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ARGUIÇÃO DA TESE DE MESTRADO EM BIOÉTICA DE
MANUEL DUARTE PIMENTEL FERREIRA DE MAGALHÃES SANT’ANA, A TEORIA PROTECCIONISTA NA ABORDAGEM AO ESTATUTO BIOÉTICO DO ANIMAL
NÃO-HUMANO, FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO,
16 JUNHO DE 2008, por
Prof. MANUEL CURADO (Universidade do Minho)
IMPRESSÃO GERAL
Esta tese de mestrado aborda um assunto com pouca tradição em Portugal, apesar de a
sua origem residir no debate oitocentista em torno de Darwin e da presença da mente na
ordem natural. Neste sentido, a tese contribui para o enriquecimento da bibliografia nacional
em áreas ainda pouco desenvolvidas.
É, indubitavelmente, uma tese corajosa porque aborda assuntos fundamentais. Tentar
clarificar em que medida os animais podem ser integrados no âmbito da Ética implica uma
reflexão sobre problemas que assombram os cientistas e pensadores há muitos séculos. Eis
alguns desses problemas que se enunciam facilmente, mas a que não é nada fácil responder:
como identificar a vida mental? Por que razão existem experiências subjectivas, como dor e
prazer, no mundo?
O presente jovem investigador enfrenta alguns destes problemas com coragem
intelectual, com domínio das principais referências do debate contemporâneo, e com
entusiasmo louvável. Atrevo-me a augurar um grande futuro para este promissor
investigador.
O que se segue, por conseguinte, não apouca em nada esta impressão geral. Irei
organizar as minhas observações em duas partes. Uma tese implica sempre o domínio de
métodos de investigação, argumentação e redacção. Por isso, tenho algumas observações de
natureza formal. Logo de seguida, dedicar-me-ei a questões de conteúdo.
ASPECTOS FORMAIS
1. Um bom sinal da qualidade de uma tese é a unidade temática. Fiquei com esta dúvida:
estamos em presença de uma ou de duas teses? Sei perfeitamente que o autor dedica
algumas linhas a explicar a presença de um inquérito estatístico nesta tese; porém, não
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me parece que haja uma junção perfeita entre o debate inicial e o inquérito. Estas duas
peças são importantes mas, a estarem unidas, teria sido melhor que o debate
contextualizasse o inquérito e que o inquérito fosse a peça central da análise. Cada
capítulo poderia ser uma análise do debate intelectual em torno de cada um dos
módulos do inquérito. Deste modo, haveria uma unidade entre os dois tipos de
metodologia. A pergunta é, pois, esta: por que razão não organizou as suas reflexões
em torno do inquérito?
2. Foi muito agradável ver que esta tese veio acompanhada de uma errata; porém, a
errata apenas regista um terço, se tanto, dos erros de redacção encontrados.
3. A forma de citação adoptada é a que se conhece como autor-data. Numa bibliografia
organizada segundo o sistema autor-data, a data do documento surge logo após o
nome do autor ou autores, e não na parte final da referência. Há alguma razão para ter
feito um corpo de texto com o sistema autor-data e uma bibliografia com o sistema
tradicional?
4. A língua portuguesa é um aspecto importante de qualquer trabalho escrito. A redacção
está muito clara e isto é louvável. Em alguns pontos o autor faz resumos muito úteis
da argumentação e apresenta listas de pontos a focalizar. Porém, há pequenos erros de
português que são pedras no sapato: as preposições que acompanham os substantivos
e verbos, ‘intenção em’ por ‘intenção de’; ‘capacidade em’ por ‘capacidade de’; e
algumas distracções (‘à’ por ‘há’, p. 6; as expressões latinas não têm acento, ‘a priori’,
p. 8; ‘debrussa-se’ por ‘debruça-se’, p. 87)
5. Talvez tivesse sido melhor que a numeração das notas fosse dividida por capítulos,
para evitar notas com números de três dígitos.
6. Do meu ponto de vista, todas as citações a que um trabalho recorre devem ser
traduzidas; talvez se possa conceder a regra de traduzir o que está no corpo do texto e
deixar na língua original em notas de rodapé. Manuel Sant’Ana inverte esta ordem (p.
11). Há alguma razão para não ter traduzido a maioria das citações e ter feito umas
mas não outras?
7. As citações mais longas estão, de forma correcta, apartadas do corpo do texto. Este é
um bom sinal de respeito pelos textos de outros autores. Contudo, não é necessário ser
redundante nesse respeito. Se a citação já está apartada, não é necessário colocar
também aspas ou colocar o texto em itálico.
8. Gostava de o felicitar por utilizar uma palavra portuguesa antiga que merecia ser mais
utilizada: ‘senciência’, sinónima de ‘consciência’. Por que razão o fez? Desconfio
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que, no discurso quotidiano das pessoas, boa parte dos Portugueses não sabe o que
significa a palavra. Como diferencia ‘consciência’ de ‘senciência’?
9. Colocar várias citações seguidas não é correcto. De um modo geral, as citações
deveriam ser reduzidas ao mínimo e ser comentadas; apresentar várias seguidas não é
indicado (p. 16, cinco citações seguidas; p. 22, duas; na p. 27, quatro citações; a p. 57
tem duas encavalitadas).
10. De um modo geral, muitos substantivos que devem aparecer em maiúscula, não
aparecem: épocas históricas, povos, religiões, partes do mundo, etc.
11. Esta é a primeira vez que, numa arguição que faço, chamo a atenção para o papel. Isto
mesmo: o papel. Esta tese está materialmente feita com o melhor papel que já vi. As
minhas felicitações.
ASPECTOS DE CONTEÚDO
1. Mencionei há pouco a coragem intelectual. Porém, uma tese deve ser parcimoniosa e,
tanto quanto possível, abordar problemas pequenos e tratáveis. Aqui e ali, contudo, o
autor aborda questões excessivamente amplas sobre o comportamento humano e, até,
sobre «o que é o próprio Homem». Não teria sido melhor acantonar a sua reflexão a
questões mais delimitadas? Em vez de ‘o que é o Homem?’, talvez ‘como identificar a
consciência nos animais?’, ou ‘como provar que os animais têm interesses?’
2. O conceito de ‘estatuto bioético’ não é claro. A nota 3 da p. 2 afirma que esta
expressão deve ser considerada sinónima das expressões ‘consideração de interesses’
e ‘estatuto moral’. Porém, estas três expressões são significativamente diferentes. Se a
expressão ‘estatuto bioético’ foi cunhada ab ovo, talvez tivesse sido melhor explicar
mais detalhadamente o seu significado.
3. Dou-lhe os parabéns por ter escrito esta frase: «As melhores evidências científicas
ainda não foram capazes de definir cabalmente quais as espécies animais capazes de
nos acompanhar na posse de consciência reflexiva e na capacidade de formular
pensamentos abstractos» (p. 9). Concordo totalmente! Porém, precisamente por me
parecer um problema fundamental e me parecer que a nossa ignorância colectiva é
intolerável, não compreendo como é que alguém pode apresentar um discurso público
sobre direitos dos animais quando não é nada evidente que os animais tenham vida
mental. Como se prova (como se diz nos tribunais americanos: ‘para além de toda a
dúvida razoável’) que uma ostra tenha experiências subjectivas, ou que um cão ou
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castor tenham intenções? O verbo ‘provar’, o mais importante da ciência, é terrível e é
devido a ele que fazer ciência é um empreendimento difícil. Reparemos, contudo,
nesta perplexidade: se sabemos tão absurdamente pouco sobre este tipo de questões
fundamentais, os alicerces dos nossos argumentos são muito frágeis, e dependem
todos de uma actividade hermenêutica. Aliás, o próprio Manuel Sant’Ana repara nisso
e menciona o papel da interpretação (p. 9); se só interpretamos, devo presumir que a
sua tese é literária e não científica? Mais, o Dr. Sant’Ana utiliza o verbo muito frágil
de ‘acreditar’ (p. 66).
4. Considero que alguns argumentos desta tese caem na falácia da petitio principii, isto é
petição de princípio. Perante o problema de saber se os animais têm ou não um
estatuto moral, não se pode assumir que parte da moralidade já está previamente num
sítio em que dizemos que há dúvidas sobre se lá está ou não. Mas é isso que acontece
muitas vezes: formula-se a dúvida sobre o estatuto moral dos animais mas aceita-se
como a coisa mais óbvia do mundo que os animais têm interesses (p. 17). Interesses?
Sim, interesses. Mas estes hipotéticos interesses estão mesmo nos animais ou estão
nos olhos das pessoas que interpretam o comportamento dos animais?
5. O argumento dos casos marginais é muito utilizado mas é completamente absurdo e
não se compreende como é que alguém o pode utilizar (como Peter Singer, p. 47).
Este argumento está presente na seguinte frase: «A razão para conferir um estatuto
moral ao embrião humano, ao doente terminal, ao deficiente profundo ou ao animal
não-humano está em reconhecer em cada um deles algum tipo de valor intrínseco» (p.
17). Autores como Peter Singer e outros utilizam-no frequentemente. O truque
falacioso é este: escolhe-se uma característica humana (racionalidade, linguagem,
etc.) e depois procuram-se exemplares que não têm essa característica; depois
pergunta-se de forma retórica se esse ser merece ser considerado moralmente; o golpe
final é o de irmanar os seres humanos sem essa característica aos animais,
conseguindo assim exportar a dignidade humana para os animais. Isto é, como digo,
um truque falacioso. Um embrião é um de nós; um deficiente profundo é um de nós;
uma criança é um de nós. Nenhum deles deixa de ser digno de apreciação moral
devido à ausência temporária ou permanente de uma característica humana. O ponto
fundamental é a natureza, a essência do ser, e não a circunstância de o ser ter ou não
uma determinada característica. Este é um ponto de vista que os Nazis apreciariam.
Também eles escolheram algumas características humanas (raça, inteligência, por
exemplo) e procederam em conformidade: todos os seres que não tinham as
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características mencionadas foram assassinados. Os deficientes mentais foram
gaseados; os ciganos, judeus e eslavos foram sistematicamente mortos. Este
argumento é perigosíssimo!
Para se compreender por que razão é inaceitável é necessário recorrer a
argumentos contrafactuais. Por exemplo, este. O fluxo de consciência dos seres
humanos parece contínuo mas, de facto, possui grão. Há, até, um problema célebre
denominado o problema do grão da consciência. A ilusão cinematográfica do
movimento é um bom exemplo: sentimos movimento mas, no intervalo dos 24
fotogramas por segundo, não há movimento. Imagine-se que um homicida tem uma
arma com raios tão rápidos que atingem uma pessoa no intervalo dos momentos de
consciência; poderia dizer ao juiz que matou um ser não humano, desprovido da
característica fundamental dos seres humanos, a consciência.
Qualquer ser humano normal, e não um caso marginal, a dormir também não fala,
nem argumenta, nem tem consciência; mas não pode ser irmanado a animais.
Os seres não têm direitos devido a este tipo de características. Têm direitos
morais devido à sua natureza última e não devido a essas características.
Este debate, como se sabe, já provocou muitas vítimas. Entre muitos outros casos,
é um dos preferidos dos debates sobre o aborto, em que se afirma que o nascituro
também não tem esta ou aquela característica e, vai daí, procede-se em conformidade.
O argumento dos casos marginais é inaceitável; não percebo como é que as
pessoas podem ser tão ludibriadas com argumentos falaciosos como este. Penso que
há uma confusão entre propriedades e substâncias; um raciocínio sobre as primeiras
acaba por se pronunciar sobre as segundas.
6. Por vezes as palavras levam o nosso pensamento; deveriam ser uma ferramenta do
pensamento, mas acabam por ser senhoras do pensamento. Esta tese utiliza muitas
vezes expressões que intuitivamente pensamos saber a que se referem mas que,
quando as analisamos detalhadamente, ficamos sem saber qual é o seu significado.
Atribuo isso aos entimemas, isto é, expressões incompletas. Como estamos numa
Faculdade de Medicina, deixem-me dar um exemplo de como os entimemas nos
perturbam. Todos já tomámos comprimidos; todos sabemos o que são comprimidos;
porém, apenas alguns de nós sabem que o nome ‘comprimidos’ deriva da história do
modo de produção dos comprimidos. Antigamente, agarrava-se no pó e depois
comprimia-se. Nós deveríamos ouvir do nosso médico frases como ‘deve tomar um
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pó comprimido depois da refeição’. Como a língua tende a simplificar, caiu a palavra
‘pó’.
A expressão que atravessa esta tese é a de ‘valor intrínseco’, em sequências como
‘valor moral intrínseco’, ‘valor ético intrínseco’, ‘valor intrínseco dos animais’ ou
‘valor intrínseco dos seres humanos’. Parece uma expressão simples e sem enigmas,
não é? Tenho a dizer, contudo, que no nosso não há nenhum valor intrínseco ao que
quer que seja. Ponto final. O valor num é intrínseco; reservamos, aliás, alguns verbos
para ele, como ‘atribuir’, ‘conferir’, outorgar’, etc. Um argumento que utilize a
expressão ‘valor intrínseco’ comete muitas vezes a petitio principii porque acaba por
assumir o que é um dado do problema. É um problema saber se os animais têm valor
moral; como se assume que já têm algum valor intrínseco, acaba-se por concluir que
os animais têm valor moral.
O que está em causa? Bem, está em causa muitas vezes um entimema de que não
somos conscientes. ‘Valor intrínseco’ é uma expressão que está para ‘eu acho que
algo é tão valioso que, para todos os efeitos, o seu valor está na própria coisa e não no
meu acto de atribuição a essa coisa; esta é a minha forma de dizer que eu gosto muito
dessa coisa’. Como é muito complicado dizer isto, simplificamos para ‘valor
intrínseco’. Nada, absolutamente nada à nossa volta tem valor intrínseco. O que passa
por ter valor intrínseco (a dignidade do ser humano, por exemplo) é uma atribuição
que alguns filósofos do passado fizeram e que depois se generalizou. Os seres
humanos não têm, tal como tudo à nossa volta, valor intrínseco, mas valor atribuído.
A p. 18 é especialmente rica nesta falácia, quando afirma, por exemplo, «avocar
dimensão moral ao animal só faz sentido se lhe for conferido valor intrínseco». Como
é evidente, se é intrínseco, não pode ser conferido. Ninguém pode conferir a um
diamante o facto de ser feito de carbono, porque faz parte da definição de diamante
ser feito de carbono. É claro que, se o animal já tem o tal ‘valor intrínseco’ que vem
de fora (sic), com uma penada rápida chega-se à conclusão de que outros valores
também já lá estão.
É verdade que o Dr. Sant’Ana sabe tudo isto perfeitamente porque, na conclusão,
chega a antecipar esta objecção, afirmando «um dos argumentos que mais oposição
poderá gerar é a relatividade do valor intrínseco» (p. 128). É evidente: se fosse
intrínseco não seria relativo; ninguém fala sobre a relatividade do átomo de carbono
nos diamantes…
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7. Um dos aspectos mais notáveis desta tese é o facto de que o seu autor tem perfeita
consciência dos problemas fundamentais. A conclusão do ponto 2.5 é magnífica
quando afirma que são «um desafio longe de estar terminado». Ficamos, pois, com o
bebé nas mãos porque pode acontecer que tudo o que dizemos sobre o valor ético dos
animais seja uma projecção simpática dos seres humanos. E cito: «Conferir dimensão
moral aos animais … é, pelo contrário, uma consequência natural da consciência
moral do ser humano» (p. 19). Isto é muito interessante. Farei uma recomendação
para que os textos futuros do Dr. Manuel Sant’Ana incluam o teste Rorschach da
moralidade.
8. Dentro das questões de substância, as várias referências ao vegetarianismo
surpreenderam-me. Coitadas das plantas, pensei eu! Como os humanos não podem
comer as pedras, ficamos nós, plantas, para alimentação deles. A minha pergunta é
esta: é coisa que se possa provar que as plantas não têm vida mental assim como os
animais, ao que defende, têm? Este problema é espantoso porque existem milhares de
povos nativos neste planeta que dirão, pelo contrário, que os espíritos mais poderosos
estão nas plantas. Na própria Europa, há tradições multisseculares sobre os espíritos
das plantas. Penso no estramónio, na brugmansia, na mandrágora, no meimendro, na
beladona, na papoila, etc. Um antropólogo suíço a trabalhar na América do Sul, de
nome Jeremy Narby, tem dois livros espantosos sobre o assunto.
9. O problema não acaba aqui, obviamente, porque se as plantas têm espíritos, então são
sujeitos morais; logo, não podem ser comidas. O que comeremos, então? O pior é que
existem concepções pampsíquicas que defendem que tudo no mundo está animado
por espíritos. Imagine o Dr. Manuel Sant’Ana que o pampsiquismo é verdadeiro: nem
pedras poderíamos comer, nem cápsulas nutricionais porque os próprios átomos
teriam espíritos, logo, seriam sujeitos morais. Grandes filósofos, como o português e
holandês Bento Espinosa, defenderam ideias semelhantes; e até o grande médico
psiquiatra português, o Dr. Miguel Bombarda, defendia que a consciência é uma
forma de vibração universal da matéria.
10. O meu desafio é este. Os assuntos que elenca na p. 20 (bem-estar animal, protecção
das espécies selvagens, uso de animais na experimentação, biodiversidade) são de
todo assuntos éticos? Eu, sinceramente, tenho dificuldade em perceber por que razão
estes assuntos precisam de ética. Ninguém anda a queimar os quadros de Picasso
porque seria tonto fazer isso; nós não precisamos de uma ética para evitar que se
queimem os quadros de Picasso. Preservar a biodiversidade é um assunto que talvez
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não precise de ética nenhuma: precisa de bom-senso na América, na Europa e no
Japão; talvez seja uma questão de conflito armado; ou de economia; não vejo é por
que razão é um assunto a ser perspectivado do ponto de vista ético.
11. A sua tese é riquíssima. Um sinal disso é ter-se dado ao incómodo de fazer a história
intelectual do seu assunto. Isto é louvável. Selecciono o que diz sobre Pitágoras. Não
tenho a certeza de que Pitágoras possa ser considerado, como afirma, como o primeiro
filósofo dos direitos dos animais. Há um texto antigo que diz que, quando Pitágoras
atravessou um rio foi saudado pelo rio (fragmento DK 14, 7): podemos daqui inferir
que ele também defendia o direito dos rios? É claro que não. A minha pergunta é esta:
a história que faz dos autores antigos serve para quê? Será uma estratégia retórica e
subtil para conferir maior legitimidade aos direitos dos animais (já que não se é bem
sucedido naquilo que acima foi denominado de ‘problemas fundamentais’, a aparente
história velha do assunto conferiria uma legitimidade de empréstimo)?
12. Esta é uma pergunta maquiavélica, mas faço-a: será que os autores maiores que
menciona (Singer, Regan, etc.) escreveram o que escreveram devido ao seu desejo de
fama? Algumas citações que faz deles mostram que eles não têm mais informação do
que qualquer um de nós sobre estes assuntos. Regan (p. 52) afirma que não tem a
mínima ideia sobre em que ponto na escala filogenética aparecem os sujeitos-de-uma-
vida. Ele afirma que não sabe! Se não sabe, o texto que se segue é uma mera opinião
ou capricho ou um logro. Ele próprio diz que não sabe… Pode acontecer que só tenha
publicado o que publicou porque vive no mundo do ‘publish or perish’. Afirmo tudo
isto porque me pareceu que o Dr. Manuel Sant’Ana não se distancia dos argumentos
destes autores, que os aceita pelo seu valor facial. Será assim?
13. A p. 68 tem uma frase espantosa. Cito: «o que parece ser aceite hoje em dia pela
comunidade científica é a visão de que entre ser humano e animal há mais uma
diferença de grau do que de género». Espantoso! Isto é algo que não se pode
confirmar, pois não? Além, este é o tipo de frases que mostra que a petitio principii
que mencionei acima não é casual. O argumento do Dr. Sant’Ana funciona em várias
frentes. Ou utilizando expressões como ‘interesses dos animais’, ou ‘valor intrínseco’,
ou teorias que não se podem provar sobre a escala dos seres da natureza, ou
afirmações que também não se podem provar sobre a opinião da comunidade
científica, o que se consegue é o que já está no início. Formula-se retoricamente a
pergunta sobre o estatuto bioético dos animais mas, de facto, a pergunta já está
respondida desde o início. Neste sentido, não é uma pergunta livre.
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14. A projecção psicológica dificilmente desaparece desta área de reflexão. Tive esta
percepção ao ler o que escreveu no início da p. 72: «estabelecemos regras de
estabulação, maneio, transporte e abate para seu próprio bem e não em função de
nenhum interesse humano indirecto. Reconhecemos na vaca um indivíduo que tem o
direito a ser bem tratado por si próprio. Logo a vaca tem valor intrínseco que é, no
entanto condicional a nós próprios…» Este texto é pura projecção psicológica. Do
meu ponto de vista, nada disto se passa: tudo o que fazemos se deve aos interesses e
sensibilidade dos seres humanos; a vaca não tem nenhum valor intrínseco, mas apenas
o que lhe atribuímos que pode ser tão forte que até parece intrínseco.
15. A minha última observação é reconhecidamente difícil e está fora do âmbito desta
tese. Responda só se se sentir confortável com a pergunta. Trata-se, como dizem os
Americanos, de uma ‘big picture’. Vê o Dr. Sant’Ana alguma contradição entre uma
cultura que tem autores que defendem os direitos dos animais e uma cultura que aceita
a prática do aborto? Sublinho que se trata da mesma cultura, o Ocidente.
RECOMENDAÇÕES FINAIS
1. A primeira recomendação que faço é a da separação das duas teses. Penso que o
debate inicial tem autonomia e que o inquérito pode ser alargado a um universo
maior.
2. Uma linha de investigação merece ser mais desenvolvida: a da projecção moral que os
seres humanos fazem sobre a natureza, algo como um teste de Hermann Rorschach
moral.
3. Alguns anexos contribuem para a falta de unidade temática. Talvez possam ser
evitados.
4. Finalmente, recomendo a publicação da primeira tese, isto é, da tese sem a parte do
inquérito e sem alguns anexos. Dou, aliás, desde já a sugestão de uma editora: a
CreateSpace, do grupo Amazon.com. Já tenho estudantes de pós-graduação que
publicaram na maior livraria do planeta. Parece-me um bom lugar para ela.
Termino dizendo que gostei muito desta tese e que estou certo de que dará origem
a novas investigações e publicações do Dr Manuel Sant’Ana. Felicito, pois, o Candidato
pelo muito trabalho que esta tese revela, bem como pelos valores e visão do mundo que
atravessam as suas páginas. Não tenho outra forma de me expressar: fartei-me de
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aprender com esta tese. Felicito, também, a orientadora desta tese, senhora Professora
Doutora Anna Olsson, pela orientação deste trabalho e, sobretudo, por ter garantido que a
tese seja um testemunho de ciência sensata numa área de investigação tão complexa;
felicito, também, por tudo isto o co-orientador desta tese, o senhor Professor Doutor Rui
Nunes.
Senhor Presidente deste júri, tenho dito!
-- Prof. Manuel Curado Universidade do Minho Instituto de Letras e Ciências Humanas Campus de Gualtar 4710 - 057 Braga Portugal Telefone: +351253604170 Fax: +351253676387 Email accounts: [email protected] [email protected]