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Argamassas betuminosas usadas como corte hídrico vertical na cidade do Porto (1850-1930) Luís Mariz Ferreira Universidade Pais Basco Espanha [email protected] João Freitas Coroado Instituto Politécnico Tomar Portugal [email protected] Resumo: Nas construções da segunda metade do século XIX surgem, com relativa frequência, argamassas betuminosas que tinham como objectivo preconizar um corte hídrico a fim de evitar a precipitação de eflorescências. Este ligante poderia ter as seguintes origens: do alcatrão (derivado da destilação da hulha), da trituração da rocha carbonatada impregnada com petróleo e do asfalto (derivado da destilação do petróleo). Documentos da época indiciam que o material usado pelas indústrias do Porto teria sido o alcatrão. Neste trabalho caracterizam-se os materiais, processos de fabrico e de aplicação destas argamassas betuminosas. Palavras-chave: Alcatrão, Betume, Hulha, Argamassa hidrófoba, Porto. 1. INTRODUÇÃO O estudo das tecnologias construtivas no período compreendido entre 1850 e 1930, efectuado na cidade do Porto, permitiu constatar, nas estratigrafias dos revestimentos que culminavam com azulejo, a presença de uma camada de argamassa betuminosa, usada com fins hidrófobos. Os trabalhos históricos que incidem no estudo da construção deste período, não têm abordado convenientemente a tecnologia que envolve a produção e a aplicação, destas argamassas betuminosas. O presente estudo incide na caracterização composicional e funcional das argamassas betuminosas aplicadas e dois edifícios construídos na segunda metade do século XIX. 2. ARGAMASSAS BETUMINOSAS Ao longo da história estão registadas várias soluções construtivas que visam a obtenção de cortes hídricos nas alvenarias. As razões que sustentam esta procura são as propriedades

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Argamassas betuminosas usadas como corte hídrico vertical na cidade do Porto (1850-1930)

Luís Mariz Ferreira Universidade Pais Basco

Espanha [email protected]

João Freitas Coroado Instituto Politécnico

Tomar Portugal

[email protected] Resumo: Nas construções da segunda metade do século XIX surgem, com relativa frequência, argamassas betuminosas que tinham como objectivo preconizar um corte hídrico a fim de evitar a precipitação de eflorescências. Este ligante poderia ter as seguintes origens: do alcatrão (derivado da destilação da hulha), da trituração da rocha carbonatada impregnada com petróleo e do asfalto (derivado da destilação do petróleo). Documentos da época indiciam que o material usado pelas indústrias do Porto teria sido o alcatrão. Neste trabalho caracterizam-se os materiais, processos de fabrico e de aplicação destas argamassas betuminosas. Palavras-chave: Alcatrão, Betume, Hulha, Argamassa hidrófoba, Porto.

1. INTRODUÇÃO O estudo das tecnologias construtivas no período compreendido entre 1850 e 1930, efectuado na cidade do Porto, permitiu constatar, nas estratigrafias dos revestimentos que culminavam com azulejo, a presença de uma camada de argamassa betuminosa, usada com fins hidrófobos. Os trabalhos históricos que incidem no estudo da construção deste período, não têm abordado convenientemente a tecnologia que envolve a produção e a aplicação, destas argamassas betuminosas. O presente estudo incide na caracterização composicional e funcional das argamassas betuminosas aplicadas e dois edifícios construídos na segunda metade do século XIX. 2. ARGAMASSAS BETUMINOSAS Ao longo da história estão registadas várias soluções construtivas que visam a obtenção de cortes hídricos nas alvenarias. As razões que sustentam esta procura são as propriedades

higroscópicas dos materiais de construção face à acção da água, quer oriunda do solo (ascensão capilar) quer devida a fenómenos de infiltração. Para evitar a circulação da água nestes materiais porosos podia-se proceder ao corte hídrico horizontal para combater a humidade ascensional e corte hídrico vertical que acompanha o desenvolvimento das paredes. O corte vertical foi uma solução implementada desde gregos e romanos com o recurso à técnica de um sistema de multi-camadas de argamassa, podendo chegar a ter sete camadas diferentes [1], de modo a criar descontinuidades capilares entre camadas. Para melhorar a resistência à acção da humidade foram ainda desenvolvidas argamassas hidráulicas, contendo pozolanas ou materiais cerâmicos pulverizados (argamassa romana), por apresentarem índices de alterabilidade inferiores às argamassas aéreas simples. A solução horizontal está documentada pelo menos desde o período da ocupação árabe da península Ibérica, através da utilização de placas de metal colocadas no interior da alvenaria, situadas um pouco acima do nível do solo. Na cidade do Porto vamos encontrar com bastante frequência a solução do corte hídrico vertical [imagem 1]. O corte hídrico horizontal é mencionado na documentação consultada mas a sua observação nos estudos efectuados não foi possível. O material utilizado para este fim foi uma argamassa betuminosa, de cor negra, plástica, que quando submetida à acção da temperatura (queimada) liberta um fumo esbranquiçado de cheiro empireumático.

Imagem 1. Impermeabilizante colocado em parede de alvenaria, sob reboco.

Teixeira [2] apontou o início da utilização desta tecnologia nos primeiros anos do século XIX, embora os dados recolhidos nos edifícios do Porto apontem o início do uso para meados desse mesmo século. A sua utilização estendeu-se até à terceira década do século XX. Obtivemos relatos orais que apontam para a reparação deste filmes betuminosos em datas posteriores mas utilizando o asfalto (produto da segundo destilação do petróleo bruto). Nos edifícios estudados o material ligante e impermeabilizante da argamassa betuminosa seria um produto da destilação da hulha (carvão que apresenta conteúdos de matérias voláteis superiores a 10%). Outras fontes [3] apontam que a produção deste filme betuminoso poderia ainda ser obtida a partir de rocha asfáltica calcária triturada. Contudo documentos da época indicam que esta realidade não encontrou eco nesta cidade. É observado também que se podia obter um filme com características semelhantes usando resinas (colofónia - resina de pinheiro e resinas da destilação de madeiras resinosas, por exemplo) mas pelos encargos associados, características pouco elásticas e ser solúvel em água não será credível que tivesse sido usado por si só, tal como pode ser verificado em Leitão [3].

2.1 Dados históricos sobre as empresas produtoras Fez-se uma consulta de diferentes processos de licenciamento industrial para empresas produtoras de asfalto pertencentes ao Fundo do Governo Civil do Porto em depósito no Arquivo Distrital do Porto [A.D.P.]. Segundo a nossa interpretação e terminologia, o termo asfalto deve ser lido como alcatrão. Os dados recolhidos encontram-se resumidos na tabela 1. Tabela 1. Relação dos pedidos de licenciamento registados no Governo Civil do Porto por

empresas de preparação de alcatrão de construção [4]. Designação Local Data Notas José Carneiro Quaresma R. do Rosário, Porto 184- (?)

185- (?) Em reclamação de 1873

José Carneiro Quaresma Quaresma e Sobrinho, C.ª Quaresma e Sobrinho, C.ª

Monte da Arrábida, Porto 1855 (?) 1873 1897

Em reclamação de 1873. Encerra em 1898

Joaquim José Pereira Monte das Antas, Porto 1864 Pedro Lourenço Martins Rua de Santo Ildefonso, Porto 1865 Licenças negadas.

Laborou Viúva 1867 Joaquim José Pereira Rua do Almada, Porto 1868 Joaquim José Pereira Monte Pedral, Porto 1869 Dionizio Marques e José Bento Rua de Quebrantões, Porto 1873 Guimarães e Dias Valbom, Gondomar 1875 Dionizio Marques e José Bento Oliveira do Douro, Vila Nova

de Gaia 1876

Dionizio Marques e José Bento Travessa de Fernandes Thomas, Porto

1885

João Rocha Ferra Joanaes Rua Particular de Santo Isidro, Porto

1885 Incêndio (1893?). Reactivação Manoel Pereira da Silva 1894

José Luís da Silva Monte das Agoas, Porto 1894 (?) Mario Mesquita de Barros Praça de Mousinho de

Albuquerque, Porto 1903 (?)

José Joaquim Souza Junior Rua do Ouro, Porto 1904 Manoel Alves Corugeira Rua da Boa Morte, Porto 1909 Francisco Ferreira da Silva Travessa dos Campos, Porto 1912 Manoel Alves Corugeira Rua de Luiz Cruz, Porto 1912 Manoel da Silva filhos Sucessor

Oliveira do Douro, Vila Nova de Gaia

1916 Funciona desde (1876-1885?)

Para além das empresas referenciadas anteriormente, encontramos ainda os seguintes fabricantes com depósito de asfalto e fábricas de asfalto, mas destes não foram encontrados os respectivos licenciamentos no A.D.P.

Tabela 2. Outros produtores referenciados na zona do Porto. Designação Local André Cerveira Rodrigues Rua de Cedofeita, 348, Porto [5] Dionísio Marques e José B. Domingues

Rua do Bonjardim, 365, Porto (não referenciado nas localizações de Oliveira do Douro, Vila Nova de Gaia; nem na Travessa de Fernandes Thomas, Porto). [5]

Jacintho Dias Travessa do Bolhão, 57, Porto [5] Pereira Soares C.ª R. do Bonjardim, 535, Porto [5] Quaresma e Sobrinho C.ª Rua do Rosário, 48, Porto (referenciado na localização primitiva

e não no Monte da Arrábida). [5] Manuel José Dias [6] Manoel Ferreira da Silva Rua General Torres e R. da Estrada Nova, Vila Nova de Gaia.

Possuía depósito na Rua Nova de S. Domingos, 99, Porto. [6] Anteriormente a 1855 não recolhemos referências fidedignas à laboração de fábricas produtoras deste material, com excepção da Fábrica Quaresma e Sobrinho, inicialmente denominada José Carneiro Quaresma, que labora desde cerca de 1855 no local do Monte da Arrábida mas que terá funcionado na Rua do Rosário desde data antecedente. Se existiram outras empresas, elas não se encontram referenciadas talvez por que é exactamente em 1855 que surge o primeiro diploma legal que regula as empresas perigosas, insalubres e incómodas [7]. As empresas fundadas anteriormente estavam isentas de solicitar alvará de funcionamento, se não alterassem as condições de laboração. Todavia em 1842 foi assinalado o uso desta solução de impermeabilização vertical na Igreja da Lapa (Porto). O contrato foi assinado com Alexandre Teodoro Glama, agente no Porto da Empresa de Asfalto Português de Lisboa que forneceu asfalto [leia-se alcatrão] para impermeabilizar uma torre da referida igreja [6]. Verificamos que algumas das empresas se dedicavam em exclusivo à produção de alcatrão para edifícios, havendo outras que possuíam actividades complementares como a empresa de José Carneiro Quaresma que se dedicava também à produção de gesso, cal, tubos e louça grossa (telha de barro e louça ordinária), e a empresa de Joaquim José Pereira, que produzia alcatrão para impermeabilização de fachadas para evitar humidades nas paredes e o “salitre”, mas que era também adequado à impermeabilização de terraços, cozinhas, lojas subterrâneas e tanques. Dedicava-se ainda à impermeabilização de tubos cerâmicos porosos não vidrados, tubos estes destinados à conduta de águas pluviais ou residuais. 2.2 Processo de fabrico 2.2.1 Matérias-primas Poucas são as matérias que entram na composição dos impermeabilizantes segundo os processos de licenciamento. Assinale-se que estes processos apesar de serem breves, indiciam que os industriais conheciam bastante bem os procedimentos, sendo credível que já se encontravam em laboração no momento de solicitar o alvará. Não se encontraram vestígios de quaisquer pedidos de licença de início de laboração experimental, se bem que houvesse o seu enquadramento jurídico. As matérias-primas inventariadas foram: • Ligante: asfalto, asfalto mineral, verniz, verniz de gás, piche coaltar, pixe, breu,

breu negro (sinónimos de alcatrão);

• Cargas: terra saibrosa, terra comum peneirada, matérias terrosas; areia branca do mar ou do rio; argila; e pó (talvez alguma das matérias anteriores no estado pulverizado).

As origens dos ligantes poderiam ser nacionais ou internacionais – foram encontrados registos de importações de alcatrões de Inglaterra e da Suécia mas é provável que se registassem importações de outras proveniências. O alcatrão nacional poderia ser adquirido nas duas primeiras fábricas portuguesas de destilação da hulha: Companhia Lisbonense de Illuminação a Gaz fundada em 1848 e em 1855 é criada a Companhia de Gaz do Porto - Companhia Portuense de Illuminação a Gaz. O alcatrão era um resíduo importante da destilação da hulha (4 a 7%) em que a matéria principal era o gás de iluminação. José Carneiro Quaresma importava alcatrão de Inglaterra anteriormente à fundação da Companhia de Gaz do Porto. No Porto até ao ano de 1877 só era possível encontrar alcatrão não havendo a produção de breu (resíduo da destilação do alcatrão), comprovado através do pedido de licenciamento para instalação de uma caldeira para destilar alcatrão e de um depósito [imagem 2]. Posteriormente são licenciadas empresas de destilação de hulha na Póvoa de Varzim em 1890 e no ano seguinte em Matosinhos. À excepção da Companhia de Quaresma e Sobrinho que referencia a importação de alcatrão de Inglaterra e posteriormente a sua compra na Companhia de Gaz do Porto, as empresas são omissas em relação às origens das suas matérias-primas. Este dado, datado de 1877, sobre a Companhia Quaresma é de suma importância pois permite identificar a natureza do ligante usado – derivado da hulha e não do petróleo. Por comparação de determinados pormenores presentes nas descrições técnicas utilizadas pelos diferentes industriais é possível afirmar que estes usavam o alcatrão.

Imagem 2. Planta da Companhia de Gaz do

Porto no processo de licenciamento da unidade de destilação de alcatrão. Fonte:

ADP [imagem em negativo].

Imagem 3. Desenho da caldeira utilizada por Joaquim José Pereira no Monte das

Antas. Fonte: ADP-GCP. 2.2.2 Preparação das argamassas betuminosas Não possuímos elementos que permitam conhecer os cuidados ou os preparos das cargas. A excepção respeita ao processo apresentado por Maria José Rodrigues Martins (viúva de Pedro Lourenço Martins) que refere que a terra comum era peneirada. Porém é de considerar que, nas restantes empresas apresentadas, as diferentes cargas fossem também peneiradas para exclusão de matérias estranhas e para rejeição de volumetrias superiores às desejadas. Crê-se, igualmente, que o armazenamento das cargas devesse estar ao abrigo de humidades, a fim de evitar um acréscimo no tempo necessário de preparação ao fogo.

Basicamente as fábricas possuíam depósitos para as cargas, armazém para combustíveis e um tanque para armazenar o alcatrão líquido. O alcatrão devia estar obrigatoriamente isolado por uma camada de água, por razões de segurança (risco de incêndio). A preparação do betume realizava-se numa caldeira de metal aberta superiormente e com uma válvula junto à base. Por baixo estava instalada a fornalha cuja chama incidia directamente na caldeira [imagem 3]. Depois de aceso o lume, o alcatrão era aquecido e mantido em ebulição para realizar a evaporação dos componentes mais voláteis do alcatrão. Somente depois de adquirir a consistência pretendida eram adicionadas as cargas. Quando se utilizava breu, o tempo necessário para a preparação era menor, uma vez que não era necessário proceder a volatilizações. A verificação do processo era efectuada visualmente através da fluidez do produto. Para melhor aproveitamento do alcatrão, Joaquim José Pereira especifica que usa alcatrão para impregnar tubos de barro com o fim de os impermeabilizar – tubos asfaltados. Descreve o processo: com o alcatrão a ferver eram introduzidos os tubos durante duas horas, sempre ao lume. O alcatrão fluido impregnava-se na rede porosa do material cerâmico e em simultâneo continuava a ocorrer a sublimação de componentes do alcatrão, havendo uma maior rentabilidade do processo. Passados cinco anos quando se muda do Monte das Antas (licenciamento de 1864) para o Monte Pedral (licenciamento de 1869) o industrial afirma que o tempo de fervura do alcatrão é de quatro horas e o tempo de impregnação dos tubos é de três horas na caldeira. Terminada a impregnação dos tubos, estes eram retirados e arrefecidos ao ar. O alcatrão, ou já breu dada a evaporação durante esta fase dos produtos mais voláteis, era vertido, arrefecido e era conduzido para a fábrica que o industrial possuía na Rua do Almada – fábrica de alcatrão. Segundo as restantes empresas, o alcatrão permanecia o tempo conveniente para ficar “mais liquido que sólido” [4]. É ainda especificado que só no momento da aplicação, a mistura era levada à temperatura devida uma vez que tinha de ser novamente aquecida para a aplicação em obra [4]. Depois de concluída a preparação a pasta era ou vertida directamente para o chão ou então para formas, solução mais corrente. Há ainda uma indicação de que eram feitos pães ou bolos de asfalto. O produto estava preparado, podendo ser armazenado ou transportado directamente para o local de aplicação. 2.2.3 Aplicação A preparação e/ou a aplicação era efectuada pelos “asphaltadores”. No Porto, em 1881, havia seis mestres asfaltadores que globalmente empregavam cerca de trinta homens [8]. A designação “mestre” engloba ainda, actualmente, a significação de empresário. Pelo que foi possível apurar, a preparação em obra da argamassa betuminosa só não se efectuava se, concomitantemente, não houvesse condições espaciais disponíveis e adequadas e condições climatéricas para a realizar. Em obra, o único aparelho necessário era a caldeira, em tudo semelhante à anterior mas diferia desta pela sua mobilidade e menor capacidade. Deste modo se o produto não viesse para a obra já preparado, tinha de o ser, seguindo o procedimento descrito anteriormente. Em ambas as situações a verificação da plasticidade adequada para a aplicação no paramento era definida quando se observasse a “descolagem” do alcatrão do recipiente. Nesta fase poderia a formulação ser aferida, com adições de cargas (de granulometria adequada) ou de alcatrão. A plasticidade adequada é de difícil definição, com semelhanças à culinária (ponto de açúcar, por exemplo), em que

intervém o factor tempo, a qualidade e quantidade de alcatrão e cargas, a humidade dessas cargas e a força do fogo. À temperatura e à consistência adequadas (certamente compreendida entre 90 e 150º C), o betume estava em estado plástico tixotrópico. Se a temperatura de aplicação fosse excessiva, a aplicação ao suporte seria difícil porque o betume escorreria e poderia ainda produzir fendas devido a um arrefecimento demasiado rápido. Para além destes parâmetros, a fissuração dependia da elasticidade do betume (composição e formulação). Para a aplicação do betume devia-se atender às condições atmosféricas, tal como acontece em determinadas fases da construção, por poderem influir na qualidade final. O betume não deveria ser aplicado com chuva, devendo o suporte estar “seco” (suporte com reduzido conteúdo de humidade); uma temperatura ambiente demasiado baixa acarretaria um menor tempo de trabalho e poderia ainda representar uma maior tendência para fissurar, motivada pelo choque térmico. O vento poderia importar num arrefecimento mais rápido do betume mas consideramos que seria um factor de importância inferior. As áreas a proteger deviam ser previamente estabelecidas, montando-se andaimes, para que numa jornada todo o plano (parede) fosse protegido. Se não fosse possível, as áreas de transição deveriam apresentar diminuições de espessura para haver uma sobreposição de camadas mas sem acarretar incrementos de espessuras significativos. Por observação in loco, é possível verificar que a aplicação se processava em uma ou duas camadas. A escolha desse número não nos parece objectiva. Poderia prender-se com o facto de a primeira camada apresentar descontinuidades e fissuras, ou, poderia ainda dever-se ao facto de se usarem formulações distintas em termos de dimensão e texturas dos agregados, para beneficiar a aderência das camadas de reboco. Constatamos que eram usados agregados mais finos na primeira camada e de granulometria superior na segunda camada. Optativamente a esta segunda camada e como solução mais frequente, foi usada a aplicação pontual – regular e em espaçamentos de cerca de 7-10 cm – de aplicações de betume com colher de pedreiro com o objectivo de promover a aderência [observável na imagem 1]. Todavia, era possível utilizar agregados finos e lograr obter texturas grossas, bastando baixar a temperatura do betume. As espessuras dos filmes são variáveis, podendo variar entre 5 e 7 mm, encontrando-se no extremo oposto valores de quase dois centímetros. Estas variações por vezes encontram-se numa mesma fachada. Se a obtenção de uma superfície regular não era objectivo primordial (para permitir inúmeros de pontos de ancoragem), o filme betuminoso não deveria apresentar grandes desvios para não acarretar espessuras elevadas de reboco. Foi verificado com alguma frequência, na cidade do Porto, que nos limites do plano, zona de remate com planos perpendiculares (limites, aberturas e socos), o betume preconiza uma mudança de direcção de modo a impedir eventuais infiltrações de humidades. A parede preparada deste modo estava em condições para receber o acabamento. As soluções mais correntes de revestimento sobre o impermeabilizante são o reboco e o azulejo. Poderiam ainda ser aplicadas estruturas intermédias em madeira para a fixação de ardósia ou de chapa metálica. Soluções em que o impermeabilizante é deixado à vista são pouco frequentes devido às suas características termoplásticas. Os locais de aplicação são as paredes de contorno do edifício: paredes da envolvente pelo exterior; quando não era possível o impermeabilizante era aplicado pelo interior, em paredes meeiras por exemplo. A aplicação poderia ser a toda a altura do edifício ou apenas nas áreas inferiores – até à cota do rés-do-chão (cerca de três metros).

Imagem 4. Assinala-se a vermelho a cota de aplicação de argamassa betuminosa.

Imagem 5. Parede de tabique simples com

impermeabilizante no primeiro piso e parede de alvenaria no piso térreo.

Na maioria dos casos observados, verificou-se a aplicação sobre alvenaria ordinária mas encontrou-se uma aplicação sobre uma parede em tabique simples. Encontramos a alusão ao seu possível uso em fundações em substituição de argamassas de cal, todavia desconhecemos aplicações reais desta solução. Observemos os usos por uma descrição datada de 1881.

«O asfphalto usa-se pouco em pavimentos, mas muito em revestimentos externos ou internos de muros sob as camadas de argamassa e com o fim de isolar as casas da humidade do ar, transmittida com facilidade por um granito hygrometrico.» [8]

2.2.4 Receituário No decorrer do nosso estudo foi intenção identificar as receitas que eram utilizadas, todavia não foi possível lográ-lo. As empresas com sede no Porto e seus limites, embora indicando os ingredientes, são omissas relativamente às respectivas quantidades. A bibliografia estrangeira não se revelou muito mais rica. Levi [3] informa que a preparação ordinária da argamassa betuminosa comportava apenas alcatrão e pedra pulverizada ou reduzida a pequenos fragmentos. A única excepção é Barberot [3]. Este autor indica que para pavimentar uma superfície de 1 m2 seriam necessários 4,5 l de alcatrão, 0,7 kg de colofónia] e 0,005 m3 de cal. Sublinha-se que esta receita não encontra correspondência com os ingredientes apontados. Análises mineralógicas por difracção de raios-X aos agregados de duas argamassas amostradas permitem concluir que foram utilizadas agregados provenientes de sedimentos com origem em rochas ácidas (granitóides). Foram identificadas as seguintes fases cristalinas: quartzo (dominante), feldspato, plagiosclase, muscovite e, vestigialmente, hematite. 2.2.5 Inconvenientes Na viragem do século (XIX – XX) foram invocados os inconvenientes deste betume, principalmente devido à ineficácia funcional, sua degradação, patologias decorrentes ao seu uso e, ainda, pela análise comparativa com novos materiais desenvolvidos. Na revista Construcção Moderna deparamos com as seguintes alternativas apontadas como soluções à acção de eflorescências nas paredes: paredes falsas em madeira, pano colado sobre madeira, papéis de chumbo e estanho, papéis “drenantes” (preparados com pó chumbo, óleo de linhaça e areia), papéis oleados e papéis resinosos, bem como alguns

produtos industriais (Inducto Universal, lnducto Moller; inductos hidrófobos de Darcet e de Thenard; e produtos hidrófobos como Ruolz, Caudelot, Fulgens e Caron). Sobre os asfaltos afirma-se:

«Tambem se usam os revestimentos das paredes com asphalto, com pixe ou alcatrão de gaz e com alcatrão vegetal, mas os inconvenientes d’estes revestimentos, em resultado das variações de temperatura, são bem conhecidos para que nos demoremos em fallar d'elles.» [9].

A análise efectuada a todos estes produtos é elucidativa: « (…) teem-se indicado e apontado innumeros processos e preparados, mas não podemos affiancar nenhum d'elles. Em todo o caso apontaremos alguns que teem sido preconisados por varios auctores, recordando que aqui, do mesma modo que nas doenças incuraveis, ha muitos remedios mas os doentes vão soffrendo sempre sem grande allivio [“escusado é insistir n'um remedio que não passa de um paliativo muito provisório”].» [9]

Inúmeros produtos e preparados destinados ao combate à humidade de edifícios mas sem resultados significativos talvez tenham conduzido à subsistência desta solução construtiva. Curioso é constatar que nenhuma solução à base de cimento tenha sido apontada. Na imprensa da época encontramos os seguintes anúncios, a par dos editais de licenciamentos de novas unidades produtoras de betumes:

«Ceresit. Torna a argamassa absolutamente impermeável evitando humidade e salitre nas paredes. Único preparado garantido, com experiência de anos, Grandes Vantagens sobre os asfaltos. Cautela com imitações vulgares porque sendo mais dispendiosos o seu resultado é absolutamente negativo como está provado pelos técnicos e pelas experiências feitas no LABORATÓRIO DE PHYSICA DA UNIVERSIDADE DO PORTO. Informação J. Bielman – Galeria de Paris, 42 – 1º Porto.» [10] «Guerra ao asfalto! O Cimentol. É o único que combate as humidades, turtulho e salitre das paredes e das casas, peça instruções ao agente. Rodrigo Fernandes dos Santos Rua do Freixo, 1753.» [11]

Poderemos afirmar que a partir de 1900/1910 o uso de asfalto se encontra em regressão, sendo substituído no Porto por produtos à base de cimento. Mas ainda é possível encontrar publicidade ao emprego do alcatrão:

«Ricardo Caetano Ayres – Grandes armazéns de cordas, cabos, lonas, alcatrão, pixe, etc., etc. – Rua da Alfandega, 8 a 14. Lisboa.» [12]

Mas será o advento e proliferação da tecnologia à base de cimento e de betão que irá preconizar o desfecho desta solução contra os sais solúveis. 3. CONCLUSÃO A tecnologia construtiva, que inclui impermeabilizantes, é dominada pela alvenaria de perpianho de granito assente com uma argamassa de cal. Na cidade do Porto foi verificada uma solução em que o impermeabilizante se encontra assente em alvenaria ligeira, à base de madeira, como demonstram os dois casos de estudos em anexo. Este material (derivado da hulha) aplicado à construção carece de estudo mas foi marcante na construção portuguesa e estrangeira entre 1850-1930. O principal centro abastecedor de alcatrão na cidade foi a Companhia de Gaz do Porto, e será este dado que permite assegurar quão improvável terá sido o uso de derivados de petróleo nesta região, numa altura em que a indústria petrolífera dava os seus primeiros passos, enquanto que as tecnologias de destilação da hulha remontavam ao início do século XIX. Todavia é muito provável que a partir do segundo quartel do século XX se tenha usado petróleo como material de reparação.

O desempenho desta solução, apesar de não ser consensual, verificou ser eficaz em inúmeros imóveis não bafejados por intervenções. A prova é a sua permanência em funcionamento em aplicações com mais de cem anos. Para além deste vector é importante dar a conhecer esta solução e assegurar a sua manutenção, uma vez que ela caracteriza uma tecnologia construtiva desaparecida que marcou decisivamente uma época. 5. REFERÊNCIAS [1] AGUIAR, José. A cor e a cidade histórica. Porto: Publicações FAUP, 2001. [2] TEIXEIRA, Joaquim. Provas de Aptidão pedagógica. Descrição do sistema

construtivo da casa portuense. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2004. [3] LEITÃO, Luis Augusto. Curso Elementar de Construções. Lisboa: Imprensa Nacional, 1896. LEVI, C. Tratado de construcciones civiles. Tomo 1 – Materiales de construcción. Edificios. 2ª ed. Barcelona: Gustavo Gili Editor, 1926. BARBEROT, E. Tratado práctico de edificación. 2ª ed. Barcelona: Gustavo Gili Editor, 1927. [4] Arquivo Distrital do Porto, fundo do Governo Civil do Porto. Maços: 1429; 1438; 1445; 1445 A; 1450; e 1451. Porto. [5] CASTANHEIRA, José António. Almanach historico, commercial, administrativo e industrial da cidade do Porto para 1883. 1º ano. Porto: Clavel & C.a, 1883. CASTANHEIRA, José António. Almanach historico, commercial, administrativo e industrial da cidade do Porto para 1884. 2º ano. Porto: Clavel & C.a, 1884. [6] QUEIRÓS, Francisco. Carta ao autor. 2005-11-13. [7] DIÁRIO DE LISBOA. Folha Official do Governo Portuguez. N.º 243. 28 de Outubro, 1863. [8] SUB-COMISSÃO ENCARREGADA DAS VISITAS AOS ESTABELECIMENTOS INDUSTRIAIS. Relatório apresentado ao Ex.mo Sr. Governador Civil do districto do Porto presidente da comissão distrital do inquérito às industrias. Porto: Typ. de António José da Silva Teixeira, 1881. [9]] Construcção Moderna. N.º 9, ano 1900, p: 7-8. [10] O Primeiro de Janeiro de 20 de Janeiro de 1916. N.º 17. Ano 48. [11] Jornal de Noticias de 24 de Fevereiro de 1916. N.º 47. Ano 29. [12] Construcção Moderna. N.º 6, ano 1900, p: 7. 6. AGRADECIMENTOS O primeiro autor agradece à Fundação para a Ciência e a Tecnologia o apoio financeiro para a realização deste trabalho através da bolsa de investigação SFRH/BD/18248/2004.

Ficha 1

Geral

Morada R. da Constituição, 708. Porto Orientação Sul Volumetria 3 pisos

Tipologia Edifício em banda Tipo de propriedade Privada

Tipo de ocupação Devoluto (habitacional) Interesse patrimonial Não classificado, valor de conjunto

Caracterização construtiva

Tipologia construtiva Alvenaria resistente Material Granito com juntas em argamassa de cal

Impermeabilizante Sim Reboco Sim

Revestimento Azulejo Impermeabilizante

Natureza Alcatrão/breu (?) N.º de camadas 2 (?)

Cor Negra Agregados Pequena dimensão (<1mm)

Espessura (mm) Patologias Fissuração e escamamento pontual

Ficha 2

Geral

Morada R. da Firmeza, 195-97. Porto Orientação Norte Volumetria 2 pisos

Tipologia Edifício em banda Tipo de propriedade Privada

Tipo de ocupação Devoluto (habitacional) Interesse patrimonial Não classificado, valor de conjunto

Caracterização construtiva

Tipologia construtiva Alvenaria resistente (r/c), tabique simples (1º) Material Granito com juntas em argamassa de cal (r/c), madeira (1º)

Impermeabilizante Sim Reboco Sim

Revestimento Azulejo Impermeabilizante

Natureza Alcatrão/breu (?) N.º de camadas 1

Cor Negra Agregados Pequena dimensão (<1mm)

Espessura (mm) Patologias Fissuração e escamamento pontual