ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

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    EXCELENTSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO

    TRIBUNAL FEDERAL

    CONFEDERAO NACIONAL DOS

    TRABALHADORES NA SADE CNTS, entidade sindical de terceiro grau

    do sistema confederativo, inscrita no CNPJ sob o n 67.139.485/0001-70 e

    registrada no Ministrio do Trabalho sob o n 24000.000490/92, com sede e foro

    na SCS Qd. 01 Bl. G Edifcio Bacarat, sala 1605, Braslia, DF, com

    fundamento no art. 102, 1, da Constituio Federal e no art. 1 e segs. da Lei

    n 9.882, de 3.12.99, por seu advogado ao final assinado (doc. n 01), que

    receber intimaes na Av. Rio Branco, n 125, 21 andar, Centro, Rio de Janeiro,

    vem oferecer ARGIO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO

    FUNDAMENTAL, indicando como preceitos vulnerados o art. 1, IV (a

    dignidade da pessoa humana), o art. 5, II (princpio da legalidade, liberdade e

    autonomia da vontade) e os arts. 6, caput, e 196 (direito sade), todos da

    Constituio da Repblica, e como ato do Poder Pblico causador da leso o

    conjunto normativo representado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do

    Cdigo Penal (Decreto-lei n 2.848, de 7.12.40).

    A violao dos preceitos fundamentais invocados decorre deuma especfica aplicao que tem sido dada aos dispositivos do Cdigo Penal

    referidos, por diversos juzes e tribunais: a que deles extrai a proibio de efetuar-

    se a antecipao teraputica do parto nas hipteses de fetos anenceflicos,

    patologia que torna absolutamente invivel a vida extra-uterina. O pedido, que ao

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    final ser especificado de maneira analtica, para que este Tribunal proceda

    interpretao conforme a Constituio de tais normas, pronunciando a

    inconstitucionalidade da incidncia das disposies do Cdigo Penal na hiptese

    aqui descrita, reconhecendo-se gestante portadora de feto anenceflico o direito

    subjetivo de submeter-se ao procedimento mdico adequado.

    A demonstrao da satisfao dos requisitos processuais,

    bem como da procedncia do pedido, de sua relevncia jurdica e do perigo da

    demora ser feita no relato a seguir, que obedecer ao roteiro apresentado acima.

    I. NOTA PRVIA

    ANTECIPAO TERAPUTICA DO PARTO NO ABORTO

    1. A presente ao proposta com o apoio tcnico e

    institucional da ANIS Instituto de Biotica, Direitos Humanos e Gnero,associao civil com sede em Braslia, voltada para a defesa e promoo da

    biotica, dos direitos humanos e dos grupos vulnerveis, dentre outros fins

    institucionais1. A ANIS apenas no figura formalmente como co-autora da ao

    vista da jurisprudncia dessa Corte em relao ao direito de propositura. Requer,

    no entanto, desde logo, sua admisso como amicus curiae, por aplicao

    analgica do art. 7, 2, da Lei n 9.868, de 10.11.99.

    2. No Brasil, como em outras partes do mundo, recorrente o

    debate acerca da questo do aborto e de sua criminalizao, com a torrente de

    opinies polarizadas que costuma acompanh-lo. O Cdigo Penal de 1940, como

    se sabe, tipificou o aborto na categoria dos crimes contra a vida. Esta viso, nos

    dias atuais, est longe de ser pacfica. A diversidade de concepes acerca do

    momento em que tem incio a vida tem alado este tema deliberao de

    1 A ANIS tem, nos termos do art. 3 de seu Estatuto, como objetivos institucionais: defender epromover a biotica, a paz, os direitos humanos, a democracia e outros valores consideradosuniversais; defender e promover a cidadania e a liberdade por meio da difuso de princpiosbioticos pautados nos direitos humanos; colaborar no combate de todas as formas deopresso social e discriminao, especialmente de gnero, que impeam o exerccio daliberdade; e difundir a biotica como um instrumento eficaz na proteo dos direitos humanos,especialmente de grupos vulnerveis, no Brasil ou em qualquer parte do mundo (doc. n 05).

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    parlamentos e cortes constitucionais de diversos pases, como Estados Unidos2,

    Canad3, Portugal4, Espanha5, Frana6 e Alemanha7, dentre outros. Na presente

    ao, todavia, passa-se ao largo dessa relevante discusso, com todas as suas

    implicaes filosficas, religiosas e sociais. A argumentao desenvolvida,

    portanto, no questiona o tratamento dado ao aborto pelo direito positivo

    brasileiro em vigor, posio que no deve ser compreendida como concordncia

    ou tomada de posio na matria.

    3. O processo objetivo que aqui se instaura cuida, na verdade,

    de hiptese muito mais simples. A antecipao teraputica do parto de fetos

    anenceflicos situa-se no domnio da medicina e do senso comum, sem suscitar

    quaisquer das escolhas morais envolvidas na interrupo voluntria da gravidez

    vivel8. Nada obstante, o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal tornou-se

    indispensvel na matria, que tem profundo alcance humanitrio, para libert-la

    2 Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973) e, mais recentemente, Planned Parenthood of

    Southwestern Pennsylvania v. Casey505 U.S. 833 (1992). Nos Estados Unidos, reconhece-se mulher o direito constitucional amplo para realizar aborto no primeiro trimestre de gravidez.Em relao ao segundo e ao terceiro trimestres, as restries institudas por leis estaduaispodem ser progressivamente mais severas.3Morgentaler Smoling and Scott v. The Queen(1988). No julgamento desse caso, a SupremaCorte canadense reconheceu s mulheres o direito fundamental prtica do aborto. Esta nota eas quatro subseqentes beneficiam-se de pesquisa desenvolvida pelo Doutor e Procurador daRepblica Daniel Sarmento, gentilmente cedida ao signatrio da presente.4 O Tribunal Constitucional portugus reconheceu a constitucionalidade de lei que permitia oaborto em circunstncias especficas, dentre elas o risco sade fsica ou psquica da gestante,feto com doena grave e incurvel, gravidez resultante de estupro e outras situaes de estadode necessidade da gestante (Acrdo 25/84).

    5 A Corte Constitucional espanhola considerou inconstitucional lei que autorizava o aborto emcasos de estupro, anomalias do feto e riscos sade fsica e mental da me porque a lei noexigia prvio diagnstico mdico nos casos de m-formao fetal e risco sade da gestante.6 Em 1975, foi editada lei francesa permitindo o aborto, a pedido da mulher, at a 10 semanade gestao, quando a gestante afirmasse que a gravidez lhe causa angstia grave, ou aqualquer momento, por motivos teraputicos. A norma foi submetida ao controle deconstitucionalidade (antes de editada) e ao controle de convencionalidade (aps sua edio),tendo sido considerada compatvel tanto com a Constituio francesa quanto com a ConvenoEuropia dos Direitos Humanos. Hoje, outra norma cuida da matria, mantendo a possibilidaderelativamente ampla de aborto na Frana.7 Na Alemanha, aps uma posio inicial restritiva, materializada na deciso conhecida comoAborto I (1975), a Corte Constitucional, em deciso referida como Aborto II (1993), entendeu

    que uma lei que proibisse em regra o aborto, sem criminalizar a conduta da gestante, seriavlida, desde que adotasse outras medidas para proteo do feto. Registrou, contudo, que odireito do feto vida, embora tenha valor elevado, no se estende a ponto de eliminar todos osdireitos fundamentais da gestante, havendo casos em que deve ser permitida a realizao doaborto.8 Inexiste qualquer proximidade entre a pretenso aqui veiculada e o denominado abortoeugnico, cujo fundamento eventual deficincia grave de que seja o feto portador. Nessaltima hiptese, pressupe-se a viabilidade da vida extra-uterina do ser nascido, o que no ocaso em relao anencefalia.

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    de vises idiossincrticas causadoras de dramtico sofrimento s gestantes e de

    ameaas e obstculos atuao dos profissionais de sade.

    II. A HIPTESE

    ANENCEFALIA, INVIABILIDADE DO FETO E ANTECIPAO TERAPUTICA DO PARTO

    4. A anencefalia definida na literatura mdica como a m-

    formao fetal congnita por defeito do fechamento do tubo neural durante a

    gestao, de modo que o feto no apresenta os hemisfrios cerebrais e o crtex,

    havendo apenas resduo do tronco enceflico9. Conhecida vulgarmente como

    ausncia de crebro, a anomalia importa na inexistncia de todas as funes

    superiores do sistema nervoso central responsvel pela conscincia, cognio,

    vida relacional, comunicao, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas

    funes inferiores que controlam parcialmente a respirao, as funes

    vasomotoras e a medula espinhal10. Como intuitivo, a anencefalia

    incompatvel com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos. No h

    controvrsia sobre o tema na literatura cientfica ou na experincia mdica.

    5. Embora haja relatos esparsos sobre fetos anenceflicos que

    sobreviveram alguns dias fora do tero materno, o prognstico nessas hipteses

    de sobrevida de no mximo algumas horas aps o parto. No h qualquer

    possibilidade de tratamento ou reverso do quadro, o que torna a morte inevitvel

    e certa11. Aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) dos fetos

    anenceflicos morrem ainda no perodo intra-uterino12.

    9 Richard E. Behrman, Robert M. Kliegman e Hal B. Jenson, Nelson/Tratado de Pediatria, Ed.Guanabara Koogan, 2002, p. 1777.10 Debora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro, Aborto por anomalia fetal, 2003, p. 101.11 Debora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro, Aborto por anomalia fetal, 2003, p. 44.12 Debora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro, Aborto por anomalia fetal, 2003, p. 102.

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    6. O exame pr-natal mais comumente utilizado para detectar

    anomalias resultantes de m-formao fetal a ecografia13. A partir do segundo

    trimestre de gestao, o procedimento realizado atravs de uma sonda externa

    que permite um estudo morfolgico preciso, incluindo-se a visualizao, e.g., da

    caixa craniana do feto. No estado da tcnica atual, o ndice de falibilidade dessa

    espcie de exame praticamente nulo, de modo que seu resultado capaz de

    gerar confortvel certeza mdica.

    7. Uma vez diagnosticada a anencefalia, no h nada que a

    cincia mdica possa fazer quanto ao feto invivel. O mesmo, todavia, no ocorre

    com relao ao quadro clnico da gestante. A permanncia do feto anmalo no

    tero da me potencialmente perigosa, podendo gerar danos sade da gestante

    e at perigo de vida, em razo do alto ndice de bitos intra-tero desses fetos. De

    fato, a m-formao fetal em exame empresta gravidez um carter de risco,

    notadamente maior do que o inerente a uma gravidez normal14. Assim, a

    antecipao do parto nessa hiptese constitui indicao teraputica mdica: a

    nica possvel e eficaz para o tratamento da paciente (a gestante), j que para

    reverter a inviabilidade do feto no h soluo.

    8. Como se percebe do relato feito acima, a antecipao do

    parto em casos de gravidez de feto anenceflico no caracteriza aborto, tal como

    tipificado no Cdigo Penal. O aborto descrito pela doutrina especializada como

    a interrupo da gravidez com a conseqente morte do feto (produto da

    13 V. definio constante do Dicionrio enciclopdico de medicina (A. Cu Coutinho), p. 748:Mtodo auxiliar de diagnstico baseado no registro grfico de ecos de ultra-sons que soemitidos e captados por um aparelho especial que emite as ondas e capta os seus reflexos,fazendo tambm o seu registro grfico (ecograma). .14 Em parecer sobre o assunto, a FEBRASGO Federao Brasileira das Associaes deGinecologia e Obstetrcia atesta: As complicaes maternas so claras e evidentes. Destemodo, a prtica obstetrcia nos tem mostrado que: A) A manuteno da gestao de fetoanenceflico tende a se prolongar alm de 40 semanas. B) Sua associao com polihidrminio

    (aumento do volume no lquido amnitico) muito freqente. C) Associao com doenahipertensiva especifica da gestao (DHEG). D) Associao com vasculopatia perifrica deestase. E) Alteraes do comportamento e psicolgicas de grande monta para a gestante. F)Dificuldades obsttricas e complicaes no desfecho do parto de anencfalos de termo. G)Necessidade de apoio psicoterpico no ps-parto e no puerprio. H) Necessidade de registro denascimento e sepultamento desses recm-nascidos, tendo o cnjuge que se dirigir a umadelegacia de polcia para registrar o bito. I) Necessidade de bloqueio de lactao (suspender aamamentao). J) Puerprio com maior incidncia de hemorragias maternas por falta decontratilidade uterina. K) Maior incidncia de infeces ps-cirrgicas devido s manobrasobstetrcias do parto de termo. (doc. n 06)

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    concepo)15. Vale dizer: a morte deve ser resultado direto dos meios abortivos,

    sendo imprescindvel tanto a comprovao da relao causal como a

    potencialidade de vida extra-uterina do feto. No o que ocorre na antecipao

    do parto de um feto anenceflico. Com efeito, a morte do feto nesses casos

    decorre da m-formao congnita, sendo certa e inevitvel ainda que decorridos

    os 9 meses normais de gestao. Falta hiptese o suporte ftico exigido pelo

    tipo penal. Ao ponto se retornar adiante.

    9. Note-se, a propsito, que a hiptese em exame s no foi

    expressamente abrigada no art. 128 do Cdigo Penal como excludente de

    punibilidade (ao lado das hipteses de gestao que oferea risco de vida

    gestante ou resultante de estupro) porque em 1940, quando editada a Parte

    Especial daquele diploma, a tecnologia existente no possibilitava o diagnstico

    preciso de anomalias fetais incompatveis com a vida. No se pode permitir,

    todavia, que o anacronismo da legislao penal impea o resguardo de direitos

    fundamentais consagrados pela Constituio, privilegiando-se o positivismo

    exacerbado em detrimento da interpretao evolutiva e dos fins visados pela

    norma.

    III. DO DIREITO

    QUESTES PROCESSUAIS RELEVANTES E FUNDAMENTOS DO PEDIDO

    III.1. Preliminarmente

    a) Legitimao ativa e pertinncia temtica

    10. Nos termos do art. 2, I, da Lei n 9.882/99, a legitimao

    ativa para a ADPF recai sobre os que tm direito de propor ao direta de

    inconstitucionalidade, constantes do elenco do art. 103 da Constituio Federal16.

    15 Damsio E. de Jesus, Cdigo Penal Anotado, 2002, p. 424.16 CF, art. 103: Pode propor a ao direta de inconstitucionalidade: I o Presidente daRepblica; II a Mesa do Senado Federal; III a Mesa da Cmara dos Deputados; IV a Mesade Assemblia Legislativa; V o Governador de Estado; VI o Procurador-Geral da Repblica;VII o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII partido poltico comrepresentao no Congresso Nacional; IX confederao sindical ou entidade de classe dembito nacional.

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    Tal o caso da Confederao Nacional dos Trabalhadores na Sade CNTS, que

    uma confederao sindical (CF, art. 103, IX), de acordo com o art. 535 da CLT,

    com registro no Ministrio do Trabalho (doc. n 03) e tem mbito nacional

    (Estatuto Social, art. 1 - doc. n 02). H expresso reconhecimento, nesse sentido,

    por parte do Supremo Tribunal Federal, manifestado no julgamento das ADIns n

    1.458 (Rel. Min. Celso de Mello)17 e 1.497 (Rel. Min. Marco Aurlio)18.

    11. A pertinncia temtica igualmente inequvoca. A CNTS

    tem, dentre suas finalidades, a de substituir e/ou representar, perante as

    autoridades judicirias e administrativas, os interesses individuais e coletivos dacategoria profissional dos trabalhadores na sade (Estatuto, art. 3, h). Ora bem:

    os trabalhadores na sade, a includos mdicos, enfermeiros e outras categorias

    que atuem no procedimento de antecipao teraputica do parto, sujeitam-se a

    ao penal pblica por violao dos dispositivos do Cdigo Penal j

    mencionados, caso venham a ser indevidamente interpretados e aplicados por

    juzes e tribunais. Como se percebe intuitivamente, a questo ora submetida

    apreciao dessa Corte afeta no apenas o direito das gestantes, mas tambm aliberdade pessoal e profissional dos trabalhadores na sade.

    12. Caracterizadas a legitimao ativa e a pertinncia temtica,

    cabe agora examinar a presena dos requisitos de cabimento da ADPF.

    b) Cabimento da ADPF

    13. A Lei n 9.882, de 3.12.99, que disps sobre o processo e

    julgamento da argio de descumprimento de preceito fundamental19,

    contemplou duas modalidades possveis para o instrumento: a argio autnoma

    e a incidental. A argio aqui proposta de natureza autnoma, cuja matriz se

    encontra no caputdo art. 1 da lei especfica, in verbis:

    17 STF, ADIn/MC 1.458-DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 20.09.1996.18 STF, ADIn/MC 1.497-DF, Rel. Min. Marco Aurlio, DJ 13.12.2002.19 Anteriormente promulgao desse diploma legal, a posio do Supremo Tribunal Federalera pela no-autoaplicabilidade da medida. V. DJU, 31.05.1996, Ag. Reg. na Pet. 1.140, rel.Min. Sydney Sanches.

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    Art. 1. A argio prevista no 1 do art. 102 da

    Constituio Federal ser proposta perante o Supremo

    Tribunal Federal, e ter por objeto evitar ou reparar leso a

    preceito fundamental, resultante de ato do Poder Pblico.20

    14. A ADPF autnoma constitui uma ao, anloga s aes

    diretas j institudas na Constituio, por via da qual se suscita a jurisdio

    constitucional abstrata e concentrada do Supremo Tribunal Federal. Tem por

    singularidade, todavia, o parmetro de controle mais restrito no qualquer

    norma constitucional, mas apenas preceito fundamental e o objeto do controlemais amplo, compreendendo os atos do Poder Pblico em geral, e no apenas os

    de cunho normativo.

    15. So trs os pressupostos de cabimento da argio autnoma:

    (i) a ameaa ou violao a preceito fundamental; (ii) um ato do Poder Pblico

    capaz de provocar a leso; (iii) a inexistncia de qualquer outro meio eficaz de

    sanar a lesividade. Confira-se, a seguir, a demonstrao da satisfao de cada umdeles na hiptese aqui examinada.

    (i) Ameaa ou violao a preceito fundamental

    16. Nem a Constituio nem a lei cuidaram de precisar o sentido

    e o alcance da locuo preceito fundamental. Nada obstante, h substancial

    consenso na doutrina de que nessa categoria ho de figurar os fundamentos e

    objetivos da Repblica, assim como as decises polticas fundamentais, objeto do

    Ttulo I da Constituio (arts. 1 a 4). Tambm os direitos fundamentais se

    incluem nessa tipificao, compreendendo, genericamente, os individuais,

    coletivos, polticos e sociais (art. 5 e segs). Devem-se acrescentar, ainda, as

    normas que se abrigam nas clusulas ptreas (art. 60, 4) ou delas decorrem

    20 A argio incidental decorre do mesmo art. 1, pargrafo nico, I: Caber tambm argiode descumprimento de preceito fundamental quando for relevante o fundamento da controvrsiaconstitucional sobre a lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, includos osanteriores Constituio, combinado com o art. 6, 1 da mesma lei: Se entendernecessrio, poder o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argio, requisitarinformaes adicionais, designar perito ou comisso de peritos para que emita parecer sobre aquesto, ou, ainda, fixar data para declaraes, em audincia pblica, de pessoas comexperincia e autoridade na matria (grifo acrescentado).

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    diretamente. E, por fim, os princpios constitucionais ditos sensveis (art. 34, VII),

    que so aqueles que, por sua relevncia, do ensejo interveno federal21.

    17. Conforme ser aprofundado pouco mais frente, na questo

    aqui posta os preceitos fundamentais vulnerados so: o princpio da dignidade da

    pessoa humana (art. 1, IV), um dos fundamentos da Repblica brasileira; a

    clusula geral da liberdade, extrada do princpio da legalidade (art. 5, II), direito

    fundamental previsto no Captulo dedicado aos direitos individuais e coletivos; e

    o direito sade (arts. 6 e 196), contemplado no Captulo dos direitos sociais e

    reiterado no Ttulo reservado ordem social.

    (ii) Ato do Poder Pblico

    18. Como decorre do relato explcito do art. 1 da Lei n

    9.882/99, os atos que podem ser objeto de ADPF autnoma so os emanados do

    Poder Pblico, a includos os de natureza normativa, administrativa e judicial. Na

    presente hiptese, o ato estatal do qual resulta a leso que se pretende reparar

    consiste no conjunto normativo extrado dos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do

    Cdigo Penal, ou mais propriamente, na interpretao inadequada que a tais

    dispositivos se tem dado em mltiplas decises (docs. nos 7 a 9). Os dispositivos

    tm a seguinte dico:

    Aborto provocado pela gestante ou com seuconsentimentoArt. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir queoutrem lho provoque:Pena deteno, de 1 (um) a 3 (trs) anos.

    ABORTO PROVOCADO POR TERCEIRO

    Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante:Pena recluso, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

    Art. 128. No se pune o aborto praticado por mdico:Aborto necessrio

    21 Sobre o tema, v. Lus Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro(obra ainda indita), 2004.

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    I se no h outro meio de salvar a vida da gestante;Aborto no caso de gravidez resultante de estuproII se a gravidez resulta de estupro e o aborto precedido deconsentimento da gestante ou, quando incapaz, de seurepresentante legal.

    19. O que se visa, em ltima anlise, a interpretao conforme

    a Constituio da disciplina legal dada ao aborto pela legislao penal

    infraconstitucional, para explicitar que ela no se aplica aos casos de

    antecipao teraputica do parto na hiptese de fetos portadores de anencefalia,

    devidamente certificada por mdico habilitado.

    (iii) Inexistncia de outro meio eficaz de sanar a lesividade

    (subsidiariedade da ADPF)

    20. A exigncia de inexistir outro meio capaz de sanar a

    lesividade no decorre da matriz constitucional do instituto. Inspirada por

    dispositivos anlogos, relativamente ao recurso constitucional alemo22

    e ao

    recurso de amparo espanhol23, a subsidiariedade da ADPF acabou por constar

    do art. 4, 1, da Lei n9.882/99:

    1. No ser admitida argio de descumprimento de

    preceito fundamental quando houver qualquer outro meioeficaz de sanar a lesividade.

    21. A doutrina e a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal

    tm construdo o entendimento de que a verificao da subsidiariedade em cada

    caso depende da eficcia do outro meio referido na lei, isto , da espcie de

    soluo que as outras medidas possveis na hiptese sejam capazes de produzir24.

    22 A Lei sobre o Tribunal Constitucional Federal exige, em seu 90, alnea 2, que antes dainterposio de um recurso constitucional seja esgotada regularmente a via judicial.23 Lei Orgnica 2, de 3.10.79, do Tribunal Constitucional, art. 44, 1, a.24 Embora na ADPF n 17 (DJU 28.09.2001), o relator, Min. Celso de Mello, no tenhaconhecido da argio, por aplicao da regra da subsidiariedade, esse ponto no lhe passoudespercebido, como se v da transcrio da seguinte passagem de seu voto: claro que amera possibilidade de utilizao de outros meios processuais no basta, s por si, para

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    O outro meio deve proporcionar resultados semelhantes aos que podem ser

    obtidos com a ADPF. Ora, a deciso na ADPF dotada de carter vinculante e

    contra todos, e dificilmente uma ao individual ou coletiva de natureza subjetiva

    poder atingir tais efeitos25. Ademais, caso, a pretexto da subsidiariedade, se

    pretendesse vedar o emprego da ADPF sempre que cabvel alguma espcie de

    recurso ou ao de natureza subjetiva, o papel da nova ao seria totalmente

    marginal e seu propsito no seria cumprido. por esse fundamento, tendo em

    vista a natureza objetiva da ADPF autnoma, que o exame de sua subsidiariedade

    deve levar em considerao os demais processos objetivos j consolidados no

    sistema constitucional.

    22. Assim, no sendo cabvel qualquer espcie de processo

    objetivo como a ao direta de inconstitucionalidade ou a ao declaratria de

    constitucionalidade , caber a ADPF. Esse o entendimento que tem

    prevalecido nesse Eg. STF26

    .

    justificar a invocao do princpio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possalegitimamente incidir, revelar-se- essencial que os instrumentos disponveis mostrem-seaptos a sanar, de modo eficaz, a situao da lesividade.Isso significa, portanto, que o princpio da subsidiariedade no pode e no deve serinvocado para impedir o exerccio da ao constitucional de argio de descumprimento depreceito fundamental, eis que esse instrumento est vocacionado a viabilizar, numa dimensoestritamente objetiva, a realizao jurisdicional de direitos bsicos, de valores essenciais ede preceitos fundamentais contemplados no texto da Constituio da Repblica.Se assim no se entendesse, a indevida aplicao do princpio da subsidiariedade poderiaafetar a utilizao dessa relevantssima ao de ndole constitucional, o que representaria, emltima anlise, a inaceitvel frustrao do sistema de proteo, institudo na Carta Poltica, devalores essenciais, de preceitos fundamentais e de direitos bsicos, com gravecomprometimento da prpria efetividade da Constituio.Da a prudncia com que o Supremo Tribunal Federal deve interpretar a regra inscrita no art.4, 1, da Lei n 9.882/99, em ordem a permitir que a utilizao da nova ao constitucionalpossa efetivamente prevenir ou reparar leso a preceito fundamental, causada por ato doPoder Pblico (negrito no original).25 A exceo pode ocorrer em certas hipteses de ao popular ou de ao civil pblica.26 DJU 2.12.2002, p. 70, ADPF 33-5, Rel. Min. Gilmar Mendes: De uma perspectivaestritamente subjetiva, a ao somente poderia ser proposta se j se tivesse verificado aexausto de todos os meios eficazes de afastar a leso no mbito judicial. Uma leitura maiscuidadosa h de revelar, porm, que na anlise sobre a eficcia da proteo de preceitofundamental nesse processo deve predominar um enfoque objetivo ou de proteo da ordemconstitucional objetiva.(...) Assim, tendo em vista o carter acentuadamente objetivo da argio de descumprimento,

    o juzo de subsidiariedade h de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos jconsolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabvel a ao direta deinconstitucionalidade ou de constitucionalidade, no ser admissvel a argio dedescumprimento. Em sentido contrrio, no sendo admitida a utilizao de aes diretas deconstitucionalidade isto , no se verificando a existncia de meio apto para solver acontrovrsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata , h de se entenderpossvel a utilizao da argio de descumprimento de preceito fundamental. o que ocorre, fundamentalmente, nos casos relativos ao controle de legitimidade do direitopr-constitucional, do direito municipal em face da Constituio Federal e nas controvrsiassobre direito ps-constitucional j revogados ou cujos efeitos j se exauriram. Nesses casos,

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    23. No caso presente, as disposies questionadas encontram-se

    no Cdigo Penal, materializado no Decreto-lei n2.848, de 7.12.40. Trata-se,

    como se percebe singelamente, de diploma legal pr-constitucional, no sendo

    seus dispositivos originais suscetveis de controle mediante ao direta de

    inconstitucionalidade, consoante pacfica jurisprudncia do Supremo Tribunal

    Federal27

    . No seria hiptese de ao declaratria de constitucionalidade nem de

    qualquer outro processo objetivo.

    24. Pelas razes expostas, afigura-se fora de dvida o cabimentoda argio de descumprimento de preceito fundamental na hiptese.

    III.2. No mrito: preceitos fundamentais violados

    25. No incio desta pea, mencionou-se que a hiptese aqui em

    exame no envolve os elementos discutidos quando o tema aborto. De fato, adiscusso jurdica acerca da interrupo da gravidez de um feto vivel envolve a

    ponderao de bens supostamente em tenso: de um lado, a potencialidade de

    vida do nascituro e, de outro, a liberdade e autonomia individuais da gestante 28.

    Como j referido, no caso de feto anenceflico, h certeza cientfica de que o feto

    no tem potencialidade de vida extra-uterina.

    em face do no-cabimento da ao direta de inconstitucionalidade, no h como deixar dereconhecer a admissibilidade da argio de descumprimento.(...) No se pode admitir que a existncia de processos ordinrios e recursos extraordinriosdeva excluir, a priori, a utilizao da argio de descumprimento de preceito fundamental. Atporque o instituto assume, entre ns, feio marcadamente objetiva. Nessas hipteses, ante ainexistncia de processo de ndole objetiva apto a solver, de uma vez por todas, a controvrsiaconstitucional, afigura-se integralmente aplicvel a argio de descumprimento de preceitofundamental.(...) Assim, o Tribunal poder conhecer da argio de descumprimento toda vez que o princpioda segurana jurdica restar seriamente ameaado, especialmente em razo de conflitos deinterpretao ou de incongruncias hermenuticas causadas pelo modelo pluralista de

    jurisdio constitucional.27 STF, DJU 21.11.1997, p. 60.585, ADIn n 2, Rel. Min. Paulo Brossard. Sobre este tpicoespecfico e as sutilezas que pode envolver, v. itens 45 e segs. da presente petio, nos quaisse veicula o pedido alternativo.28 Sobre a ponderao de bens como tcnica de deciso, v. na doutrina brasileira o trabalhopioneiro de Daniel Sarmento, A ponderao de interesses na Constituio Federal, 2000.

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    26. Diante disso, o foco da ateno h de voltar-se para o estado

    da gestante. O reconhecimento de seus direitos fundamentais, a seguir analisados,

    no a causa da leso a bem ou direito de outrem por fatalidade, no h

    viabilidade de uma outra vida, sequer um nascituro29, cujo interesse se possa

    eficazmente proteger. at possvel colocar a questo em termos de ponderao

    de bens ou valores, mas a rigor tcnico no h esta necessidade. A hiptese de

    no-subsuno da situao ftica relevante aos dispositivos do Cdigo Penal. A

    gestante portadora de feto anenceflico que opte pela antecipao teraputica do

    parto est protegida por direitos constitucionais que imunizam a sua conduta da

    incidncia da legislao ordinria repressiva.

    a) Dignidade da pessoa humana. Analogia tortura

    27. A dignidade da pessoa humana foi alada ao centro dos

    sistemas jurdicos contemporneos. A banalizao do mal30 ao longo da primeira

    metade do sculo XX e a constatao, sobretudo aps as experincias do fascismo

    e do nazismo, de que a legalidade formal poderia encobrir a barbrie levaram superao do positivismo estrito e ao desenvolvimento de uma dogmtica

    principialista, tambm identificada como ps-positivismo.31 Nesse novo

    paradigma, d-se a reaproximao entre o Direito e a tica, resgatam-se os

    valores civilizatrios, reconhece-se normatividade aos princpios e cultivam-se os

    direitos fundamentais. Sob este pano de fundo, a Constituio de 1988 consagrou

    a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado democrtico de

    direito (art. 1, III).32

    29 Aurlio Buarque de Holanda, Novo dicionrio da lngua portuguesa, 2a ed., 36a, imp.:Nascituro. (...) 3. Jur. O ser humano j concebido, cujo nascimento se espera como fato futurocerto. No caso, s a morte certa, anterior ou imediatamente aps o parto. Veja-se, porrelevante, que a Lei n 9.437/97 estabelece como momento da morte humana o da morteenceflica, para fins de autorizao de transplante. Confira-se sua dico expressa: Art. 3. Aretirada post mortem de tecidos, rgos ou partes do corpo humano destinados a transplante outratamento dever ser precedida de diagnstico de morte enceflica, constatada por doismdicos no participantes das equipes de remoo e transplante, mediante a utilizao decritrios clnicos e tecnolgicos definidos por resoluo do Conselho Federal de Medicina.30 A expresso foi empregada por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalm um relatosobre a banalidade do mal, trad. Jos Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 1999.31 V. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1999, p. 237. Sobre o tema, na doutrinanacional, v. tb. Lus Roberto Barroso, Fundamentos tericos e filosficos do novo direitoconstitucional brasileiro (Ps-modernidade, teoria crtica e ps-positivismo). In: A novainterpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas, 2003.32 Alguns trabalhos monogrficos recentes sobre o tema: Jos Afonso da Silva, Dignidade dapessoa humana como valor supremo da democracia, Revista de Direito Administrativo 212/89;

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    28. O princpio da dignidade da pessoa humana identifica um

    espao de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua s

    existncia no mundo. Relaciona-se tanto com a liberdade e valores do esprito

    quanto com as condies materiais de subsistncia. Alis, o reconhecimento dos

    direitos da personalidade como direitos autnomos33, de que todo indivduo

    titular34, generalizou-se tambm aps a Segunda Guerra Mundial e a doutrina

    descreve-os hoje como emanaes da prpria dignidade, funcionando como

    atributos inerentes e indispensveis ao ser humano.35 Tais direitos,

    reconhecidos a todo ser humano

    36

    e consagrados pelos textos constitucionaismodernos em geral, so oponveis a toda a coletividade e tambm ao Estado37.

    29. Uma classificao que se tornou corrente na doutrina a que

    separa os direitos da personalidade, inerentes dignidade humana, em dois

    grupos: (i) direitos integridade fsica, englobando o direito vida, o direito ao

    prprio corpo e o direito ao cadver; e (ii) direitos integridade moral, rubrica na

    qual se inserem os direitos honra, liberdade, vida privada, intimidade, imagem, ao nome e o direito moral do autor, dentre outros.

    Crmen Lcia Antunes Rocha, O princpio da dignidade da pessoa humana e a excluso social,Anais da XVII Conferncia Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, 1999; Ingo WolfgangSarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio brasileira de 1988,2001; Cleber Francisco Alves, O princpio constitucional da dignidade da pessoa humana, 2001;Ana Paula de Barcellos, A eficcia jurdica dos princpios constitucionais. O princpio dadignidade da pessoa humana, 2001.33

    Sobre a discusso acerca da existncia autnoma dos direitos da personalidade, v. PietroPerlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 155.34 Pietro Perlingieri, La personalit umana nellordenamento giuridico, apudGustavo Tepedino,A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro, in Temas de direitocivil, 2001, p. 42: O direito da personalidade nasce imediatamente e contextualmente com apessoa (direitos inatos). Est-se diante do princpio da igualdade: todos nascem com a mesmatitularidade e com as mesmas situaes jurdicas subjetivas (...) A personalidade comportaimediata titularidade de relaes personalssimas.35 Gustavo Tepedino, A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro ,in Temas de direito civil, 2001, p. 33.36 Mnica Neves Aguiar da Silva Castro, Honra, imagem, vida privada e intimidade, em colisocom outros direitos, 2002, p. 67: Identificados como inatos, no sentido de que no necessria

    a prtica de ato de aquisio, posto que inerentes ao homem, bastando o nascimento com vidapara que passem a existir, os direito da personalidade vm sendo reconhecidos igualmente aosnascituros.37 Miguel ngel Alegre Martnez, El derecho a la propia imagen, 1997, p. 140: Es de notar,adems, que los destinatarios de esse deber genrico son todas las personas. El respeto a losderechos fundamentales, traduccin del respeto a la dignidad de la persona, corresponde atodos, precisamente porque los derechosque deben ser respetados son patrimonio de todos, yel no respeto a los mismos por parte de cualquiera privar al otro del disfrute de sus derechos,exigido por su dignidad.

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    30. A relevncia desses direitos para a hiptese aqui em

    discusso simples de ser demonstrada. Impor mulher o dever de carregar por

    nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, no sobreviver,

    causando-lhe dor, angstia e frustrao, importa violao de ambas as vertentes

    de sua dignidade humana. A potencial ameaa integridade fsica e os danos

    integridade moral e psicolgica na hiptese so evidentes. A convivncia diuturna

    com a triste realidade e a lembrana ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que

    nunca poder se tornar um ser vivo, podem ser comparadas tortura psicolgica.

    A Constituio Federal, como se sabe, veda toda forma de tortura (art. 5, III) e alegislao infra-constitucional define a tortura como situao de intenso

    sofrimento fsico ou mental38 (acrescente-se: causada intencionalmente ou que

    possa ser evitada).

    b) Legalidade, liberdade e autonomia da vontade

    31. O princpio da legalidade39

    , positivado no inciso II do art. 5da Constituio, na dico de que ningum ser obrigado a fazer ou deixar de

    fazer alguma coisa seno em virtude de lei, flui por vertentes distintas em sua

    aplicao ao Poder Pblico e aos particulares. Para o Poder Pblico, somente

    facultado agir por imposio ou autorizao legal40. Em relao aos particulares,

    esta a clusula constitucional genrica da liberdade no direito brasileiro: se a lei

    no probe determinado comportamento ou se a lei no o impe, tm as pessoas a

    auto-determinao de adot-lo ou no.

    38LEI N 9.455, DE 07 DE ABRIL DE 1997:ART 1 CONSTITUI CRIME DE TORTURA:I- CONSTRANGER

    ALGUM COM EMPREGO DE VIOLNCIA OU GRAVE AMEAA, CAUSANDO-LHE SOFRIMENTO FSICO OUMENTAL: A) COM O FIM DE OBTER INFORMAO, DECLARAO OU CONFISSO DA VTIMA OU DE

    TERCEIRA PESSOA; B) PARA PROVOCAR AO OU OMISSO DE NATUREZA CRIMINOSA; C) EM RAZO DEDISCRIMINAO RACIAL OU RELIGIOSA;II- SUBMETER ALGUM, SOB SUA GUARDA, PODER OU

    AUTORIDADE, COM EMPREGO DE VIOLNCIA OU GRAVE AMEAA, A INTENSO SOFRIMENTO FSICO OUMENTAL, COMO FORMA DE APLICAR CASTIGO PESSOAL OU MEDIDA DE CARTER PREVENTIVO.

    39 Sobre o princpio da legalidade, dentre muitos, v. Geraldo Ataliba, Repblica e constituio,1985, p. 98/99; Celso Antnio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 1999, p. 32 ess; e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 2001, p. 67 e ss.40 No este o local apropriado para a discusso acadmica acerca do desenvolvimento denovos paradigmas relativamente vinculao positiva da Administrao Pblica lei. Sobre otema, v. Gustavo Binenbojm, Direitos fundamentais, democracia e Administrao Pblica, 2003,mimeografado (projeto de tese de doutorado apresentado ao programa de ps-graduao emdireito pblico da Universidade do Estado do Rio de Janeio UERJ).

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    32. A liberdade consiste em ningum ter de submeter-se a

    qualquer vontade que no a da lei, e, mesmo assim, desde que seja ela formal e

    materialmente constitucional. Reverencia-se, dessa forma, a autonomia da

    vontade individual, cuja atuao somente dever ceder ante os limites impostos

    pela legalidade. De tal formulao se extrai a ilao bvia de que tudo aquilo que

    no est proibido por lei juridicamente permitido.

    33. Pois bem. A antecipao teraputica do parto em hipteses

    de gravidez de feto anenceflico no est vedada no ordenamento jurdico. O

    fundamento das decises judiciais que tm proibido sua realizao, data venia deseus ilustres prolatores, no a ordem jurdica vigente no Brasil, mas sim outro

    tipo de considerao. A restrio liberdade de escolha e autonomia da vontade

    da gestante, nesse caso, no se justifica, quer sob o aspecto do direito positivo,

    quer sob o prisma da ponderao de valores: como j referido, no h bem

    jurdico em conflito com os direitos aqui descritos41.

    c) Direito sade

    34. Os fundamentos bsicos do direito sade no Brasil esto

    dispostos no art. 6, caput, e nos arts. 196 a 200 da Constituio Federal. O art.

    196 especialmente importante na hiptese:

    "Art. 196. A sade direito de todos e dever do Estado,

    garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem

    reduo do risco de doena e de outros agravos e ao

    acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua

    promoo, proteo e recuperao".

    41 Como assinalado, nada impede que se opte por colocar a questo em termos de ponderaode bens ou valores contrapostos: de um lado os direitos fundamentais da me e, de outro, aconvico religiosa ou filosfica que defenda a obrigatoriedade de levar a termo a gravidez,mesmo em se tratando de feto invivel. A ponderao, no entanto, tcnica de deciso que seutiliza quando h coliso de princpios ou de direitos fundamentais, funcionando como umaalternativa tcnica tradicional da subsuno. No se vislumbra coliso no caso aqui estudado,mas sim uma situao de no subsuno ao Cdigo Penal, vale dizer, de atipicidade daconduta.

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    35. A previso expressa do direito sade na Carta de 1988

    reflexo da elevao deste direito, no mbito mundial, categoria de direito

    humano fundamental. Ressalte-se, neste ponto, que sade, na concepo da

    prpria Organizao Mundial da Sade, o completo bem estar fsico, mental e

    social, e no apenas a ausncia de doena. A antecipao do parto em hiptese de

    gravidez de feto anenceflico o nico procedimento mdico cabvel para obviar

    o risco e a dor da gestante. Impedir a sua realizao importa em indevida e

    injustificvel restrio ao direito sade. Desnecessrio enfatizar que se trata,

    naturalmente, de uma faculdade da gestante e no de um procedimento a que deva

    obrigatoriamente submeter-se.

    IV. DO PEDIDO

    INTERPRETAO CONFORME A CONSTITUIO

    36. A tcnica da interpretao conforme a Constituio,

    desenvolvida pela doutrina moderna42

    e amplamente acolhida por essa Corte43

    ,consiste na escolha de uma linha de interpretao para determinada norma legal,

    em meio a outras que o texto comportaria. Por essa via, d-se a expressa excluso

    de um dos sentidos possveis da norma, por produzir um resultado que contravm

    a Constituio, e a afirmao de outro sentido, compatvel com a Lei Maior,

    dentro dos limites e possibilidades oferecidos pelo texto44.

    42 O princpio da interpretao conforme a Constituio tem sua trajetria e especialmente o seudesenvolvimento recente ligados jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal alemo,onde sua importncia crescente. V. Honrad Hesse, La interpretacin constitucional, inEscritosde derecho constitucional, 1983, p. 53. V. tb., dentre muitos outros, Jorge Miranda, Manual dedireito constitucional, 1983, t. 2., p. 232 e ss; Gilmar Ferreira Mendes, Controle deconstitucionalidade, 1990, p. 284 e ss.; Eduardo Garca de Enterra, La Constituicin comonorma y el Tribunal Constitucional, 1991, p. 95; J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional,1991, p. 236.43 V. sobre o tema, ilustrativamente, STF, Rep. N 1.417-7, Rel. Min. Moreira Alves, Cadernosde Direito Constitucional e Cincia Poltica n 1, p. 314. No mesmo sentido: RTJ 139/624; RTJ144/146.

    44 Lus Roberto Barroso, Interpretao e aplicao da Constituio, 2003, p. 189: vista dasdimenses diversas que sua formulao comporta, possvel e conveniente decompordidaticamente o processo de interpretao conforme a Constituio nos elementos seguintes: 1)Trata-se da escolha de uma interpretao da norma legal que a mantenha em harmonia com aConstituio, em meio a outra ou outras possibilidades interpretativas que o preceito admitia. 2)Tal interpretao busca encontrar um sentido possvel para a norma, que no o que maisevidentemente resulta da leitura do texto. 3) Alm da eleio de uma linha de interpretao,procede-se excluso expressa de outra ou outras interpretaes possveis, que conduziriam aresultado contrastante com a Constituio. 4) Por via de conseqncia, a interpretaoconforme a Constituio no mero preceito hermenutico, mas, tambm, um mecanismo de

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    37. Pois bem. O legislador penal brasileiro tipificou o aborto na

    categoria dos crimes contra a vida. Assim que so tutelados, nos artigos 124 a

    128 do Cdigo Penal, o feto e, ainda, a vida e a integridade fsica da gestante

    (vide CP, art. 125 aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da me).

    A antecipao consentida do parto em hipteses de gravidez de feto anenceflico

    no afeta qualquer desses bens constitucionais. Muito ao contrrio.

    38. Como j exposto, na gestao de feto anenceflico no h

    vida humana vivel em formao. Vale dizer: no h potencial de vida a serprotegido, de modo que falta hiptese o suporte ftico exigido pela norma. Com

    efeito, apenas o feto com capacidade potencial de ser pessoa pode ser sujeito

    passivo de aborto. Assim, no h como se imprimir antecipao do parto nesses

    casos qualquer repercusso jurdico-penal, de vez que somente a conduta que

    frustra o surgimento de uma pessoa ou que causa danos integridade fsica ou

    vida da gestante tipifica o crime de aborto45. Sobre o ponto, vale reproduzir a

    lio clssica de Nelson Hungria que, embora escrita dcadas antes de serpossvel o diagnstico de anencefalia, aplica-se perfeitamente ao caso:

    No est em jogo a vida de outro ser, no podendo o

    produto da concepo atingir normalmente vida prpria, de

    modo que as conseqncias dos atos praticados se resolvem

    unicamente contra a mulher. O feto expulso (para que se

    caracterize o abrto) deve ser um produto fisiolgico, e no

    patolgico. Se a gravidez se apresenta como um processo

    verdadeiramente mrbido, de modo a no permitir sequer

    uma interveno cirrgica que pudesse salvar a vida do feto,

    no h falar-se em abrto, para cuja existncia necessria

    controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegtima uma determinada leitura da normalegal.45 E, no que toca gestante, j se registrou que a gravidez de feto anenceflico potencialmente perigosa, trazendo inmeros riscos de complicaes, alm de profunda angstiae sofrimento psicolgico no s me como a toda a famlia. Assim, a antecipao do partonesses casos somente traz benefcios sade da gestante, tanto de ordem fsica quantopsquica.

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    a presumida possibilidade de continuao da vida do feto.

    (grafia original)46

    39. O Judicirio j tem examinado essa questo em vrias

    ocasies. Na realidade, nos ltimos anos, decises judiciais em todo o pas tm

    reconhecido s gestantes o direito de submeterem-se antecipao teraputica do

    parto em casos como o da anencefalia, concedendo-lhes alvars para realizao

    do procedimento47. Recentemente, porm, algumas decises em sentido inverso

    desequilibraram a jurisprudncia que se havia formado. Uma delas, inclusive,

    chegou apreciao desse Eg. Supremo Tribunal no incio de 2004.

    40. Trata-se do HC 84.025-6/RJ, no qual se versava hiptese,

    precisamente, de pedido de antecipao do parto de feto anenceflico. Seria a

    primeira vez que o STF teria oportunidade de apreciar a questo.

    Lamentavelmente, porm, antes que o julgamento pudesse acontecer, a gravidez

    chegou a termo e o feto anenceflico, sete minutos aps o parto, morreu. O

    eminente Ministro Joaquim Barbosa, relator designado para o caso, divulgou seupreciso voto, exatamente no sentido do que aqui se sustenta. Vale transcrever

    trecho de seu pronunciamento, que resume toda a questo em anlise:

    Em se tratando de feto com vida extra-uterina invivel, a questo que se

    coloca : no h possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver

    fora do tero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a

    qualquer momento que se interrompa a gestao, o resultado ser

    invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do beb. A antecipao desse

    evento morte em nome da sade fsica e psquica da mulher contrape-se ao

    46

    Nelson Hungria, Comentrios ao Cdigo Penal, vol. V, 1958, p. 297-298.47 Nesse sentido, vejam-se exemplificativamente: em SP: TJ/SP JTJ 232/391; TJ/SP, 1 Cm.Crim., MS n 309.340-3, Rel. David Haddad, j. 22.05.2000; TJ/SP, 3 Cm. Crim., MS n375.201-3, Rel. Tristo Ribeiro, j. 21.03.2002; em MG: TA/MG, 3 Cm. Cv, Apel. Cv. n264.255-3, Rel. Juiz Duarte de Paula, j. 23.09.1998; TA/MG, 1 Cm. Cv., Apel. Cv. n219.008-9, Rel. Juiz Alvim Soares RJTAMG 63/272; TA/MG, 6 Cm. Cv., Apel. Cv. n0240338-5, Rel. Juiz Baia Borges, DJ 10.09.1997; no RS: TJ/RS, 2 Cm. Crim., MS n70005577424, Rel. Jos Antnio Cidade Pitrez, j. 20.02.2003; TJ/RS, 3 Cm. Crim., Apel. Crim.n 70005037072, Rel. Jos Antnio Hirt Preiss, j. 12.09.2002; dentre outros.

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    princpio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade,

    intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opo da gestante

    pela interrupo da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que

    no, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder ponderao entre os valores

    jurdicos tutelados pelo direito, a vida extra-uterina invivel e a liberdade e

    autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a

    dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher

    aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convices morais

    e religiosas, seu sentimento pessoal.48

    IV.1. Pedido cautelar

    41. No curso da argumentao desenvolvida demonstrou-se, de

    maneira que se afigura inequvoca, a presena dofumus boni iuris. A violao dos

    preceitos fundamentais representados pela dignidade da pessoa humana,

    legalidade, liberdade, autonomia da vontade e direito sade ostensiva, caso se

    interpretem as normas penais como impeditivas da antecipao teraputica do

    parto na hiptese de feto anenceflico.

    48 ntegra do voto acessvel no site Consultor Jurdico, no endereo

    http://conjur.uol.com.br/textos/25241/. No mesmo sentido decidiu a Suprema Corte da

    Argentina, ao examinar, precisamente, hiptese de antecipao de parto enceflico. O Tribunal

    confirmou deciso de tribunal inferior no sentido de que en el caso aqui analizado, y

    particularmente para una de las hiptesis posibles: la induccin o adelantamiento del parto no

    se verifican los extremos de la vigencia del tipo objetivo del aborto artculo 86 del Cdigo

    Penal. E acrescentou: Frente a lo irremediable del fatal desenlace debido a la patologa

    mencionada y a la impotencia de la ciencia para solucionarla, cobran toda su vitalidad los

    derechos de la madre a la proteccin de su salud, psicolgica y fsica, y, en fin, a todos aquellos

    reconocidos por los tratados que revisten jerarqua constitucional, a los que se ha hecho

    referencia supra. Referncia: T.421.XXXVI. T., S. c/Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires s/

    amparo (doc. n 10).

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    42. Quanto ao periculum in mora, note-se que tramitam perante

    tribunais de todo o pas diversas aes judiciais em que gestantes notadamente

    as de baixa renda, que dependem da rede pblica de sade buscam autorizao

    judicial para poderem submeter-se antecipao teraputica do parto, por serem

    portadoras de feto anenceflico. Note-se que o procedimento mdico somente

    realizado na rede do SUS e mesmo na maioria dos hospitais privados

    mediante a apresentao de tal autorizao. Desnecessrio dizer (e o caso do HC

    84.025-6/RJ, acima citado, prova disso) que a demora inerente aos trmites

    processuais muitas vezes torna incua eventual deciso judicial favorvel

    gestante.

    43. Configurados o fumus boni iuris e o grave periculum in

    mora, a CNTS requer, com fulcro no art. 5, capute 3 da Lei n. 9.882/99, seja

    concedida medida liminar para suspender o andamento de processos ou os efeitos

    de decises judiciais que pretendam aplicar ou tenham aplicado os dispositivos do

    Cdigo Penal aqui indigitados, nos casos de antecipao teraputica do parto de

    fetos anenceflicos. E que se reconhea, como conseqncia, o direito

    constitucional da gestante de se submeter ao procedimento aqui referido, e do

    profissional de sade de realiz-lo, desde que atestada, por mdico habilitado, a

    ocorrncia da anomalia descrita na presente ao.

    IV.2. Pedido principal

    44. Por todo o exposto, a CNTS requer seja julgado procedente o

    presente pedido para o fim de que essa Eg. Corte, procedendo interpretao

    conforme a Constituio dos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Cdigo Penal

    (Decreto-lei n 2.848/40), declare inconstitucional, com eficcia erga omnes e

    efeito vinculante, a interpretao de tais dispositivos como impeditivos da

    antecipao teraputica do parto em casos de gravidez de feto anenceflico,

    diagnosticados por mdico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da

    gestante de se submeter a tal procedimento sem a necessidade de apresentao

    prvia de autorizao judicial ou qualquer outra forma de permisso especfica do

    Estado.

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    IV.3. Pedido alternativo

    45. Por fim, alternativamente e por eventualidade, a CNTS

    requer que, caso V. Exa. entenda pelo descabimento da ADPF na hiptese, seja a

    presente recebida como ao direta de inconstitucionalidade, uma vez que o que

    se pretende a interpretao conforme a Constituio dos artigos 124, 126 e 128

    do Cdigo Penal, sem reduo de texto, hiptese, portanto, em que no incidiria a

    jurisprudncia consagrada dessa Corte relativamente inadmissibilidade dessetipo de ao em relao a direito pr-constitucional.

    46. De fato, a lgica dominante na Corte, reiterada na ADIn n 2,

    a de que lei anterior Constituio e com ela incompatvel estaria revogada.

    Conseqentemente, no se deve admitir a ao direta de inconstitucionalidade

    cujo propsito , em ltima anlise, retirar a norma do sistema. Se a norma j no

    est em vigor, no haveria sentido em declarar sua inconstitucionalidade. Essetipo de raciocnio, todavia, no vlido quando o pedido na ao direta o de

    interpretao conforme a Constituio. que, nesse caso, no se postula a

    retirada da norma do sistema jurdico nem se afirma que ela seja inconstitucional

    no seu relato abstrato. A norma permanece em vigor, com a interpretao que lhe

    venha a dar a Corte.

    Por fim, nos termos do art. 6, 1, da Lei n 9.882/99, aCNTS se coloca disposio de V. Exa. para providenciar a emisso de pareceres

    tcnicos e/ou a tomada de declaraes de pessoas com experincia e autoridade

    na matria, caso se entenda necessrio.

    Nestes termos, pede deferimento.

    Do Rio de Janeiro para Braslia, 16 de junho de 2004.

    LUS ROBERTO BARROSO

    OAB/RJ 37.769