Argumentar, inferir e deduzir

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CAPÍTULO 1 1 ARGUMENTAR, INFERIR E DEDUZIR Não se deve procurar indiferentemente o mesmo rigor em todas as discussões. (Aristóteles, Ética a Nicômaco) Argumentos O filósofo grego clássico Aristóteles (384 - 322 A. C.), a justo título considerado o criador da Lógica como disciplina teórica, ou eventualmente seu editor antigo, observa no início da Metafísica que todos os homens desejam naturalmente conhecer. Considerada de maneira desarmada, essa observação parece ser a mera constatação de um traço ostensivo da conduta dos seres humanos, que se manifesta já nas crianças. Com efeito, ninguém quer labutar no falso; intencionalmente todos pretendem dar adesão apenas ao que é verdadeiro e recusar tudo que seja falso. Porém, como distinguir o que é verdadeiro do que é falso, em cada caso particular? Os possíveis objetos do assentimento não trazem em si mesmos, pelo menos não de maneira manifesta, marcas de sua verdade ou falsidade; pelo contrário, todos se apresentam conspicuamente como verdadeiros e reclamando a adesão. O que torna possível a temida dúvida. Ao contrário do filósofo e teólogo dinamarquês, Kierkegaard, muitos espontaneamente sentem que a dúvida é perigosa para todos e não apenas para as almas fracas, e filósofos como Descartes criam ser possível banir a dúvida do horizonte intelectual, pelo menos em certos contextos. Assim, procura-se não apenas a verdade, mas também e, talvez, principalmente, a certeza. As noções de verdade e certeza até mesmo se mesclam em seus usos correntes e costuma-se dizer, indistintamente, que algo é verdadeiro ou que é certo. 1 Versão preliminar, de circulação restrita. Favor não citar sem permissão. José Alexandre Durry Guerzoni 1

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CAPÍTULO 11

ARGUMENTAR, INFERIR E DEDUZIR

Não se deve procurar indiferentemente o mesmo rigor em todas as discussões. (Aristóteles, Ética a Nicômaco)

Argumentos

O filósofo grego clássico Aristóteles (384 - 322 A. C.), a justo título considerado o criador da Lógica como disciplina teórica, ou eventualmente seu editor antigo, observa no início da Metafísica que todos os homens desejam naturalmente conhecer. Considerada de maneira desarmada, essa observação parece ser a mera constatação de um traço ostensivo da conduta dos seres humanos, que se manifesta já nas crianças.

Com efeito, ninguém quer labutar no falso; intencionalmente todos pretendem dar adesão apenas ao que é verdadeiro e recusar tudo que seja falso. Porém, como distinguir o que é verdadeiro do que é falso, em cada caso particular? Os possíveis objetos do assentimento não trazem em si mesmos, pelo menos não de maneira manifesta, marcas de sua verdade ou falsidade; pelo contrário, todos se apresentam conspicuamente como verdadeiros e reclamando a adesão. O que torna possível a temida dúvida. Ao contrário do filósofo e teólogo dinamarquês, Kierkegaard, muitos espontaneamente sentem que a dúvida é perigosa para todos e não apenas para as almas fracas, e filósofos como Descartes criam ser possível banir a dúvida do horizonte intelectual, pelo menos em certos contextos.

Assim, procura-se não apenas a verdade, mas também e, talvez, principalmente, a certeza. As noções de verdade e certeza até mesmo se mesclam em seus usos correntes e costuma-se dizer, indistintamente, que algo é verdadeiro ou que é certo.

Mas os seres humanos não costumam se contentar com a mera posse, ainda que tida por certa e segura, do que têm por verdadeiro, querem também o reconhecimento, por parte dos outros, de suas posses cognitivas. Em outra obra, também atribuída a Aristóteles, denominada Retórica, é observado que todos os homens procuram, em certa medida, debater e sustentar suas posições, defender-se e atacar os outros2. Nessa defesa de suas posições e nesse ataque às alheias, não é raro que o ser humano lembre antes aquele amante que, incerto dos ditames do coração amado ou de seu próprio, necessita proclamar aos sete ventos que ama e é amado.

Todos já assistiram, e possivelmente inúmeras vezes, o espetáculo oferecido por fieis de algum credo que ocupam o espaço público em procissão, com fortes apelos sensoriais (estandartes, imagens, bandeiras, saudações, etc.) e, freqüentemente sem

1 Versão preliminar, de circulação restrita. Favor não citar sem permissão. José Alexandre Durry Guerzoni2 Na trad. inglesa, organizada por Ross,

"Rhetoric is the counterpart of Dialectic. both alike are concerned with such things as come more or less, within the general ken of all men and belong to no definite science. Accordingly all men make use, more or less, of both: for to a certain extent all men attempt to discuss statements and to maintain them, to defend themselves and to attack others. Ordinary people do this either at random or through practice and from acquired habit. (Arist. Rhetoric, 1354a)

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reivindicações objetivas, impõem a todos, crentes e não crentes, a manifestação de suas convicções. E frequentemente não reivindicam algo de propriamente objetivo, pretendem simplesmente sensibilizar todos para a causa que professam, seja ela a dos católicos, protestantes, sindicalistas, militantes de partidos políticos da direita ou da esquerda, homossexuais, feministas e que tais

Aqui, não convém discutir se esse uso do espaço público é ou não legítimo. Mas apenas observar que, ao procederem assim, chamando a atenção de todos para suas convicções peculiares, não estão apenas exercendo o direito de livre escolha e expressão de credos, mas reclamando senão a adesão, pelo menos a confirmação pública de seus próprios credos e opções existenciais. Um exemplo que confirma a tese de que o ser humano pretende, pelo menos intencionalmente, não apenas dar sua adesão apenas ao que toma como verdadeiro (talvez, suas próprias crenças) e rechaçar o que têm por falso (as dos outros, quando discordantes), como gostaria de dispor da aprovação de todos, mesmo no tocante a crenças e convicções. Enfim, os homens não apenas proclamam freqüentemente ansiar apenas a verdade e rechaçar a falsidade, como procuram cooptar-se mutuamente para o que tomam como verdadeiro.

Tampouco é possível aqui entrar na consideração dos eventuais motivos, causas ou razões desses desejos, e, assim, não cabe nem subscrevê-los, nem rechaçá-los. Muito menos seria possível aqui esmiuçar todas as eventuais estratégias para as suas realizações. Os anseios de cada um e de todos pela verdade, pela certeza e pela confirmação, bem como as estratégias possíveis nessas demandas constituem temas complexos, cuja compreensão reclama contribuições oriundas de diferentes províncias intelectuais (seja de presuntivas ciências como a biologia, a sociologia, a antropologia, a psicologia e a psicanálise, a teologia e a cristologia3, seja de artes discursivas como a literatura e a dramaturgia).

Basta observar que os procedimentos argumentativos, em particular, as demonstrações e, de maneira mais geral, aquilo que se tem como racional, têm sido freqüentemente tomados como instrumentos valiosos na realização desses desejos. Na inquirição da verdade, nas tentativas de assenhorear-se dela e no aliciamento de outros, não é raro que o exame das eventuais razões para acatar ou rechaçar uma dada posição proceda por argumentos que venham a exibir a maior força (ou fraqueza) da posição em causa. Ainda que a eficácia de produzir argumentos que venham a exibir razões para esposar ou recusar posições seja questionável como estratégia para gerar convicção4, a argumentação é uma importante estratégia no exame dos fundamentos daquilo que se tem por verdadeiro, das razões do assentimento. E seu estudo oferece ocasião para introduzir instrumentos que podem ser empregados seja a fim de explicitar razões e, assim, tornar crenças mais conscientes, seja para dar a crenças obscuras uma expressão clara e distinta e, assim, mascarar melhor as causas ou os motivos do assentimento.

Argumentos servem não apenas em situações complexas de demanda pela verdade, certeza ou confirmação. Lança-se mão de argumentos, ainda que implicitamente, também em situações corriqueiras, do dia-a-dia. Imagine a situação de

3 Possivelmente o leitor estranhe tal enfileiramento de províncias e que todas sejam igualmente chamadas de ciência, ele que talvez nunca antes se deparara com um uso tão lato, talvez promíscuo, do termo ciência. Certamente isso fere hábitos lingüísticos e disciplinas intelectuais atualmente em voga. Todavia, mesmo inusitado, é respaldado por usos e costumes que dominaram séculos passados. A que hábitos devemos dar nossa adesão? Por quais razões?4 Cf., mais adiante, a análise do texto de Lewis Carrol.

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dois alunos que se encontram na entrada do prédio de salas de aula e travam o seguinte diálogo:

-- Você viu Fulano?

-- Não o vi, mas ele me disse que estaria ou na lanchonete ou na biblioteca.

-- Estou vindo da lanchonete, e ele não estava lá.

Após esse breve diálogo, os dois se dirigem à biblioteca na esperança de lá encontrar Fulano. Facilmente se percebe nesse diálogo o recurso, entre outros, a um argumento cuja forma explícita é: Fulano esta na biblioteca ou na lanchonete, ora Fulano não está na lanchonete; portanto, ele está na biblioteca5.

Enfim, são vários os contextos nos quais se pode recorrer ao que se chama de argumentação, a fim de oferecer razões para acatar ou rechaçar uma posição. Ora, como a critica de uma posição pode ser vista como a defesa da posição contrária, numa primeira aproximação, é possível entender um argumento como um grupo de asserções 6, uma das quais é a conclusão (em favor da qual se argumenta) e as demais são as premissas (apresentadas, então, como razões, evidências, fundamentos para a conclusão).

Por exemplo,

A biblioteca possui vários exemplares do manual de Lógica. Até o momento, apenas um exemplar foi retirado por um aluno. Há, portanto, pelo menos um exemplar do manual disponível na biblioteca

é um argumento; suas premissas são

A biblioteca possui vários exemplares do manual de Lógica.

Até o momento, apenas um exemplar foi retirado por um aluno.

E a conclusão, para a qual as premissas fornecem fundamentação, é a asserção:

Há pelo menos um exemplar do manual disponível na biblioteca.

Importa salientar que um argumento não é constituído de um mero agregado de asserções, mas lhes impõe uma estrutura que permite distinguir as premissas da conclusão. No argumento, a asserção que constitui sua conclusão é apresentada como implicada pelas asserções que constituem as premissas ou, dito de modo inverso, estas são apresentadas como razões que fundamentam, justificam, aquela. Ao argumentar, pretende-se expor uma conexão entre as premissas e a conclusão, de sorte que a aceitação das premissas seja razão da aceitação da conclusão.

5 Evidentemente, isso não é tudo o que é dito ou pressuposto no diálogo. Por exemplo, o diálogo supõe que o personagem buscado faz o que havia dito que faria (estar na biblioteca ou na lanchonete), que tal personagem de fato não esteja na lanchonete (porque o outro não o vira lá), etc.6 O termo ‘asserção’ e seus cognatos são empregados aqui de forma propositadamente vaga, sem determinar se remetem ao domínio lingüístico (de sentenças, enunciados, proposições, etc.), psicológico (juízos e equivalentes) ou de um suposto reino platônico (separado das contingências humanas) da pura inteligibilidade. Pois, como se verá oportunamente, um dos temas mais controversos nos fundamentos da Lógica é aquela acerca da natureza dos objetos com os quais a Lógica lida. Pelo momento, interessa-nos apenas que, o que quer que sejam as asserções, com respeito a elas a questão da verdade ou da falsidade pode ser posta pertinentemente e, mais, literalmente. Ou seja, asserções designarão os portadores próprios da verdade e falsidade e, por conseguinte, dignos de atributos lógicos e de entabularem relações lógicas com seus semelhantes.

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A fim de evitar confusões, pode-se observar que o termo argumento é aqui empregado com um sentido diferente daquele que assume em certas construções usuais como, por exemplo, na afirmação: “Fiz o que me pedira, pois me dera bons argumentos para fazê-lo”, onde o termo argumento é empregado como sinônimo dos termos motivo, justificação, razão. No sentido anteriormente explicado, um argumento envolve tanto as premissas (que exprimem as razões, as justificativas, os fundamentos), como a conclusão ( que expressa o que se quer justificar, fundamentar).

Um texto argumentativo, isto é, um texto que, através de um encadeamento de argumentos, procura defender uma posição, pode ter uma estrutura bem complexa e se revestir de formas literárias bem diversas. Assim, por exemplo, é freqüente que, em contextos argumentativos, a ordem de apresentação do argumento não seja a sua ordem lógica, isto é, nem sempre a conclusão é a última asserção de um argumento. Pode-se dizer:

O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois ninguém reclama para si mais bom senso do que possui.

Nesse argumento, tomado do Discurso do Método de Descartes, a premissa (“ninguém reclama para si mais bom senso do que possui”), isto é, a razão apresentada, aparece após a conclusão (“O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada”).

Ademais, muitas vezes encontramos um encadeamento de argumentos. Há um argumento principal ou central, cujas premissas são também, por sua vez, conclusões de argumentos secundários ou subargumentos. Desse modo, as noções de premissas e conclusão não devem ser tomadas como absolutas, mas sim relativizadas a um dado argumento; o que serve de conclusão em um argumento pode ser premissa em outro, num encadeamento de argumentos, às vezes denominados entimema.

Considere-se a argumentação de um professor que discute com seus alunos a possibilidade de suspender a aula no dia seguinte:

Não podemos suspender a aula de amanhã, pois ainda restam quatro pontos do programa a serem vistos e temos somente oito-horas-aula daqui até o fim do ano. Ademais, o meu horário está totalmente ocupado que não seria possível repor essa aula.

A argumentação contida nesse texto envolve diversos subargumentos e algumas premissas implícitas.

Para facilitar a análise, pode-se reconstruir um texto argumentativo segundo uma padronização que obedece ao seguinte critério: o argumento não é dado como um texto ocorrido, mas cada premissa inicia uma nova linha e a conclusão é posta na última linha, precedida de uma conjunção conclusiva.

Assim, podemos reconstruir o exemplo apresentado, da seguinte maneira:

(1) O programa deve ser totalmente cumprido.(2) Ainda restam quatro pontos a serem vistos.(3) Precisamos de oito horas-aula para ver esses quatro pontos.(4) Temos somente oito-horas aula daqui até o fim do ano.(5) Não podemos deixar de dar nenhuma hora-aula.(6) Se a aula de amanhã não fosse dada, ela precisaria ser reposta.(7) O horário está totalmente ocupado.(8) Não disponho de tempo para repor aulas.

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(9) Não poderíamos repor a aula de amanhã.(10) Portanto, não podemos suspender a aula de amanhã.

Nessa reconstrução (que é uma das muitas possíveis e na qual certamente ocorrem ainda premissas implícitas no contexto), podemos perceber o seguinte:

a) as sentenças que numeramos por (1), (2), (3), (4) e (5) constituem um subargumento, onde (5) é a conclusão;

b) (5) serve de premissa para (6), (7) para (8) e (8), por sua vez, para (9), em três novos subargumentos;

c) finalmente, (6) e (8) constituem as premissas do argumento principal, cuja conclusão é (10).

Pode ocorrer, também, que algumas das premissas de um argumento não sejam explicitamente formuladas, dadas que são tidas como óbvias no contexto. Por exemplo, no argumento seguinte:

Água não é H2O, pois peixes vivem na água, mas morrem se estiverem num

ambiente que contém apenas H2O, já que incapazes de fazerem hidrólise.

Nesse argumento, a conclusão

Água não é H2O,

aparece logo no início do período, seguido das premissas básicas explícitas

Peixes vivem na água

e

Peixes morrem se estiverem num ambiente que contém apenas H2O

Nele, a última sentença fornece uma explicação para o que é descrito pela segunda premissa e supõe, nessa explicação, a tese de que peixes carecem de oxigênio para a sobrevivência.

Ademais, na exposição de um argumento, suas premissas podem ser acompanhadas de explicações que visam "apenas" facilitar a compreensão. Como exemplo, consideremos o argumento com o qual o Pe. Copleston pretendia convencer Russel da existência de Deus.

Copleston: Bem para clareza, dividirei o argumento em níveis diferentes. Antes de tudo, eu diria que sabemos que existem pelo menos alguns seres no mundo que não contêm em si a razão de sua existência. Por exemplo, dependo de meus pais e agora do ar, e da comida, e assim por diante. Ora em segundo lugar, o mundo é simplesmente a totalidade ou o agregado real ou imaginado de objetos individuais, nenhum dos quais contém em si isoladamente a razão de sua existência. Não existe nenhum mundo distinto dos objetos que o formam, mais do que a raça humana é alguma coisa separada de seus membros. Portanto, diria, uma vez que os objetos ou os eventos existem, e uma vez que nenhum objeto da experiência contém em seu interior a razão de sua existência, que esta razão, a totalidade dos objetos deve ter uma razão exterior a si própria. Esta razão deve ser um ser existente. Ora, este ser ou é ele próprio a razão de sua existência, ou não o é. Se o é, tudo está bem. Se não é, então devemos continuar além. Mas se continuarmos até o infinito nesse sentido, então não existe nenhuma explicação da existência. Logo, diria, de modo a explicar a existência, que devemos chegar a um ser que

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contém em si próprio a razão de sua própria existência, o que quer dizer, que não pode não existir. (In: RUSSEL, B. Ensaios Escolhidos, p. 206)7

A tese principal, “existe um ser que não pode não ser”, é reformulada ao longo do texto, de sorte que se conclui que existe um ser que contém em si próprio a razão de sua própria existência. Nessa medida, o texto pressupõe a tese auxiliar segundo a qual um ser que contém em si próprio a razão de sua própria existência é o mesmo que um ser que não pode não ser. O argumento tem, portanto, a seguinte estrutura lógica:

1. Existem seres que não contém em si próprios a razão de sua existência (ou seja, seres cuja existência não pode ser explicada por ela mesma)

2. O mundo deve ter uma razão suficiente externa a si mesmoa) O mundo nada é senão a totalidade das coisasb) Cada coisa do mundo não possui em si mesmo a razão de sua existência

3. Ora, tal razão é um ser existente.4. Ou esse ser é razão suficiente de si mesmo ou não.5. Se esse ser não fosse razão suficiente de si mesmo seríamos levados a um

regresso ad infinitum 6. Existe um ser que contém em si a razão de sua própria existência

1. e 2. servem de premissa para 3. Por outro lado, 3. , 4. e 5. servem de premissas para um argumento cuja conclusão é 6. Ademais, argumenta-se a favor de 2., considerando-se as premissas a. e b, argumento que faz apelo a uma premissa implícita:

Premissa (implícita) A: tudo tem uma razão suficiente de ser (existir) em si mesmo ou em outro ser.

Ao passo que a passagem de 3. 4. e 5. à conclusão final 6. reclama a premissa adicional:

Premissa (implícita) B: Não é possível um regresso ad infinitum na ordem das razões.

O leitor deve ter percebido que um texto argumentativo pode assumir estruturas bem complexas que, normalmente, não são lineares, nem são formados de uma premissa seguida imediatamente da conclusão, nem mesmo de conjuntos de premissas seguido da conclusão. Na verdade, a melhor forma para se representar uma estrutura argumentativa é um diagrama em forma de árvore. O exemplo a seguir, uma passagem da Suma Teológica de São Tomas de Aquino, ajudará a esclarecer esse ponto.

Tudo aquilo que se move é movido por outro. É evidente aos sentidos que algo se move, como, por exemplo, o Sol. Ora esse outro movente é movido ou não. Se não é movido, confirma-se o nosso intento [...] Se, porém, é movido, então o é por

7 No original

Well, for clarity's sake, I'll divide the argument into distinct stages. First of all, I should say, we know that there are at least some beings in the world which do not contain in themselves the reason for their existence. For example, I depend on my parents, and now on the air, and on food, and so on. Now, secondly, the world is simply the real or imagined totality or aggregate of individual objects, none of which contain in themselves alone the reason for their existence. There isn't any world distinct from the objects which form it, any more than the human race is something apart from the members. Therefore, I should say, since objects or events exist, and since no object of experience contains within itself reason of its existence, this reason, the totality of objects, must have a reason external to itself. That reason must be an existent being. Well, this being is either itself the reason for its own existence, or it is not. If it is, well and good. If it is not, then we must proceed farther. But if we proceed to infinity in that sense, then there's no explanation of existence at all. So, I should say, in order to explain existence, we must come to a being which contains within itself the reason for its own existence, that is to say, which cannot not exist.

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outro movente. Assim sendo, ou se deve proceder indefinidamente, ou se deve chegar a um movente imóvel. Mas como não se pode proceder infinitamente, é necessário por um primeiro movente imóvel. (L 1, cap. 13 83)

A conclusão desse argumento é:

Há um primeiro movente imóvel

E suas premissas básicas são três:

Tudo aquilo que se move é movido por outroHá algo que se moveNão se pode proceder indefinidamente na série dos moventes e movidos

E pode-se representar a argumentação pelo diagrama

Os sentidos evidenciam que algo se move8

---------------------------------------------------Há algo que se move Tudo aquilo que se move é movido por

outro-------------------------------------------------------------------------------------------------

---- Há algo outro movente

Esse movente é movidoTudo o que se move é

movido por outroNão se pode proceder

Esse movente é imóvel infinitamente na série---------------------------- ---------------------------

Esse outro movente ou é Há um primeiro movente Há um primeiro movente movido imóvelimóvel ou é movido imóvel--------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Há um primeiro movente imóvel

Tomemos, como um último exemplo de texto aparentemente argumentativo, o texto do escritor argentino Luiz Borges intitulado Argumentum Ornithologicum, publicado na coletânea O Fazedor. Cabe ao leitor, como exercício, reconstruí-lo segundo o padrão exemplificado acima.

Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a conta. Nesse caso, vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um, contudo não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três

8 Por razões de diagramação uma parte do argumento será apresentado acima, quando deveria estar ao lado, pois fornece uma premissa para o restante do argumento (há algo outro movente)

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ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. Esse número inteiro é inconcebível: ergo, Deus existe.

A capacidade de reconhecer argumentos, discriminar conclusões e suas respectivas premissas é parte integrante das habilidades lógico-lingüísticas e, como habilidades, só podem ser desenvolvidas pelo treino, pelo exercício contínuo. O leitor é convidado a treinar essa habilidade em todas as ocasiões pertinentes.

Inferências9

Como foi visto, por meio de um argumento procura-se justificar certa asserção (a conclusão), a partir de outras asserções (as premissas do argumento). Estas são, então, apresentadas como fundamentos para a conclusão.

A relação entre premissas e a conclusão exposta num argumento pode, ainda, ser vista sob outra perspectiva. Quando se falou, antes, de uma maneira canônica de apresentar um argumento, fez-se alusão a uma ordem lógica que estabelece certa precedência das premissas com respeito à conclusão. Tal precedência é aludida também em outras maneiras usualmente empregadas para falar da conexão entre premissas e conclusão. Vários são os termos aos quais se pode recorrer para indicar a relação que se presume existir entre as premissas e a conclusão de um argumento. Dize-se que a conclusão segue ou decorre das premissas, que estas implicam ou acarretam a conclusão. Ou afirma-se que a conclusão "sai", pode ser "tirada", "extraída" das premissas; ou é dito que, em um argumento, procura-se mostrar que a conclusão pode ser inferida das premissas. Tem-se assim uma outra noção que desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da lógica: a noção de inferência10.

De modo geral, porém não muito rigoroso, pode-se entender por inferência a passagem, segundo certos critérios (regras), de algumas asserções (de um grupo de asserções) a outra. Assim, por exemplo, da asserção

Totó late muito alto

Pode-se inferir, segundo uma regra do português que reza ser o termo ‘latir’ aplicável apenas a cachorros, que

Totó é um cachorro.

Ou ainda, da asserção

Há fumaça saindo da casa de Ana

costuma-se inferir, segundo um princípio causal (ou, como diria o filósofo escocês Hume, segundo o hábito) que

Há fogo em algum lugar da casa de Ana.

Os dois atos, o de argumentar e o de inferir, diferem com respeito aos fins que se tem em vista, o que é manifesto já na regência usual dos verbos ‘argumentar’ e ‘inferir’:

9 [Considerar aqui também a noção de raciocínio, que foi já tomado como objeto privilegiado de estudo da Lógica, embora seja problemático distinguir os significados desses dois termos: inferência e raciocínio].10 Alguns autores preferem reservar o termo ‘inferência’ para designar um gênero de atos psicológicos, em oposição ao argumento, que designaria uma sorte de atos lingüísticos. Aqui, a diferença entre esses supostos dois domínios de entidades (psicológicas e lingüísticas) não desempenhará nenhum papel para demarcar as diferenças de significado entre os termos em pauta.

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argumenta-se em favor de algo e inferi-se algo de algo outro. Ao argumentar, procura-se justificar uma asserção e ao inferir, se quer saber que outras asserções podem ser conseqüentemente extraídas das premissas.

No entanto, ainda que seja possível distinguir o ato de inferir do ato de argumentar, todo grupo de asserções que forma um argumento pode ser visto como uma inferência e vice-versa, toda grupo de asserções que expresse uma inferência pode ser visto como um argumento. As diferenças entre inferência e argumento não devem ser sobreestimadas. Os grupos de asserções antes apresentados como exemplos de argumentos podem ser tomados como exemplos de inferências, nas quais a conclusão é inferida das premissas. E, por outro lado, uma maneira de refutar uma dada asserção (i.e., de argumentar contra ela) consiste exatamente em inferir da asserção alguma conseqüência inaceitável; ou pode-se argumentar em favor de uma tese, mostrando que é possível inferir da negação da tese uma asserção indesejável.

Se for feita abstração seja da ordem temporal, seja dos fins que se tem em vista, verifica-se que tanto um argumento quanto uma inferência consiste na tentativa de expor uma conexão entre suas premissas e suas conclusões. Ou seja, em ambos os casos, a conclusão apresenta-se como decorrência das premissas. Quando se quer acentuar, num conjunto de premissas e conclusão, o fato de que as premissas justificam a conclusão, costuma-se falar em argumento; ao passo que, se o grifo recai sobre a possibilidade de obter a conclusão a partir das premissas, fala-se em inferência. Argumentos e inferências são diferentes perspectivas sob as quais é possível considerar a relação entre as premissas e a conclusão, como se fossem duas direções de uma mesma via, fornecida pela relação entre de premissas e conclusão. Pode-se dizer, então, que seja numa inferência, seja em um argumento, a conclusão se apresenta como conseqüência das premissas. Esse conceito, de relação de conseqüência, surge como um conceito unificador que desempenhará, posteriormente, um papel central na discussão.

Análises de argumentos ou inferências

Um bom texto, qualquer que ele seja, deve suscitar diversas questões num leitor (ou num ouvinte) atento, questões que podem ser subsumidas a dois títulos: compreensão e avaliação. Seja a correta compreensão do texto, seja sua avaliação adequada dependem do gênero de texto que se considera. Quando se trata de um texto com respeito ao qual a questão da verdade se põe de maneira literal e própria (isto é, um texto não ficcional), possivelmente a primeira questão que vem à mente do leitor é acerca de sua verdade ou falsidade, muitas vezes atropelando as questões prévias de compreensão. No entanto, convém dispor, antes de avaliar, respostas para questões como: Qual a principal tese exposta no texto? Quais razões são apresentadas em favor da tese principal e, caso haja razões, como elas se encadeiam? Que eventuais objeções à tese são levadas em conta no texto? E a avaliação deve ser conseqüente à compreensão e às pretensões do autor ao produzir o texto11.

Ora, um texto argumentativo, ao contrário de um texto profético ou presuntivamente revelado12, não apenas tem pretensão à verdade, como pretende

11 Adaptando a máxima popular, é pela boca que o peixe morre, mas também é por ela que ele se alimenta.12 Mesmo frente a um texto profético, um leitor sagaz pertinentemente põe a questão acerca das razões que podem ser oferecidas para se ter por verdadeiro o que é afirmado, ainda que acabe por concluir que tais razões não são outras que as da fé (ou, para empregar a expressão cara a Pascal, mas banalizada nos cartões de floriculturas, as do coração).

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oferecer razões para que se acate a verdade do que é afirmado. O seu autor pretende convencer o seu leitor oferecendo justificativas para o seu ponto de vista e, assim, transferir a questão da verdade ou falsidade (ou, pelo menos da aceitabilidade) da tese principal para as demais asserções expostas como fundamento, de sorte que o leitor seria levado a aceitar a tese principal, supondo aceitas aquelas que lhe servem de fundamento. A verdade da conclusão é apresentada como seguindo da verdade de outras asserções e o leitor é convidado, então, a perguntar-se pela verdade dessas outras asserções.

Assim, no caso dos textos argumentativos, o foco da avaliação pode dizer respeito tanto à verdade ou à falsidade das asserções expostas, como ao encadeamento delas, o que torna possível diferentes atitudes nesse caso. A primeira reação possivelmente é a de acatá-lo ou rechaçá-lo em função da atitude prévia em relação a sua conclusão (se é ou não tida por verdadeira ou aceitável). A obsessão humana pela posse certa e inconteste da verdade conduz naturalmente a essa atitude e certamente dificulta muito o exercício de outras atitudes. Mas sempre é possível assumir uma atitude mais inquisitiva, que não privilegie, num primeiro momento, a questão da verdade ou falsidade de sua conclusão ou mesmo de suas premissas, para concentrar a atenção nas conexões entre as asserções que o texto, enquanto argumentativo, pretende ter estabelecido.

Essas conexões entre as conclusões propostas e as premissas apresentadas ou pelo menos indicadas podem ser vistas de diferentes perspectivas, conforme os interesses em pauta. Pode-se perguntar pelo caráter persuasivo ou não do texto, ou seja, sua eficácia como instrumento de convencimento: se as asserções apresentadas como premissas são capazes de conduzir alguém a acatar também a conclusão e a quem pode conduzir. Essa certamente é a perspectiva que mais interessa aos publicitários, políticos, educadores de adultos, enfim demagogos de todos os matizes.

Há ainda outra perspectiva sob a qual as presuntivas conexões expostas num texto argumentativo podem ser consideradas. Perspectiva que faz abstração das atitudes e reações que a pretensão de verdade sustentada pelo texto desperta ou provoca naqueles que o compreendem. Nesse caso, o interesse recai primariamente nas eventuais relações entre tais pretensões, mais precisamente, as relações que vigem entre a verdade (e/ou falsidade) das premissas e da conclusão, supondo que a verdade ou falsidade das asserções seja um atributo que pertence a elas independentemente de relações que sujeitos cognoscitivos venham a entabular com elas.

Em uma pequena, porém instigante obra, Reason and Argument, Peter Geach lembra a distinção fundamental entre motivos, causas e razões do assentimento (da crença). De maneira muito grosseira, pode-se dizer que motivo é aquilo pelo qual se quer ou se deseja crer em algo, causa aquilo que conduz, sem envolver nenhuma sorte de deliberação, ao assentimento e, por fim, razão o que permite justificar o assentimento, porque fornece algum apoio lógico.

Convém observar que a distinção ora em pauta diz respeito antes a relações entre objetos do assentimento do que a discriminação de gêneros de coisas que podem estar na base das crenças (sejam essas coisas de ordem neurofisiológica, emocional, social ou mesmo lógico-intelectual). A remissão às mesmas coisas pode funcionar, dependendo do contexto, como razões, ou como causas ou, ainda, como motivos do assentimento, conforme a relação que estabelecem com o assentimento. Por exemplo, muitos crêem que a melhor razão que se pode oferecer para unir seu destino ao de outrem é o amor;

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nesse caso, um sentimento serve de razão. Mas sentimentos podem também ser causas ou motivos do assentimento. Por outro lado, as posses de alguém pode ser um bom motivo (e, até mesmo, um motivo dito racional) para querer casar com alguém, mas poucos reconhecem nisso uma boa razão.

A noção de razões de assentimento pode ser empregada para oferecer uma primeira demarcação do ponto de vista lógico na consideração dos argumentos. Considera-se apenas a pretensão dos textos argumentativos de oferecer razões (e não causas ou motivos) para as teses sustentadas. Ou seja, todas as outras eventuais pretensões do texto (estéticas, emotivas e, até mesmo, a pretensão à verdade) são postas entre parênteses, para se concentrar na análise das relações entre as premissas e as conclusões dos argumentos apresentados, procurando determinar em que medida aquelas fornecem razões para essas. A análise dessa pretensão pode ser conduzida (e, como veremos convém ser assim conduzida em vários contextos) com total independência seja do caráter persuasivo ou não do texto, seja com respeito à verdade ou falsidade das asserções envolvidas. Constituindo, desse modo, um dos momentos, o primeiro deles, na avaliação de um texto argumentativo, cujas asserções foram previamente compreendidos ou mesmo, um momento que pode ser concomitante ao de compreensão e contribuindo para ela.

O leitor deve estar já ciente da importância de considerar, nos textos argumentativos, suas pretensões de oferecer razões, e não apenas suas pretensões a verdade e, tampouco, apenas seus eventuais valores estéticos ou emocionais. Já porque parece não haver outro modo de avaliar a verdade ou falsidade de uma asserção, salvo a oferta de razões que a confirmem ou infirmem.

Argumentos dedutivamente válidos

A preservação necessária da verdade

Evidentemente, a avaliação sugerida acima pressupõe a posse de critérios que permitam determinar quando uma asserção ou uma coleção de asserções conta como razão, e em que medida, para outra asserção. Um tipo ideal de argumento é aquele em que as premissas fornecem, em certo sentido, o máximo de apoio à conclusão, de sorte que não seja possível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Por exemplo, facilmente se percebe não ser possível que as asserções

Os gorilas são maiores que os chipanzés.

e

Os chipanzés são maiores que os micos

sejam ambas verdadeiras e, ao mesmo tempo, ser falsa a asserção

Os gorilas são maiores que os micos

Portanto, no argumento (ou a inferência)

Os gorilas são maiores que os chipanzés.Ora, os chipanzés são maiores que os micos.Logo, os gorilas são maiores que os micos.

as premissas acarretam necessariamente a conclusão13.

13 Nesse contexto, necessário é o mesmo que a negação da possibilidade do contrário, ou seja, algo é necessário se não for possível que não seja.

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Page 12: Argumentar, inferir e deduzir

Ou, como outro exemplo, facilmente se percebe que não é possível que as asserções

Todos os homens são bípedes implumes.

e

Todos os bípedes implumes são racionais.

sejam ambas verdadeiras e, ao mesmo tempo, seja falsa a asserção

Todos os homens são racionais.

Portanto, o argumento (ou a inferência)

Todos os homens são bípedes implumes.Ora, todos os bípedes implumes são racionais.Logo, todos os homens são racionais.

é tal que a verdade de suas premissas acarreta necessariamente a verdade de sua conclusão.

Através de um argumento que preserve necessariamente a verdade, a questão referente à verdade da conclusão transfere-se para as premissas. Se for sabido que as premissas de um argumento forem verdadeiras e que ele é tal que preserva necessariamente a verdade, então é sabido também que sua conclusão é verdadeira. Assim, por exemplo, se for sabido que

O romance policial Um estudo em Vermelho é de Conan Doyle,

será sabido verdadeiro que

Conan Doyle é um escritor de romances policiais.

Observe-se que a condição acima enunciada não diz respeito à verdade ou falsidade, como matéria de fato, das premissas ou da conclusão. Assim, por exemplo, embora todas as premissas do argumento:

Todos os gatos são pardosOra, tudo que é pardo é ruminanteLogo, todos os gatos são ruminantes

sejam, de fato, falsas, o argumento preserva necessariamente a verdade, pois se percebe que, se as premissas fossem verdadeiras, a conclusão também seria verdadeira (o que, como matéria de fato, não é o caso).

A condição ora considerada faz alusão apenas a uma relação entre os possíveis valores de verdade das asserções que constituem o argumento (ou inferência): exclui exatamente a possibilidade de que as premissas sejam todas verdadeiras e a conclusão falsa. De sorte que, se uma das premissas for falsa (basta uma, embora o mesmo valha se mais de uma for falsa), então nada se pode afirmar sobre o valor de verdade da conclusão, a partir apenas da análise do argumento. Nesse caso, a conclusão tanto pode ser verdadeira, como falsa. Por exemplo, considere-se o argumento

Todos os misóginos são ingleses.Alguns misóginos se casamLogo, alguns ingleses são casados.

Trata-se manifestamente de um argumento no qual as premissas acarretam necessariamente a conclusão (não seria possível que nenhum inglês fosse casado,

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embora houvesse misóginos casados e todos os misóginos fossem ingleses). Nesse argumento, pelo menos uma de suas premissas (a primeira) é, como matéria de fato, falsa, mas a conclusão é verdadeira, ainda que como mera matéria de fato. Mas pode ocorrer que tanto as premissas, quanto a conclusão sejam, como matéria de fato, falsas, como no argumento

Todos os cavalos são pardos.Ora, tudo o que é pardo é ruminante.Logo, todos os cavalos são ruminantes.

E, ainda assim, as premissas acarretem necessariamente a conclusão.

Ou pode ocorrer ainda que tanto as premissas, quanto a conclusão sejam verdadeiras, como no argumento

Todos os homens são bípedes implumesTodos os bípedes implumes são capazes de rirTodos os homens são capazes de rir

Assim, ao se afirmar que as premissas acarretam necessariamente a conclusão no argumento

Todos os escritores que são prestigiados pelos editores internacionais são grandes escritores.O escritor Paulo Coelho é prestigiado pelos editores internacionais.Logo, Paulo Coelho é um grande escritor.

não se esta pronunciando acerca dos valores de verdade que, como uma questão de fato, assumem as premissas ou a conclusão desse argumento; excluí-se apenas a possibilidade de que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. E nessa medida, afirma-se que as premissas, se forem acatadas, oferecem razões dirimentes para a conclusão. Portanto, aquele que não aceita a conclusão deve, em algum sentido do verbo “dever” a ser examinado melhor, recusar uma de suas premissas (provavelmente a primeira, já que a segunda parece bem comprovada).

Por outro lado, o mero fato de premissas e conclusão serem verdadeiras não assegura que esta última seja uma conseqüência das primeiras, como é ilustrado pelo conjunto de asserções seguinte:

Todos os homens são bípedes implumes.Todos os homens são animais racionaisTodos os bípedes implumes são racionais.

Pois, embora não existam bípedes implumes que não sejam seres humanos, é possível conceber bípedes implumes (naturalmente implumes e não galinhas depenadas) irracionais.

Em resumo, dado um argumento dessa espécie, sabemos somente que, se todas as premissas forem verdadeiras, então necessariamente a conclusão será verdadeira. Todavia, se alguma de suas premissas for falsa, nada se segue acerca da verdade ou falsidade da conclusão.

Como o leitor deve ter percebido, para fazer referência a esses argumentos, foram empregadas, de maneira indistinta, as expressões “argumentos nos quais a verdade é necessariamente preservada”, “argumentos nos quais as premissas acarretam necessariamente a conclusão”, “argumentos nos quais a conclusão decorre

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Page 14: Argumentar, inferir e deduzir

necessariamente das premissas”. Nessa medida, todas essas expressões são aqui tomadas como equivalentes e designam aqueles argumentos com respeito aos quais não é possível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Em muitos textos de divulgação, como os de Salmon ou o de Copi, e mesmo em manuais introdutórios de Lógica, como os de Mates, entre outros, tais argumentos são denominados argumentos válidos ou legítimos. Mais, o traço ora salientado de alguns argumentos é tomado como a marca característica dos argumentos ditos válidos, legítimos, ou ainda corretos.

Todavia, nunca se deve prejulgar a resposta a alguma questão teórica pela terminologia, principalmente quando se trata de uma questão disputada, cuja resposta não é evidente. Esse é exatamente o caso aqui. Sem reflexões que forneçam mais subsídios, seria imprudente e desencaminhador afirmar ou negar a existência de outras formas legítimas, válidas, corretas de argumentar além daquelas nas quais a conclusão decorre necessariamente das premissas14. Assim, convém preservar o uso das expressões rebuscadas que ocorrem acima para designar os argumentos com respeito aos quais não é possível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa.

O caráter estrutural (formal)

Ainda outra observação devida a Aristóteles, refere-se ao caráter formal (estrutural) de certos tipos de argumentos. Pode-se perceber que o argumento

Todos os macacos têm rabos.Todos os chipanzés são macacos.Logo, todos os chipanzés têm rabos.

é um argumento que preserva necessariamente a verdade. Mais ainda, percebe-se facilmente que se um termo, por exemplo, ‘macaco’ for substituído por outro, por exemplo ‘burocratas’ em todas as suas ocorrências, o argumento resultante

Todos os burocratas têm rabosTodos os chipanzés são burocratas.Logo, todos os chimpanzés têm rabos.

continua a ter tal propriedade. O mesmo ocorre se igualmente ‘rabos’ for substituído por um outro termo da mesma categoria gramatical.

Pode-se concluir que qualquer argumento da forma

Todos os ... têm ---.Todos os === são ... .Logo, todos os === têm ---.

no qual os espaços indicados por ... ou por --- ou, ainda, por === foram preenchidos por termos gramaticalmente adequados (um mesmo termo preenchendo todos os espaços marcados por um mesmo tipo de sinal) preserva necessariamente a verdade.

Mais um exemplo ajuda a esclarecer um pouco melhor esse ponto. Considere-se o argumento

Se existe um ser contingente, então existe um ser necessário.Ora, existe um ser contingente.Logo, existe um ser necessário.

14 Ainda mais que, como se verá oportunamente, a negação de outras formas de argumentação pode dar azo ao dito espirituoso de G.K. Chesterton de que o louco é aquele que perdeu tudo menos a razão.

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Trata-se de um argumento no qual as premissas acarretam necessariamente a conclusão. Pois bem, se nesse argumento, a asserção "existe um ser contingente" for substituída por outra qualquer, por exemplo, "Descartes pensa", o argumento resultante

Se Descarte pensa, então existe um ser necessário.Ora, Descartes pensa.Logo, existe um ser necessário.

continua a preservar necessariamente a verdade. Ou seja, qualquer argumento da forma

Se ..., então ---.Ora, ... .Logo, ---.

no qual os espaços foram devidamente preenchidos por duas sentenças quaisquer, preserva necessariamente a verdade.

Facilmente se percebe que a característica ora assinalada, de depender apenas da forma dos elementos envolvidos, implica a característica anteriormente considerada, de preservar necessariamente a verdade. À primeira vista, a inversa não parece verdadeira, pois parece possível que um argumento seja tal que as premissas acarretem necessariamente a verdade da conclusão, sem que isso dependa do que parece ser sua forma. Por exemplo, no argumento:

Pedro tem um livro a mais que JoanaJoana tem 47 livrosLogo, Pedro tem 48 livros.

As premissas acarretam necessariamente a conclusão, porém isso não depende apenas da forma manifesta, mas de relações numéricas. Algo análogo, porém dependendo de princípios do significado, ocorre no argumento.

Mr. Pickwick é solteiro.Logo, Margareth não é sua esposa.

Todavia, trata-se de uma questão muito mais complexa, cuja solução depende de respostas prévias a questões muito intrincadas, tais como, a natureza dos objetos com os quais a lógica lida (se lingüística ou não), as formas lógicas que asserções podem exemplificar, e os critérios para considerar uma premissa como implícita no argumento. Trata-se, na verdade, de mais um caso da questão complexa de saber se todas as maneiras legítimas (corretas, válidas) de argumentar ou inferir reduzem-se às formalmente válidas e que, por isso, preservam necessariamente a verdade. Por exemplo, se forem levadas em conta relações de significação entre termos da língua portuguesa e for explicitada a simetria da relação de casamento, o último argumento poderia ser transformado no argumento

Mr. Pickwick não é casado com ninguém.Se alguém é casado com outrem, então esse outrem é casado com aquele.Logo, Margareth não é casada com Mr Pickwick.

Um argumento no qual, não apenas a passagem das premissas à conclusão preserva necessariamente a verdade, como tal característica depende apenas da forma lógica das asserções envolvidas. Pois, pode-se dizer que esse último argumento tem a forma seguinte:

Mr. Pickwick não mantém a relação R com ninguém

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Page 16: Argumentar, inferir e deduzir

Se alguém mantém a relação R com outrem, então esse outrem mantém a relação R com aquele alguémLogo, Margareth não mantém a relação R com Mr. Pickwick.

Uma redução análoga pode ser conduzida também no caso do primeiro contra-exemplo apresentado acima, introduzindo-se uma premissa adicional de sorte que o argumento ficaria assim:

Pedro tem um livro a mais que JoanaJoana tem 47 livrosPortanto, Pedro tem um livro a mais que 47 livros.Ora, 48 livros é um livro a mais que 47 livros.Logo, Pedro tem 48 livros.

Não é possível aqui resolver tais questões. Cabe, isso sim, observar que a Lógica, nos mais de dois mil anos de seu desenvolvimento como disciplina teórica (arte ou ciência), privilegiou a consideração daqueles argumentos que satisfazem as duas condições ora introduzidas. Tais argumentos (ou inferências) foram tradicionalmente chamados (chamadas) de argumentos (inferências) formalmente válidos (as) ou dedutivamente válidos (as)15. Quando um argumento (ou uma inferência) é dedutiva ou formalmente válido(a) costuma-se também dizer que se trata de uma dedução e que suas premissas deduzem a conclusão ou, alternativamente, que a conclusão é deduzida das premissas16. Em uma dedução a verdade é necessariamente preservada ao se passar das premissas à conclusão (isto é, não é possível que todas as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão seja falsa) e, além disso, tal característica, de necessariamente preservar a verdade, é assegurada pela mera forma (estrutura) lógica das premissas e da conclusão. A validade dedutiva é, portanto, um conceito formal, seu emprego com correção depende apenas da forma (dita a forma lógica) do argumento (ou da inferência).

Evidentemente, não convém tomar essa caracterização de um gênero peculiar de argumentos e inferências, os dedutiva ou formalmente válidos (as), como uma definição plenamente adequada. Pois, como leitor já deve ter percebido, ela repousa sobre noções um tanto quanto obscuras, de contornos pouco nítidos, como as de asserção, valor de verdade (verdadeiro e falso), formas lógicas e necessidade (alternativamente, possibilidade). Certamente muitas questões, que devem ser consideradas oportunamente, permanecem sem respostas; questões como, o que são asserções? Seriam elas entidades lingüísticas? ou, antes, itens mentais? ou, ainda, entidades que povoariam um como que céu inefável da inteligibilidade? O que é o necessário (alternativamente, o possível) a que se faz apelo na caracterização de argumentos dedutivamente válidos? O que é forma lógica? Quais são os elementos (ou grupos de

15 Essas expressões ‘formalmente válido (a)’ e ‘dedutivamente válido(a)’ devem ser entendidas como significando o mesmo que válido(a) por razões puramente formais ou razões dedutivas, deixando em aberto a possibilidade de argumentos válidos por outras razões; só assim é evitado o vício de pressupor, na terminologia, respostas peculiares a questões disputadas.16 Embora o termo ‘dedução’ receba um significado técnico preciso, ele pode ser empregado como um meio para designar o mesmo que as expressões ‘argumento dedutivamente válido’ e ‘inferência dedutivamente válida’, sem contemplar as diferenças destacadas por uma ou outra dessas duas últimas expressões. Nesse uso, ainda de cunho intuitivo, o termo preserva a nota dinâmico-funcional presente seja na noção de argumento, seja na de inferência: um procedimento, segundo regras, que conduz de uma coleção de asserções a outras. Esse aspecto foi inicialmente descurado na Lógica Contemporânea, embora atualmente ele tem retornado à cena, preocupação que possivelmente se origina das interações atualmente existentes entre a Lógica e os temas vinculados à computação.

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Page 17: Argumentar, inferir e deduzir

elementos) das asserções que podem ser substituídos preservando a validade dedutiva? Enfim, como determinar as formas lógicas (as estruturas lógicas) de um argumento?

A teoria lógica contemporânea fornece respostas altamente elaboradas para tais questões, que permitem fornecer uma caracterização rigorosa da relação que deve vigorar entre as premissas e a conclusão de uma dedução, embora em contextos muito peculiares. Caracterização que será oportunamente apresentada; por enquanto, convém ficar com a compreensão intuitiva dessas noções que se procurou explicitar através de exemplos e da observação de algumas de suas características. Em especial a observação de que o critério exposto de validade dedutiva, ainda que parcialmente obscuro, atribui à relação de conseqüência duas importantes características, a saber: a relação deve preservar necessariamente a verdade e ser estrutural. Ou seja, se for possível deduzir uma asserção de um conjunto de asserções, todas elas verdadeiras, então necessariamente a asserção deduzida também é verdadeira; e isso depende apenas da forma (estrutura) lógica dos elementos envolvidos, ou seja, a sua validade dedutiva é mantida se forem substituídas, preservando a correção gramatical, alguns de seus elementos por outros.

A compreensão intuitiva da relação de conseqüência própria, dos argumentos dedutivamente válidos, com os dois traços antes assinalados, subjaz a toda análise lógica, de Aristóteles até os dias atuais e é um dos componentes intuitivos fundamentais da noção de conseqüência que a Lógica procura caracterizar. Assim, pode-se denominar de relação de conseqüência lógica a relação que deve vigorar entre as premissas e conclusão de um argumento para que ele seja um argumento dedutiva ou formalmente válido. Os assim chamados argumentos dedutivamente válidos fornecem a ocasião para que se apreenda, por abstração, aquele que pode ser tomado como o objeto privilegiado de estudo da Lógica. Numa primeira aproximação, pode-se responder a questão acerca de qual é objeto de estudo da Lógica, dizendo que é a relação de conseqüência lógica. Com efeito, o estudo dessa relação, suas propriedades e condições, constituem as principais preocupações da Lógica, desde Aristóteles e era comum, em textos medievais, que a Lógica fosse definida como a teoria da conseqüência.

Essa resposta faz justiça não só ao que é considerado normalmente nas teorias ditas pertencentes à Lógica, como aquilo que é nelas comumente desconsiderado. Observou-se, antes, que as diferenças entre as noções de argumento e de inferência, tais como apresentadas anteriormente, são desconsideras na Lógica (uma vez que diriam respeito antes ao uso dos grupos de asserções que às suas propriedades e relações próprias). Costuma-se também descuidar do aspecto dinâmico-funcional, enquanto procedimento, segundo regras, que conduz de um conjunto de proposições a algumas de suas conseqüências, presente entre as notas das noções de argumento e, principalmente, de inferência. Aspecto que está completamente ausente da noção de conseqüência como uma noção de uma relação intrínseca e estática.

sofismas, falácias e paralogismos17

Na análise lógica dos argumentos, tradicionalmente distingue-se dentre os argumentos aqueles em as premissas apenas aparentam fornecer apoio à conclusão, sem

17 O leitor que tiver acesso à “Internet”, encontrará na “teia mundial” (www) diversos sítios com informações acerca das falácias, em particular, os seguintes endereços: http://www.logicalfallacies.info/index.html, http://www.fallacyfiles.org/introtof.html http://www.csun.edu/~dgw61315/fallacies.html, http://www.nizkor.org/features/fallacies/ , http://onegoodmove.org/fallacy/welcome.htm ,

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Page 18: Argumentar, inferir e deduzir

que realmente a apóiem. Nesses, embora a conclusão não seja conseqüência das premissas, pode-se ter a falsa impressão de que isso ocorra, como no argumento

Os grandes filósofos são prestigiados pela comunidade filosófica.O filósofo norte-americano Donald Davidson é prestigiado pela comunidade filosófica.Logo, Donald Davidson é um grande filósofo.

Pois, ao contrário do que pode parecer, quem afirma a primeira premissa não esta afirmando que aqueles que são prestigiados pela comunidade são grandes filósofos, mas apenas a inversa. O leitor facilmente percebe a falha argumentativa, se considerar o seguinte argumento:

Os italianos são europeusO Príncipe Charles é europeuLogo, o Príncipe Charles é italiano

Argumento que resulta do anterior ao se substituir “grandes filósofos” por “italianos”, “prestigiados pela comunidade filosófica” por “europeus” e “filósofo norte americano Donald Davidson” por “Príncipe Charles”.

O texto de Borges, antes apresentado como exemplo de argumento, também é exemplo de um argumento que, à primeira vista, poderia parecer dedutivamente válido, mas que não é, porque nele o termo 'indeterminado' ocorre em diferentes acepções (epistêmica, fazendo alusão a capacidades de sujeitos cognoscitivos determinarem algo, e ontológica, referindo-se apenas à presuntiva natureza de algo).

Importa salientar que, ao se afirmar que o argumento é um sofisma, não se esta ainda negando a sua conclusão, mas apenas observando que as premissas apresentadas não fornecem um fundamento logicamente dirimente para a conclusão, ou seja, estaremos dizendo simplesmente que a conclusão não decorre logicamente das premissas, apesar da aparência em contrário. Como no caso do argumento dedutivamente válido, o caso aqui também diz respeito à relação entre premissas e conclusão e não propriamente ao valor de verdade das asserções envolvidas.

Para designar esses argumentos especiosos costuma-se empregar, alternativamente, os termos ‘falácia’ e ‘sofisma’ ou, ainda, ‘paralogismo’. Não é muito clara as diferenças nos empregos desses termos em português e há quem os empregue como sinônimos. Sofisma, assim caracteriza o Houaiss, “argumento ou raciocínio concebido com o objetivo de produzir a ilusão da verdade, que, embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta, na realidade, uma estrutura interna inconsistente, incorreta e deliberadamente enganosa” (Houaiss). E, o mesmo léxico, assim define o termo falácia, “na escolástica, termo usado para a caracterização do silogismo sofístico do aristotelismo, que consiste em um raciocínio verossímil, porém inverídico”. Por fim, o paralogismo é caracterizado como “raciocínio falso que se estabelece involuntariamente”. Como soe ocorrer com os dicionários da língua português, pouco é esclarecido acerca dos usos dos termos e suas diferenças.

Certo é que os três termos são comumente empregados para designar a mesma sorte de argumentos enganosos. Talvez a diferença resida em que o termo ‘sofisma’ seja empregado naquelas situações em que se atribui ao autor do argumento a intenção de enganar e o termo ‘falácia’ ou ‘paralogismo’ naquelas em que não se faz explicitamente tal acusação ao autor do argumento. Assim, querem alguns que o termo falácia seja o termo mais genérico, dividindo-se em sofismas (intencionais) e paralogismos (não

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intencionais). O importante a destacar é que sofismas, falácias ou paralogismos envolvem sempre um engano, uma ilusão, a falsa aparência de que a conclusão decorre de alguma maneira das premissas. Ora, independentemente de uma eventual disputa lexical, como para a análise da estrutura interna de um argumento, em particular, das relações entre suas premissas e a sua conclusão, as intenções do autor não são relevantes, e como o termo paralogismo é um tanto quanto inusitado e o termo ‘sofisma’ tem uma forte conotação ofensiva, convém empregar o termo ‘falácia’ para designar o aparente argumento (isto é, aquele no qual as premissas apenas aparentemente sustentam a conclusão).

Do mesmo modo como o uísque escocês falsificado não é uísque escocês, mas apenas aparenta ser, as falácias têm apenas a aparência enganosa de argumentos válidos, mas não são propriamente argumentos, e sim uma coleção de asserções com a forma meramente lingüística de um argumento de tal sorte. Segundo as Refutações Sofistícas, atribuída a Aristóteles, isso corre por certa semelhança entre o genuíno e o falso, que permitiria aos inexperientes tomar como sendo um argumento válido o que apenas aparenta sê-lo (Cf. Refut. Soph., I, 164a ).

Atualmente, não é raro que se distingam dois gêneros de falácias: formais e informais. Pode-se ver nessa classificação costumeira a divisão das falácias segundo a ilusão que podem dar lugar. Assim, as primeiras, falácias formais, são aquelas que podem gerar a impressão de um argumento dedutivamente válido, no qual a conclusão decorreria formal e necessariamente das premissas. Já as segundas, falácias informais, envolveriam alguma outra forma de ilusão.

Mas nem sempre o que em princípio é claro e distinto mostra-se assim em seu uso particular. Não apenas o reconhecimento de falácias envolve sérias dificuldades, como a tentativa de distinguir falácias informais daquelas formais é questionável. É inegável que o emprego da noção de falácia, isto é, o reconhecimento de casos, supõe critérios indisputáveis de correção argumentativa, uma vez que o erro só se define por oposição ao acerto correspondente. Ora, como se viu, o critério intuitivo de validade dedutiva reclama seja a noção um tanto quanto obscura de preservação necessária da verdade, seja o custoso reconhecimento das “formas lógicas”. Por outro, como já foi observado, a possibilidade de outras formas legítimas de argumento que não os dedutivamente válidos é matéria polêmica, envolta em muitas dificuldades. Assim, convém postergar a consideração mais dilatada do tema para outra ocasião, quando se dispor de maior clareza acerca da noção de validade dedutiva e, portanto, das noções pressupostas por ela de necessidade e forma lógicas.

No entanto, há casos claros e indisputáveis de falácias, como os exemplos citados acima. Algumas desses recebem na literatura um nome específico. Por exemplo, a falácia

Se alguém é um grande cientista, então é prestigiado pela comunidade acadêmica internacionalOra, Carlos Chagas é prestigiado pela comunidade acadêmica internacionalLogo, Carlos Chagas é um grande cientista

é um exemplo da falácia dita da afirmação do conseqüente. Esse outro texto

Se alguém é um grande cientista, então é prestigiado pela comunidade acadêmica internacionalOra, Carlos Chagas não é um grande cientista

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Logo, Carlos Chagas não é prestigiado pela comunidade acadêmica internacional

exemplifica aquela falácia normalmente chamada de negação do conseqüente. Já a falácia seguinte

Se alguém é um grande cientista, então é prestigiado pela comunidade acadêmica internacionalPortanto, se alguém é prestigiado pela comunidade acadêmica internacional, é um grande cientista.

é às vezes denominada de convertendo o condicional.

Apesar da recente valorização desse tema em certos ambientes acadêmicos, escolares e mesmo na “Internet”, a observação consignada na Lógica de Port-Royal, o mais influente manual de Lógica da Modernidade, parece ser ainda válida: “[...] a maior parte dos erros dos homens não consiste em se deixar enganar por más conseqüências, mas em se deixar conduzir aos falsos juízos, dos quais se tira as más conseqüências”18.

18 "[...] la plupart des erreurs des hommes ne consistant pas a se laisser tromper par de mauvaises conséquences, mas a se laisser aller à de faux jugements dont on tire de mauvaises conséquences." ARNAULD, A. & NICOLE, Pierre. La Logique ou l’art de penser. Ed. crítica de Pierre Clair e François Girbal, Paris, Vrin, 1981 (1er Discours, p.41).

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EXERCÍCIOS.

1. Considere quatro argumentos dos quais sabemos:

a) que tanto as premissas, quanto a conclusão do primeiro são verdadeiras;b) que as premissas do segundo são todas verdadeiras, embora a sua conclusão seja falsa;c) que as premissas do terceiro são todas falsas, mas a sua conclusão é verdadeira;d) que tanto as premissas, quanto a conclusão do quarto são todas falsa.

O que podemos dizer acerca da validade dedutiva ou não desses argumentos.

2. Assumindo a compreensão intuitiva de argumento dedutivamente válido, determine quais dos argumentos apresentados abaixo são válidos. Justifique sua resposta.

a) O Sol é uma coisa imperceptível. Os persas adoravam o Sol.Logo, os persas adoravam uma coisa imperceptível.

b) Nabucodonosor deseja saber se a Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde.A Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde.Logo, Nabucodonosor deseja saber se a Estrela da Manhã é a Estrela da Manhã

3. Tendo em vista a compreensão intuitiva dos conceitos lógicos fundamentais, entre eles os de consistência e conseqüência lógica, análise as seguintes afirmações:

a) Uma coleção de proposições é inconsistente (não é consistente) se e apenas se qualquer proposição for conseqüência lógica da coleção.

b) Para quaisquer três proposições, se a primeira for conseqüência lógica da segunda e esta for conseqüência lógica da terceira, então a primeira será conseqüência lógica da terceira.

4. Quais as semelhanças e quais as diferenças que podemos detectar em nossos usos ordinários dos termos argumentar e inferir?

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