito proceder a um levantamento das diferentes perspectivas tericas e metodolgicas envolvidas nesta discusso, procederemos anlise deste tema no quadro de uma "sociologia do direito renovada", surgida no contexto simultaneamente de "crise" e de "reestruturao" da sociologia6. Prope-se, para isso, o afastamento das discusses em torno do que poder ser considerado o objecto de anlise "prprio" de uma sociologia do direito, admitindo antes que ela estuda os

    3 Exemplos de outras dicotomias e problemticas so: o direito como varivel dependente; o direito como indicador privilegiado da sociedade vs. o direito como expresso da explorao; uma viso normativista do direito vs. uma viso institucional e organizacional; teoria vs. micro-sociologia do direito; o dogma da radical separao entre o mbito do ser e o mbito do dever ser; a impossibilidade da sociologia do direito de formalizar o seu objecto de conhecimento, afirmando, consequentemente, a sua dependncia e o seu carcter auxiliar em relao cincia jurdica (posio Kelseniana) ou delimitando o objecto do conhecimento da sociologia do direito em termos de aco social ou de comportamentos (posies sociologistas), assumindo um anti-normativismo. Para uma anlise aprofundada destas questes, consultar Nelken (1981), Sousa Santos (1994) e Arnaud e Dulce (1996).

    4 Em Sousa Santos (1986; 1987; 1988) encontramos uma sequncia argumentativa fortssima, crtica do paradigma tradicional dos estudos scio-jurdicos e reveladora da sua situao de "exausto", onde tal fenmeno designado por "processo de camelizao da sociologia do direito" (Sousa Santos, 1987, 1988).

    5 Ainda que o tema da "autonomia do direito" permanea incontornvel, pelo menos como critrio de classificao e organizao do pensamento scio-jurdico (Nelken, 1986), e, ainda que, a partir dele, possam estabelecer-se inmeras anlises das correspondncias ou indiferenas entre o direito e a sociedade (Sousa Santos, 1985, 1987, 1988; Guibentif 1992), os modelos de anlise scio-jurdicos mais interessantes na actualidade so os que questionam a raiz da distino direito/sociedade (Sousa Santos, 1986, 1987, 1988). No nosso entender, ser s no quadro da tentativa de superao desta dicotomia e do desenvolvimento de snteses tericas que se poder falar no contributo da sociologia do direito para o prprio processo de construo da teoria social, interpenetrao que nem sempre tem sido fcil (cfr. Turner, 1993; Therborn, 1995).

    6 O conceito de "crise da sociologia" tem sido utilizado de forma abundante desde que Alvin Gouldner (1970) dele faz uso. Um levantamento dos usos do conceito pode encontrar-se, entre outros, em Ferreira (1996). Tambm o conceito de "reestruturao" do pensamento poltico e social passou a fazer parte das anlises sociolgicas da sociologia desde que Bernstein (1976) o utilizou.

  • fenmenos scio-jurdicos na sua totalidade e nas suas interaces com diferentes factores sociais, polticos, culturais, econmicos e, no mbito dos "espaos estruturais" de produo de poder, direito e conhecimento das sociedades capitalistas no sistema mundial espao domstico, produo, mercado, comunidade, cidadania e mundial (Sousa Santos, 2000: 243)7. Concebe-se esta perspectiva como um "projecto cientfico interdisciplinar" (Arnaud e Dulce, 1996) que se constitui a partir de temas entendidos como "galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro um dos outros" (Sousa Santos, 1988:47)8, surgindo, assim, o pluralismo metodolgico como crtica ao paradigma dominante e lgica positivista9. Deste modo, a interdisciplinaridade no se obtm por decreto, resultando antes da partilha de conhecimentos e de subjectividades entre os membros das equipas de investigao.

    Do ponto de vista da constituio do campo analtico destacamos a importncia de dois plos. O primeiro diz respeito relao entre o Estado e o Direito. As investigaes neste domnio revestem-se de um especial interesse se considerar a aco conjugada de fenmenos como as crises do Estado-Providncia e de governabilidade, a globalizao do campo jurdico, a "sobre-legalizao da realidade", o "aumento da discrepncia entre as determinaes legais e as prticas sociais" e a "excessiva colonizao jurdica da vida social". Perante este contexto, o direito transforma-se cada vez mais num sistema de distribuio de recursos escassos e, portanto, de tutela legal de um modelo de justia social (Campilongo, 1997; Faria, 1997). Deste ponto de vista, j no possvel separar o poltico e o jurdico. O prprio debate e luta polticos vo opondo os partidrios do princpio do mercado e do recurso absoluto s formulas da desregulamentao e flexibilizao aos que sustentam a necessidade de recurso a polticas pblicas e a formas de regulao social. Deste processo de imbricao entre as esferas poltica e jurdica, analisado em detalhe por Boaventura de Sousa Santos (1995:56-109), resulta que o "regresso do poltico" seja,

    7 Deste ponto de vista, afastamo-nos da teoria sistmica de Niklas Luhmann e do seu excesso de "auto-referncia". Mais prximo das nossas preocupaes, encontra-se a teoria do "campo jurdico" de Pierre Bourdieu.

    8 Em Arnaud e Dulce (1996) encontram-se desenvolvimentos a este respeito.

    9 Quanto aos debates, temas e problemas que reflectem as preocupaes desta aproximao do fenmeno jurdico so de destacar: o nascimento e o desaparecimento das normas jurdicas; a implementao da norma jurdica; os mecanismos formais e informais de resoluo dos conflitos; as profisses jurdicas; as polticas pblicas; os direitos humanos nas suas mais variadas expresses; a administrao da justia enquanto instituio poltica e organizao profissional; o acesso ao direito e justia; a litigiosidade social e os mecanismos da sua resoluo existentes na sociedade. A globalizao, o pluralismo, o alternativo e o informal, a multiplicidade dos centros de deciso jurdica e a restruturao do processo de produo da norma jurdica so outros tantos exemplos dos eixos em torno do qual se desenvolve esta perspectiva de anlise dos fenmenos scio-jurdicos (cfr. Sousa Santos 1994; Arnaud e Dulce; 1996).

  • concomitantemente, um regresso ao direito10. O segundo plo de anlise parte do princpio de que, "sendo embora o direito estatal um modo de juridicidade dominante, ele coexiste na sociedade com outros modos de juridicidade, outros direitos que com ele se articulam de modos diversos" (Sousa Santos, 1994:153). Esta temtica reveste-se de uma importncia muito grande, num momento em que a crise e as desigualdades sociais vo de par com a tendncia para a interpenetrao entre a regulao jurdica e a regulao social11. Importa, deste modo, questionar as condies em que a informalizao e o pluralismo jurdico se constituem em modos de regulao favorveis para os indivduos e grupos sociais detentores de maior poder e recursos. Perante as tendncias que sustentam que informal is beautiful, necessrio acautelar os contextos e situaes que conduzem conciliao e mediao repressiva (Sousa Santos, 1982, 1988).

    No quadro da viragem normativa12 nas cincias sociais, e perante a gravidade social e humana dos problemas que se colocam na actualidade escala mundial, a atitude crtica e pretensamente neutra do socilogo, que s descreve os factos de direito, recusada. Sustenta-se a necessidade de insistir na reflexo crtica sobre o direito. Como se sabe, a sociologia do direito tem sido frtil no desenvolvimento de anlises crticas, como sejam os movimentos critique du droit e critical legal studies. Contudo, e como tem sido assinalado, estas perspectivas no conseguem, em muitos casos, ultrapassar a influncia de uma epistemologia positivista (Arnaud e Dulce, 1996: 176), sendo que, por outro lado, o recurso aos relativismos cultural, tico e poltico desacompanhados de propostas alternativas concretas sobre os novos sentidos do direito em sociedade, revelador do seu limitado potencial crtico e emancipatrio. No quadro desta discusso, sustenta-se que as dimenses tica e poltica devem fazer parte integrante de uma sociologia crtica do direito que, simultaneamente, crie condies de visibilidade sociolgica sobre os fenmenos scio-jurdicos e desenvolva uma teoria democrtica do direito que incorpore nos processos de teorizao e de investigao valores fundamentais como a liberdade, a igualdade, a autonomia, a subjectividade, a justia e a solidariedade. Da que a investigao neste domnio em Portugal deva privilegiar a anlise dos mecanismos de produo e das instncias de aplicao do direito e de resoluo de litgios, identificando

    10 Estaremos, portanto, perante uma teoria poltica do direito ou uma sociologia poltica do direito que remove a pretenso de separar o poltico. Ao faz-lo, reafirma a necessidade de discutir o Estado, a democracia, a justia social, a esquerda e a direita, a liberdade, a igualdade e a solidariedade de um ponto de vista poltico-jurdico. Esta abordagem pode ser feita em articulao com os trabalhos dos cientistas sociais que defendem uma concepo ampla dos estudos polticos (Held 1988, 1991)

    11 Sobre a relao entre a regulao jurdica e a regulao social, consultem-se, entre outros, Chazel e Commaille (1991); Arnaud e Dulce (1996: 307-308).

    12 Uma anlise deste debate feita, entre outros, por Ferreira (1996).

  • os bloqueios do sistema e promovendo o acesso dos cidados ao direito e justia. tambm a este desafio que pretendemos responder com este estudo.

    A importncia dos factores locais para a investigao muito grande quando a anlise recai sobre realidades cujas especificidades substantivas no se enquadram, ou se enquadram mal, nas teorias e modelos analticos vigentes. Assim, a pergunta "de onde falamos, quando falamos de sociologia do direito?" no despicienda13. Em primeiro lugar, porque existe uma diferena de tradio entre as sociedades de cultura jurdica continental, europeia, e as sociedades influenciadas pela cultura jurdica dos pases anglo-saxnicos, americanos e escandinavos. Em segundo lugar, porque se reconhece a existncia de uma "fractura", no seio da sociologia do direito, entre uma sociologia jurdica do norte e uma sociologia jurdica do sul (Arnaud e Dulce, 1996: 51)14. Tal situao alerta-me muito claramente para a necessidade de se desenvolver uma geo-sociologia da sociologia do direito que contrarie, de uma forma construtiva, a tendncia que se reconhece para que a sociologia, ainda que com preocupaes plurais e multiculturais, seja a sociologia dos pases centrais. Uma forma de encarar esta questo passa pelo esforo de "inovao terica", visando captar as especificidades das prticas, relaes e contextos sociais das sociedades "perifricas" e "semi-perifricas", face falta de adequao das teorias e categorias analticas desenvolvidas para estudar as sociedades centrais (Sousa Santos, 1994:53). Tendo sempre presente a necessidade de desenvolver anlises scio-jurdicas de ndole comparativa, pode dar-se como exemplos de problemticas que obrigaram em Portugal a um esforo de ajustamento as seguintes: a globalizao do campo jurdico e o seu impacto na produo do direito e no sistema de resoluo de litgios, a anlise da articulao entre a funo judicial e o sistema poltico; o impacto do processo de transio democrtica sobre o sistema judicial; a influncia do nvel de desenvolvimento econmico e social sobre o padro de conflitualidade, a propenso para a litigao; a relao entre a cultura jurdica e a cultura poltica; a composio dos conflitos em reas como a penal ou a laboral, ou, ainda, na rea do consumo, que constitui, como referimos, o objecto deste estudo; a colonizao dos tribunais pelas empresas; a auto-compositividade da sociedade

    13 Sobretudo se partir da hiptese de que a Sociologia surge, e, em certo sentido, permanece um "localismo globalizado", uma "globalizao hegemnica" (Sousa Santos, 1995), que fixa o conjunto de regras que determinam as condies de possibilidade do discurso sociolgico, conferindo-lhe um "mximo de conscincia possvel". Alis, como refere Boaventura de Sousa Santos, a relao complexa entre conhecimento, comunidade cientfica e sociedade necessita de ser estudada tendo em conta que ela "atravessada por uma tenso polarizada entre nacionalismo e internacionalismo, que se no pode esclarecer sem situar geopoliticamente a produo e a distribuio do conhecimento cientfico" (Sousa Santos 1989:155).

    14 A situao diferente da da dcada de 60, que opunha pases mais propensos a desenvolver investigao emprica a pases que preferiam desenvolver trabalho terico (Arnaud e Dulce, 1996).

  • portuguesa; a vitimao; as atitudes perante o direito e a justia; os bloqueios do sistema de acesso; a questo da morosidade, etc.

    2. A produo do direito: o Estado-Nao e a pluralidade das ordens jurdicas

    2.1. O direito na crise do Estado-Providncia e na superao do paradigma da modernidade: entre a regulao e a emancipao

    O presente trabalho centra-se, como j se referiu, em primeira linha, na proteco dos consumidores e na resoluo dos seus litgios, o que no quadro da sociologia do direito exigiu, em primeiro lugar, uma anlise terica da questo da produo do direito. Adopta-se para este efeito, e neste trabalho, uma concepo sociolgica e ampla de direito: o direito um corpo de procedimentos regularizados e de padres normativos, considerados justiciveis num dado grupo social, que contribui para a criao e preveno de litgios, e para a sua resoluo atravs de um discurso argumentativo, articulado com a ameaa de fora. Dizem-se justiciveis os procedimentos e os padres normativos com base nos quais se fundamentam pretenses contraditrias e se geram litgios susceptveis de serem resolvidos por terceiras partes no directamente envolvidas neles juizes, rbitros, mediadores, negociadores, facilitadores, etc. Sousa Santos (2000:269).

    A complexidade da regulao social e do direito moderno manifesta-se, de acordo com Boaventura de Sousa Santos (2000:128), em cada um dos trs princpios que a sustentam os princpios do Estado, do mercado e da comunidade. No paradigma da modernidade, o direito potencial e, simultaneamente, como pretendia Hobbes, a vontade do soberano, a manifestao do consentimento, no entendimento de Locke e, como defendia Rousseau, auto-prescrio da comunidade. Boaventura de Sousa Santos identifica e analisa a evoluo do direito nos trs perodos do capitalismo, atravs de uma permanente tenso entre a regulao e a emancipao15.

    No primeiro perodo do capitalismo, refira-se, em sntese, a soberania do povo transformou-se no Estado-Nao e o direito moderno tornou-se um instrumento de construo e regulao do mercado e da vontade do estado: o estado jurdico-racional de Max Weber (Sousa Santos, 2000:135). Assiste-se ao grande desenvolvimento do direito privado, dado que a regulao das relaes inter-individuais era o grande agente de autonomizao e de regulao do mercado.

    15 A anlise que efectuamos neste ponto sintetiza o pensamento de Boaventura de Sousa Santos (2000).

  • No segundo perodo, a construo do Estado-Providncia, o desenvolvimento da economia, das polticas pblicas, e designadamente das polticas sociais e do seu carcter distributivo, o reformismo poltico, econmico e social, e, ainda, o nascimento da concertao social entre capital e trabalho, como instncia de produo e de regulao social, provocou grandes transformaes no direito. O desenvolvimento e acompanhamento destes processos econmicos e sociais conduziu ao desenvolvimento de novos domnios do direito, como o direito econmico, o direito de trabalho e o direito social, em sentido genrico, que inclui, designadamente, tambm o direito e a resoluo de litgios de consumo. Todas essas reas do direito tm como caractersticas o enquadramento de polticas econmicas e sociais e a conjugao de elementos de direito privado e direito pblico, questionando, assim, a linha de demarcao entre o Estado e a sociedade civil. O prprio direito constitucional torna-se num terreno de intermediao e negociao entre interesses e valores sociais conflituantes, e consagra o reconhecimento

    dos direitos sociais e econmicos, a que comum chamar a "terceira gerao dos direitos humanos". O direito torna-se distributivo e assume, face a debilidades do poltico, uma funo de integrao social. O Estado liberal legitimou-se atravs da nacionalidade jurdico-formal. O Estado-Providncia procurou legitimar-se no desenvolvimento econmico e na forma de sociabilidade, que julgava fomentar. O direito foi despromovido da categoria de princpio legitimador do Estado para instrumento de legitimao do Estado. Assim se lanavam as sementes da banalizao do direito (Sousa Santos, 2000:138-141).

    No actual perodo de crise do Estado-Providncia, verifica-se na produo do direito um esbatimento do papel do Estado, a expanso quase hegemnica do princpio do mercado e um ressurgimento, ainda que tmido, do princpio da comunidade. O esbatimento do papel do Estado uma das consequncias dos processos de globalizao econmica em curso, sob o impulso do mercado, atravs da desregulamentao, privatizao, mercadorizao e reduo das polticas sociais, em paralelo com o desenvolvimento da cidadania activa e a participao da comunidade na produo do bem estar social. O princpio da comunidade foi de certo modo reactivado, no atravs de uma forma derivada e central no Estado, como no segundo perodo, mas de uma forma aparentemente mais autnoma. Conservadores e progressistas convergem no ressurgimento das redes de solidariedade, reciprocidade e auxlio mtuo como forma de recuperar a autonomia colectiva (Sousa Santos, 2000:146).16

    16 Segundo Sousa Santos (2000:146), a ideia no olhar para um passado que, provavelmente, nunca existiu, mas encarar a criao futura de um terceiro sector, situado entre o estado e o mercado, que organize a produo e a reproduo (a segurana social) de forma socialmente til atravs de movimentos sociais e ONGs, em nome da nova solidariedade ditada pelos novos riscos contra os quais nem o mercado nem o Estado ps-intervencionista oferecem garantia.

  • A crise e transformaes do Estado-Providncia lanaram um grande debate sobre a crise e as transformaes do direito, designadamente entre a concepo do direito como sistema auto-referencial e auto-poitico e a concepo do direito como construo social, produzido num contexto social (Guibentif, 1992; Faria, 1997; e Sousa Santos, 1995 e 2000). Teubner (1986: 309) identificava as trs grandes limitaes da regulao jurdica actual com um "trilema regulatrio". A primeira, na expresso de Habermas, a do direito "colonizar a Sociedade". O Estado-Providncia promoveu a instrumentalizao poltica do direito at aos seus limites. Esta "sobre-juridicizao da sociedade" ao submeter situaes concretas a um direito abstracto, visava a integrao social, mas acabava por criar desintegrao social. A segunda limitao revela-se como "materializao do direito": o reverso da sobre-juridicizao da sociedade a sobre-socializao do direito. O direito fica prisioneiro da poltica ou dos subsistemas regulados, "politizando-se", "economizando-se" ou "pedagogizando-se", acabando por submeter a uma tenso excessiva a autoproduo dos seus elementos normativos (Teubner, 1986:311). A terceira resulta das referidas disfunes redundarem em ineficcia do direito. A discrepncia da autoproduo interna do direito com a das outras esferas sociais, que regula, tornam a regulamentao jurdica ineficaz ou contraproducente.17

    A "colonizao", a "materializao" e a "ineficcia" so consideradas os limites extremos, aqum dos quais se devem definir as fronteiras, mais rgidas e restritas, de regulao jurdica, de forma a permitir que o direito funcione eficaz e automaticamente sem se descaracterizar nem a si, nem s esferas sociais, que regula. As sociedades modernas, para os defensores dos sistemas autopoitico e auto-referenciais, so constitudas por uma srie de subsistemas (direito, poltica, economia, cincia, arte, religio, etc.), todos eles fechados, autnomos, auto-contidos, e auto-referenciais, cada qual com um modo de funcionamento e um cdigo prprios. O direito um desses sistemas, um subsistema de comunicaes jurdicas que funciona com o seu prprio cdigo binrio: legal/ilegal. O direito s se regula a si prprio. O direito o ambiente que rodeia os outros sub-sistemas sociais, tal como estes so o meio-ambiente do direito.

    As "perturbaes" criadas por um sistema neutro s se tornam relevantes se forem convertidas em respostas ou reaces autopoiticas. Sousa Santos (2000:147-148) recusa que a soluo para a crise do direito seja a concepo do direito como um sistema autopoitico, seja na verso de Luhman ou na de Teubner, por no dar o devido relevo relao entre a evoluo da sociedade e a evoluo do direito. Por outro lado, a discusso

    17 Este enunciado sinttico sobre os sistemas auto-referenciais e auto-poiticos seguem a exposio de Sousa Santos (2000) e Guibentif (1993).

  • sobre a processualizao e a reflexividade do direito uma falsa questo, por assentar na concepo de autonomia do direito no Estado liberal, que segundo ele, uma concepo mistificatria. O espectacular desenvolvimento do intervencionismo estatal no Estado-Providncia modificou o direito moderno, quer como direito estatal, quer como direito cientfico. A crise no ocorreu no direito, mas sim nas reas sociais que regula. Trata-se, portanto, da crise de uma poltica o Estado-Providncia e no da crise da forma jurdica o direito autnomo. O direito moderno, enquanto conceito muito mais amplo do que o direito estatal moderno, est em crise, no devido sobre-utilizao que o Estado fez do direito moderno, mas devido reduo histrica da sua autonomia e da sua eficcia auto-norma e eficcia do Estado. Os limites da regulao jurdica, essencialmente "materializao" (ou sobrecarga), e ineficcia so problemas politicamente determinados (Sousa Santos, 2000: 151).

    A crise do Estado-Providncia e a consequente crise do direito estatal e cientista18

    alterou, e quase eliminou, a sua tenso constitutiva entre regulao e emancipao. No

    primeiro perodo, a emancipao foi sacrificada s exigncias regulatrias do Estado e confinado a movimentos anti-sistema. No segundo perodo, a regulao estatal dos pases centrais tentou integrar os projectos emancipatrios anti-sistmicos, desde que compatveis com a produo e reproduo capitalista. No terceiro perodo evoluiu-se para uma mtua desintegrao da regulao e da emancipao que foi transformada no duplo da regulao, desintegrando-se a ela prpria (Sousa Santos, 2000:152).

    2.2. O Direito de consumo enquanto direito social: a regulao e a emancipao

    2.2.1. A propsito de um conceito de direito social

    O direito social emerge durante o Estado-Providncia e assume-se como um meio de aco do Estado-Nao para fazer face s consequncias da excluso social causadas designadamente pelo perodo de transnacionalizao da economia em que vivemos. As caractersticas desse "direito social" (apresentadas de modo esquemtico e comparativo no quadro 1) residem no facto de que muitas das suas regras, normas e princpios tratam de valores imateriais (como aqueles que esto presentes no direito habitao, proteco do ambiente, segurana social) e destinam-se no aos indivduos mas a grupos sociais ou comunidades de pessoas. Historicamente, os conceitos e as categorias de um direito com essas caractersticas tm a sua origem nas reas da segurana social, da responsabilidade

    18 Rui Pinto Duarte (2000) ao recusar o "cientismo" do direito, viu a sua tese de doutoramento recusada na Faculdade de Direito da Universidade Clssica de Lisboa. Essa tese, com pequenas alteraes, veio a ser aprovada cerca de 8 anos mais tarde na nova Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

  • civil e dos acidentes de trabalho (Faria, 1997:304). Mais tarde, esses conceitos, essas categorias, essa racionalidade e essas tcnicas so estendidas para outros importantes ramos do direito moderno (como o direito ambiental, o direito das obrigaes, o direito agrrio, o direito urbanstico, o direito administrativo e, tambm o direito do consumidor), assegurando ao Estado um considervel aumento (e complexidade) dos seus instrumentos normativos e "prestacionais".

    Enquanto o tradicional sistema legal de garantias individuais forjado pela dogmtica jurdica era altamente selectivo e impermevel a contedos materiais, exigindo do Estado, basicamente, uma atitude de no interferncia, o "direito social" interveniente e compensatrio, promovendo, deste modo, uma selectividade inclusiva19. Contrapondo-se ideia de igualdade, na acepo formal do termo, que um dos pressupostos bsicos do paradigma da dogmtica jurdica, o direito social , deste modo, um "direito das desigualdades" ou de "discriminaes positivas"20 (Faria, 1997:304-306).

    Quadro 1 Dois "tipos ideais" de direito: caractersticas bsicas

    19 Por outras palavras, necessitam de uma ampla e complexa gama de programas governamentais e de polticas pblicas dirigidas a segmentos especficos da sociedade; polticas e programas especialmente formulados, implementados e executados com o objectivo de concretizar esses direitos e atender s expectativas por eles geradas com a sua positivao. Oriundos das mais variadas fontes materiais, muitas delas conflituantes entre si, e editados em tempos distintos, tutelando interesses que nem sempre so combinveis e conciliveis, esses textos destacam-se por exigir tratamentos diferenciados em favor de determinados segmentos sociais (Faria, 1997:305).

    20 Esta uma noo impossvel de ser definida a priori, afirmam dois conhecidos analistas. "Elle ne caractrise pas tant une forme juridique prcise dactivit ou un type demploi conomiquement determin quun ensemble de pratiques sociales exprimentales: pratiques dont le principal point commun est justement de chercher combattre lexclusion. Au regard des principes, la notion dinsertion drive de la conscience quil faut dpasser le seul point de vue juridique dans lapprhension des rapports dobligation sociale (point de vue dont lexclusivit caractrise la conception de la solidarit mise en oeuvre par ltat-providence). Pour linstant, elle ne fait que dlimiter une zone floue, qui nest adosse qu des refus (la poursuite du raisonnement en termes de droits sociaux classiques) ou des perplexits. Cest cette zone quil faut aujourdhui structurer positivement pour comprendre et agir em mme temps. La lutte contre lexclusion invite apprhender dans des termes neufs la conqute des droits, au-del des traditionnels droits-liberts et droit-crances (...). La lutte contre lexclusion invite ainsi explorer un troisime type de droits dintgration, dont le droit linsertion apparait comme la principale figure". (Cfr. Fitoussi e Rosanvallon (1996: 211-212).

  • CaractersticasDogmtica Jurdica "Direito Social"

    Conflito predominante inter- individual colectivo

    Funes do direito controle social e certeza jurdica mudana e integraoEfectividade da norma self-executing dependente de um welfare commitment

    Sistema jurdico fechado e autnomo com relao ao meio social aberto e sensvel s contnuas presses do meio social

    Concepo de justia formal; comutativa material; compensatria, distributiva e niveladora

    Critrio bsico de interpretao exegese ponderao e balanceamento

    Orientao hermenutica carcter lgico-dedutivo socializao do julgamentofidelidade lei normalidade como referncia limite

    Resultado estrito amplo

    Efeitos sobre as partes do processo sobre grupos, classes e colectividades

    modelo vencedor/vencido equilbrio social

    Envolvimento dos tribunais emisso de um julgamento envolvimento continuado

    Modelo de Direito

    Fonte: Faria (1997: 313)

    O desafio interposto aos "operadores" do direito no mais "pensar uma situao em funo das categorias jurdicas abstractas do direito civil", nem, muito menos, interpretar o contedo das suas normas a partir de critrios rigorosamente lgico-formais e de estrita legalidade. O sujeito de direito cede o seu lugar ao assalariado, ao consumidor e ao profissional. A noo de contrato estilhaa-se numa multiplicidade de tipos de contratos susceptveis de ser, cada um deles, regido por uma regulamentao "particular", o que, por consequncia, termina acarretando "o problema de uma racionalidade jurdica cujas categorias j no seriam definveis a priori, mas to s a posteriori"21.

    As leis "sociais" so uma condio necessria (embora no suficiente) de legitimao do Estado. Tais leis, em vez de se cingirem apenas definio das "regras do jogo", so especialmente concebidas para intervir no jogo. Os tericos do "direito social" costumam afirmar que a tradicional oposio entre interesses particulares e interesses gerais, to valorizada pelo paradigma da dogmtica jurdica em funo das suas bases contratualistas e liberais, deveria ser substituda pelo reconhecimento de interesses colectivos. Em matrias como a proteco contra acidentes de trabalho, desemprego,

    21 Cfr. Franois Ewald, (1993:128 e 153). Segundo o autor, essas leis com propsitos compensadores e protectores configuram um "direito social" que no se limita a tratar do trabalho e da segurana social. Esse direito "no pode ser definido pelos objectos de que trata, mas antes por aquilo que fez com que tais objectos se tivessem tornado susceptveis de um tratamento jurdico; direito social designa uma certa tcnica, uma certa maneira de dizer o direito, articulada com um certo tipo de racionalidade jurdica, um tipo de jurisdio"; designa, tambm, uma determinada "maneira de pensar a questo das pontes do direito, as relaes entre o facto e o direito e a questo de juridicidade". Por esse motivo, diz Ewald em outro importante texto, o "direito social" no deve ser compreendido como um complemento do direito privado; pelo contrrio, ele esvazia-o na medida em que implica a substituio da adjudicao tradicional pela promoo de acordos baseados em sacrifcios e concesses mtuas, que so obrigadas a renovar-se continuamente; antes de se preocupar com a certeza jurdica, o "direito social" enfatiza a solidariedade como um compromisso em torno do qual os comportamentos so socialmente aceites.

  • proteco ao consumidor, polticas pblicas nas reas de sade, proteco social, educao e formao profissional, a aplicao do direito no feita a um vizinho, no sentido geogrfico, mas ao prximo, no sentido sociolgico. Decorre justamente da, no desenvolvimento e na aplicao desse tipo de direito, a importncia de se utilizar como estratgia hermenutica determinadas "regras especiais" especialmente concebidas para permitir a adequao do sistema normativo realidade scio-econmica (Faria, 1997:310).

    2.2.2. Os direitos dos consumidores direito social e a mudana social normal

    A defesa do consumidor , consequentemente, uma questo que faz sentido dentro de um Estado social, ou melhor, um dos problemas bsicos do cidado do Estado social (Offe, 1992). A relao do Estado-Providncia com seus cidados mediada pelos direitos sociais22. clssica a distino entre direitos civis, polticos e sociais feita por Marshall (1963:375), considerando que os direitos civis, sendo direitos de liberdade individual, tm nos parlamentos o paradigma da sua efectivao, enquanto os direitos sociais so mecanismos de distribuio dos benefcios sociais e minimizam alguns "impactos negativos" do mercado.

    Os direitos sociais no dizem respeito s ao proibido, mas sobretudo ao que devido e esperado contra a lgica da punio (penalizao), a lgica da preveno. Os direitos sociais implicam no mais a liberdade, mas a vida como valor fundamental (Ewald, 1986: 25). O direito do consumo assim, inerente ao Estado de bem estar social. Os direitos dos consumidores, ao "democratizarem as relaes de mercado", no podem ser seno um meio de regulao pblica dos custos sociais dos acidentes, e outros danos decorrentes das relaes de consumo a serem assumidos pelos produtores e fornecedores e distribudos pelo mercado.23

    Nestes termos, uma poltica nacional de relaes de consumo visa, entre outras coisas, aumentar a qualidade dos produtos, a educao dos consumidores, a diminuio dos acidentes de consumo. Os seus objectivos so macro-objectivos e so satisfeitos quando os ndices estatsticos se alteram no sentido desejado. O seu objectivo no pode ser a

    22 Franois Ewald (1986:16) lembra que o direito social um direito de proteco contra os acidentes ou azares da vida social. Creio que dentro de tal perspectiva se pode compreender o regime de responsabilidade dos fabricantes perante os consumidores.

    23 Uma interpretao diferente, ou seja, de que a responsabilidade das indstrias reguladas deveria ser, em ltima instncia, do Estado regulador, gera um problema material de financiamento e um problema tico de justia (Lopes, s/d: 7). O problema que quando transferimos a responsabilidade do particular, que obtm o benefcio para o Estado, a conta ser repartida por todos: tem-se a socializao do prejuzo e a privatizao do lucro. A distribuio dos custos dos acidentes, quando feita por meio do Estado, contraditria: onera mais os que menos podem e onera desigualmente.

  • satisfao de cada um em particular, pois isto s se pode realizar nas disputas bilaterais entre produtor e consumidor. Resta ao Estado ou seja, poderes legislativo, executivo e judicial dar instrumentos aos consumidores para sua auto-defesa, sempre que necessrio, e tais instrumentos so dados por polticas pblicas (que incluem a legislao, a regulamentao, programas com verbas para recursos materiais e pessoais e tambm, mas no s, a aco fiscalizadora nas actividades reguladas). O dever do Estado, portanto, no gera um direito subjectivo individual tradicional, em princpio, mas um direito social cuja responsabilidade correspondente , em primeiro lugar, pelo menos poltica (Lopes, s/d: 8-11).

    O que se pode dizer que no "justo" que os consumidores arquem com o prejuzo em certos casos. Trata-se a da lgica da reparao que se destaca da lgica da punio, como diz Ewald (1986, 437: 445). Na sociedade de mercado, industrial e de massas, cresceu a ideia de que alguns factos independentemente de culpa atribuvel a algum em particular precisam de ser indemnizados. Assim, a reparao deve existir, pensa-se, independentemente de culpa ou de conduta imputvel moralmente e juridicamente a algum. A reparao e a punio dissociam-se, mas para que isto se cumpra surgem duas novidades: de um lado a categoria do acidente, de outro o sistema universal de seguros legais e/ou obrigatrios que no direito do consumo consistem na categoria responsabilidade civil do produtor.

    A ideia bsica do direito do consumidor distribuir os custos dos acidentes e prevenir os mesmos. O direito do consumidor , como dizem Abramovich e Courtis (1994), um regime paralelo ao do direito do trabalho. O direito do trabalho construiu-se a partir da noo de relao de trabalho: sem ela, no existem direitos dos trabalhadores. Ora, o direito do consumidor est construdo em torno da noo da relao de consumo: sem ela, no existe direito do consumidor. O direito do trabalho e o direito da segurana social constituram sistemas de proteco social do trabalhador perante eventualidades, como a doena, o desemprego ou o acidente de trabalho. A construo de um sistema anlogo de seguro legal obrigatrio poderia ser pensado no mbito do direito do consumo, mas, por ora, a tcnica utilizada tem sido a do regime especial de responsabilidade civil do produtor, o regime especial de clusulas gerais do contrato, normas de direito pblico de regulao do mercado e de facilitar aos consumidores o acesso justia, para poderem efectivar os seus direitos e serem compensados de danos sofridos. A constituio e efectividade do direito de consumo enquanto direito social um hbrido de direito pblico e direito privado, que permite ao Estado compensar as desigualdades sociais produzidas pelo funcionamento do mercado e, assim, contribuir para uma transformao social sem

  • roturas, a que Sousa Santos chama mudana social normal. "O padro da mudana social normal assenta na disponibilidade potencialmente infinita do direito territorial para levar a cabo uma transformao social atravs da repetio e da melhoria". Essa utopia jurdica como o autor lhe chama envolve uma distribuio complexa de recursos jurdicos pelas trs grandes estratgias do Estado: acumulao, hegemonia e confiana. Reside a a complexidade e heterogeneidade da juridicidade estatal (Sousa Santos, 2000: 165).

    O direito de consumo um instrumento de melhoria social, dado que ao atenuar a relao de desigualdade entre produtor e consumidor est a promover a expanso dos seus direitos, bem como do seu acesso ao direito e resoluo de litgios de consumo.

    Quadro 2 Mudana social normal (estratgias do Estado)

    Campo jurdico do direito de consumo e de resoluo de litgios de consumo

    Repetio M elhoria

    HegemoniaConsumo social

    Cincia como bem estar

    ConsumidorBem estar social/ consumismo

    Paz social; desigualdade social

    Mais justia social; expanso dos direitos

    Confiana

    Riscos nas relaes sociais de consumo:

    litgios de consumo

    Cincia como

    recurso

    estatal e social

    Cidadania

    Legal/ilegal Justo/injusto Relevante/ irrelevante

    Segurana jurdica: ordem e direito

    Expanso e aperfeioamento da resoluo de litigios; mais acesso ao

    direito; mais direito

    Adaptado de Santos, 2000:166

    Estratgia

    M udana socialCampo social ConhecimentoSubjectividade Valor social

    Dimenses

    3. A globalizao, o Estado e a resoluo de litgios: as reformas judiciais e o movimento de resoluo alternativa de litgios (RAL/ADR)

    Desde os anos 80 que a administrao da justia dos pases desenvolvidos vive sob o signo de uma crise do sistema judicial, no contexto de crise do estado anteriormente referida. Esta crise manifesta-se, por um lado, pelo aumento da procura dos seus servios, exploso de litigiosidade e por falta de recursos financeiros, tcnicos, profissionais e organizacionais do sistema judicial para responder a este aumento da demanda. Por outro lado, os processos de globalizao levaram a que o judicial, a par de alguma "justia dramtica" (casos polticos de grande amplitude), se especializasse ou deixasse "colonizar" pela "justia rotineira", ou seja, essencialmente a "cobrana de dvidas", de modo a

  • assegurar o funcionamento da economia. Esta selectividade e esta concentrao da litigao do sistema judicial afastaram os cidados da justia reprimindo e suprimindo a litigao. Assim, ao longo dos ltimos anos, as reformas da administrao da justia tm balanado, nos pases perifricos, entre a indiferena e o crescente interesse das agncias internacionais em a implantar sistemas judiciais (Sousa Santos, 2000b) e, nos pases centrais e semi-perifricos, entre o que se pode designar por uma "administrao tecnocrtica da justia" e por "desjudicializao da justia" (Sousa Santos, 1982).

    A reforma do judicirio , por um lado, uma componente essencial do novo modelo de desenvolvimento e a base para uma boa governao. A administrao da justia essencialmente um servio prestado pelo Estado comunidade, de maneira a preservar a paz social e facilitar o desenvolvimento econmico atravs da resoluo dos conflitos. Como alguns funcionrios do Banco Mundial confessaram, foi "preciso verificar o falhano de governos em frica, esperar pelo colapso de ditadores na Amrica Latina e assistir a profundas transformaes na Europa Central e de Leste, para conclurem que sem um enquadramento jurdico e sem um judicirio independente e honesto, os riscos de colapso econmico e social so enormes" (Sousa Santos, 2000b:4). O primado do estado de direito e o sistema judicial parecem ser os instrumentos ideais de uma concepo despolitizada da transformao social (Sousa Santos, 1999). Assim, as agncias financeiras e as instituies polticas internacionais tm sido agentes da globalizao do modo judicial.

    Por outro lado, os tribunais tm vindo a ser duramente criticados, particularmente em Itlia, Frana, Portugal e Espanha, pela sua ineficincia, inacessibilidade, morosidade, custos, falta de responsabilidade e de transparncia, privilgios corporativos, grande nmero de presos preventivos, incompetncia nas investigaes, entre outras razes. No estudo realizado por Santos et al., sobre o uso dos tribunais em Portugal, emergiu uma imagem muito elucidativa acerca da grande distncia e desconfiana dos cidados do sistema judicial, e do baixo grau de satisfao nas situaes em que estiveram envolvidos em processos judiciais (Sousa Santos et al., 1996).

    As reformas judiciais levadas a cabo nos pases do sul da Europa, durante os perodos de transio democrtica ocorridos nos anos 70, foram desencadeados com recursos internos, em resposta a aspiraes e necessidades internas, e com o objectivo de reintegrar os seus sistemas judiciais na transio democrtica e na cultura jurdica continental europeias. As reformas judiciais na frica, Europa Central e de Leste tm sido influenciadas por fortes presses internacionais uma forma de globalizao de alta intensidade. Nos pases centrais e semi-perifricos tem-se assistido a uma tenso entre a "reforma tecnocrtica da justia" e o movimento de "desjudicializao da resoluo de

  • litgios". Em ambos os processos se combinam factores internos, a cada estado, de mudana com processos de globalizao de baixa intensidade decorrentes do impacto da globalizao do sistema econmico na exploso de litigao rotineira, do aumento da procura dos tribunais e de, nos ltimos 20 anos, instncias internacionais, como o Conselho da Europa e a Unio Europeia, virem promovendo o desenvolvimento dos denominados meios alternativos de resoluo de litgios.

    Para os defensores da reforma da administrao tecnocrtica da justia os profissionais , a soluo reside no aumento quantitativo dos recursos disponveis para o exerccio das funes judiciais (mais tribunais, mais juizes, mais funcionrios), o que tem como obstculo a incapacidade financeira do estado para alargar o oramento da administrao da justia. Para outros os cientistas sociais, administradores, polticos a soluo reside numa melhor gesto dos recursos existentes, o que em geral envolver alteraes na diviso do trabalho judicial, a delegao descendente do trabalho administrativo ou de rotina e a promulgao de regras que tomem o processo judicial mais expedito. Tais solues tendem a ser inviabilizadas pelos magistrados, preocupados com a eventual perda do controlo da actividade judicial, resistncia passiva das rotinas estabelecidas e dos interesses midos e grados, que elas acabam por criar e reproduzir (Sousa Santos, 1982:10)24.

    Para alm desta tendncia de reforma da administrao da justia, de mais meios e de alteraes de procedimentos de gesto e processos mais rpidos, existem outros dois tipos de respostas. O primeiro prope transformaes profundas na concepo e gesto do sistema judicial, apetrechando-o com mltiplas e sofisticadas inovaes tcnicas, que vo da automatizao dos ficheiros e arquivos e do processamento automtico dos dados ao uso generalizado da tecnologia do vdeo, s tcnicas de planeamento e previso de longo prazo e elaborao de mdulos e de cadeias de deciso, que tornem possvel a rotinizao. Estas reformas envolvem a criao de uma srie de perfis profissionais novos e formas novas de centralizao e unificao de processos judiciais e assumem, por isso, uma amplitude tal que no arriscado prever que, se aplicadas, produziro alteraes profundas na organizao do trabalho da justia e, mais ainda, no sistema de autoridade e hierarquia que o tem norteado.

    O segundo tipo de reformas, muito distinto do anterior, caracterizava-se pela elaborao de alternativas ao modelo centralizado formal e profissionalizado, que tem dominado a administrao da justia sobretudo nos ltimos 200 anos. Estas alternativas

    24 Ao longo deste ponto seguiremos de perto o texto de Boaventura de Sousa Santos (1982).

  • tm constitudo o movimento RAL (ADR Alternative Dispute Resolution ou MAC Mediation, Arbitrage et Conciliation), que consistem, em geral, na criao de processos, instncias e instituies relativamente descentralizadas, informais e desprofissionalizadas, que substituem ou complementam, em reas determinadas, a administrao tradicional da justia e a tornam, em geral, mais barata, mais rpida e mais acessvel. Estes dois grandes tipos de reformas so duas faces da mesma moeda, por isso vm a ser realizadas simultaneamente e articuladamente, sendo os recursos tecnocrticos concentrados em certas reas da administrao da justia, enquanto noutras se concentraro os recursos alternativos ou informalizantes.

    Saliente-se tambm que estas reformas devem ser analisadas em trs sentidos: primeiro, se criam uma maior assimetria do sistema judicial e, consequentemente, uma maior assimetria da dominao jurdico-poltica; segundo, se a resoluo alternativa de litgios pela mediao, conciliao e arbitragem, no se tornaria repressiva por no terem poder coercitivo para neutralizar as diferenas de poder entre as partes; terceiro, se a resoluo alternativa de litgios, nas suas diversas formas, mediao, conciliao e arbitragem, ser um mero caminho de retirar sobrecarga judicial ou pode, tambm, ser um meio de desenvolver e acentuar o acesso ao direito e justia (Sousa Santos, 1982:9-33).

    A concluir, a reforma da administrao da justia, em sentido amplo, passa inevitavelmente pela adopo de um modelo distinto do actual, compreendendo uma articulao entre os vrios tipos de reformas propostas e designadamente a "criao" de processos, instncias e instituies relativamente descentralizadas, informais e desprofissionalizadas, que substituam ou complementem, em reas determinadas, a administrao tradicional da justia e a tornem em geral mais rpida, mais barato e mais acessvel.

    4. Alargar os caminhos estreitos dos consumidores no acesso ao direito e justia

    A completar o desenho dos fundamentos tericos deste trabalho e a construo do campo de anlise, h que enquadrar a resoluo dos litgios dos consumidores num dos temas mais caros e mais estudados pela sociologia do direito, o acesso ao direito e justia. Mauro Cappelletti e Brian Garth (1978) nos finais dos anos setenta coordenaram um grande projecto de investigao sobre o acesso ao direito em diversos pases, no qual nos propem dois caminhos analticos. O primeiro, identifica o acesso ao direito e

  • justia como igualdade no acesso ao sistema judicial e/ou representao por advogado num litgio. O segundo, mais amplo, como acesso garantia de efectividade dos direitos individuais e colectivos. Ora, esta viso mais ampla que privilegiamos neste trabalho. Os nossos direitos s so efectivos se tivermos conscincia deles e, na eventualidade de nos considerarmos lesados, podermos recorrer a uma instncia ou entidade a quem se reconhea legitimidade, que dirima esse nosso litgio com o lesante.

    O acesso ao direito e justia a pedra de toque do regime democrtico. No h democracia sem o respeito pela garantia dos direitos dos cidados (Sousa Santos et al.,1996: 483). Estes, por sua vez, no so efectivos se o sistema jurdico e o sistema judicial no forem de livre e igual acesso a todos os cidados, independentemente da sua classe social, sexo, raa, etnia e religio. Enquanto ponto de interseco entre o poltico e o jurdico-institucional, o problema do acesso ao direito revela-se um excelente indicador sociolgico do grau de contradio ou compatibilizao entre diferentes princpios de regulao ou ordem social. Com efeito, esta questo convoca a referncia a princpios como os da participao, igualdade e justia sociais. Como interface privilegiado para a anlise da articulao entre os sistema poltico democrtico e os sistemas jurdicos e judicial, a temtica do acesso justia e do apoio legal dos mais desfavorecidos transporta para a discusso os problemas da igualdade e da articulao num mesmo sistema dos princpios da justia social e do mercado. Por exemplo, ela utilizada por Marshall quando pretende ilustrar as dificuldades de combinao entre os princpios da igualdade social e do sistema de preos decorrentes da efectivao de direitos civis e sociais, quando contrapostos efectivao dos direitos polticos (Marshall, 1963).

    No quadro desta argumentao, o acesso ao direito e justia tambm uma forma de acesso ao poltico. Neste sentido, as barreiras ao acesso justia so encaradas como barreiras ao exerccio da cidadania e efectivao da democracia, sobretudo se este for entendido num sentido amplo que envolva no s a igualdade no acesso representao por advogado num litgio, mas tambm a garantia de efectividade, eficcia e implementao dos direitos. Colocada a questo nestes termos, a contextualizao scio-poltica da questo do acesso tem de ter em considerao a situao da sociedade civil, da organizao dos interesses, dos movimentos sociais, das culturas jurdica e poltica e da mobilizao e participao dos cidados em diferentes esferas e nveis de interveno na sociedade.

    Os estudos realizados pela sociologia judiciria revelam-nos que os obstculos ao acesso efectivo justia por parte das classes populares so de trs tipos: econmicos,

  • sociais e culturais25. Os custos econmicos compreendem, como j referimos, nomeadamente: preparos e custas judiciais; honorrios de advogados e outros profissionais como, por exemplo, peritos; gastos de transporte e outros; uma srie de custos de oportunidade com valor econmico, para alm dos custos resultantes da morosidade (Sousa Santos et al., 1996:486)26. Todos estes custos tornam a justia dispendiosa e proporcionalmente mais cara para as aces de pequeno valor, por alguns destes custos serem rgidos, o que vitimiza mais uma vez as classes populares, dado que precisamente neste tipo de aces que elas tendem a intervir.

    A sociologia da administrao da justia tem-se, assim, ocupado tambm dos obstculos sociais e culturais ao efectivo acesso justia por parte das classes populares, e este constitui talvez um dos campos de investigao mais inovadores. Os estudos revelam que a distncia dos cidados em relao administrao da justia tanto maior quanto mais baixo o estrato social a que pertencem e que essa distncia tem como causas prximas, no apenas factores econmicos, mas tambm factores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais remotamente relacionados com as desigualdades econmicas.

    Em primeiro lugar, os cidados de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema, que os afecta como sendo um problema jurdico. Podem ignorar quer os direitos em jogo quer as possibilidades da sua reparao jurdica. Caplowitz (1963), por exemplo, concluiu que quanto mais baixo o estrato social do consumidor maior a probabilidade que desconhea os seus direitos no caso de compra de um produto defeituoso (apud Sousa Santos, 1994).

    Em segundo lugar, mesmo reconhecendo o problema como jurdico, como violao de um direito, necessrio que a pessoa se disponha a interpor a aco. Os dados mostram que os indivduos das classes mais baixas hesitam muito mais que os restantes em recorrer aos tribunais, mesmo quando reconhecem estar perante um problema jurdico. Numa investigao efectuada em Nova Iorque junto de pessoas que tinham sido vtimas de pequenos acidentes de viao, verificou-se que 27% dos inquiridos da classe baixa nada faziam em comparao com 24% dos inquiridos da classe alta (apud Carlin e Howard, 1965), ou seja, quanto mais baixo o status scio-econmico da pessoa acidentada menor

    25 Sobre os diferentes tipos de barreiras de acesso justia conferir, entre outros, Macdonald (1984).

    26 Sobre os custos da litigao e sua influncia na funo da procura de tutela judicial, assim como na gesto da oferta, conferir Sousa Santos et al. (1996: Captulo II).

  • a probabilidade que interponha uma aco de indemnizao27. Dois factores parecem explicar esta desconfiana ou esta resignao: por um lado, experincias anteriores com a justia, de que resultou uma alienao em relao ao mundo jurdico (uma reaco compreensvel luz dos estudos que revelam ser grande a diferena de qualidade entre servios advocatcios prestados s classes de maiores recursos e os prestados s classes de menores recursos)28; por outro lado, uma situao geral de dependncia e de insegurana, que produz o temor de represlias se se recorrer aos tribunais.

    Em terceiro e ltimo lugar, verifica-se que o reconhecimento do problema como problema jurdico, e o desejo de recorrer aos tribunais para o resolver, no so suficientes para que a iniciativa seja, de facto, tomada. Quanto mais baixo o estrato scio-econmico do cidado menos provvel que conhea um advogado ou que tenha amigos que conheam advogados, menos provvel que saiba onde, como e quando contactar o advogado, e maior a distncia geogrfica entre o lugar onde vive ou trabalha e a zona da cidade onde se encontram os escritrios de advocacia e os tribunais.

    O conjunto destes estudos revelou que a discriminao social no acesso justia um fenmeno muito mais complexo do que primeira vista pode parecer, j que, para alm das condicionantes econmicas, sempre mais bvias, envolve condicionantes sociais e culturais resultantes de processos de socializao e de interiorizao de valores dominantes muito difceis de transformar. A riqueza dos resultados das investigaes sociolgicas no domnio de acesso justia no pde deixar de reflectir-se nas inovaes institucionais e organizacionais que, um pouco por toda a parte, foram sendo levadas a cabo para minimizar as escandalosas discrepncias verificadas entre justia civil e justia social (Sousa Santos, 1994:148).

    De modo a eliminar, ou pelo menos atenuar, os referidos obstculos, vrios pases, aps a Segunda Guerra Mundial, procederam a reformas legais e de transformao das profisses jurdicas com o objectivo de facilitarem o acesso justia29. Nos Estados Unidos da Amrica desenvolveu-se um movimento de reformas legais e de programas de apoio aos cidados que passou pelas seguintes fases. A primeira fase teve incio em 1965 e consistiu num movimento caracterizado pela defesa e promoo de apoio judicirio aos cidados de menores rendimentos. A segunda fase estendeu este movimento, a partir de 1970,

    27 Perdomo (1985) organizou um conjunto de textos em que se relaciona o acesso justia e aos tribunais com a pobreza no contexto venezuelano.

    28 O peso das experincias anteriores com a justia na conformao das expectativas sobre a eficcia do recurso aos tribunais resulta evidente nos resultados do inqurito realizado por Sousa Santos et al. (1996, cap. 10).

    29 Sobre o problema do acesso justia conferir, entre outros, Galanter (1989).

  • promoo de representao dos interesses difusos com o desenvolvimento das public interest law firms (defesa dos consumidores, ambiente, etc.), subsidiadas pelo Estado, comunidades e fundaes30. A terceira fase iniciou-se ainda nos anos 70, colocando o nfase na mudana das instituies de resoluo de litgios, isto , na criao de meios alternativos de resoluo de litgios menos formais que os tribunais, os chamados ADR Alternative Dispute Resolution (Resoluo Alternativa de Litgios RAL). Segundo Cappelletti (1981:5), o acesso justia nos EUA caminhar para uma situao de integrao das trs fases, no havendo, por isso, entre elas, uma relao de substituio sucessiva, mas antes de coexistncia, mantendo cada uma a sua funo especfica.

    Na Europa a evoluo no se fez do mesmo modo. Em geral, e de forma comum a todos os pases, este movimento de legal aid transformou a advocacia. A par da advocacia tradicional, surgiram, de um modo tmido, a advocacia social e a advocacia poltica. Estas duas novas faces da advocacia surgem inseridas em movimentos socialmente comprometidos, em que a primeira pretende unicamente resolver os problemas jurdicos dos mais carenciados a ttulo individual (defesa de pobres), e a segunda pretende j defend-los numa perspectiva colectiva (advogados de sindicatos, associaes), isto , defender os interesses colectivos dos cidados no sentido do public interest advocacy31,32.

    No imediato ps-guerra vigora na maioria dos pases um sistema de assistncia judiciria gratuita organizada pela ordem dos advogados a ttulo de munus honorificum (Cappelletti e Garth, 1978: 22 e ss.; Blankenburg, 1980). Os inconvenientes deste sistema eram muitos e foram rapidamente denunciados. A qualidade dos servios jurdicos era baixssima, uma vez que, ausente a motivao econmica, a distribuio acabava por recair em advogados sem experincia e por vezes ainda no plenamente profissionalizados, em geral sem qualquer dedicao causa. Os critrios de elegibilidade eram estritos e a assistncia limitava-se aos actos em juzo, estando excluda a consulta jurdica e a informao sobre os direitos. A denncia das carncias deste tipo de sistema privado e caritativo levou a que, na maioria dos pases, ele fosse sendo substitudo por um sistema poltico e assistencial organizado ou subsidiado pelo Estado (Sousa Santos, 1994:149).

    Em contraponto a estes sistemas caritativos desenvolveram-se dois modelos alternativos: o da advocacia convencionada e o da advocacia pblica. O sistema de

    30 Sobre a tutela judicial dos interesses difusos conferir, entre outros, Antunes (1990).

    31 Blankenburg e Cooper (1982: 4) referem, ainda, como exemplo da advocacia poltica na antiga Repblica Federal da Alemanha, a luta que foi mantida nos tribunais administrativos contra as berufverboten, ou seja, as interdies profissionais de trabalhar na funo pblica a que o Estado sujeitava certos cidados, por serem, por exemplo, pacifistas, ecologistas, ou membros de associaes ou de partidos polticos de esquerda.

    32 Cooper (1991) uma interessante fonte de informao sobre Public interest law.

  • advocacia convencionada, conhecido por judicare, foi criado em Inglaterra no ano de 1949 (aperfeioado em 1974 e 1988), segundo o qual o cidado elegvel (atendendo aos seus limites de rendimento) escolhe um advogado de entre os que se inscreveram numa lista para prestao desses servios33,34. A remunerao do advogado assegurada pelo Estado segundo os preos correntes no mercado dos servios advocatcios. A par da construo da Unio Europeia, as suas instituies, designadamente a Comisso, o Conselho e o Parlamento, tm-se empenhado nos ltimos anos em defender o desenvolvimento do acesso dos cidados ao direito e justia, no espao da Unio Europeia, atravs, por exemplo, da promoo dos meios alternativos de resoluo de litgios. Este movimento, em embrio, constitui uma ruptura com a teoria e a prtica de alguns pases europeus, no mbito do acesso ao direito, e aproxima-se da terceira vaga que referimos de acesso ao direito nos EUA, no se limitando aos litgios de consumo, como analisarekos nos captulos II e III deste estudo35. O actual movimento ADR (RAL) na Europa assume mltiplas formas, desde instituies de resoluo de